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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
ROBERTA RAMOS
Sintra - PT
Fluminense, professora
de português,
gosta de escrever sobre
as coisas simples
da vida. Vive em Sintra, Portugal,
país que a adotou com
carinho.
NA PENUMBRA
As ave-marias começam a ser entoadas
nas casinhas da aldeia.
Não entendo essa necessidade
do homem querer se conectar
com algo supremo. Sinto-me maior do
que tudo e todos, vejo-os tão ínfimos.
Trago em mim uma imensidão que eles
jamais terão.
Todo dia, quando os vermelhos e amarelos
começam a pincelar o céu, eu venho.
O vento ronrona, por vezes esfriando o
tempo, tirando dos armários gorros e cachecóis
escaldantes. Deles não preciso,
nem tenho medo de água fria. Visto-me
de breu, e isso me basta.
Estendo meu manto negro pelo muro.
Veja como é macio, como forra os tijolos
quebrados e as folhas da trepadeira. Sei
que você o inveja.
Deslizo meu corpo com cuidado, como se
evitasse os espinhos. Não os temo, sequer
preciso olhar para eles.
Do muro ao chão, não demoro. Começo a
me estender pelo piso.
Duas luzes amarelas acendem-se na minha
escuridão. Espreito o gramado, estrelado
de vaga-lumes, emplastrado de caramujos.
Brinco de seguir um dos insetos, logo
me canso. Efemeridade demais, prefiro o
que se prolonga, sete vidas, ou mil.
Começa a orquestra de cigarras e grilos.
Não há ensaios, maestro, nem palco, e os
instrumentos são timbaus e guiros. Faltam
os violinos dos mosquitos, que preferiram
tocar para os humanos. Desprezo
esse som histérico.
Espreguiço-me, e neste espreguiçar deitam-se
os moradores da casa. Precisam
repousar seus cansaços nos travesseiros.
Eu, não. Eu me deito no mundo inteiro.
Cada quintal, cada telhado é meu lar.
Acelero o passo, minhas patas de azeviche
já alcançam a igreja vizinha, com o cemitério
ao fundo. Ouço guinchos, fogem
ratazanas gordas. Eu as alcanço, deixo-as
prosseguirem caminho atrás de carnes putrefatas
como as que jazem ali, sob arranjos
de flores prostradas.
O sino majestoso já se calou. E de sua torre
jorram morcegos bêbados, tateando o
ar, emitindo os guinchos que são sua bússola.
Não passam de ratazanas, mas magras,
aladas, ambos temidos por sua má
fama.
Olho para trás, pouca coisa se vê agora.
Lâmpadas que espreitam pelas cortinas,
candeeiros tímidos nas varandas, postes
altivos guardando as ruas.
Eu impero. E foi assim, desde o começo
dos tempos. Por isso me descrevem em
poemas, músicas, quadros. O piano de
Pessoa, calado no terceiro andar; Chopin,
com seu conjunto de noturnos; e meu preferido,
de Van Gogh, onde apareço plena,
soberana da criação.
Estrelada.
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