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ANO 1
Nº 2
JUNHO/JULHO
2021
SABINA SABINO
São Paulo - SP
Moça trans,
faz filosofia,
escreve, ri,
existe, desiste,
desatina-se, de São Paulo
Capital, pobre, e até agora
odeia o estereótipo danoso,
manifesto e vivido, da artista
faminta.
NINGUÉM
Estão todos bem acordados, o
Starbucks deu conta disso. Ninguém
está fora do lugar, ninguém
que a palavra não coloca
nome, nem deixa de dar qualidade ou defeito.
Sempre tem ninguém fora do lugar.
Simetricamente falando, para cada lugar
deve existir, por lei última da natureza, o
não-lugar. Simetria assimétrica, porque
para cada lugar existem milhares de não-
-lugares. E como os lugares são habitados
por pessoas, os não lugares são, portanto,
habitados por não-pessoas. Assim como
as pessoas compram suas necessidades,
as não-pessoas não compram suas necessidades,
como as pessoas andam de carro,
as não-pessoas não andam de carro,
as pessoas vivem suas vidas, enquanto as
não-pessoas frequentemente não vivem
suas não vidas -- permanecem fantasmas
sonâmbulos. Estão todos bem acordados,
mas é um grande sono. Tão grande que
nossa matéria de sonhos foi sufocada em
seu invólucro. O sonho é como o ar, toma
a forma do espaço que lhe foi dado, do
lugar e do não-lugar, do mundo fechado e
aberto em contradição. A geometria onírica
que se forma desse modo de existência,
no entanto, não aguenta sonhos, só
aguenta espectros. E eis aqui um sonho
que eu tive quando desmaiei bêbado num
shopping uma vez:
"Chamo-me NINGUÉM; meu pai e minha
mãe chamavam-me assim, e todos os
meus companheiros me chamam NIN-
GUÉM." - Odisseia, de Homero.
Ninguém é velho, deve ter uns cinquenta
pra uns sessenta anos e trabalha desde
os nove. Pardo, do interior, cansado,
sobretudo cansado. Não é aposentado, é
desempregado, sua mulher, a Lurdes, ainda
trabalha, como empregada de alguma
casa perto do shopping. Tem filhos e filhas,
uma delas entrou em Direito numa
federal, seu nome ele nunca contou, um
filho seu morreu menino, afogou-se num
riacho. E sua vida em anedota bem que
podia terminar em um parágrafo, mas só
porque o que carrega alguém pelo mundo,
sua história, é um texto muito maior
que todas as páginas já impressas, de todos
os livros, de todos os tempos. Não
existe maior fraude que um biógrafo.
Ninguém está no Shopping. Não sabe
porque está ali, mas está. Acordou com
vontade de chorar naquele dia, procurou
a cidade inteira por um lugar para chorar.
Foi ver Lurdes no serviço, não conseguiu
falar, as palavras não saiam da boca. Pediu
desculpas por atrapalhar o serviço,
saiu pelas ruas e, sem pensar, acabou na
marginal, acabou onde agora está, no
shopping. Ele para, na entrada, pelo que
parece ser muito tempo, seus olhos acima
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