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06 Imaginação e Criatividade na Infância

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IMAGINAÇÃO

E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Copyright © Dinalivro, Lev Semenovitch Vygotsky e João Pedro Fróis, 2012 (Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou difundida electronicamente)


LEV SEMENOVITCH VYGOTSKY

IMAGINAÇÃO

E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

ENSAIO DE PSICOLOGIA

Tradução do russo, introdução e notas de João Pedro Fróis

Copyright © Dinalivro, Lev Semenovitch Vygotsky e João Pedro Fróis, 2012 (Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou difundida electronicamente)


© Dinalivro, Lev Semenovitch Vygotsky e João Pedro Fróis, 2012

Título original: Voobrajenie i Tvorchestvo v Detskom Vozraste. Psikhologicheskii

Ocherk. Moscovo: Gosizdat (1930). (

)

Título: Imaginação e Criatividade na Infância. Ensaio de Psicologia.

Autor: Lev Semenovitch Vygotsky (1896-1934)

Tradução do russo, introdução e notas de João Pedro Fróis

Revisão: Alexandre Franco

Capa: Cítrica Design

Paginação: Mário Félix - Artes Gráficas

ISBN: 978-972-576-616-3

Depósito legal: 000 000/12

1.ª edição: Outubro de 2012

Impressão e acabamento: Artipol – Artes Tipográficas, Lda. – Águeda

Todos os direitos reservados para Portugal por

DINALIVRO

Rua João Ortigão Ramos, n.º 17-A

1500-362 LISBOA PORTUGAL

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COLEÇÃO RAZÕES DE SOBRA, N.º 3

A cópia ilegal viola os direitos dos autores.

Os prejudicados somos todos nós.

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ÍNDICE

Introdução à obra .......................................................... 9

Capítulo 1 – Criatividade e imaginação .................... 21

Capítulo 2 – Imaginação e realidade .......................... 29

Capítulo 3 – O mecanismo da imaginação criativa... 47

Capítulo 4 – A imaginação da criança

e do adolescente ...................................................... 57

Capítulo 5 – «Os tormentos da criação» .................... 69

Capítulo 6 – A criatividade literária no período

escolar ........................................................................ 75

Capítulo 7 – A criatividade teatral na idade

escolar ........................................................................ 115

Capítulo 8 – O desenho na idade escolar.................. 123

Bibliografia ..................................................................... 143

Índice onomástico ......................................................... 147

Apêndice ........................................................................ 149

Biografia de Lev Semenovitch Vygotsky................... 157

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Nota sobre o tradutor ................................................... 159


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INTRODUÇÃO À OBRA

Robert Rieber – O que é uma teoria e para que serve?

Lev Vygotsky – É um plano ou um conjunto de princípios

orientadores que faculta uma explicação

das intenções humanas.

R. R. – Compreendo, mas de onde vem a teoria?

L. V. – Quer dizer, o que nos leva a teorizar? A questão

é complexa, mas tornemos algo claro desde já:

não nascemos com uma teoria e esta não nasceu

da cabeça de Zeus.

R. R. – Somos nós que a criamos, é isso?

L. V. – Não exatamente. Deixa-me pôr a coisa

da seguinte forma: criamos sobre ideias que

existem, construindo-as para que potenciem a

nossa habilidade de descoberta de respostas às

questões que nos interessam.

(Diálogo imaginado)

O interesse de Lev Vygotsky (1896-1934) pela

psicologia da arte, estética teatral e educação estética

acompanhou o seu breve e intenso percurso científico.

A importância que atribuiu à psicologia da criação e

fruição artísticas afirmou-a, pela primeira vez, no livro

Psicologia da Arte (1925), estudo apresentado com vista à

titulação como investigador do Instituto de Psicologia de

Moscovo. No ano seguinte publicou no livro Psicologia

Pedagógica um capítulo sobre Educação Estética e em

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10 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

1927/1928 um artigo com o título «Psicologia Contemporânea

e Arte» na revista Arte Soviética. 1 O livro Imaginação

e Criatividade na Infância (1930) e dois outros textos

explicam a pensamento de Vygotsky no domínio da

psicologia da imaginação criativa. 2 Como encerramento

deste ciclo estético escreveu o texto «Sobre o problema da

Psicologia da Criatividade do Ator» (1932) que Roman

Jakobson incluiria numa das suas obras. 3

O livro Imaginação e Criatividade na Infância é um

texto de referência dos estudos da psicologia da criatividade

(Smolucha, 1992; Gajdamaschko, 1999; Lindkvist,

2003; Smolucha, L. & Smolucha, F., 2012). 4 O ensaio está

1

A tradução deste artigo foi publicada pelo autor desta introdução

no Journal of Aesthetic Education em 2011.

2

Imaginação e Criatividade do Adolescente (1931) e Imaginação e o seu

Desenvolvimento na Infância (1932). Estes textos foram incluídos nas

Obras Completas (Vol. I, 1982 e vol. II, 1984) editadas pela Academia

das Ciências Pedagógicas (URSS) e incluídos nas Collected Works

of Lev Vygotsky editadas por Robert W. Rieber e Aaron S. Carton

(Plenum Press). O texto de 1931 foi incluído no The Vygotsky

Reader (1994) editado por René van der Veer.

3

Texto publicado no livro de Roman Jakobson Psichologija tsenicheskikh

chuvstv aktera (Psicologia dos sentimentos de palco dos atores),

Moscovo, 1936. Incluído nas Collected Works of Lev Vygotsky

editadas por Robert W. Rieber e Aaron S. Carton.

4

Larry Smolucha e Francine Smolucha (2012), Francine Smolucha

(1992), Gunila Lindkvist (2003), Natália Gajdamaschko (1999,

2005), Valéria Mukhina (1981) e Iurii Poluianov (2000) têm desenvolvido

a interpretação de Lev Vygotsky sobre a imaginação

criativa em várias modalidades expressivas. Outras edições do

presente livro surgiram em língua russa, respetivamente em

1967, 1991 e 2004 (Vygotskaya & Lifanova 1996; Hakkarainen,

2004). A edição de 2004 foi incluída na coletânea de textos de

L. Vygotsky intitulada Psicologia do Desenvolvimento da Criança,

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INTRODUÇÃO À OBRA 11

organizado em oito pequenos capítulos. Nos primeiros

cinco capítulos, o autor examina os conceitos de imaginação

e de criatividade, a partir dos contributos teóricos

de Pavel Blonsky (1884-1941) no campo da linguagem,

Anatoli Bakushinsky (1883-1939) e Georg Kerschensteiner

(1854-1932) na área do desenho infantil, Theodule Ribot

(1839-1916) na psicologia da imaginação criadora e Lev

Tolstoi (1828-1910) na pedagogia da escrita criativa, tão

do agrado deste escritor.

Vygotsky apresenta neste ensaio um estado da arte

a partir de uma análise psicológica e pedagógica; define

conceitos, desfaz alguns mitos e apresenta linhas inspiradoras

para a investigação futura com utilização de

exemplos de modali dades expressivas que as crianças

apreciam: o drama, o desenho, a leitura e a escrita criativa.

Todos estes modos de expressão, que a criança no seu

desenvolvimento elabora e a escola promove, potenciam

as funções psicológicas superiores e têm um natural significado

na educação da criança.

Nos últimos três capítulos apresenta exemplos

concretos a partir de três modalidades expressivas: a

escrita, a dramatização e o desenho. As conclusões e as

exemplificações que usa interessam aos destinatários

originais deste ensaio – pedagogos e psicólogos.

Não se pretende produzir, no espaço desta introdução,

uma análise exaustiva sobre a imaginação e a

criatividade no âmbito da Psicologia Histórico-Cultural

editada pela Eksmo. Por se tratar de um ensaio de divulgação

científica, segundo Vassily Davidov (1991) e Pentti Hakkarainen

(2004), este texto não integrou as Obras Completas (1982-1984).

São conhecidas várias traduções: japonês (1972), italiano (1973),

espanhol (1982), sueco (1995) e inglês (2004).

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12 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

de Vygotsky. Põe-se em relevo cinco domínios que o autor

aborda neste texto: problematização da relação entre

a imaginação e a criatividade; definição dos limites da

relação entre a imaginação e a realidade; clarificação de

alguns dos mecanismos psicológicos de encadeamento

entre a imaginação e a criatividade; comparação da

imaginação criativa na criança e no adolescente; e, por

último, dos tormentos e inquietação pela qual os indivíduos

passam na concreção da imaginação.

No primeiro domínio, a imaginação e a criatividade

articulam-se com a expe riência individual. No seu sentido

lato, a imaginação e a criatividade estão em qualquer dos

âmbitos da vida dos indivíduos: nos mundos da cultura,

artes, técnica e ciência. A imaginação é, pela sua natureza,

antecipatória, porque possibilita ir além do apreendido diretamente.

Neste sentido, a plasticidade cerebral e a memória

orgânica são fatores decisivos dos nexos entre a capacidade

imaginativa da criatividade e a sua «antevisão das coisas».

Na imaginação distingue duas direções: a imaginação

reprodutiva ligada à memória e a imaginação

criativa que ultrapassa a própria memória. Na infância

encontramos a alternância de uma e outra forma de

imaginação concomitante ao desenvolvimento intelectual,

estruturada a partir das relações entre quantidade

e qualidade das imagens mentais. Esta alternância, raiz

comum da expressão artística da criança é, para Vygotsky,

evidenciada na perceção sincrética do mundo que tanto

fascina o «adulto atento» ao desenvolvimento das crianças.

Este tipo de sincre tismo, o jogo e a atividade lúdica

têm um papel preparatório para o desenvolvimento do

pensamento analítico, permanecendo ao longo da vida

com o indivíduo. De facto, o jogo é a primeira atividade

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INTRODUÇÃO À OBRA 13

em que a imaginação criativa surge, primeiro orientada

pela perceção, a memória sensorial e o pensamento

visual, depois mediada simboli camente.

Para Vygotsky, a atividade criativa é realização

humana, geradora do novo, quer se trate dos reflexos de

algum objeto do mundo exterior ou de determinadas

elaborações do cérebro e do sentir que vivem e se manifestam

apenas no próprio ser humano. A imaginação,

fundamento da atividade criativa, revela-se de modo

claro em todos os aspetos da vida cultural. Ela é a abertura

à criação artística, científica e técnica. A cultura, a técnica

e a ciência são produtos da imaginação e da criatividade:

«toda a descoberta, grande ou pequena, antes de se concretizar

e de se consolidar, esteve unida na imaginação

como uma estrutura mental mediante novas combinações

ou correlações». O outro aspeto importante para

Vygotsky reside em que a criatividade tem uma origem

social, veiculada através da atividade de troca simbólica

entre os indivíduos, palavras, ou através do diálogo

com uma «pintura» ou da leitura de um texto literário; é

historicamente determinada e faz parte de um sistema

de significados mais complexo que se modifica ao longo

dos estádios de desenvolvimento humano.

Um dos aspetos que deve ser sublinhado diz respeito

ao princípio criativo inerente ao desenvolvimento

humano: ele é comum a todos os seres, é o fulcro da vida

das pessoas. Com alguma frequência reconhece-se que a

atividade dos poetas e dos cientistas é «naturalmente» criativa;

no entanto, temos dificuldade em assumir o mesmo

na atividade do «homem comum». Vygotsky enfatiza a

transversalidade do processo criativo aos vários grupos. Ao

considerarmos a criatividade deste modo, encontramo-la

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14 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

nessa situação na infância e noutros perío dos da vida; mas

avisa que as formas de criatividade mais elaboradas, específicas,

se encontram presentes apenas em grupos restritos

de indivíduos e são reveladas precocemente.

O segundo domínio respeita às características, ao tipo

e à qualidade das conexões criadas entre a imaginação e a

realidade. Qualquer imagem mental, por mais fantástica

que seja, encerra sinais da realidade externa. Os traços

da imaginação fundam-se nas experiências precoces do

homem: a primeira forma de ligação entre a imaginação

e a realidade faz-se a partir das primeiras experiências do

sujeito com o «outro». É neste espaço entre a realidade

interna e externa, espaço potencial de desenvolvimento,

que a imaginação tem lugar. A segunda forma de ligação

entre a imaginação e a realidade corporiza-se no produto

final da imaginação com os elementos complexos da realidade.

O quadro que se organiza na nossa mente sobre

um qualquer acontecimento, no qual não participámos,

resulta do trabalho da nossa imaginação. A imaginação

(imaginatio) é, para Vygotsky, uma cognição sensível, uma

capacidade para a reprodução de impressões sensoriais,

tal como Alexander Baumgarten (1714-1762) a definiu.

A terceira forma de ligação entre a imaginação e a realidade

é a emocional – «os psicólogos há muito notaram, que

cada sentimento tem não apenas uma expressão exterior

corpórea, mas também interior, que se mostra na escolha

dos pensamentos, das imagens e impressões».

A maior parte das imagens produzidas pela imaginação,

quaisquer que elas sejam, realizadas nos textos

literários, nas obras artísticas, estão de facto contamina das

e contaminam através desta lei psicológica da realidade

emocional que o autor formula neste texto. Por último, a

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INTRODUÇÃO À OBRA 15

quarta forma de ligação entre a imaginação e a realidade

enfatiza que a primeira pode criar o novo, sem qualquer

correspondência com a realidade, levando à formulação

da pergunta: para que serve afinal a obra artística?

O terceiro domínio que o autor propõe respeita

à descrição do mecanismo psi cológico da imaginação

criativa. Ela integra as características singulares do

objeto, as suas modificações; por exemplo, o exagero ou

a subestimação das situações e dos elementos do texto

– a ligação de elementos imutáveis em novas imagens

totais, a sistematização destas imagens, as associações e

as dissociações das impressões através da perceção, a sua

cristalização e corporização – «a paixão das crianças pelo

exagero, tal como dos adultos, tem fundamentos internos

[psicológicos] muito profundos», que ora enfatizam, ora

minimizam as necessidades e aspirações de cada um de

nós, alimentam-nos cognitiva e emocionalmente.

O quarto domínio caracterizador da problemática

da imaginação criativa diz respeito à relação entre a

experiência e a criatividade na criança e no adolescente.

Neste âmbito, propõe uma separação entre a imaginação

plástica, que usa as impressões externas, e a imaginação

emocional, que elabora a partir do próprio sujeito. Esclarecemos

que «a imaginação da criança não é mais pobre

nem mais rica do que a do [adolescente] ou do homem

adulto», refere Vygotsky, ela modifica-se ao longo do

processo do crescimento até atingir um certo tipo de

maturidade, facto que deve a todo o momento estar

presente na mente dos educadores.

Por último, Vygotsky fala da «angústia» que quase

sempre advém do ato de criação. Nem sempre o impulso

para criar vai ao encontro da capacidade exigida para a

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16 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

criação e neste processo há um sofrimento, quase sempre

sentido e cons ciente, inerente à tentativa de consecução

das imagens produzidas pela imaginação e à sua urgência

de materialização – «Não existe no mundo sofrimento que

se manifeste com tanta intensidade como o tormento da

palavra; em vão, às vezes, se irrompe da boca um grito

louco: inutilmente [a palavra] de amor está pronta a incendiar

a alma porque por vezes a nossa pobre linguagem é

fria e miserável», disse Fiodor Dostoievsky.

Neste ensaio, o desenvolvimento teórico sobre a

imaginação e a criatividade foi organizado como um dos

fundamentos da pedagogia da imaginação criativa. Em

todos os capítulos relaciona a teorização sobre a imaginação

e a criatividade com os exemplos das aprendizagens

na área da escrita criativa, da expressão dramática e do

desenho. Para Vygotsky, a pedagogia da criatividade não

pode ser reduzida à activi dade educativa supletiva ou a

uma qualquer moralidade, como é sugerido por alguns; ou

à expressão catártica, que perpassa nos discursos daqueles,

que aparentemente desejam a sua presença na escola.

A pedagogia da criatividade é uma possibilidade real para

o desenvolvimento cognitivo e emocional dos indivíduos.

No diálogo imaginado que serve de epígrafe à introdução

à obra Vygotsky diz que a teoria é sempre uma

construção de ideias que se dispõem para nós. Foi assim

que partiu à descoberta de respostas sobre um dos seus

interesses maiores: a imaginação como um impulso real

da criatividade. É este o desafio proposto neste ensaio.

Lisboa, setembro, 2012

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João Pedro Fróis


INTRODUÇÃO À OBRA 17

Agradecimentos

Agradeço ao professor René van der Veer da Universidade

de Leiden a leitura do texto introdutório. A Halima

Naimova coube o acompanhamento da tradução em

todas as suas etapas bem como da tradução dos poemas

e fragmentos literários utilizados por Vygotsky.

Bibliografia

DAVYDOV, V. V. (1991/1930). Posfácio. In Lev Vygotsky,

Voobrajenie i tvorchestvo v detskom vozraste. Psikhologicheskii

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forma usvoeniia sotsialnogo opyta (A expressão plástica das

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18 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

crianças como forma de assimilação da experiência social).

Moscovo: Pedagogika.

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(Psicologia educa cional). Moscovo, Rabotnik Prosveshcheniya.

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VYGOTSKY, L. S. (1965 /1925). Psikhologia iskusstva (Psicologia

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INTRODUÇÃO À OBRA 19

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psikhologii (Obras completas. Problemas da psicologia geral),

volume II. Moscovo: Izdatelstvo Pedagogika.

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VYGOTSKY, L. S. (2004). Psikhologia razvitia rebionka (Psicologia

do desenvolvimento da criança). Moscovo: Eksmo.

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CAPÍTULO 1

CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO

Qualquer ato humano que dá origem a algo novo

é referido como um ato criativo, independentemente do

que é criado: pode ser um objeto do mundo exterior ou

uma construção da mente ou do sentimento que vive e se

encontra apenas no homem. Se observarmos o comportamento

do homem e toda a atividade que desenvolve,

com facilidade reparamos que podemos distinguir dois

tipos de atividade. A primeira, que podemos designar

de reprodutiva ou reprodutora, está associada, de modo

intrínseco, à nossa memória; a sua essência consiste no

facto de o homem reproduzir ou repetir modos de comportamento

já anteriormente elaborados e produzidos

ou ressuscitar traços de impressões anteriores. Quando

me lembro da casa onde vivi na minha infância, ou de

países distantes que visitei no passado, estou a reproduzir

os traços daquelas impressões absorvidas na infância ou

durante as viagens. Do mesmo modo, quando desenho

a partir da natureza, escrevo ou faço algo segundo um

modelo, em todas estas situações reproduzo apenas o

que está perante mim, ou o que foi por mim anteriormente

assimilado e elaborado. Em todos estes casos, o

denominador comum é o facto de que a minha atividade

não cria nada de novo, tão-só é baseada numa repetição

mais ou menos cuidadosa de alguma coisa já existente.

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22 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Compreende-se assim facilmente a importância que

tem para a vida do homem a conservação da expe riência

anterior, na medida em que facilita a sua adaptação ao

meio exterior, criando e elaborando hábitos regulares que

se repetem em condições análogas.

A base orgânica desta atividade reprodutora, ou

memória, é a plasticidade da nossa substância nervosa.

Designa-se por plasticidade a propriedade de uma qualquer

substância que possui a capacidade de se alterar e

de conservar os vestígios dessa alteração. Assim, diremos

que a cera é mais plástica do que a água, ou do que

o ferro, porque facilmente se sujeita à transformação,

conservando melhor do que a água os vestígios das suas

modificações. Somente estas duas qualidades, tomadas

juntas, constituem a plasticidade da nossa substância

nervosa. O nosso cérebro e os nossos nervos, providos

de uma enorme plasticidade, modificam com facilidade

a sua estrutura delicada sob a influência destas alterações,

ou outras ações, conservando os seus vestígios

sob determinada condição: que as ações sejam suficientemente

fortes ou se repitam com bastante frequência.

No cérebro ocorre algo semelhante ao que acontece com

a folha de papel quando a dobramos ao meio; no lugar

da dobra fica a marca da dobra – resultado da modificação

produzida; a marca da dobra ajuda a repetição

futura dessa mesma modificação. Basta soprarmos a

folha para que ela dobre no mesmo sítio, onde ficou

a marca da dobra.

O mesmo acontece com a marca deixada pela roda

na terra mole: forma-se um trilho que fixa as modificações

efetuadas pela roda ao passar na terra e que facilitará no

futuro passar por ali novamente. No nosso cérebro, as

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CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO 23

excitações nervosas fortes ou frequentemente repetidas

produzem trilhos semelhantes.

Deste modo, o cérebro revela-se um órgão que

conserva a nossa experiência anterior e simplifica a

sua repetição. No entanto, se a atividade cerebral se

reduzisse apenas à conservação da expe riência passada,

o homem seria uma criatura capaz de se adaptar com

preponderância às condições constantes e habituais do

meio exterior. Quaisquer novas e inesperadas transformações

no meio, que não tivessem sido operadas

anteriormente na experiência do homem, não seriam

capazes de causar nele a necessária reação de adaptação.

A par destas funções de conservação da experiência

anterior, o cérebro está dotado de uma outra função

não menos importante.

Além da atividade reprodutora, é fácil notar no

homem outro tipo de atividade que combina e cria.

Quando eu, por imaginação, desenho um quadro do

futuro, digamos, a vida do homem na sociedade socialista,

ou um quadro de uma parte da vida passada e da

luta do homem pré-histórico, em ambos os casos, não

repito impressões vividas por mim outrora. Não restabeleço

simplesmente os traços de excitações nervosas

pretéritas que chegaram ao meu cérebro; na realidade,

eu nunca vi fosse o que fosse nem desse passado, nem

desse futuro, e, no entanto, posso imaginá-lo, formar

uma ideia, uma imagem ou um quadro.

A atividade do homem que não se confina à reprodução

das experiências ou de impressões vividas, mas

que cria novas imagens e ações, pertence a esta segunda

função criadora ou combinatória. O cérebro não é apenas

um órgão que se limita a conservar e reproduzir a

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24 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

nossa experiência passada, ele é igualmente um órgão

combinatório, que modifica criativamente e cria, a partir

dos elementos da experiência passada, novas situações

e novos comportamentos. Se a atividade do homem se

reduzisse apenas à reprodução do passado, então seria

uma criatura orientada somente para o passado e incapaz

de se adaptar ao futuro. É precisamente a atividade

criadora do homem que desperta a sua essência que está

orientada para o futuro, tornando-o criativo e modificando

o seu presente.

À atividade criadora baseada nas capacidades combinatórias

do nosso cérebro, a psicologia chama imaginação

ou fantasia. Em geral, não é costume entender-se

os conceitos imaginação e fantasia da mesma forma que

a ciência os interpreta. Na sua aceção comum, imaginação

e fantasia designam tudo o que é irreal, o que não

corresponde à realidade e, portanto, sem qualquer valor

prático. De facto, a imaginação, como fundamento de

toda a atividade criadora, manifesta-se de igual modo

em todos os momentos da vida cultural, permitindo a

criação artística, científica e tecnológica. Neste sentido,

definitivamente, tudo o que nos rodeia e foi concebido

pela mão do homem, todo o mundo da cultura, ao contrário

do mundo da natureza, tudo isto é o resultado da

criatividade e imaginação humanas.

«Toda a invenção», diz Ribot, «grande ou pequena,

antes de se realizar de facto e de se fortalecer, foi concebida

exclusivamente pela imaginação, como uma estrutura

elaborada pela mente através das novas combinações

ou conexões.

«[…] Não sabemos quem realizou a maior parte das

invenções; preservaram-se apenas alguns dos nomes de

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CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO 25

grandes inventores. A imaginação é sempre revelada

em todas as circunstâncias, qualquer que seja o modo

como é apresentada: individualmente ou em grupo. Para

que o arado, que no passado não foi mais do que um

simples bocado de madeira com um cabo queimado, se

transformasse, a partir deste tosco instrumento manual,

no que é hoje, após uma série de modificações, descritas

em manuais especializados, quem sabe avaliar quanta

imaginação foi necessária? De igual modo, as chamas

frágeis dos ramos resinosos dos pinheiros, que serviram

de archote para o homem primitivo, servem de exemplo

para uma longa linha de invenções até se chegar à iluminação

a gás ou à iluminação elétrica. Todos os objetos

do nosso quotidiano, não excluindo os mais simples e

habituais, são, por assim dizer, imaginação cristalizada.»

A partir daqui é fácil depreender que a nossa representação

usual sobre a criatividade não corresponde ao

sentido e à compreensão científica desta palavra. Na sua

aceção habitual, a criatividade é privilégio e dom de seres

eleitos, génios, talentos, dos que criaram grandes obras

artísticas, daqueles que realizaram grandes descobertas

científicas e inventaram aperfeiçoamentos importantes

na área da tecnologia. Reconhecemos e admitimos de

modo claro a criatividade inerente à obra de Tolstoi, de

Edison e Darwin, mas aceitamos que na vida do homem

comum a criatividade não existe.

No entanto, como já dissemos, este tipo de conceção

sobre o assunto é erróneo. Segundo a comparação de um

dos cientistas russos, a eletricidade atua e manifesta-se

não apenas no local onde ocorre uma grandiosa tempestade

ou na luminosidade dos relâmpagos ofuscantes, mas

também na lâmpada da lanterna de bolso; de igual modo,

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26 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

existe criatividade não só quando se criam grandiosas

obras históricas, mas sempre que o homem imagina, combina,

altera e cria algo novo, mesmo que possa parecer

insignificante quando comparado com as realizações dos

génios. Se tomarmos em atenção a existência da criatividade

coletiva, que reúne todos estes contributos por si só

insignificantes da criatividade individual, compreende-se

melhor como grande parte de tudo o que foi criado pela

humanidade pertence precisamente ao trabalho criativo

e coletivo anónimo de inventores desconhecidos.

A maior parte das invenções foram realizadas por

desconhecidos, como a propósito deste assunto sublinhou

Ribot. A compreensão científica deste problema

obriga-nos a tratar a criatividade mais como uma regra

do que como uma exceção. É certo que as manifestações

superiores da criatividade são até hoje apenas acessíveis

a um grupo de génios eleitos da humanidade, mas no dia

a dia a criatividade constitui-se como condição necessária

para a existência e tudo o que ultrapassa os limites da

rotina, mesmo uma pequeníssima quantidade de novidade,

é devida ao processo criativo humano.

Se compreendermos a criatividade deste modo,

então é fácil notar que os processos criativos se observam

já em toda a sua intensidade na primeira infância. Uma

das questões mais importantes da psicologia da educação

é o problema da criatividade, do seu desenvolvimento

e promoção, e do significado da atividade criativa para

o desenvolvimento geral e a maturação da criança. Na

primeira infância encontramos processos criativos que

se manifestam sobretudo nos jogos. O rapaz que cavalga

um pau imagina que monta um cavalo, a menina que

brinca com a boneca imagina-se como mãe dela, a criança

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CRIATIVIDADE E IMAGINAÇÃO 27

que no jogo se transforma em ladrão, em soldado ou

em marinheiro... todas estas crianças que brincam são

exemplo genuíno e real do próprio processo criativo.

É evidente que nos jogos as crianças reproduzem muito

do que viram. Todos sabemos qual a importância que

o papel da imitação desempenha na atividade lúdica.

O jogo da criança serve com frequência apenas como

reflexo daquilo que ela viu e ouviu dos mais velhos; no

entanto, estes elementos da sua experiência anterior

nunca se reproduzem no jogo do mesmo modo como na

realidade se apresentaram. O jogo da criança não é uma

simples recordação do que viveu, é antes uma reelaboração

criativa das impressões já vividas, uma adaptação

e construção, a partir dessas impressões, de uma nova

realidade-resposta às suas exigências e necessidades afetivas.

A propensão das crianças para o devaneio e para a

fantasia é resultado da atividade imaginativa, tal como

acontece na sua atividade lúdica.

«O menino de três anos e meio», diz Ribot, «ao ver

um homem a coxear na rua, diz:

– Mamã, olha para a perna deste pobre coitado!

Depois começou a romancear o que via: ele montava

num cavalo muito alto, caiu em cima de um penhasco

enorme e machucou muito a perna; é necessário encontrar

um remédio para curarmos a perna.»

Neste caso, a atividade combinatória da imaginação

é extraordinariamente evidente. Temos perante nós uma

situação criada pela própria criança. Todos os elementos

desta situação são conhecidos da criança da sua experiência

anterior; de outro modo, não poderia ter criado

tal situação. Todavia, a combinação destes elementos

constitui algo de novo, resulta da atividade criativa que

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28 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

pertence à criança e não é mera reprodução daquilo que

ela teve oportunidade de observar ou de ver. A capacidade

de elaboração e de construção a partir de elementos,

de combinar os elementos velhos em novas combinações,

constitui o fundamento do processo criativo.

Com total razão, muitos autores assinalam que as

raízes de tal combinação criativa podem também ser

observadas nos jogos de alguns animais. O jogo do animal

é também, com frequência, resultado da imaginação

motora. No entanto, tais rudimentos da imaginação

nos animais não puderam, dadas as condições da sua

existência, enveredar por um desenvolvimento seguro

e consistente, e só o homem desenvolveu esta forma de

atividade ao nível que nele hoje se apresenta.

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CAPÍTULO 2

IMAGINAÇÃO E REALIDADE

Entretanto surge uma questão: como se origina

esta atividade combinatória criativa? De onde surge,

como é condicionada e como se subordina às leis do seu

desenvolvimento? A análise psicológica desta atividade

destaca a sua enorme complexidade. Ela não surge de

repente, mas lenta e gradualmente, desenvolvendo-se a

partir de formas elementares e simples para outras mais

complexas e, em cada etapa etária do desenvolvimento,

detém uma expressão particular. Cada etapa da infância

é caracterizada por uma forma de atividade criativa específica.

Daí em diante, esta atividade não está separada do

comportamento humano, mas está na dependência direta

de outras formas da nossa atividade e, em particular, está

ligada à experiência acumulada.

Para compreender o mecanismo psicológico da

imaginação e a atividade criativa com ela conexa, o

melhor é começar com a clarificação da ligação que

existe entre a fantasia e a realidade no comportamento

humano. Já tínhamos chamado a atenção para a ideia

errónea de senso comum que estabelece uma divisória

intransponível entre a realidade e a fantasia. Tentaremos

agora mostrar as quatro formas fundamentais que ligam

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30 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

a atividade imaginativa à realidade. A elucidação que

propomos a seguir ajudar-nos-á a compreender a imaginação,

não como um capricho da atividade mental, não

como atividade que paira no ar, mas como uma função

primordialmente necessária.

A primeira forma de ligação da imaginação com a

realidade consiste no facto de que qualquer criação da

imaginação é elaborada a partir de elementos tomados

da realidade e retirados da experiência anterior

do homem. Seria um milagre se a imaginação pudesse

surgir do nada ou tivesse origem noutras fontes para as

suas criações e não na experiência passada. Só as representações

religiosas e místicas sobre a natureza humana

poderiam atribuir a origem dos resultados da fantasia

não à nossa expe riência passada, mas a uma força exterior

sobrenatural.

De acordo com essas conceções, os deuses ou os

espíritos incutem nas pessoas os sonhos, nos poetas a

inspiração para as suas obras, ditam aos legisladores os

dez mandamentos. A análise científica de algumas das

mais fantásticas elaborações afastadas da realidade, por

exemplo, os contos, mitos, lendas, sonhos, etc., convence-

-nos de que as fantasias mais elaboradas que representam

não são mais do que uma nova combinação de elementos

semelhantes, de facto retirados da realidade, mas apenas

submetidos à alteração ou à reelaboração pela ação da

nossa imaginação.

Como sabemos, a cabana (izbá) com patas de galinha

não existe a não ser no conto, mas os elementos a partir

dos quais o conto é elaborado foram retirados da experiência

humana; a sua combinação dá ao conto um tom

fantasioso, o que o torna na sua construção distante da

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IMAGINAÇÃO E REALIDADE 31

realidade. Tomemos como exemplo a imagem do mundo

dos contos como Púshkin o descreve:

Um fio de ouro cinge o tronco

Do verde roble à beira-mar:

O gato sábio dia e noite

Anda pelo fio a cirandar.

Vai à direita – ergue um canto,

Vai pela esquerda – conta um conto.

Ali – prodígio – erra o silvano,

Pousa nos ramos a ondina;

Na vereda insondada o rasto

De alimárias nunca vistas;

Em pés de galinha assenta a casa

Não tem porta, não tem postigo. 1

Podemos, palavra a palavra, seguir todo este fragmento

e demonstrar que apenas a combinação dos elementos

é fantasiosa nesta narração, mas que os elementos são

tomados da realidade. O carvalho, o fio de ouro, o gato,

as canções, tudo isto existe na realidade, e apenas a figura

do gato sábio que anda pelo fio de ouro a cirandar e conta

histórias, somente esta combinação dos elementos é fantasiosa.

O que resta das imagens da lenda, que aparecem

depois, como o silvano e a ondina, ou a cabana assente em

patas de galinha, apenas representa uma combinação complexa

de elementos que sugerem a realidade. Na imagem

da ondina, por exemplo, encontra-se a representação da

1

Prólogo de «Russlan e Liudmila», in Aleksandr Púchkin, O Cavaleiro de

Bronze e Outros Poemas. Seleção, tradução e notas de Nina e Guerra e

Filipe Guerra, Lisboa: Assírio e Alvim, 1999, p. 111. (N. T.)

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32 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

mulher com a imagem do pássaro que pousa nos ramos

das árvores; na cabana encantada, a imagem das pernas

de galinha com a representação de uma cabana, etc.

Deste modo, a imaginação elabora sempre a partir

dos materiais captados da realidade. De facto, como se

pode ver a partir do trecho citado, a imaginação pode

criar novos e novos graus de combinações, misturando,

em primeiro lugar, os elementos da realidade (o gato,

o fio de ouro, o carvalho), combinando depois as imagens

da fantasia (a ondina, o silvano), etc. Mas os elementos

derradeiros, a partir dos quais são criados os elementos

da realidade mais distante da representação fantástica,

mesmo esses elementos últimos, são sempre

elementos da realidade.

Encontra-se aqui a primeira e a mais importante

lei a que se subordina a atividade imaginativa. Esta lei

pode formular-se do seguinte modo: a atividade criadora

da imaginação está em relação direta com a riqueza e a

variedade da experiência acumulada pelo homem, uma

vez que esta experiência é a matéria-prima a partir da qual

se elaboram as construções da fantasia. Quanto mais rica

for a experiência humana, mais abundante será a matéria

disponível para a imaginação. Assim, a razão pela qual a

imaginação da criança é menos rica do que a do adulto

deve-se ao facto de a sua experiência ser mais pobre.

Se seguirmos a história das grandes realizações e

das grandes descobertas, podemos verificar que quase

sempre surgiram como resultado da enorme experiência

previamente acumulada. É exatamente com esta acumulação

da experiência que começa a imaginação. Quanto

mais rica a experiência, tanto mais deverá ser rica, em

circunstâncias semelhantes, a imaginação.

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IMAGINAÇÃO E REALIDADE 33

A seguir ao momento de acumulação da experiência,

diz Ribot:

inicia-se o período de amadurecimento (incubação). Em

Newton o período de amadurecimento durou 17 anos e, no

momento de estabelecer definitivamente as suas descobertas

nos cálculos, foi invadido por um sentimento tão forte que

foi obrigado a confiar a tarefa a outrem para a finalização

das suas descobertas. O matemático Hamilton disse que o

seu método de «quaterniões» lhe surgiu de repente quando

atravessava a ponte de Dublin: «Nesse momento encontrei

o resultado de quinze anos de trabalho». Darwin recolheu

dados durante as suas viagens, observou longamente as

plantas e os animais e, após a leitura do livro de Malthus,

que encontrou por acaso, elucidou definitivamente os seus

estudos e definiu de modo claro a sua teoria. Exemplos análogos

podem ser encontrados abundantemente no âmbito da

criação literária e artística.

A conclusão pedagógica que podemos tirar daqui

é a seguinte: se queremos criar bases suficientemente

sólidas para a sua atividade criativa, devemos considerar

a necessidade do alargamento da experiência da criança.

Quanto mais a criança viu, ouviu e experimentou, mais

sabe e assimila. Quanto mais elementos da realidade a

criança tiver à disposição na sua experiência mais importante

e produtiva, em circunstâncias semelhantes, maior

será a sua atividade imaginativa.

A partir desta primeira forma da ligação da fantasia

com a realidade, é fácil deduzir a razão por que é errada

a oposição de uma em relação à outra. A atividade combinatória

do nosso cérebro surge como não constituindo

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34 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

algo absolutamente novo em relação à sua atividade de

conservação, sendo antes, de modo simples, a complexificação

desta. A fantasia não está em oposição à memória,

apoia-se nela e apresenta os seus dados em combinações

renovadas. A atividade combinatória do cérebro

fundamenta-se no facto de ele conservar os traços das

anteriores estimulações. O cérebro combina esses traços

em posições diferentes daquelas em que se encontravam

na realidade.

A segunda forma de ligação da fantasia com a realidade

é diferente e mais complexa: não se realiza entre

os elementos de construção fantástica e a realidade, mas

entre o produto final da fantasia e determinados elementos

complexos da realidade. Quando eu, na base do

estudo das descrições dos historiadores ou dos viajantes,

imagino para mim mesmo o quadro da grande Revolução

Francesa ou dos desertos em África, então, em ambas as

situações o panorama obtido é o resultado da atividade

criativa da minha imaginação. Ela reproduz o que foi por

mim percebido nas experiências anteriores, mas cria, a

partir destas experiências, novas combinações.

Neste sentido, ela subordina-se inteiramente à

primeira lei anteriormente descrita. E estes produtos da

imaginação elaboram-se a partir destes elementos transformados

e tomados da realidade, sendo necessário dispor

de uma grande reserva de experiência passada para

podermos construir as imagens de que falamos através de

tais elementos. Se eu não tivesse uma ideia da carência e

da falta de água nos grandes espaços e dos animais que

habitam o deserto, não conseguiria criar uma imagem

sobre o deserto. Se não tivesse um conjunto de ideias e

representações históricas, também não conseguiria criar

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IMAGINAÇÃO E REALIDADE 35

na minha imaginação um quadro sobre a Revolução

Francesa. A dependência da imaginação da experiência

anterior é aqui revelada com enorme clareza. Porém, ao

mesmo tempo, há nestas elaborações da fantasia algo de

novo, que as distingue de modo essencial do trecho de

Púshkin, que analisámos atrás. Quer no quadro da beira-

-mar com o gato sábio, quer no caso do deserto africano

que nunca vi, estes são também, na sua essência, construções

da imaginação, combinações fantasiosas elaboradas

a partir de elementos da realidade. Contudo, o resultado

da imaginação, a própria combinação destes elementos,

num dos casos, não é real (conto), enquanto no outro

caso a ligação destes elementos, o próprio produto da

fantasia, e já não apenas os seus elementos, corresponde

a um fenómeno da realidade. É exatamente esta ligação

do produto final da imaginação com este ou outro fenómeno

real que representa esta segunda forma, superior,

de ligação da fantasia com a realidade.

Esta forma de ligação torna-se possível apenas graças

à experiência alheia ou à socialização. Se ninguém

tivesse visto nem descrito um deserto africano e a Revolução

Francesa, formar uma ideia adequada de deserto ou

de Revolução Francesa seria uma tarefa completamente

impossível. É porque a nossa imaginação trabalha, não

livremente, em ambas as situações, mas sim orientada

pela experiência alheia, agindo como se fosse impulsionada

através de outros; é só graças a isto que se pode

conseguir o resultado obtido na situação presente, no

qual o produto da imaginação coincide com a realidade.

Neste sentido, a imaginação adquire uma função

muito importante no comportamento e no desenvolvimento

humanos, transforma-se em meio para o

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36 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

alargamento da experiência do homem, porque, deste

modo, ele poderá imaginar o que nunca viu; poderá, a

partir da descrição do outro, representar para si também

a descrição daquilo que na sua própria experiência pessoal

não existiu, o que não está limitado pelo círculo e

fronteiras estritas da sua própria experiência, mas pode

também ir para além das suas fronteiras, assimilando, com

a ajuda da imaginação, a experiência histórica e social de

outros. Sob esta forma, a imaginação é condição absolutamente

necessária de quase toda a atividade intelectual do

homem. Quando lemos o jornal e conhecemos inúmeros

acontecimentos não testemunhados diretamente, quando

a criança estuda geografia ou história, quando simplesmente

a partir de uma carta tomamos conhecimento do

que ocorreu com outra pessoa, em todos estes casos, a

nossa imaginação está ao serviço da nossa experiência.

Consegue-se uma dependência dupla e recíproca da

imaginação com a experiência. Se, no primeiro caso, é a

imaginação que se apoia na experiência, então, no segundo,

é a própria experiência que se apoia na imaginação.

A terceira forma de ligação entre a imaginação e a

realidade é a conjunção emocional. Esta ligação manifesta-

-se de dois modos. Por um lado, todo o sentimento e

emoção tende a revelar-se em determinadas imagens que

lhe correspondem, como se a emoção tivesse a capacidade

de escolher as impressões, os pensamentos e as imagens

que estão em consonância com um determinado estado

de humor e disposição que nos domina nesse preciso

momento. Sabe-se que, no desgosto e na alegria, não

vemos as coisas com os mesmos olhos. Os psicólogos

aperceberam-se, faz tempo, de que cada sentimento

não tem apenas uma expressão exterior corporal, mas

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IMAGINAÇÃO E REALIDADE 37

igualmente uma expressão interior, que se manifesta na

escolha dos pensamentos, imagens e impressões. Eles

chamaram a este fenómeno a lei da expressão dupla dos

sentimentos. O medo, por exemplo, não se manifesta apenas

na palidez do rosto, no tremor, na secura da garganta,

alteração do ritmo respiratório e no batimento cardíaco,

mas também, além disso, no facto de todas as impressões

percecionadas pelo homem nesse momento, de todos os

pensamentos que lhe passam pela cabeça, se rodearem, de

uma forma geral, do sentimento que o domina. Quando

o ditado diz que o corvo assustado tem medo do arbusto,

isso quer dizer que a influência dos nossos sentimentos

tinge a perceção das coisas exteriores. Do mesmo modo

que as pessoas aprenderam há muito tempo a manifestar

por meio de impressões exteriores os seus estados de

espírito interiores, assim as imagens da fantasia servem de

expressão interior dos sentimentos. O homem assinala o

desgosto e o luto com a cor negra, a alegria com o branco,

a calma com o azul, a revolta com o vermelho. As imagens

e fantasias concedem igualmente uma linguagem interior

para as nossas emoções. Este sentimento seleciona elementos

isolados da realidade e combina-os de modo a que

essa combinação, condicionada de dentro, corresponda

à nossa disposição interior e não à lógica exterior dessas

mesmas imagens. Os psicólogos chamam a esta influência

– o fator emocional na fantasia combinatória – lei do

sinal emocional comum. A essência desta lei consiste em

que as impressões e as imagens com um sinal emocional

comum, que causam um efeito emocional coincidente,

tendem a agregar-se entre si, apesar de não existir entre

elas qualquer ligação de semelhança ou contiguidade,

interior ou exterior, entre as imagens. Resulta numa obra

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38 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

combinatória da imaginação, na base da qual estão os

sentimentos comuns, ou um mesmo sinal emocional que

junta elementos diferentes conexos.

«As representações», diz Ribot, «acompanhadas pelas

mesmas reações afetivas, associam-se posteriormente entre

si, uma vez que a semelhança afetiva une e tece entre si

representações diferentes. Tal distingue-se das associações

por contiguidade, que consistem na repetição da experiência

e das associações por semelhança no sentido intelectual.

As imagens combinam-se entre si, não porque tenham

sido dadas anteriormente em conjunto, não porque

tenhamos percebido relações de semelhança entre elas,

mas porque possuem um tom afetivo comum. A alegria,

tristeza, admiração, o amor, ódio, tédio, orgulho, cansaço,

etc., podem tornar-se centros de gravidade aglutinadores

de representações ou acontecimentos sem relação racional

entre si, mas marcados com o mesmo indício emocional, a

uma mesma característica, por exemplo, de alegria, tristeza,

erotismo, etc. Esta forma de associação é muitas vezes

representada nos sonhos ou nos devaneios, isto é, em

estados da mente, em que a imaginação está em liberdade

e trabalha sem regras e ao acaso. É fácil compreender que

estas influências implícitas ou explícitas do fator emocional

devem proporcionar o surgimento de agrupamentos

totalmente inesperados e constitui um campo aberto a

novas combinações, uma vez que o número de imagens

com marca afetiva semelhante é enorme.»

Para exemplificar de uma forma simples esta

combinação de imagens, detentoras de sinal emocional

semelhante, temos as situações correntes de aproximação

estabelecida entre duas quaisquer impressões distintas,

que nada têm em comum entre si, exceto provocarem em

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IMAGINAÇÃO E REALIDADE 39

nós estados de humor semelhantes. Quando enunciamos

que o azul é frio e o vermelho é quente, então aproximamos

a impressão de azul e de frio apenas no facto de elas

causarem em nós estados de humor semelhantes. É fácil

perceber que a fantasia imbuída deste fator emocional,

pela lógica interna dos sentimentos, representa o mais

subjetivo e íntimo tipo de imaginação.

Mas existe, além disso, uma relação inversa entre

a imaginação e as emoções. Se, no caso por nós descrito

primeiramente, são os sentimentos que influenciam a

imaginação, então, no outro caso é, pelo contrário, a imaginação

que influencia os sentimentos. Este fenómeno

poderia ser denominado lei da realidade emocional da

imaginação. A essência desta lei é formulada por Ribot

nos seguintes termos.

«Todas as formas da imaginação criativa», diz ele,

«incluem em si elementos afetivos.» Isto significa que toda

a construção da fantasia, inversamente, influencia os nossos

sentimentos e, no caso de esta construção, por si só,

não corresponder à realidade, todos os sentimentos por

ela desencadeados são reais, vividos verdadeiramente e

integrados pelo homem que os sente. Imaginemos uma

situação simples de ilusão. Ao entrar às escuras no quarto,

a criança, por ilusão, toma o vestido pendurado por uma

pessoa estranha ou um ladrão que entrou em sua casa.

A imagem do ladrão criada pela fantasia da criança não

é real, mas o medo que a criança sente, o seu susto, são

de facto impressões reais para a criança. Algo semelhante

sucede também com todas as elaborações fantásticas e

esta lei psicológica deve explicar-nos claramente por que

exercem em nós uma impressão tão forte as obras de arte

criadas pela fantasia dos seus autores.

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40 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

As paixões e a sorte dos heróis imaginados, a sua felicidade

e desgraça inquietam, preocupam e contaminam-

-nos, apesar de sabermos bem que estamos em presença

de acontecimentos irreais, invenções da fantasia. E isto

deve-se ao facto de as emoções com as quais somos contagiados,

a partir da leitura das páginas de um livro ou

da cena de uma peça de teatro, por efeito das imagens

artísticas, serem verdadeiramente reais e de as sentirmos

profundamente. Frequentemente, uma simples combinação

das impressões do exterior, como, por exemplo, a

impressão que a obra musical causa na pessoa que a ouve,

desperta um mundo inteiro de vivências e sentimentos.

Este alargamento e aprofundamento dos sentimentos

e a sua reconstrução criativa são a base psicológica da

arte musical.

Falta ainda falar da quarta e última forma de ligação

da fantasia com a realidade. Esta última forma está, por

um lado, estritamente ligada à que acabámos de descrever,

mas, por outro lado, distingue-se dela de modo radical.

A essência desta última consiste em que a construção

da fantasia pode representar por si algo essencialmente

novo, de não existente na experiência do homem, e

qualquer coisa que não corresponde a nenhum outro

objeto da realidade; mas ao encarnar uma nova forma do

exterior, tomando uma forma material, esta imaginação

«cristalizada», ao tornar-se objeto, começa a existir de

facto no mundo e a atuar sobre os outros objetos.

Tal imaginação torna-se realidade. Exemplo desta

imaginação «cristalizada» ou encarnada pode ser um

qualquer dispositivo técnico, máquina ou ferramenta.

Resultado da imaginação combinatória do homem, estes

novos objetos não correspondem a nenhum exemplo

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IMAGINAÇÃO E REALIDADE 41

existente na natureza, mas surgem da ação mais convincente

e da ligação prática com a realidade, uma vez que,

corporizadas, tornaram-se tão reais como as outras coisas

e exercem a sua ação no mundo exterior.

Estes produtos da imaginação atravessaram uma

história muito longa que talvez se deva sublinhar de um

modo esquemático e sucinto. É possível dizer que no

curso do seu desenvolvimento eles descreveram um ciclo.

Os elementos a partir dos quais foram construídos foram

tomados pelo homem da realidade e dentro dele, no seu

pensamento, foram sujeitos a um trabalho de reconstrução,

transformando-se em produtos da imaginação.

Por fim, ao serem materializados, voltaram outra

vez à realidade, mas voltaram com uma nova força ativa,

transformadora dessa realidade. Este é o ciclo completo

da atividade criativa.

Seria erróneo supor que só no domínio da técnica,

da ação prática sobre a natureza, a imaginação é capaz

de cumprir este ciclo completo. Tal como no domínio da

imaginação emocional, isto é, na imaginação subjetiva,

é possível descrever um ciclo completo que não é difícil

de observar.

Acontece que, exatamente quando temos perante

nós um ciclo completo traçado pela imaginação, os dois

fatores – intelectual e emocional – aparecem, em igual

medida, necessários para ato criativo. O sentimento e o

pensamento movem a criatividade humana.

«Qualquer pensamento dominante», diz Ribot,

«é sustentado sobre alguma necessidade, aspiração

ou desejo, isto é, por um elemento afetivo, pois seria

absurdo acreditar na constância de qualquer ideia,

que por hipótese existisse em puro estado intelectual,

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42 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

com toda a sua aridez e frieza... Todo o sentimento

(ou emoção) dominante deverá concentrar-se na ideia

ou imagem que lhe possa dar forma e organização, sem

a qual permaneceria num estado impreciso… Vemos,

assim, que estes dois termos – pensamento dominante

e emoção dominante – são quase iguais entre si, que um

e outro incluem elementos inseparáveis e apontam para

o predomínio de um ou outro.» Para nos convencermos

disto, o melhor é dar um exemplo a partir da imaginação

artística. Na realidade, para que serve a obra artística?

Influenciará ela, no nosso mundo interior, os nossos

pensamentos e sentimentos, tal como as ferramentas

técnicas, relativamente ao mundo externo, ao mundo

da natureza? Damos um exemplo muito simples, a

partir do qual podemos esclarecer sob a forma mais

elementar a ação da imaginação artística. O exemplo é

tirado do conto de Aleksandr Púshkin A Filha do Capitão.

Nele se descreve o encontro de Pugatchov com o herói

da história, Grinev, em nome do qual é desenvolvida a

narração. Grinev, oficial feito prisioneiro de Pugatchov,

tenta persuadi-lo a deixar os seus companheiros e a

recorrer ao perdão da imperatriz. Ele não compreende

o que move Pugatchov.

Pugatchov sorriu amargamente.

– Não – disse ele –, é tarde para me arrepender. Para

mim não haverá perdão. Continuarei como comecei. Sabe-se

lá! Talvez dê resultado! Grichka Otrepiev reinou em Moscovo,

como sabes.

– E sabes como acabou? Atiraram-no de uma janela,

mataram-no à facada, queimaram-no, carregaram um canhão

com as suas cinzas e dispararam-no!

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IMAGINAÇÃO E REALIDADE 43

– Ouve – prosseguiu Pugatchov, com uma espécie de

inspiração selvagem. – Vou-te contar uma história que em

criança me contou uma velha calmuque. Um dia, uma águia

perguntou ao corvo: «Diz-me, corvo pássaro, porque vives tu

no mundo trezentos anos e eu só trinta e três?» «Isso, paizinho»,

respondeu-lhe o corvo, «é porque tu bebes sangue vivo

e eu alimento-me de carne podre!» A águia pensou: vamos lá

experimentar e alimentar-nos de igual modo. A águia e o corvo

voaram juntos. Viram uma carcaça de um cavalo. Desceram e

pousaram sobre ela. O corvo começou a dar bicadas e a elogiar.

A águia bicou uma vez, bicou outra, bateu as asas e disse ao

corvo: «Não, irmão corvo, a viver trezentos anos comendo

carne putrefacta é preferível saciar-se de sangue vivo e o resto

se Deus quiser!» Que tal achas da história calmuque? 2

O conto narrado por Pugatchov é produto da imaginação

e dir-se-ia que a imaginação está completamente

desligada da realidade. O corvo e a águia falantes apenas

poderiam estar representados na fantasia da velha

calmuque. Mas não é difícil identificarmos que noutro

sentido esta elaboração fantástica resulta diretamente da

realidade e age sobre essa mesma realidade. No entanto,

esta realidade não é externa, é interna – é o mundo

dos pensamentos, conceitos e sentimentos do próprio

homem. Sobre estas criações é costume dizer que elas

são fortes pela sua verdade interna e não externa. É fácil

notar que, nas personagens da águia e do corvo, Púchkin

apresentou dois tipos de pensamento e de vida, dois tipos

de atitudes em relação ao mundo, o que não era possível

2

Aleksandr Púshkin, A Filha do Capitão. Lisboa: Novo Imbondeiro Editores.

Tradução do russo por Manuel Seabra, p. 100. (N.T.)

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44 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

compreender-se a partir de uma conversa fria e seca entre

os dois interlocutores – a diferença entre o ponto de vista

do pequeno-burguês e o ponto de vista do rebelde –,

diferença que se encontra com uma completa evidência

e enorme força do sentimento inscrita na consciência do

narrador através do conto.

O conto poderia esclarecer as relações complexas

do dia a dia; as suas personagens como que iluminariam

um problema do quotidiano; o que um diálogo frio e prosaico

não o poderia fazer por si só, fê-lo o conto através

de uma linguagem imaginativa e emocional. Púshkin

tem razão quando diz que o verso pode cortar os corações

com uma força desconhecida e noutro poema fala

da realidade da vivência emocional causada a partir da

invenção: «Sobre a imaginação lavar-me-ei em lágrimas.»

Vale lembrar a influência que exerce na consciência social

uma obra de arte, para que nos convençamos de que

aqui a imaginação descreve o mesmo ciclo tão completo

como o que é encarnado numa ferramenta material.

Gogol criou o Inspetor; os atores representaram-no no

teatro; o autor e os atores criaram imagens de ficção, e

a própria peça, representada em cena, desnudou com

tal clareza todo o terror da Rússia de então, que, com

tal força, ridicularizou os pilares nos quais assentava a

vida e que pareciam inabaláveis, o que todos sentiram, e

mesmo o próprio czar também sentiu mais do que todos,

ao assistir à estreia, que a peça comportava uma grande

ameaça para aquele regime.

«Hoje todos foram atingidos e eu mais do que

todos», disse Nikolai na primeira representação da peça.

As obras artísticas podem exercer uma influência

forte na consciência social das pessoas porque possuem

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IMAGINAÇÃO E REALIDADE 45

uma lógica interna. O narrador de qualquer obra literária,

como Pugatchov por exemplo, não combina as imagens

da fantasia em vão, ou sem sentido, não as acumula

arbitrariamente umas sobre as outras, pela vontade do

acaso, como nos sonhos ou no devaneio sem sentido. Ao

contrário, elas seguem a lógica interna das imagens em

desenvolvimento e esta lógica interna é condicionada

pela ligação que a obra estabelece entre o seu mundo e

o mundo externo. No conto sobre o corvo e a águia as

imagens dispõem-se e combinam-se segundo a lei da

lógica das duas forças representadas pelas personagens

de Grinev e Pugatchov. Um exemplo muito curioso deste

ciclo completo que uma obra literária deste tipo contém,

dá-nos L. Tolstoi nas suas obras. Tolstoi descreve como lhe

surgiu a imagem da Natacha no romance Guerra e Paz.

«Eu peguei em Tânia», diz ele, «dialoguei com a

Sónia e surgiu a Natacha.»

Tânia e Sónia são a sua cunhada e a sua mulher,

duas mulheres reais, cuja combinação resultou na imagem

artística. Estes elementos tomados da realidade

combinam-se a seguir, não pelo livre capricho do artista,

mas segundo a lógica interna da imagem artística. Tolstoi

ouviu, em certa altura, a opinião de uma das suas leitoras,

que lhe disse que ele procedera de modo muito cruel

com Ana Karenina, a heroína do seu romance, quando

a obrigou a lançar-se para baixo das rodas do comboio

em andamento. Tolstoi observou:

Isto faz-me lembrar o que aconteceu com Púshkin

quando disse certa vez a um dos seus amigos:

– Nem imaginas a partida que a Tatiana me pregou.

Casou-se! Eu não esperava nada isso dela.

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46 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

O mesmo posso eu dizer sobre a Ana Karenina. De um

modo geral, os meus heróis e as minhas heroínas fazem, às

vezes, coisas que eu próprio não quereria que tivessem feito.

Fazem o que eles próprios deviam fazer na realidade e como

acontece na vida real, não como eu quero.

Encontramos este género de reconhecimento num

conjunto inteiro de artistas que enfatizam a mesma lógica

interna que governa a construção da imagem artística.

Wundt, num excelente exemplo, expressou muito bem

esta lógica da fantasia, quando disse que o pensamento

sobre o casamento pode incutir o pensamento sobre o

enterro (a união e a separação do noivo e da noiva), mas

de modo algum o pensamento da dor de dentes.

Deste modo, na obra de arte encontramos frequentemente

unidos traços distantes e sem ligação entre si;

embora não sendo estranhos uns aos outros, como o

pensamento sobre a dor de dentes e o pensamento sobre

o casamento, ligar-se-ão segundo uma lógica interna.

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CAPÍTULO 3

O MECANISMO

DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA

Como se compreende de tudo o que foi anteriormente

dito, a imaginação é, pela sua composição, um

processo muito complexo. E é exatamente essa complexidade

que se constitui como a maior dificuldade no

estudo do processo criativo e frequentemente conduz a

ideias erróneas sobre a própria natureza desse processo

e o seu caráter, como algo invulgar e absolutamente

extraordinário. Não é nossa tarefa dar agora uma descrição

completa do conteúdo deste processo. Isto exigiria

uma análise psicológica longa, que neste momento não

nos deve interessar, mas, para darmos uma ideia sobre

a complexidade desta atividade, observaremos muito

brevemente alguns momentos que fazem parte deste

processo. Qualquer atividade imaginativa tem sempre

uma história longa atrás de si. Aquilo a que chamamos

criação é habitualmente apenas o ato do nascimento que

ocorre em resultado de um prolongado processo interno

de gestação e desenvolvimento fetal.

No início deste processo, como já sabemos, encontramos

sempre as perceções externas e internas que são

o fundamento da nossa experiência. O que a criança

vê e ouve constitui deste modo os primeiros pontos de

apoio para a sua criatividade futura. A criança acumula

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48 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

material a partir do qual, posteriormente, irá construir

as suas fantasias. Depois segue um processo complexo

de transformação deste material. As partes constituintes

importantes deste processo são as dissociações e associações

das impressões adquiridas através da perceção. Cada

impressão representa um todo complexo composto por

um conjunto de múltiplas partes separadas. A dissociação

implica a fragmentação deste todo complexo, separando

as suas partes individuais; certas partes individuais

destacam-se essencialmente por comparação umas com

as outras; umas são guardadas na memória, enquanto

outras são esquecidas. A dissociação é, deste modo,

uma condição necessária para a subsequente atividade

da fantasia.

Para ligar os diferentes elementos, o homem deve,

antes de tudo, fragmentar a associação natural dos elementos

tal como inicialmente foram percebidos. Antes de

criar a personagem de Natacha em Guerra e Paz, Tolstoi

teve de detetar as características particulares das duas

mulheres que lhe eram próximas; se não o fizesse, não as

conseguiria misturar ou fundir na personagem de Natacha.

A esta escolha de traços individuais e o abandono de

outros podemos na verdade denominar dissociação. Este

processo é muito importante em todo o desenvolvimento

mental do homem, serve de base do pensamento abstrato

e é o fundamento da formação de conceitos.

Esta capacidade de realçar traços individuais de

um conjunto complexo tem significado para todo o trabalho

criativo que o homem realiza sobre as impressões.

No seguimento do processo de dissociação sucede-se

o processo de modificação a que são sujeitos estes elementos

dissociados. Este processo de modificação ou de

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O MECANISMO DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA 49

deformação baseia-se na dinâmica das nossas estimulações/excitações

nervosas internas e das imagens que lhes

correspondem. Os traços das impressões exteriores não

se armazenam de modo imóvel no nosso cérebro como

as coisas no fundo de uma cesta. Estes traços representam

processos que se movem, mudam, vivem, morrem,

e é neste movimento que reside a garantia das suas

modificações sob a influência de fatores internos, que

os deformam e reelaboram. Podemos dar como exemplo

desta modificação interna o processo de subestimação e

de sobrestimação de elementos isolados das impressões,

que assumem uma enorme importância na imaginação

em geral e na imaginação da criança em particular.

As impressões captadas da realidade mudam,

aumentando ou reduzindo as suas dimensões naturais.

A inclinação das crianças que as leva a exagerar, do

mesmo modo que essa mesma forte inclinação ocorre

nos adultos, tem uma causa interna muito profunda.

Estas causas consistem, na maior parte das vezes, na

influência que o nosso sentimento interior exerce sobre

as impressões exteriores. Exageramos porque queremos

ver as coisas na sua forma aumentada, quando isto corresponde

às nossas necessidades, ao nosso estado de

espírito interior. A tendência das crianças para o exagero

está bem exemplificada nos contos. Karl Groos dá-nos

um exemplo da sua filha, quando ela tinha cinco anos e

meio de idade.

«Era uma vez um rei», começava a pequena, «que

tinha uma filha pequenina. A filha estava deitada no

berço, e ao aproximar-se junto dela o rei reconheceu

nela a sua filha. Depois disso eles celebraram o seu

casamento. Uma vez, quando eles estavam sentados

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50 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

à mesa, o rei disse-lhe: Traz-me, por favor, um copo

grande com a cerveja. Ela então trouxe-lhe um copo de

cerveja com três arshin 1 de altura. Depois disso, todos

adormeceram, menos o rei que ficou a vigiar por eles,

e se eles ainda não morreram, é porque devem estar

vivos ainda hoje.»

«Este exagero», diz Groos, «é despertado pelo

interesse por tudo o que é extraordinário e invulgar,

ao qual se junta o sentimento de orgulho agregado à

ideia de se possuir alguma coisa imaginada e especial:

Eu tenho trinta moedas, não, cinquenta; não, cem;

não, mil! Ou: Eu acabei de ver agora uma borboleta do

tamanho de um gato; não, do tamanho de uma casa!»

Bühler especifica, com toda a razão, que neste processo

de modificações, e especialmente no exagero, ocorre na

criança o exercício de lidar com grandezas desconhecidas

na sua experiência direta. É fácil de ver a enorme

importância aceite por estes processos de modificação

e, em especial, de exagero nos exemplos da imaginação

numérica citados por Ribot.

A imaginação numérica nunca atingiu o grande e

raro valor», diz ele, «como entre os povos do Oriente. Eles

jogam com os números arrojadamente e esbanjam-nos com

um brilhantismo admirável. Na cosmogonia caldeica narra-

-se que o deus peixe Oannes consagrou 259 mil e 200 anos

à educação da humanidade, e depois, durante 432 mil anos

reinaram na terra diferentes figuras mitológicas, e ao fim

destes 691 mil e 200 anos, a face da terra foi renovada pelo

dilúvio... Os habitantes da Índia foram ainda mais longe.

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1

Arshin: 0,71 metros.


O MECANISMO DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA 51

Eles inventaram unidades colossais, que servem de base e de

material para o jogo fantástico com os números. Os jainistas 2

dividem o tempo em dois períodos: o tempo ascendente e o

tempo descendente. Cada um deles tem uma duração imensa:

2 000 000 000 000 000 oceanos de anos, sendo cada oceano

de anos igual por si só a 1 000 000 000 000 000 anos...

A meditação sobre a vastidão do tempo semelhante deve

causar tonturas ao budista devoto.

Semelhante jogo com exageros numéricos torna-se

necessário para o homem, e vemos claramente a demonstração

disso na astronomia e nas outras ciências naturais,

que têm de operar com números não mais pequenos mas

com grandezas muito maiores.

«Nas ciências», diz Ribot, «a imaginação numérica

não se reveste de tais convicções erróneas. A ciência,

ao avançar, é acusada de reprimir a imaginação, mas,

na realidade, é a imaginação que abre áreas cada vez

mais amplas à criação científica. A Astronomia flutua na

infinitude do tempo e do espaço. Ela vê nascer mundos,

que no início cintilam como a luz opaca do nevoeiro,

transformando-se depois em sóis brilhantes. Estes sóis,

arrefecendo, cobrem-se de manchas, tornam-se escuros

e, por fim, apagam-se. A Geologia segue o desenvolvimento

do planeta que habitamos através de uma série

de revoluções e cataclismos; ela prevê o futuro distante,

quando o globo terrestre, ao perder os vapores aquáticos

que defendem a sua atmosfera da irradiação excessiva

de calor, sucumbirá de frio. As hipóteses universalmente

aceites na Física e Química atuais, sobre os átomos e

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2

Seguidores do jainismo.


52 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

partículas não cedem lugar na sua ousadia ao arrojo das

invenções da imaginação indiana.»

Vemos deste modo que o exagero, tal como a imaginação,

de um modo geral, é tão necessário na arte como

na ciência. Não fosse esta capacidade, que se manifestava

de modos tão divertidos no conto da menina de cinco

anos e meio, a humanidade não seria capaz de criar a

Astronomia, a Geologia e a Física.

A parte constituinte seguinte nos processos imaginativos

é a associação, ou seja, a junção dos elementos dissociados

e alterados. Como já foi notado anteriormente, esta

associação pode ter lugar sobre bases diferentes e tomar

formas diferentes, que vão da união puramente subjetiva

de imagens até à junção científica objetiva, como a

que evidencia, por exemplo, a representação geográfica.

E, por último, o momento final e último do trabalho prévio

da imaginação é a combinação de imagens isoladas

que são afinadas num sistema, incluídas num quadro

complexo. A atividade da imaginação criativa não termina

neste ponto. Como já referimos antes, o ciclo completo

desta atividade só estará completo quando a imaginação

se converter ou cristalizar em imagens exteriores.

No entanto, sobre este processo de cristalização, ou

transição do imaginado para a realidade, falaremos em

separado. Aqui mesmo, concentrando-nos apenas sobre

os aspetos internos da imaginação, teremos de indicar

os principais fatores psicológicos dos quais dependem

todos estes processos isolados. De entre estes fatores, o

primeiro, como estabelece a análise psicológica, constitui

a necessidade que o homem tem de se adaptar ao

ambiente que o envolve. Se a vida que o rodeia não lhe

desse trabalhos, se as suas reações habituais e herdadas

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O MECANISMO DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA 53

o mantivessem em equilíbro com o mundo à sua volta,

então não existiria qualquer fundamento para o surgimento

da ação criadora. Um ser totalmente adaptado ao

mundo que o rodeia nada poderia desejar, não buscaria

outra coisa e certamente não poderia criar. Por isso, na

base da ação criadora está sempre subjacente a inadaptação

a partir da qual surgem necessidades, aspirações

e desejos.

«Cada necessidade», diz Ribot, «aspiração ou desejo,

por si só ou conjuntamente com outros, pode servir de

impulso para a criação. A análise psicológica deve em

cada caso decompor a “criatividade espontânea” nestes

seus elementos primários... Qualquer invenção tem assim

uma origem motora; a essência principal da invenção

criativa é, em todas as situações, de ordem motora.

As necessidades e os desejos, por si só, não podem

produzir coisa alguma. São simples estímulos e molas

motoras. Para inventar, é necessária, além disso, a presença

de uma outra condição: o aparecimento espontâneo

das imagens. Chamo aparecimento espontâneo

o que acontece de repente, sem causas óbvias e claras.

As causas existem de facto, mas as suas ações estão

envoltas com uma forma oculta do pensamento por

analogia através do estado mental afetivo e da função

cerebral inconsciente.»

A presença de necessidades e aspirações põe deste

modo em movimento o processo imaginativo e faz

renascer os traços das excitações nervosas que fornecem

um material que possibilita o seu funcionamento. Estas

duas condições são necessárias e suficientes para que

compreendamos a atividade da imaginação e de todos

os processos que nela entram.

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54 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Surge ainda a pergunta sobre os fatores de que

depende a imaginação. No que concerne aos fatores

psicológicos, na verdade, estes foram, embora de modo

solto, já acima enumerados por nós.

Já dissemos que a atividade imaginativa depende da

experiência, das necessidades e interesses em que estas

necessidades são manifestas. Facilmente se compreende

que ela depende da capacidade combinatória e do exercício

desta atividade, que consiste em dar forma material

aos produtos da imaginação; de igual modo, depende da

habilidade técnica e das tradições, isto é, dos exemplos

criativos que influenciam o homem. Todos estes fatores

têm uma enorme importância, mas são tão visíveis e

simples que não nos ocuparemos deles agora. Menos

visível, e por isso mais importante, é a ação de um outro

fator: o meio envolvente. Habitualmente, a imaginação é

representada como uma atividade estritamente interna,

independente das condições exteriores, ou, no melhor

dos casos, dependente dessas condições apenas por um

lado, porque estas condições determinam o material

que a imaginação trabalha. No que respeita aos próprios

processos da imaginação, a sua direção, à primeira

vista, parece ser dirigida simplesmente de dentro pelos

sentimentos e pelas necessidades do próprio homem

e por isso condicionados pelas causas subjetivas e não

objetivas. De facto, isto não se passa assim. Já há muito

tempo que na psicologia foi estabelecida uma lei segundo

a qual o anseio para criar é inversamente proporcional à

simplicidade do meio.

«Por isso», diz Ribot, «quando compararmos os

negros com os brancos, os primitivos e os civilizados, o

resultado é que, para a mesma quantidade de população,

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O MECANISMO DA IMAGINAÇÃO CRIATIVA 55

a desproporção dos inovadores num e noutro caso é

surpreendente.»

Esta dependência da criatividade relativamente ao

contexto é muito bem explicada por Waismann. Ele diz:

«Suponhamos que nas ilhas Samoa nasce uma criança

dotada com o talento e o génio de Mozart. O que pode

ela fazer? Quando muito, o que ela pode fazer é ampliar

a gama de três ou quatro até sete tons e criar uma série de

melodias um pouco mais complexas, mas seria incapaz

de compor uma sinfonia ou, como Arquimedes, de criar

a máquina electrodinâmica.»

Qualquer inventor, mesmo que seja um génio, é

sempre o produto do seu tempo e época. A sua criatividade

parte de necessidades que foram criadas antes

dele e apoia-se nas possibilidades que residem fora dele.

É por isso que notamos uma sucessão rigorosa na história

do desenvolvimento da técnica e da ciência. Nenhuma

invenção ou descoberta científica surge antes de se criarem

as condições materiais e psicológicas necessárias para

o seu surgimento. A criatividade representa um processo

histórico contínuo, em que toda a forma subsequente é

definida pela anterior.

É exatamente isto que explica a distribuição desproporcional

dos inovadores e cientistas entre diferentes

classes sociais. As classes privilegiadas dão incomensuravelmente

uma percentagem maior de criadores na

ciência, na técnica e na arte, porque, de facto, nestas

classes existem mais condições para a criação.

«Em geral», diz Ribot, «fala-se tanto sobre o voo

livre da imaginação, sobre o todo-poderoso génio, que se

esquecem as condições sociológicas (sem falar de outras),

das quais a cada passo depende uma e a outra. Por muito

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56 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

individual que se afigure toda a criação, comporta sempre

em si um coeficiente social. Nesse sentido nenhuma

invenção é individual na aceção estrita da palavra: em

toda a invenção existe sempre uma colaboração de trabalho

anónimo.»

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CAPÍTULO 4

A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA

E DO ADOLESCENTE

A atividade da imaginação criativa é muito complexa

e depende de uma série de diferentes fatores. Daqui se

depreende claramente que esta atividade não pode ser

igual na criança e no adulto, porque todos os fatores

assumem um aspeto diferente, em diferentes épocas da

infância. Por isso, em cada período do desenvolvimento

da infância, a imaginação criativa elabora de um modo

particular, de acordo com o estádio de desenvolvimento

em que a criança se encontra. Vimos que a imaginação

depende da experiência e que a experiência da criança

se vai estruturando e crescendo lentamente, sendo

portadora de características específicas profundas que a

distinguem da experiência do adulto. A relação da criança

com o seu meio, que, com a sua complexidade ou simplicidade

e com as tradições e influências, estimula e orienta

o processo da criatividade, é também muito diferente.

Os interesses da criança e do adulto também diferem

entre si; por isso, é assim compreensível que a imaginação

da criança funcione de modo diverso da do adulto.

Então, como se se distingue a imaginação da criança

da imaginação do adulto e qual é a linha de base do seu

desenvolvimento na idade infantil? Até agora existe a

opinião de que na criança a imaginação é mais rica do que

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58 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

no adulto. A infância é considerada como sendo o período

em que mais se desenvolve a fantasia e, de acordo com

esta opinião, à medida que a criança se desenvolve, a sua

imaginação e a força da sua fantasia começam a diminuir.

Esta opinião assenta numa série de observações sobre a

atividade da fantasia.

As crianças podem fazer tudo, disse Goethe, e esta

simplicidade e pouca exigência da fantasia infantil, que

deixa de ser livre no adulto, foi confundida frequentemente

com a liberdade e riqueza da imaginação infantil.

Os produtos da imaginação infantil divergem abruptamente

da experiência do adulto e isto é tomado como

a base para a conclusão de que as crianças vivem num

mundo do fantástico. Outros traços são as imprecisões,

as distorções da experiência real e o exagero característico

das fantasias das crianças e a sua propensão e gosto pelos

contos e narrações fantásticas.

Tudo isto, no seu conjunto, serviu de base para

afirmar que a fantasia na idade infantil é mais rica e

variada do que a fantasia no adulto. No entanto, esta

opinião não encontra fundamentação na investigação

científica. Sabemos que a experiência da criança é mais

pobre do que a experiência do adulto. Sabemos também

que os seus interesses são mais simples, elementares e

mais pobres; por fim, a sua relação com o seu contexto

é igualmente menos complexa, desprovida da precisão

e variedade do comportamento da pessoa adulta, sendo

que todos estes fatores são importantíssimos definidores

do trabalho da imaginação. A imaginação na criança,

como mostra esta análise, não é mais rica, mas mais

pobre do que a imaginação do homem adulto; ao longo

do processo de desenvolvimento da criança também

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A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 59

se desenvolve a imaginação e atinge a maturidade na

idade adulta.

Por isso, os verdadeiros produtos da imaginação

criativa, em todas as áreas da atividade criativa, pertencem

à fantasia amadurecida. À medida que se aproxima a

maturidade, também começa a amadurecer a imaginação,

e, na idade de transição – a partir do amadurecimento

sexual dos adolescentes –, a força da imaginação, em

ascensão muito poderosa, une-se aos primeiros estágios

de maturidade da fantasia. Os autores que escreveram

sobre a imaginação assinalaram a ligação muito próxima

entre o amadurecimento sexual e o desenvolvimento da

imaginação. É possível compreender esta relação quando

temos em atenção que, neste período, o adolescente

amadurece e equilibra uma ampla experiência, ao mesmo

tempo que se definem os denominados interesses permanentes,

se extinguem rapidamente e suspendem os

interesses infantis e, em relação com a maturidade geral,

a atividade imaginativa adquire uma forma mais acabada.

Nas suas investigações sobre a imaginação criativa,

Ribot desenha uma curva (Figura 1) que representa simbolicamente

o desenvolvimento da imaginação e permite

compreender as particularidades do desenvolvimento

da imaginação infantil, da do homem maduro e da do

período de transição de que nos ocuparemos agora.

A lei principal do desenvolvimento da imaginação, que

esta curva representa, formula-se do seguinte modo: a

imaginação, ao longo do seu desenvolvimento, passa

por dois períodos divididos por uma fase crítica. A curva

IM representa o desenvolvimento da imaginação no primeiro

período. Eleva-se bruscamente e depois, durante

bastante tempo, mantém-se no nível atingido. A linha

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60 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

RO, a tracejado, representa o percurso do desenvolvimento

da inteligência ou do raciocínio. Este desenvolvimento

começa, como se pode ver na figura, mais tarde e

aumenta mais lentamente, porque requer uma grande

acumulação de experiência e uma maior complexidade

na sua elaboração. É só no ponto M que as duas linhas do

desenvolvimento da imaginação e do desenvolvimento

da inteligência coincidem.

A parte esquerda da figura representa graficamente

de modo claro a originalidade que caracteriza a atividade

imaginativa na idade infantil, aquilo que, na realidade, foi

considerado por muitos investigadores como a riqueza

da imaginação infantil. A partir da figura é fácil ver que o

desenvolvimento da imaginação e da inteligência se distanciam

muito entre si na infância e de que esta relativa

autonomia da imaginação infantil, a sua independência

em relação à atividade cognitiva, não prova a riqueza

mas antes a pobreza da fantasia da criança.

Figura 1. Curva do desenvolvimento da imaginação

de Th. Ribot (1900)

A criança pode imaginar muito menos coisas do

que um adulto, mas acredita mais nos produtos da sua

imaginação e controla-os menos, e por isso a imagina-

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A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 61

ção, no dia a dia, no sentido comum da palavra, isto

é, algo de irreal ou inventado, é certamente maior na

criança do que no adulto. No entanto, não só o material

a partir do qual se constrói a imaginação é mais pobre

na criança do que no adulto, como também o caráter das

combinações que se juntam a esse material é, na sua qualidade

e variedade, inferior em relação às combinações

realizadas pelo adulto. De todas as formas de ligação

com a realidade que acima enunciámos, a imaginação da

criança está ao nível da imaginação do adulto apenas no

que diz respeito à primeira, quer dizer, na realidade dos

elementos a partir dos quais é construída. É provável que

a raiz emocional da imaginação da criança se expresse

também tão fortemente como no adulto; mas no que respeita

às outras duas formas de conexão, será necessário

sublinhar que elas se desenvolvem apenas com o passar

dos anos, e se vão desenvolvendo muito lentamente e

muito gradualmente. A partir do momento do encontro

das duas curvas, a da imaginação e a do pensamento no

ponto M, o desenvolvimento posterior da imaginação

segue, como mostra a linha MN, sensivelmente paralelo

à linha do desenvolvimento do pensamento XO. A divergência

típica da idade infantil desaparece; a imaginação,

estreitamente associada com o pensamento, segue-o

agora ao mesmo passo.

«As duas formas intelectuais», disse Ribot, «encontram-se

agora uma em frente à outra como forças rivais.»

A atividade da imaginação «prossegue, mas através

de uma transformação preliminarmente transformada,

adaptando-se a condições racionais, deixando

de representar uma imaginação pura, mas misturada».

No entanto, isto nem sempre sucede, porque em muitas

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62 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

situações o desenvolvimento ganha uma outra variante,

que na figura está simbolizada pela curva MN’, que

decresce rapidamente, o que significa a diminuição ou a

redução da imaginação. «A imaginação criativa diminui

e isto é o caso mais frequente. A exceção é devida apenas

aos mais dotados de imaginação talentosa, a maioria dos

quais entra a pouco e pouco na prosa da vida quotidiana,

enterra os sonhos da juventude, considera o amor uma

quimera, etc. Isto, todavia, é apenas uma regressão e

não uma anulação, porque a imaginação criativa não

desaparece por completo em ninguém, mas passa a ser

algo acidental.»

E, de facto, onde persistir uma fração ínfima da vida

criativa, haverá lugar para a imaginação. Sabemos que

na idade adulta, com frequência, a curva da vida criativa

diminui. Esta é uma situação conhecida. Olhemos agora

mais de perto esta fase crítica MX que divide os dois períodos.

Como já dissemos, esta fase ocorre no período de

transição, que é a que mais nos interessa agora. Se compreendermos

a natureza daquela encruzilhada específica

que atravessa a curva da imaginação, teremos a chave

para a compreensão adequada de todo o processo criativo

nesta idade. Neste período tem lugar uma transformação

profunda da imaginação, que passa de subjetiva para

objetiva. «No plano fisiológico, a causa de tal crise deve-

-se à formação do organismo adulto e do cérebro adulto,

e no plano psicológico é devida ao antagonismo entre a

subjetividade pura da imaginação e a objetividade dos

processos de raciocínio ou, por outras palavras: entre a

instabilidade e a estabilidade da mente.»

Sabemos que a idade de transição se caracteriza, em

geral, por um conjunto de atitudes antitéticas, contradi-

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A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 63

tórias, de momentos polarizados caracterizadores dessa

idade. É justamente isto que caracteriza a própria idade

como crítica ou transitória: é a idade em que o equilíbrio

psicológico infantil é quebrado e o equilíbrio do organismo

adulto ainda não foi alcançado. Deste modo, a

imaginação deste período caracteriza-se pela fratura

e a destruição e pela procura de um novo equilíbrio.

O facto de a atividade imaginativa, como se manifestava

na idade infantil, ir declinando nos adolescentes é evidente,

porque a criança desta idade, em regra, perde o

gosto pelo desenho. Apenas algumas crianças continuam

a desenhar, sobretudo os mais talentosos nesta atividade

ou quando estimulados pelas condições exteriores, como,

por exemplo, através de aulas especiais de desenho, etc.

A criança evidencia uma atitude crítica em relação aos

seus próprios desenhos, os esquemas infantis deixam

de a satisfazer, por lhe parecerem demasiadamente

subjetivos, e acaba por concluir que não sabe desenhar,

abandonando essa atividade. Esta interrupção da fantasia

infantil é notada no desinteresse pelos jogos ingénuos da

infância precoce e pelas histórias e contos fantasiosos.

A duplicidade da nova forma de imaginação, que agora

nasce, pode ser observada claramente a partir do facto

de que a forma mais comum e extensa da imaginação

nesta idade ser a criação literária. Ela é estimulada pelo

forte aumento das vivências subjetivas, pelo alargamento

e o aprofundamento da vida íntima do adolescente

que, deste modo e nesta fase, está a criar o seu próprio

mundo interior. No entanto, esta fase subjetiva tende

a personificar-se em formas objetivas: nos versos, nos

contos, e nas formas criativas que o adolescente perceciona,

capta a partir da literatura adulta que o rodeia.

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64 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

O desenvolvimento desta imaginação contraditória tende

para a diminuição sucessiva das qualidades subjetivas e

o aumento e reforço das qualidades objetivas. Em geral,

a maioria dos adolescentes perde o interesse pela criatividade

literária própria. Tal como acontecera antes com

os desenhos, começa agora a não ficar satisfeito com a

insuficiente objetividade da sua escrita e abandona-a.

Verifica-se deste modo que a ascensão da imaginação e

a profundidade da sua transformação são os elementos

que caracterizam bem esta fase crítica.

Neste mesmo período sobressaem com toda a clareza

dois tipos de imaginação: a imaginação plástica e a imaginação

emocional, isto é, externa e interna. Estes dois tipos

principais caracterizam-se especialmente pelo material

com o qual é construída a fantasia e as leis desta construção.

A imaginação plástica utiliza preferencialmente dados

fornecidos pelas impressões exteriores, constrói a partir

do uso de elementos emprestados a partir do exterior;

a imaginação emocional, pelo contrário, constrói com

elementos a partir do interior. Podemos denominar uma

como objetiva e a outra como subjetiva. A revelação de um

e outro tipo de imaginação e a sua diferenciação gradual

são precisamente características desta idade.

Sobre isto deveria ser assinalado também que a

imaginação pode desempenhar um papel duplo no comportamento

humano. Pode levar a pessoa a aproximar-se

ou a afastar-se da realidade. Janet diz: «A própria ciência,

pelo menos a ciência natural, não é possível sem a imaginação.

Newton usou a imaginação para ver o futuro e

Cuvier para ver o passado. As grandes hipóteses a partir

das quais nascem as grandes teorias são resultado da imaginação.»

No entanto, Pascal, com toda a justiça, diz que a

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A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 65

imaginação é um professor ardiloso. «Ela convence», diz

Compayre, «levanta mais erros do que ajuda a descobrir

a verdade... A imaginação inclina o cientista incauto a

deixar de lado os raciocínios e as observações e a tomar as

suas fantasias por verdades comprovadas; a imaginação

desvia-nos da realidade com as suas admiráveis mentiras,

ela, segundo a certeira expressão de Malebranche, é a

criança traquinas que desalinha a casa.» É especialmente

na idade de transição que se revelam estes aspetos perigosos

da imaginação. Satisfazer-se com a imaginação é

muito fácil e a fuga para o sonho e o escape para o mundo

imaginado frequentemente pode desviar da realidade as

energias e a vontade do adolescente.

Alguns autores acreditaram até que o desenvolvimento

do espírito sonhador e concomitante desprendimento

do real, o fechamento e a imersão em si são o traço

obrigatório desta idade. Poderia mesmo afirmar-se que

todos estes fenómenos constituem apenas a fase sombria

desta idade. Esta tonalidade do espírito sonhador, que

se abate sobre esta idade, faz deste duplo papel da imaginação

um processo complexo cujo domínio se torna

muito difícil.

«Se o professor», diz Groos, «desejar desenvolver de

modo adequado a capacidade valiosa da fantasia criativa,

cabe-lhe então enfrentar uma tarefa difícil: domar este

ginete selvagem e assustado de nobre estirpe e desviá-lo

para servir o bem.»

Para Pascal, como dissemos, a imaginação era um

professor ardiloso. Goethe designou-a como o prenúncio

do pensamento. E um e outro estavam certos.

Surge então a pergunta: dependerá a atividade

imaginativa do talento? Existe uma opinião muito

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66 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

difundida de que a criatividade é privilégio dos eleitos;

apenas aquele que é dotado de um talento particular deve

cultivá-lo e pode ser considerado como eleito para criar.

Esta posição não é justa, como já acima tentámos esclarecer.

Se entendermos a criação no plano estritamente

psicológico, como criação de algo novo, facilmente se

conclui que a criatividade é fortuna de todos, em maior

ou menor grau, e que ela é a companheira habitual e

permanente do desenvolvimento infantil.

Na infância encontramos os designados wunderkinder,

as crianças prodígios, que em idade muito precoce

demonstram um desenvolvimento e uma rápida maturação

de certo dom especial.

Com maior frequência encontramos os wunderkinder

na área da música. Os wunderkinder pintores são raros.

Um exemplo de wunderkinder é Willy Ferrero, que há

vinte anos adquiriu renome mundial por mostrar possuir

dons musicais extraordinários numa idade precoce. Um

wunderkinder deste género, por vezes aos 6-7 anos, pode

dirigir uma orquestra sinfónica, executar obras musicais

muito complexas e, de um modo virtuoso e admirável,

tocar um instrumento musical, etc. Mas há muito que

se notou que em tal desenvolvimento prematuro e fora

do comum do dom, há algo que está muito próximo da

patologia, que não é normal.

E, no entanto, um aspeto ainda mais importante,

há uma regra quase sem exceção segundo a qual estas

crianças prodígios, de amadurecimento prematuro, se se

desenvolvessem de um modo normal, deveriam superar

todos os génios conhecidos da história da humanidade;

mas, de um modo geral, à medida que vão crescendo

perdem também o talento; a sua criatividade, até ao

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A IMAGINAÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 67

momento, não tem criado e não criou na história das

artes uma única obra que fosse considerada de valor.

As características típicas da criatividade infantil são

fáceis de identificar nas crianças normais, mas não o são

nas crianças sobredotadas. Isto não significa que o dom

ou o talento não surja na infância precoce. A partir das

biografias de pessoas ilustres ficamos a saber que sinais

desta genialidade se revelaram desde cedo.

Como exemplos de desenvolvimento precoce podemos

citar Mozart com a idade de três anos, Mendelssohn

de cinco anos, Haydn de quatro; Handel tornou-se compositor

aos doze anos, Weber também aos doze, Schubert

aos onze e Cherubini aos treze anos... Nas artes plásticas,

a vocação e as capacidades para a criação revelam-se de

um modo claro mais tarde – em média aos catorze anos;

Giotto revelou-se aos dez anos, Van Dyck aos nove,

Rafael aos oito e Greuze aos oito, Miguel Ângelo aos

treze anos, Dürer aos quinze, Bernini aos doze. Rubens

e Jordaens também se desenvolveram muito cedo. Na

poesia não se encontram obras com elevado valor antes

dos dezasseis anos.

Mas estes indícios da genialidade futura ainda estão

longe da verdadeira e superior criatividade, são apenas

relâmpagos de uma tempestade que se adivinha, indicadores

do despertar futuro desta atividade.

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CAPÍTULO 5

«OS TORMENTOS DA CRIAÇÃO»

A criação traz ao homem criador grandes alegrias,

mas está igualmente associada ao sofrimento, a que

tem sido dada a designação memorável de tormento da

criação. Criar é difícil e o impulso para criar nem sempre

coincide com a capacidade para criar, daí surgir um sentimento

de tortura e sofrimento; o pensamento não vai ao

encontro da palavra, como dizia Dostoievsky. Os poetas

chamam a este sofrimento o tormento da palavra:

«Não existe no mundo sofrimento 1 que se manifeste

com tanta intensidade como o tormento da palavra; em vão,

às vezes, se irrompe da boca um grito louco: inutilmente [a

palavra] de amor está pronta a incendiar a alma porque por

vezes a nossa pobre linguagem é fria e miserável.»

Este desejo de transmitir através da palavra os sentimentos,

ou pensamentos, o ensejo de contagiar com

este sentimento a outra pessoa, e ao mesmo tempo a

consciência da impossibilidade de o fazer, costuma surgir

de forma muito intensa na criação literária dos jovens.

Lermontov nos seus primeiros versos descreve isto assim:

É difícil de exprimir através das palavras frias o conflito

de sentimentos.

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1

Na obra original russa: «sofrimentos». (N.T.)


70 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

O homem não tem sons suficientemente fortes para

descrever o desejo da felicidade.

O ardor da paixão exaltada eu sinto, mas não encontro

palavras para a descrever, e neste instante estou pronto para

me sacrificar, para que possa, de algum modo, verter a sombra

da paixão noutro peito. 2

Arkadi Gornfeld, num artigo dedicado ao tormento

das palavras, lembra a personagem secundária de G. I.

Uspenski (1843-1902). Trata-se da personagem do conto

Observações de um preguiçoso. A cena, em que este infeliz,

não encontrando as palavras para exprimir o pensamento

profundo que o domina, impotente e atormentado, se

põe a rezar diante da imagem do santo «para que Deus

lhe concedesse a compreensão», deixa uma sensação

penosamente indizível. Com efeito, o que esta vulnerável

e magoada mente sofre na sua essência em nada se distingue

do «tormento da palavra» que o poeta ou o pensador

experimenta, quase fala com as mesmas palavras. «Eu

dizia-te, meu amigo, nada te ocultaria, mas faltam-me as

palavras… Eis o que te digo. Parece que os pensamentos

nascem bem na cabeça mas não descem da língua. Eis a

desgraça que aflige burros como eu!» Mas, por vezes, das

trevas surgem efémeros intervalos de luz; o pensamento

torna-se claro para o infeliz e para ele, poeta, parece-

-lhe – «de repente desvenda o enigma de um semblante

conhecido». E assim ei-lo que inicia a explicação:

– Se eu, por exemplo, vou para a terra, porque da terra

emergi, da terra. Se for para a terra, por exemplo, ao revés;

como é que então poderiam cobrar-me pela terra?

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2

Tradução de Halima Naimova.


«OS TORMENTOS DA CRIAÇÃO» 71

– Bem, bem – exclamamos com júbilo.

– Espera. Aqui falta uma palavra... vejam, senhores,

como falta algo.

O mensageiro levantou-se e ficou no meio do quarto,

preparando-se para dobrar o outro dedo da mão.

– Aqui ainda não se disse nada do que é mais importante.

E tem de se fazer assim porque: por exemplo... – aqui

calou-se por um momento e perguntou com vigor: – E a

alma, quem ta deu?

– Deus.

– É verdade. Muito bem. Agora, olha para aqui...

Preparávamo-nos para olhar, mas o mensageiro tropeçou

novamente, perdeu a força e, pondo as mãos na cintura,

desesperadamente gritou:

– Não. Não há nada a fazer. Não é nada assim... Meu

Deus! Sim eu digo-te. Aqui é preciso falar. Aqui é preciso

falar do fundo da alma. Não, não consigo.»

Detivemo-nos nesta questão, não porque as vivências

atormentadoras relacionadas com a criação tenham

uma qualquer influência na futura sorte do adolescente

em desenvolvimento, não porque estes tormentos fossem

em regra sentidos mais forte e tragicamente pelo

adolescente, mas porque este fenómeno dá a conhecer

a característica mais importante da imaginação, sem a

qual o quadro por nós apresentado ficaria incompleto

num aspeto da sua essência. Esta característica consiste

na tendência da imaginação para a personificação, a

raiz autêntica e o motor de arranque da criação. Qualquer

construção da imaginação, partindo da realidade,

tende a descrever um ciclo completo e a encarnar de

novo no real.

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72 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Ao surgir como resposta às nossas aspirações e

impulsos, a construção da imaginação tem tendência

a encarnar a realidade. A imaginação tende pela força

dos impulsos a ser criativa, isto é, atuante e ativa,

transformadora daquilo para a qual está orientada a

sua atividade. Neste sentido, Ribot, com toda a justeza,

compara o devaneio com a falta de vontade. Para este

autor, esta forma fracassada da imaginação criativa é

completamente análoga à falta de vontade. Para ele, «a

imaginação é para o intelecto o que a ação é para a vontade».

As pessoas geralmente desejam sempre alguma

coisa – que tanto pode ser algo insignificante como algo

de muito valor; os homens inventam sempre para um

fim determinado – quer seja um Napoleão, que pensa

num plano para uma batalha, ou um cozinheiro, que

inventa um novo prato.

… Em toda a sua forma normal e finalizada, a vontade

acaba em ação, mas nas pessoas indecisas e sem vontade,

as indecisões nunca terminam ou as decisões ficam

sem concretização, impossibilitadas de serem concretizadas

e postas em prática. A imaginação criativa em toda a

sua forma tenta afirmar-se tomando forma objetiva, não

apenas para o próprio criador, mas também para todos

os outros. Pelo contrário, para os simples sonhadores, os

contemplativos, a imaginação permanece num estado

pouco elaborado e desenvolvido, não se encarnando

nas produções artísticas e nas realizações práticas.

O sonho e a contemplação acabam por equivaler à

abulia; o sonhador é incapaz de manifestar a imaginação

criativa. O ideal consiste na construção da imagina -

ção criativa; e só seria, então, uma verdadeira força da

vida, se orientasse as ações e os atos do homem, aspirando

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«OS TORMENTOS DA CRIAÇÃO» 73

a materializar-se e a realizar-se. Se separarmos a contemplação

e a imaginação criativa, na sua essência, como

duas formas extremas e diferentes de fantasia, torna-se

claro que, em toda a educação da criança, a formação da

imaginação possui não apenas um significado parcial

do exercício e da promoção de uma função isolada, mas

igualmente um significado global que se reflete em todo

o comportamento do homem. Neste sentido, o papel da

imaginação no futuro não é menor do que aquele que

tem no presente.

«O papel da fantasia combinatória», diz Lunatcharsky,

«no futuro não será de modo algum menor do

que hoje. É muito provável que assuma um caráter muito

particular, combinando elementos científicos experimentais

com os voos vertiginosos da fantasia intelectual e

imagética.»

Se tivermos em atenção o que foi dito acima, de

que a imaginação é o impulso da criação, podemos

concordar com a posição de Ribot fundada nas suas

investigações:

«A imaginação criadora atravessa com a sua criatividade

toda a linha da vida pessoal e social, especulativa

e prática, em todos os seus aspetos; ela é omnipresente.»

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CAPÍTULO 6

A CRIATIVIDADE LITERÁRIA

NO PERÍODO ESCOLAR

De todas as formas de criação literária, a verbal é a

mais característica do período escolar. É bem conhecido

que na idade precoce todas as crianças passam por vários

estádios do desenvolvimento do desenho. O desenho é a

criação típica da idade infantil, principalmente da idade

pré-escolar. Nesta fase, as crianças desenham muito,

às vezes sem serem incitadas pelos adultos; às vezes

basta um pequeno estímulo para que a criança comece

a desenhar.

As observações mostraram que todas as crianças

desenham, e as fases através das quais passam os seus

desenhos são mais ou menos comuns para as crianças da

mesma idade. Nesta etapa da vida, desenhar é a atividade

que a criança mais gosta. No começo da idade escolar, o

seu gosto e interesse pelo desenho começa a decair. Em

muitos casos, nas crianças, este gosto mais ou menos

autónomo pelo desenho desaparece completamente se

não for incentivado. Apenas se conserva esta propensão

nas crianças melhor dotadas nesta área e igualmente nos

grupos de crianças em que as condições de educação, em

casa ou na escola, são alvo de estímulo e atenção para o

seu desenvolvimento. É evidente que existe uma certa

ligação interna entre a personalidade da criança nesta

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76 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

idade e a sua predileção pelo desenho. É manifesto que

a concentração das forças criativas da criança no desenho

não é um acaso, deve-se à circunstância de ser o desenho

o modo expressivo que nesta idade dá à criança a possibilidade

de expressar melhor o que a preocupa. Com a

passagem para outra fase do desenvolvimento, a criança

eleva-se a um nível superior da sua idade; ela muda e,

com isso, muda o caráter da sua criação.

O desenho fica para trás como uma etapa já vivida,

e o seu lugar começa a ser ocupado por um esforço novo,

o da criação verbal ou literária, criação que dominará

sobretudo no período de maturação sexual do adolescente.

Alguns autores supõem que apenas a partir desta

idade se pode falar da criatividade verbal nas crianças

no sentido específico da palavra.

«A própria criatividade literária», diz o professor

Soloviev, «no sentido genuíno da palavra, tem a sua

origem precisamente quando surge o despertar da sexualidade.

É necessária uma reserva de vivências pessoais, é

necessária a sua experiência pessoal, a capacidade para

analisar as relações entre as pessoas em várias situações,

para poder criar e exprimir através de palavras algo seu

e de novo (a partir de um ponto de vista próprio) encarnado

e combinado pelos factos da vida real. A criança em

idade escolar (precoce) não o pode ainda fazer e, por isso,

a sua criação tem também um caráter condicional e, sob

muitos aspetos, é extremamente ingénua.»

Existe um facto fundamental que muito convincentemente

mostra que a criança deve amadurecer primeiro

para chegar à criação literária. Apenas a partir de um

grau elevado de experiência acumulada e de um nível

elevado da acumulação do domínio da fala e num grau

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 77

elevado do desenvolvimento do seu mundo interior, a

criação literária se tornará acessível. Este facto a que nos

referimos traduz-se no atraso que as crianças revelam

no desenvolvimento na linguagem escrita comparativamente

com a linguagem falada.

«Como é sabido», diz Gaupp, «a expressão escrita

dos pensamentos e sentimentos dos alunos fica significativamente

atrás da sua capacidade de os expor verbalmente.

Encontrar uma explicação para este facto não é

fácil. Quando falamos com um rapaz ou uma rapariga

que se entusiasmam sobre as coisas que são familiares ao

seu entendimento e interesses, então vemos que habitualmente

ouvimos deles descrições vivas e respostas

acertadas. A conversa com eles torna-se um verdadeiro

prazer. Mas se às mesmas crianças for pedido para, de

um modo livre, escrever sobre o assunto da conversa

que tivemos mesmo agora, obteríamos apenas algumas

frases escassas. Como são monótonas, forçadas e

pobres em conteúdo as cartas das crianças para o seu pai

ausente e como são vivas e ricas as descrições verbais

quando o pai regressa. Parece que no momento em que

a criança pega na caneta o seu pensamento é travado,

é como se o trabalho de escrever a assustasse. “Eu não

sei o que escrever. Não me ocorre nenhuma ideia” – é

a queixa frequente da criança. Daqui se depreende ser

erróneo avaliar o nível do seu desenvolvimento mental,

da sua inteligência, nos alunos dos primeiros anos de

escolaridade, a partir da qualidade das suas composições

escolares.»

A explicação para esta falta de correspondência

do desenvolvimento da linguagem oral e escrita deve-

-se fundamentalmente à diversidade das dificuldades

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78 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

que a criança encontra para se exprimir de um e outro

modo; quando a criança está perante uma tarefa de maior

dificuldade, tenta resolvê-la como se fosse uma criança

muito mais pequena.

«Basta complicar à criança o trabalho linguístico»,

diz Blonsky, «dando-lhe uma tarefa difícil, isto é, a de a

obrigar a exprimir-se no papel, e de imediato vemos que

a sua linguagem escrita se torna mais infantil do que a

linguagem falada: aparecem palavras desconectadas

nas orações e aumentam muito os modos imperativos.

Podemos ver isto praticamente em tudo; quando a

criança executa um trabalho intelectual difícil, começa

novamente a manifestar todas as peculiaridades de uma

idade mais jovem. Se mostramos a uma criança de sete

anos uma imagem com um conteúdo adequado à sua

idade e lhe pedimos que fale sobre a mesma, ela falará

como uma criança de sete anos, isto é, diz o que se passa

na imagem. Mas se lhe mostrarmos uma imagem difícil,

ela começará a descrevê-la como uma criança de três

anos, isto é, inicia simplesmente a nomeação dos objetos

representados na imagem sem os ligar uns aos outros.»

O mesmo acontece quando a criança passa da

linguagem oral para a linguagem escrita. A linguagem

escrita é mais difícil porque tem as suas próprias leis que

diferem, em parte, das leis do discurso oral, e a criança

ainda não domina bem essas leis.

Muitas vezes, as dificuldades que a criança experimenta

na passagem para a linguagem escrita podem

ser explicadas por razões internas muito profundas.

A linguagem falada é sempre compreensível para a

criança; resulta da comunicação viva com as outras

pessoas; é uma reação completamente natural, é uma

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 79

resposta ao que acontece à sua volta e a afeta pessoalmente.

Ao passar para a linguagem escrita, muito mais

abstrata e condicional, a criança por vezes não compreende

para que é necessário escrever. A criança não

detém uma necessidade intrínseca para a escrita.

Isto manifesta-se especialmente nas situações em

que a criança escreve sobre temas que lhe são atribuídos

na escola. Na velha escola, o desenvolvimento da criatividade

para a escrita dos alunos das classes primárias

seguia este curso: o professor escolhia um tema para a

elaboração de uma composição e as crianças escreviam

a composição aproximando a sua redação, tanto quanto

possível, da linguagem literária dos adultos, ou do estilo

dos livros que liam. Tais temas eram estranhos à compreensão

dos alunos, desligados da sua imaginação e dos

seus sentimentos. Não se davam às crianças exemplos

de como elas deveriam escrever. Só raramente o próprio

trabalho se referia a um objetivo familiar e compreensível,

ao alcance da criança. Tais professores, ao não orientar

bem a criatividade literária das crianças, com frequência

matavam a beleza espontânea, as particularidades e

a vitalidade da linguagem infantil e obstaculizavam a

aquisição da linguagem escrita como expressão particular

dos seus próprios pensamentos e sentimentos, e incutiam

nas crianças, como dizia Blonsky, o jargão escolar, construído

a partir da introdução da repetição mecânica da

linguagem livresca dos adultos.

«A arte principal do professor no ensino da língua»,

diz Tolstoi, «e o principal exercício que deve ser usado

na orientação das crianças para a escrita de composições

consiste na atribuição dos temas, mas não tanto na sua

indicação, assim como na oferta de uma grande variedade

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80 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

de escolha dos temas, na indicação da extensão da

composição e alguns exemplos literários iniciais. Muitos

alunos inteligentes e talentosos escreviam composições

sem sentido, como: “O fogo inflamou-se, começaram a

arrastar as coisas e eu fui para a rua” – o resultado desta

escrita era nulo, apesar de o tema da composição ser rico

e ter deixado uma impressão profunda na criança. Elas

não compreendiam o mais importante: por que motivo

deviam escrever e qual era a utilidade da escrita? Elas não

compreendiam a arte – a beleza de representar a vida na

palavra e a atração dessa arte.»

O desenvolvimento da criatividade literária da

criança torna-se imediatamente mais fácil e bem-sucedido

quando é estimulada a escrever sobre um tema que

lhe é internamente compreensível, que a emociona e,

mais importante, que a desperta para a expressão do

seu mundo interior através da palavra. Muitas vezes a

criança escreve mal porque não tem nada sobre o que

ela quer escrever.

«É necessário ensinar a criança», diz Blonsky, «a

escrever apenas sobre o que ela conhece bem, sobre

o que ela pensou profundamente. Não há nada pior

para a criança do que dar-lhe um tema sobre o qual

ela pouco pensou e sobre o qual ela tem pouco para

dizer. Isto significa educar um escritor superficial e oco.

Para incutir na criança o gosto pela escrita é necessário

desenvolver nela um grande interesse pelo que se

passa à sua volta. A criança escreve melhor sobre o que

mais lhe interessa, sobretudo quando compreendeu

esse assunto. É necessário ensinar à criança a escrever

sobre o que lhe interessa fortemente e sobre o que ela

pensou muito e profundamente, e conhece bem. Deve

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 81

ensinar-se à criança a não escrever sobre o que não

sabe, não compreendeu ou não está interessada. E a

verdade é que, entretanto, há professores que atuam

completamente ao contrário, aniquilando deste modo

o potencial escritor na criança.»

Por essa razão, Blonsky aconselha que se escolham

os tipos de obras literárias mais adequadas para crianças,

como pequenas notas, cartas ou pequenas histórias.

«Se a escola deseja ser educativa, então deve ter

em atenção este tipo de obras literárias. A propósito, as

cartas (pessoais e de negócios) são as formas de escrita

mais frequentes entre as pessoas. É evidente que o estímulo

para a escrita de cartas é a comunicação com os

que estão longe. Assim, a educação social motiva e educa

a criança-escritor no mesmo sentido: quanto maior é o

círculo de pessoas com o qual a criança está ligada, maior

é o estímulo para a escrita de cartas, o que faz as cartas

falsas e artificiais, dirigidas a pessoas desconhecidas ou

inexistentes, não parecerem fazer algum sentido para

a criança.»

Deste modo, a tarefa consiste em motivar a criança

para a escrita e seguidamente ajudá-la a dominar a

técnica da escrita. Lev Tolstoi descreveu uma experiência

extraordinária relacionada com o despertar do

gosto para a escrita nos filhos dos camponeses, e na

qual ele próprio participou. No artigo que escreveu,

«Quem deve aprender a escrever a partir de quem?»

[Komu u kogo uchit’sia pisat? – krest’ianski rebiatam u nas ili

nam u krst’ianskih rebiat] 1 , este grande escritor chegou à

1

«As crianças camponesas a partir de nós ou nós a partir das crianças

camponesas.»

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82 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

conclusão, à primeira vista paradoxal, particularmente,

de que somos nós, os adultos, e mesmo para o grande

escritor como ele era, quem deve aprender a escrever com

as crianças camponesas e não o contrário. Esta experiência

de despertar o gosto pela escrita criativa das crianças

camponesas mostra como decorre o processo da escrita

criativa na criança, como ela nasce e se desenvolve, e

que papel pode o professor desempenhar quando deseja

contribuir para o adequado desenvolvimento deste processo.

A essência desta descoberta de Tolstoi consiste no

facto de ele ter detetado os traços da escrita das crianças

característicos apenas desta idade e ter compreendido

que a verdadeira tarefa da educação consiste não em

inculcar prematuramente na criança a linguagem dos

adultos, mas em ajudar a criança a desenvolver e formar

a sua própria linguagem literária. Tolstoi deu aos seus

alunos a tarefa de escreverem uma composição baseada

no provérbio: «Ele alimenta-te com a colher e depois

dá-te no olho com ela...»

«Imagina, disse eu, que o camponês tomou a seu

cargo um pedinte e depois, porque lhe deu ajuda, lhe

atirou à cara o bem que lhe tinha feito, concluindo-se

daqui que quem “alimenta com a colher com ela pode

bater no olho”.» De início as crianças recusaram-se

a escrever, pensando que este assunto não estava ao

seu alcance, e foi Tolstoi, ele próprio, que escreveu a

primeira página:

«Qualquer pessoa imparcial», diz o escritor, «com

sensibilidade artística e gosto pela cultura popular, ao ler

esta primeira página, escrita por mim, e as outras páginas

seguintes da história, escritas pelos próprios alunos,

distinguirá esta página por comparação com as outras,

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 83

como o preto do branco: uma vez que é falsa, artificial e

escrita numa linguagem muito pobre...

Pareceu-me muito estranho que um rapaz camponês

semiletrado de repente mostrasse tal força artística

consciente, que nem o próprio Goethe, com o seu nível

de desenvolvimento artístico, poderia alcançar. Isto

pareceu-me tão humilhante e estranho que eu, o autor

de Infância, com algum êxito e reconhecimento do meu

talento artístico pelo público letrado russo, não pudesse

contribuir artisticamente com nada, no sentido de ajudar

ou mesmo instruir o pequeno Semka ou o Fedka de onze

anos, senão só com dificuldade, e graças a um surto afortunado

de inspiração feliz, fui capaz de acompanhá-los e

compreendê-los. Isto pareceu-me tão estranho que eu não

acreditei no que ontem sucedeu.»

Como foi capaz Tolstoi de despertar nestas crianças,

que antes não tinham qualquer ideia sobre a escrita

criativa, a capacidade para se expressarem neste modo

complexo e difícil? As crianças começaram a criar coletivamente.

Tolstoi começava a narrar-lhes e eles davam-lhe

sugestões.

«Uma das crianças dizia que o velho era um bruxo;

outro dizia: não, não é necessário – ele será apenas um

soldado; ou não, é melhor que ele os roube; não, isto não

corresponde ao provérbio, etc. – diziam elas.» Todas as

crianças participaram na redação da composição; ficaram

interessadas e atraídas pelo próprio processo da composição

e isto foi o primeiro impulso na direção da inspiração

criativa. «Aqui», escreve Tolstoi, «é óbvio que estavam a

experimentar o encanto de captar os pormenores artísticos

através das palavras.» As crianças compunham,

criavam personagens, descreviam a sua aparência, com

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84 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

muitos pormenores, episódios isolados, e tudo isto estava

feito numa linguagem clara. «Os seus olhos brilhavam

quase lacrimosos», escreve Tolstoi sobre um rapaz que

estava a compor a história, «as suas mãos sujas e pequeninas

torciam-se; ele zangava-se e insistia continuadamente

comigo: escreveste, escreveste? – perguntava ele.» Tratava

as outras crianças de modo despótico e irritado, queria

ser o único a falar, não a falar do modo habitual das pessoas

que o fazem, mas a falar como escrevem, isto é, de

forma artística, imprimir através da palavra imagens e

sentimentos; por exemplo, não suportava a modificação

da ordem das palavras escritas, dizendo: «Tenho nas

pernas feridas», e não: «Tenho feridas nas pernas.» Neste

último exemplo vemos como era forte o sentimento da

forma verbal nesta criança, que, pela primeira vez, tinha

abordado a criação escrita, o sentido da forma verbal.

A alteração das palavras e a sua ordem é para a

literatura o mesmo que a melodia para a música, ou o

fragmento para a pintura. E o sentimento deste desenho

verbal, dos pormenores picturais, do sentimento

da proporção – tudo isto, de acordo com Tolstoi, foi na

criança claramente expresso em grau elevado. A criança

representava quando escrevia; quando pronunciava as

palavras das personagens; às vezes falava «num tom

cansado e calmo, sério e, ao mesmo tempo, benevolente,

apoiando a cabeça com a mão, que as outras crianças se

rebolavam de tanto rir». Esta colaboração real entre o

escritor adulto e as crianças foi por elas compreendida

como um verdadeiro trabalho conjunto, no qual elas se

sentiam no mesmo plano dos adultos. «Vamos publicar o

texto?», perguntou um rapaz a Tolstoi – tal como é necessário

publicar as obras de Makarov, Morozov e Tolstoi.

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 85

Isto revela na atitude da criança a co-autoria em relação

à composição escrita em comum.

«Não seria possível errar», diz Tolstoi. «Isto foi um

acidente, mas da criação consciente de uma obra... Não

encontrei nada que fosse parecido com estas páginas na

literatura russa.»

Na base desta experiência, Tolstoi ia ao ponto de

defender o seguinte: segundo ele, para se desenvolver a

escrita criativa das crianças é apenas necessário dar-lhes

estímulo e material para a criação.

O que a criança necessita de mim é do material para

se preencher de modo harmonioso e cabal. Assim que eu lhe

dei a liberdade completa, parei de o instruir, ele escreveu um

trabalho poético, nunca visto na literatura russa. E por isso

estou convicto de que não deveríamos ensinar as crianças

em geral, e as crianças rurais em particular, a escrever e a

compor sobretudo poeticamente. Tudo o que nós podemos

fazer é ensinar-lhes como abordar o trabalho de escrita.

Posso considerar que o que fiz para alcançar estes

objetivos foi utilizar certas técnicas, que são as seguintes:

Primeira – oferecer-lhes a maior e mais vasta escolha de

tópicos sem os inventar, mas sugerir às crianças os temas

mais sérios que interessam o próprio professor. Segunda – dar

a ler às crianças composições infantis e apenas este tipo de

textos como modelos. Terceira (muito importante) – quando

se examina as composições das crianças não se deve fazer

críticas sobre o asseio do caderno, ou sobre a caligrafia, ou a

ortografia e, especialmente, sobre a construção frásica ou

a sua lógica. Quarta – uma vez que a dificuldade em redigir

consiste não no volume ou conteúdo, mas no valor artístico

do tema, então a sequência em que os temas são apresentados

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86 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

devem ser determinados não pelo volume, não pelo conteúdo,

não pela linguagem, mas pela natureza do mecanismo que

subjaz ao trabalho criativo.»

Por mais instrutiva que seja a experiência de Tolstoi,

a interpretação que faz da sua experiência mostra uma

idealização da natureza da criança e uma atitude negativa

em relação à cultura e à criação artística, que caracterizaram

as suas ideias ético-religiosas no último período

da sua vida. De acordo com a teoria e os pressupostos

reacionários de Tolstoi:

«O nosso ideal não está no futuro mas no passado.

A educação estraga e não melhora as pessoas; ensinar

e educar a criança é impossível e absurdo pela simples

razão de ela estar mais perto do que eu, mais próxima

do que qualquer adulto do ideal de harmonia, verdade,

beleza e bondade, até ao qual eu, no meu orgulho, desejo

elevá-lo. A consciência deste ideal é mais forte nele do

que em mim.»

Este é um vestígio da teoria de Rousseau, ultrapassada

há muito pela ciência. «O homem nasce perfeito»

– esta é a grande frase de Rousseau e esta expressão,

como pedra, mantém-se dura e verdadeira. – «Ao nascer,

o homem é um protótipo da verdade, da harmonia, da

beleza e da bondade.»

Nesta visão incorreta da natureza da criança está

encerrado o segundo erro que Tolstoi comete em relação

à educação. Se a perfeição está antes de nós e não à

frente, então é completamente lógico negar o significado,

o sentido e a possibilidade da educação. No entanto, será

suficiente rejeitarmos a primeira proposição, não confirmada

pelos factos, para se tornar claro que a educação

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 87

em geral e, em particular, a educação para a criatividade

literária nas crianças é não apenas possível, como é, de

modo absoluto, inevitável. É também fácil de ver, mesmo

a partir do nosso relato, que o que Tolstoi fez com as

crianças camponesas foi simplesmente facultar-lhes uma

educação literária. Ele despertou nas crianças um método

de expressão da sua experiência pessoal e da sua atitude

em relação ao mundo; com as crianças construiu, compôs,

combinou, contagiou-as emocionalmente, deu-lhes um

tema; ou seja, na sua essência, orientou todo o processo

da criação, mostrou-lhes os métodos da criação, etc. Ora,

tudo isto, para todos os efeitos, é educação no sentido

mais puro e autêntico deste conceito.

A compreensão adequada e científica da educação

das crianças não é inculcar artificialmente, de fora,

os ideais, sentimentos ou estados de espírito alheios.

A verdadeira educação consiste em despertar na criança

aquilo que ela já tem em si e ajudá-la a desenvolvê-lo,

e orientar o seu desenvolvimento numa determinada

direção. Tolstoi fez tudo isto com as crianças de quem nos

fala. O que é mais importante para nós não é a teoria geral

de Tolstoi sobre a educação; interessa-nos sobremaneira

a sua maravilhosa descrição do despertar da criatividade

literária apresentada nas páginas que evocámos.

Que as crianças escrevem com maior desejo quando

se manifesta nelas a necessidade para a escrita, é muito

evidente na criação das crianças abandonadas. As criações

verbais destas crianças, na maior parte das vezes,

assumem-se sob a forma de canções, que entoam e

refletem todos os aspetos da sua vida, sendo na maioria

canções profundamente tristes e melancólicas. Como

Púshkin disse: «Do cocheiro até ao mais sublime e puro

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88 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

poeta, todos nós cantamos canções tristes.» Nas canções

da criança abandonada reflete-se toda a dimensão obscura

e difícil da sua vida. A prisão, a morte precoce ou

a doença, a orfandade, o abandono, o desamparo – são

estes os motivos permanentes destas canções, ainda que

por vezes se revele também nestas canções outro motivo

de nota, um género de coragem, jactância, que promove

a exortação dos seus feitos:

Chegou a noitinha escura,

Peguei num cinzel,

E num triz tirei o vidro e

Entrei numa casa bonita,

cantava um rapaz abandonado. Contudo, mesmo neste

exemplo, o que nós ouvimos é uma resposta natural a

uma infindável dificuldade da sua vida miserável, da

inevitabilidade e obstinação do seu destino.

Houve tempo, quando quis a vossa mão de ajuda encontrar,

Mas agora que a minha alma empederniu, decidi eu roubar.

Cospem, lançam pedras, eu, habituado a tudo, aguento tudo,

E não espero pela vossa pena, ninguém se preocupa comigo.

Há alguns anos realizou-se uma tentativa muito

interessante de recolher as autobiografias das crianças

abandonadas. Anna Grinberg recolheu cerca de setenta

histórias escritas por crianças de rua com catorze e quinze

anos.

Todas as crianças escreveram com muito interesse sobre

a sua vida», diz a autora deste livro. Escreveu: «Algumas

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 89

eram pouco letradas ou iletradas, que apesar de todas as

dificuldades se precipitavam para chegar às mesas, ao papel, e

às canetas, parcimoniosamente distribuídas; lutavam por um

lugar à mesa e pelas canetas e, feito o gesto de benzer, durante

várias horas respeitosa e cuidadosamente escreviam, pedindo

a ajuda dos vizinhos, reescrevendo e comparando com páginas

impressas de um livro despedaçado. Nestas histórias, com

exceção daquelas onde as crianças queriam abrir-se completamente

e ficavam caladas ou incrédulas, manifesta-se

o traço principal de todas as criações deste género. Existe

alguma coisa acumulada dentro da pessoa dorida, que tenta

exteriorizar-se, reclama expressão, que quer sair através das

palavras. Quando a criança tem alguma coisa para escrever,

escreve-o com extrema seriedade.

«Com isto termino a minha escrita», escreveu uma

das meninas, «não era assim que a queria escrever, mas

isto é apenas um terço do que vivi. Hei de lembrar-me

desta minha vida durante muito tempo!»

Se tivermos em atenção não a semelhança exterior

mas a interior, encontramos nestas histórias quase os

mesmos traços da escrita criativa das crianças a que

Tolstoi se refere. Exteriormente, quanto ao conteúdo e

à linguagem, estas histórias diferem profundamente

das histórias de Tolstoi sobre Fedka e Semka. Do mesmo

modo, é diferente a época em que viveram, o meio no

qual cresceram e a experiência de vida que tiveram

umas e outras crianças. Mas a seriedade autêntica da

linguagem utilizada testemunha a necessidade atual de

se exprimirem pela palavra. A clareza e individualidade

da linguagem infantil é muito diferente da linguagem

literária estereotipada dos adultos. A emocionalidade

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90 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

sincera e a imaginação concreta destas histórias evocam

os traços análogos detetados nas histórias das crianças

camponesas de que Tolstoi falou. Uma das crianças acrescentou

a seguinte nota à sua autobiografia, que exprime

o profundo sentimento e a especificidade autêntica das

experiências associadas com a sua composição literária:

«As memórias e a saudade da minha casa na província

de Vologda, na aldeia de Vymsk, na floresta perto do rio.»

É muito fácil compreender a ligação que existe

entre o desenvolvimento da criação literária e a idade

de transição da adolescência. O facto mais importante

desta idade é o despertar da sexualidade. A partir deste

aspeto central e fundamental podem ser explicados todos

os outros, relacionados com esta característica essencial

desta idade; é este facto que faz desta idade um período

crítico na viragem da vida da criança. Neste período da

vida entra em cena um novo e poderoso fator ,constituído

pelo despertar da sexualidade e do instinto sexual.

O anterior equilíbrio estável do período inicial da escola

foi entretanto destruído, enquanto um novo equilíbrio

ainda não pôde ser encontrado. Esta rutura do equilíbrio

anterior e a procura de um novo forma a essência da

crise que a criança experimenta nesta idade. Mas em que

consiste a natureza desta crise?

A resposta a esta pergunta não foi até hoje encontrada

pela ciência com a devida acuidade. Alguns

consideram que a principal característica desta crise é a

astenia, a fragilidade da constituição e do comportamento

da criança, que a atinge neste período crítico. Outros,

pelo contrário, acreditam que na base desta crise está o

aumento poderoso da energia vital que envolve todos

os aspetos do desenvolvimento infantil e que esta fase

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 91

crítica é apenas consequência do aumento deste poder

criativo. Sabemos que nesta idade o adolescente cresce

rapidamente, aproximando-se de modo rápido do tamanho

e da estrutura corporal adulta.

Todo um novo mundo de experiências íntimas,

impulsos e aspirações se abre nesta idade; a vida interior

torna-se infinitamente mais complexa quando

comparada com a dos primeiros anos da infância.

As relações com os que estão à sua volta tornam-se

muito mais complexas; as impressões do mundo exterior

são alvo de uma análise profunda. Há um traço muito

óbvio no comportamento do adolescente diretamente

relacionado com a tendência para a criatividade literária

deste período – é a intensificação da emocionalidade, o

aumento da excitabilidade dos afetos na adolescência.

Quando o comportamento humano tende para condições

conhecidas e invariáveis, não se deteta neste comportamento

qualquer emoção visível ou forte. Geralmente,

estamos calmos ou indiferentes quando agimos em meio

conhecido; mas quando o equilíbrio no comportamento

é quebrado, surge de imediato uma reação forte e vivaz,

a reação emocional. As emoções e a ansiedade surgem

em nós sempre que o nosso equilíbrio é quebrado.

Se esta rutura se traduz no reforço da nossa posição

e na ultrapassagem relativa das dificuldades com as quais

nos confrontámos, em geral sentimos emoções positivas:

felicidade, orgulho, etc. Se, pelo contrário, este equilíbrio

é perturbado, não nos beneficiando, se as circunstâncias

são mais fortes do que nós e nos sentimos em seu poder,

conscientes da nossa insegurança, fraqueza, fragilidade,

humilhação, surgem em nós emoções negativas: cólera,

medo, tristeza. É completamente compreensível que os

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92 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

períodos críticos da vida humana, os períodos em que

há momentos de mudança e reestruturação interna da

personalidade sejam especialmente ricos em reações

emocionais ou em sentimentos. A segunda parte da idade

escolar é a época da maturação sexual e constitui-se como

uma mudança, uma crise interna no desenvolvimento

da criança, que se caracteriza pelo agravamento e crescimento

da intensidade e a labilidade das emoções: como

já aludimos, o equilíbrio entre a criança e o meio que a

circunda rompe-se nesta idade devido à ocorrência de

um fator novo, que até então não se fazia sentir com tanta

acuidade como agora.

Esta é a fonte da instabilidade emocional desta

idade, que explica, em certa medida, o facto de, ao

aproximar-se dela, a criança substituir o desenho, a sua

forma favorita de criatividade no período pré-escolar,

pela escrita criativa. A palavra permite mais facilmente

do que o desenho transmitir as relações complexas

do seu sentir, nomeadamente as de natureza interior.

A linguagem verbal também é melhor para expressar

o movimento, a dinâmica e a complexidade de algum

acontecimento do que o infantil e imperfeito desenho da

criança. Por isso, o desenho infantil, que é uma atividade

completamente adequada aos estádios da relação simples

e pouco complexa da criança com o mundo, é substituído

pela palavra, meio de expressão correspondente a uma

relação mais profunda e complexa com o mundo interior

da criança em relação à vida, em relação a si mesma e

aos outros. Surge então uma questão fundamental: que

atitude devemos adotar em relação à emocionalidade

elevada característica desta idade de transição? Como

podemos avaliá-la? Como um facto positivo ou um

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 93

facto negativo? Existe nela alguma coisa de patológico

que leva as crianças inevitavelmente ao isolamento, ao

fechamento sobre si mesmo, à contemplatividade, à fuga

da realidade? De acordo com o que é visível frequentemente

nesta idade, ou com esta emotividade, pode ser

um fator positivo, que enriquece infinitamente e alarga

as relações da criança com o seu mundo externo? Nada

de importante ou de grande na vida se faz sem sentir

uma grande emoção.

«A educação artística», diz Pistrak, «dá não tanto o

conhecimento nem aptidões, mas o tom para a vida ou,

talvez, o fundo para a atividade vital. As convicções que

podemos assimilar na escola através dos conhecimentos,

apenas poderão criar raízes no psiquismo da criança

quando são reforçadas emocionalmente. Não se pode ser

um lutador convicto se no momento da luta não houver

no cérebro imagens claras, fortes e inspiradoras para a

luta; não se pode lutar contra o que é velho sem saber

odiá-lo e a capacidade para odiar é também emoção. Não

se pode construir o novo com entusiasmo se não se amar

com entusiasmo o novo, e o entusiasmo é resultado de

uma educação artística adequada.»

F. Giese realizou antes da guerra uma investigação

sobre a criação literária das crianças em diferentes idades.

Teve acesso a mais de três mil trabalhos escritos por

autores com idades compreendidas entre os cinco e os

vinte anos. Este estudo foi realizado na Alemanha antes

da guerra e, por essa razão, os resultados não podem ser

extrapolados para nós, uma vez que o estado de espírito,

os interesses e todos os fatores de que depende a escrita

criativa são diferentes daqueles com os quais Giese lidou

na sua investigação. Além disso, como o seu estudo foi

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94 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

total e em grande escala, limitou-se a um geral e superficial

escrutínio das composições e poesias infantis, identificando

os estados de espírito dominantes e as formas

literárias predominantes nas várias idades. No entanto,

estes resultados podem ter para nós um interesse decisivo

como primeira tentativa de análise geral da escrita

criativa das crianças e como dados para essa análise, em

que se refletem determinadas características etárias que,

sob uma forma ou outra e em certas condições, podem

manifestar-se em nós.

Por fim, estes dados têm interesse porque nos dão

material para os compararmos com os nossos. Os resultados

que o autor cita demonstram como variam, na prosa e

na poesia dos rapazes e raparigas os temas principais em

função da idade. A experiência pessoal pouco se reflete

na poesia dos rapazes e das raparigas; na prosa, pelo

contrário, a temática pessoal ocupa um lugar dominante,

o que é claro quando comparado com idades anteriores

a catorze e quinze anos. Nos rapazes, durante estes dois

anos, a percentagem de prosa relativa à experiência pessoal

sobe de 23,1% para 53,4%, e nas raparigas de 18,2%

para 45,5%, isto é, aumenta mais do dobro, enquanto

a proporção destes temas na poesia nos rapazes e nas

raparigas de dezasseis e dezassete anos é nula. A proporção

relativamente alta de temas tomados da experiência

pessoal nas crianças mais novas é explicada pelo facto de

Giese incluir nesta categoria todos os acontecimentos triviais,

episódios do dia a dia, como, por exemplo, um fogo,

uma viagem fora da cidade, a visita a um museu. Sobre

os acontecimentos ocorridos na escola, este tema apenas

inclui 2,6% na prosa e 2,2% nos versos, o que demonstra

o grau de insignificância que os acontecimentos na escola

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 95

têm na vida interior das crianças. Os temas eróticos,

pelo contrário, estão mais representados na poesia do

que na prosa; os motivos eróticos ocorrem mais cedo

nas raparigas do que nos rapazes: aos doze, treze anos.

Enquanto nos rapazes a percentagem desta temática é

nula, ela alcança o montante de cerca de 36,3% na escrita

das raparigas, decaindo entre os catorze e os quinze anos;

aumenta aos dezasseis, dezassete anos e, novamente, mais

nas raparigas do que nos rapazes.

«O mundo dos contos de fadas», diz Giese, «é claramente

o mundo da poesia feminina, que os rapazes

ignoram.»

É muito interessante observar a presença insignificante

de motivos sociais na poesia e na prosa destes

jovens autores alemães. Estes temas estão ausentes na

poesia em todas as idades, enquanto na prosa alcançam

uma percentagem muito pouco significativa,

constituindo cerca de 13,8% nas raparigas de doze e

treze anos (máximo). Nota-se aqui o incremento do

coeficiente dos temas filosóficos na poesia, o que, sem

dúvida, se relaciona com o despertar do pensamento

abstrato e o interesse por questões abstratas nesta idade.

Por fim, o coeficiente do tema dedicado à natureza, na

poesia e na prosa, entre raparigas e rapazes está bem

representado.

As raparigas de nove anos dedicam a maior parte

dos seus trabalhos a este tema e os rapazes de treze e

catorze anos escrevem sobre a natureza em metade dos

seus trabalhos. As crianças alemãs dedicam uma elevada

percentagem dos trabalhos aos temas religiosos, sobretudo

as raparigas. No entanto, este tema diminui em

percentagem perto dos dezasseis anos.

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96 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Os dados que comparam os temas e os pontos de

vista das crianças nos trabalhos escolares e os da criação

livre têm muito interesse. Concluímos que os mesmos

temas não surgem distribuídos de modo proporcional

em dois tipos de escrita criativa: o tema heroico, por

exemplo, representado na idade escolar por uma elevada

percentagem, cerca de 54,6 %, reduz-se na escrita livre

para 2,4%. Pelo contrário, os temas eróticos e filosóficos

ocorrem apenas em 3% das composições escolares,

mas elevam-se a 18,2% e 29% nas composições livres.

O mundo dos contos de fadas está representado neste

tipo de criação quinze vezes menos nas composições

escritas em casa do que nas composições escolares.

E, por fim, os temas restantes, não figurados na poesia

escolar, estão representados em cerca de 28,1% em casa.

O humor das crianças manifestado nestes dois tipos de

criação também não coincide. Assim, por exemplo, nas

composições, o humor triste e sério está representado

cinco vezes mais nos textos escritos na escola do que em

casa. Esta comparação tem uma importância significativa

porque mostra até que ponto a escrita criativa da criança

é estimulada e alterada pela ação de influências exteriores

e de que forma a criança se assume quando é deixada a

si própria.

A conclusão seguinte refere-se aos dados da presença

do humor dominante nas composições literárias

analisadas por Giese. A partir destes resultados observa-

-se que os estados de espírito de abatimento e de tristeza

se encontram muito raramente na criação literária das

crianças e que os estados de espírito alegres prevalecem.

Assim, se na poesia dos rapazes um e outro estado estão

próximos – 5,9% e 5,2% –, em proporção semelhante,

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 97

nas raparigas o humor alegre encontra-se em 33,4% e o

humor soturno apenas em 1,1%; na prosa, nos rapazes,

dez vezes mais, e nas raparigas o valor é semelhante –

predomina a disposição alegre. É de notar a percentagem

insignificante do humor aventureiro, porque este género

é difícil para a criação das crianças; do mesmo modo o

humor cómico e crítico é insignificante quando confirmado

pela baixa percentagem dos temas satíricos. Mas

será necessário sublinhar que o humor prevalecente é o

fator que mais facilmente se modifica na escrita criativa

da criança e, por isso, nos exemplos referidos devem ser

apenas considerados como indicadores genéricos dentro

desta problemática.

Seria desejável que entre nós a escrita criativa das

crianças fosse também estudada, evidenciando deste

modo quais os temas prevalecentes e os humores nas suas

composições. Os dados seguintes caracterizam as formas

literárias mais frequentes na criação infantil.

Como era esperado, o mais frequente é o relatório

ou o ensaio, quer dizer, a escrita de comunicação prática;

em segundo lugar está a história e em terceiro lugar, o

conto. A percentagem de trabalhos relacionados com o

drama (0,1%) e a escrita de cartas (1,9%) é extremamente

baixa. Este último resultado explica-se porque esta é, no

seu sentido psicológico, a forma mais natural da escrita

infantil e a menos cultivada na educação tradicional da

criança. Os dados sobre a forma gramatical e o volume

das composições infantis não deixam de ter interesse.

Com a idade aumenta a extensão dos trabalhos das

crianças. Uma avaliação do número médio de sílabas na

poesia e na prosa dos rapazes e das raparigas de várias

idades mostrou que o aumento em termos externos

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98 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

das composições está dependente do seu conteúdo.

Shneyerson, ao estudar a criatividade infantil, concluiu

que nem o drama nem a poesia são formas naturais para

a criança. No seu entender, se encontramos estas formas

na criação infantil é porque elas são fundamentalmente

o resultado das influências externas. Por outro lado,

a prosa é, em sua opinião, o género mais adequado à

criação da criança. Os dados de V. P. Vakhterov sobre

este problema geraram os resultados seguintes: 57% das

crianças estudadas escreviam em verso, 31% em prosa

e 12% escreviam em forma de drama. É sabido que a

riqueza da forma gramatical da linguagem infantil é um

fator muito importante para a apreciação da expressão

literária da criança. Os psicólogos estabeleceram há

muito que o período da fala não gramatical da criança

é um período especial e particular do desenvolvimento

da linguagem infantil.

De facto, a ausência das formas gramaticais no

discurso é um sinal claro de que no pensamento verbal

da criança e na sua representação faltam as indicações

relativas às relações e associações entre os objetos e os

fenómenos, uma vez que são as formas gramaticais os

signos usados para afirmar estas associações e relações.

É por isso que o período do surgimento das orações

subordinadas no discurso da criança, segundo Stern,

assinala a entrada na quarta e mais elevada fase do desenvolvimento

do discurso da criança, porque a presença das

orações subordinadas põe em evidência o domínio pela

criança de relações complexas entre diferentes fenómenos.

V. P. Vakhterov, que se ocupou da análise deste aspeto

do discurso da criança, chegou aos seguintes resultados.

O seu estudo identifica duas etapas: a dos quatro aos oito

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 99

anos e a dos nove aos doze anos e meio. Nestas etapas as

crianças utilizam as declinações de modo diferente. É fácil

observar a partir destes dados o seguinte: à medida que

a criança se desenvolve, aumenta o uso de declinações

indiretas, o que é a demonstração clara de que a criança

passa a uma etapa da compreensão das relações que a

declinação transmite na forma gramatical. A análise do

discurso da criança, do ponto de vista do uso que ela faz

dos elementos da proposição, conduz a uma conclusão

semelhante.

De novo, os dados mostram-nos que a criança

aumenta o uso dos elementos gramaticais como circunstâncias

determinativas e complementares de lugar,

tempo, etc.

O desenvolvimento mental da criança não se caracteriza

apenas pela aquisição de conceitos qualitativos e quantitativos,

mas igualmente pelas associações quantitativas

e qualitativas destes conceitos. Quanto mais desenvolvida

for a criança, maior é o número de conceitos e ideias que

ela pode juntar num todo unificado. O tempo presente e

especialmente o futuro são mais utilizados nas crianças de

menor idade do que nas de maior idade. O uso do passado

aumenta com a idade. Quanto mais nova é a criança, mais

ela vive, aparentemente, na esfera do esperado, previsto

e desejado e igualmente na esfera do vivido e do presente

próximo…

Mas à medida que a vida da criança se torna mais

longa, mais frequentemente ela recorre às experiências vividas

e então deparamo-nos com o fenómeno contrário: no que

respeita aos tempos do futuro e do presente, existem menos

expressões verbais do que do tempo passado.

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100 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Todos os investigadores estão de acordo quando

dizem que as crianças de idade mais precoce usam muito

frequente e profusamente os pronomes pessoais. Shlag

diz: «Se cada palavra fosse pronunciada pela criança de

7-8 anos, em média, cinco vezes e meia, então o pronome

pessoal singular seria pronunciado cem vezes mais – 542

vezes e os pronomes pessoais na segunda pessoa com

uma frequência 25 vezes maior – 135 vezes.» Gaupp sublinha

que as crianças dos quatro aos seis anos, quanto mais

desenvolvidas forem, com maior frequência utilizarão as

orações subordinadas. Alguns autores propõem dividir

em três períodos o desenvolvimento da criatividade

infantil: o primeiro período é o da expressão oral, que

se prolonga dos três aos sete anos; o segundo período é

o da expressão escrita, que se prolonga dos sete anos à

adolescência e, por fim, o período literário, que se estende

desde o fim da puberdade à idade da juventude. É preciso

dizer que, no fundamental, esta divisão corresponde de

facto à realidade, uma vez que, como já sublinhámos, o

desenvolvimento do discurso oral ocorre mais cedo do

que o desenvolvimento da linguagem escrita. No entanto,

é muito importante notar que esta superioridade da linguagem

oral sobre a linguagem escrita continua depois

de o primeiro período da expressão oral ter terminado.

No seu desenvolvimento subsequente, as crianças

expressam-se oralmente com mais brilho expressivo do

que através da escrita.

A transição para a linguagem escrita imediatamente

obscurece e dificulta a sua linguagem. O investigador

austríaco Linke chegou à conclusão de que, se comparássemos

as produções escritas e orais das crianças,

concluiríamos que o modo como a criança de sete anos

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 101

escreve é equivalente ao modo como uma criança de

dois anos fala, isto é, o desenvolvimento manifesto da

criança recua para um nível inferior da linguagem oral na

passagem a uma forma escrita mais complexa. É um facto

extremamente notável que as composições das crianças

camponesas que Tolstoi tanto admirava não eram mais

do que exemplos da sua expressão verbal. As crianças

falavam e Tolstoi escrevia o que elas diziam e, nas suas

notas, registava todo o encanto do discurso oral infantil.

Nestas histórias revelava-se ainda uma característica

original e importante da criação infantil, à qual alguns

autores chamam sincretismo, que se revela no facto de

a criação infantil não estar ainda muito diferenciada em

relação às várias modalidades artísticas, nem em função

das diferentes formas literárias; os elementos da poesia,

da prosa e do drama na produção infantil unem-se num

todo.

O processo da escrita criativa que Tolstoi descreveu

está muito próximo do teatro pela sua forma. A criança

não ditou apenas a história, mas também a descreveu e

representou os protagonistas da própria história. Nesta

ligação da criação oral e a arte dramática, como adiante

veremos, está alicerçada uma das mais originais e produtivas

formas de criação artística na infância.

Um interessante exemplo da expressão verbal foi-

-nos dado pelo professor Soloviov. Diz ele que o discurso

escrito de uma criança em idade escolar é «muito mais

pobre e esquemático» do que o discurso oral. É como se

estivéssemos na presença de dois tipos de reações verbais.

Uma rapariga camponesa de oito anos e meio, ainda

que fosse capaz de escrever, nunca escreveria de modo

a corresponder cabalmente aos seus pensamentos (ao

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102 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

ter sido perguntado na escola o que gostam as crianças

de fazer em casa), respondeu à pergunta: «Eu gosto de

varrer o chão, quando começo a varrer o chão, o lixo voa,

muito lixo voa e divirto-me com o lixo a voar, é como se

ele estivesse a lutar.» Neste discurso vivo da criança está

muito bem expressa a sua vivacidade emocional.

A. Busemann realizou uma investigação completa

com vista ao estudo da questão sobre o modo como

a atividade infantil é revelada na criação literária e

encontrou um coeficiente específico de atividade que

exprime as relações das características existentes entre

a menção das ações e os valores qualitativos descritivos

encontrados nas produções orais e escritas das crianças.

Este indicador de atividade mostrou-se mais elevado nas

crianças com idade entre seis e oito anos, e nos rapazes

e nas raparigas entre os três e os nove. Na idade dos

nove aos dezassete anos, este indicador foi maior nos

nove e treze anos. A comparação do discurso oral e

escrito levou Busemann à conclusão mais importante

da sua investigação: «O discurso oral tende mais para

a atividade enquanto o discurso escrito tende para um

estilo descritivo.»

Esta conclusão é confirmada pelas longas expressões

orais escritas. O discurso oral tomou muito menos tempo

do que o escrito; no espaço de quatro ou cinco minutos as

crianças diziam aquilo que só em quinze a vinte minutos

conseguiriam no discurso escrito. Este abrandamento do

discurso escrito causa não apenas mudanças qualitativas,

mas também quantitativas, porque, como resultado deste

retardamento, as produções linguísticas infantis desenvolvem

um novo estilo e caráter psicológico. O foco da

atividade que estava no primeiro plano do discurso oral

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 103

recua para o segundo plano, sendo substituída por uma

descrição mais pormenorizada do objeto descrito e por

uma enumeração das suas qualidades, características, etc.

O foco da atividade do discurso infantil é só um

reflexo da atividade geral da sua idade. Alguns autores

calcularam a quantidade de conceitos relacionados com a

ação nas histórias das crianças. Um exemplo deste cálculo

pode ser visto em diferentes relatórios que enumeram a

frequência dos objetos, das ações e dos traços peculiares

que ocorrem nas histórias de crianças de diversos níveis

de escolaridade. A partir destes dados depreende-se que

nas histórias infantis aparecem com maior frequência as

ações, com menor frequência os objetos e, ainda mais

raramente, as características particulares dos objetos.

É necessário, no entanto, fazer aqui uma ressalva

em relação à influência do discurso dos adultos, das

suas formas literárias, na linguagem escrita das crianças.

É sabido como as crianças são contagiadas pela imitação.

É compreensível, assim, que seja enorme a influência do

estilo literário dos livros nas crianças, o que frequentemente

obscurece as verdadeiras características da sua

linguagem escrita. Neste sentido, o estilo mais puro é o

das crianças camponesas órfãs e outras que, de um modo

geral, foram menos influenciadas pelo estilo do adulto.

Damos alguns exemplos tomados das autobiografias das

crianças abandonadas. Estes exemplos são óbvios em

relação ao modo como o discurso destas crianças está

muito próximo do seu discurso verbal. Semeon Vekshin,

de quinze anos, escreve:

«Eu tinha então doze anos, o meu irmãozinho

dez anos, e sofríamos porque não tínhamos pai e mãe.

Como eu era o mais velho tinha às vezes de cozer o

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104 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

pão: levantava-me manhã cedo – queria voltar a dormir,

mas não: olho para mim e começo a trabalhar. Vejo a

rapaziada que está a brincar e fico desgostoso porque os

outros que têm pai e mãe são livres e brincam. E assim

trabalhei e sofri até ao ano de 1920.»

Outra criança abandonada escreve:

«Dantes eu tinha pais. Agora fiquei sem eles. É mau

não ter pais. Eu tinha uma casa. Tinha um cavalo e uma

vaca. Agora não tenho nada. Em casa ficaram três ovelhas,

dois porcos e cinco galinhas. Acabei.»

Neste sentido, em geral, quanto mais nova a criança,

mais a sua escrita reflete as características do discurso

infantil e se distancia do discurso dos adultos. Como

exemplos citaremos dois curtos excertos de composições

de crianças: um foi escrito por um rapaz de treze anos,

filho de um trabalhador e o outro por um rapaz de doze

anos, filho de um tanoeiro. O primeiro texto é sobre a

primavera, que se anuncia assim:

«Depois da neve, depois dos sombrios dias de

inverno, o Sol espreitava-nos através da janela com

raios primaveris. A neve começou a derreter e os riachos

corriam por todo o lado e a primavera na sua beleza

aproxima-se e traz-nos alegria. Eis que o mês de maio

chegou e a relva verde despontou, em todos nós surgiu

uma nova alegria.»

Outra composição era sobre o tema «À espera»:

«Na montanha, no penhasco da encosta sobre o

Volga, abriga-se uma cabana de um pescador, negra como

azeviche. Os madeiros apodreceram. O vento espalhou

o telhado de colmo e no interior da cabana soa o grito do

vento. Dentro da cabana esperam a vinda do pescador.

O dia está a chegar ao fim. O ar está frio. No horizonte

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 105

levanta-se uma nuvem, uma nuvem cor de chumbo.

Levantou-se o vento. O rio Volga começou a agitar-se mas

o pescador ainda não chegava. Mas, de repente, apareceu

uma mancha, que crescia. Chegou ao penhasco, era um

barco e nele vinha um pescador.» 2

Nestas histórias sobressai de um modo claro o sincretismo

da escrita da criança. Nelas, a prosa não está

separada da poesia. Algumas frases são rigorosamente

cadenciadas e outras são fundadas num ritmo livre. Esta é

ainda uma história indiferenciada, semiprosa e semipoética,

cuja frequência é habitual nas crianças desta idade.

Citaremos aqui um exemplo composto em prosa. O autor

é um rapaz de doze anos, filho de um operário.

«A maior floresta é a taiga. Os pinheiros altos não

deixam penetrar o sol. É enorme como o mar; por onde

quer que vás há floresta e floresta. Do lago Ladoga até

às montanhas do Ural são 1500 quilómetros. Se entrares

no matagal não sairás de lá. Ali no inverno é frio. A neve

é tanta que não se consegue passar e atravessar e, no

verão, faz tanto calor como aqui. A rapaziada apanha

cogumelos e frutos silvestres, as pessoas só têm medo

dos animais selvagens. A floresta tem linces, ursos,

lobos, alces, etc.»

Neste caso, a tarefa prosaica de descrever a região

florestal ditou à criança uma forma de narração em

prosa. No entanto, os temas emocionais que preocupam

as crianças são por elas transmitidos numa prosa com

2

Estes exemplos da expressão literária infantil, como outras imagens que

apresentamos, foram tomados, na maior parte, do livro do professor

I. M. Solovev – Criação Literária e a Linguagem Infantil da Idade Escolar

[Literaturnoe tvorchestvo i iazyk detei shkol’nogo vozrasta] (1927).

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106 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

um estilo calmo e tranquilo. Eis aqui uma história sobre

um fogo, escrita por um rapaz de doze anos, filho de um

operário.

«Anoitecia, a debulhadora apitava e ouviam-se as

vozes das pessoas. De repente tocou o sino e todos foram

para casa. O silêncio era absoluto. Tudo o que se podia

ouvir era o mugir das vacas e a voz alta do pastor. Quando

ele passou perto da debulhadora deixou cair uma ponta

de cigarro. Deflagrou o fogo e no meio da noite toda a

palha se ateou. Tocou o sino. O povo correu com água

para apagar o fogo. As crianças gritavam e choravam.

Toda a aldeia estava virada do avesso. Depois de apagado

o fogo, todos recolheram a casa, estavam todos desolados

porque tinham perdido o pão.»

Como exemplo da escrita criativa coletiva, citamos

uma história apresentada numa exposição no Instituto

Pedagógico em 1925/1926. Este trabalho é da autoria

de crianças do quinto ano de escolaridade de uma das

escolas de Moscovo, com idades entre os doze e os

quinze anos. Ao todo são sete os autores, seis raparigas

e um rapaz. O rapaz foi o responsável pelo plano geral

e pela redação de todo o trabalho de composição, sob

o tema «A história do vagão número 1243 contada pelo

próprio». Este tema surgiu por iniciativa das próprias

crianças na relação direta com o estudo que fizeram

sobre a indústria.

Neste trabalho coletivo infantil, as crianças manifestam

todas as características fundamentais da criação

literária infantil: a fantasia combinatória, que atribui

sentimentos e experiências humanas ao material de

que era feito e ao próprio vagão; o registo emocional,

que leva as crianças não apenas a compreenderem e a

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 107

imaginarem para si a história do vagão, mas a viverem-

-na e a traduzirem-na numa linguagem dos sentimentos,

assim como a tendência para encarnarem esta elaboração

emocional e imaginativa a partir de uma forma

verbal externa para a poderem concretizar. É fácil vermos

em que medida a criação infantil se alimenta das

impressões que têm a sua origem na realidade externa,

como são elaboradas estas impressões e como isso leva as

crianças a uma compreensão e empatia com a realidade.

No entanto, observa-se também nesta história aquilo

que se pode sublinhar relativamente a todo o trabalho

criativo da criança, principalmente a imperfeição da

sua atividade criadora, isto se a olharmos a partir da

perspetiva das exigências que temos em relação à verdadeira

literatura.

«Os trabalhos criativos das crianças», diz G. Révész,

«tanto pelo conteúdo, como pela técnica, são na sua maioria

primitivos, imitativos, de valor desigual e desprovidos

do princípio da tensão gradualmente crescente.»

Este trabalho criativo é mais importante para a

criança do que propriamente para a literatura em si

mesma. Seria incorreto e injusto tratar a criança como

se fosse um escritor e exigir dos seus trabalhos o que se

exige ao escritor profissional. A escrita da criança está para

a escrita dos adultos como o jogo da criança está para a

vida. O jogo é necessário para a própria criança, tal como

o é a escrita, antes de mais para o desenvolvimento dos

impulsos do próprio autor; o jogo é necessário também

para o meio em que a criança nasceu e para o qual é dirigido.

Tal não significa, de modo algum, que a criatividade

da criança deva surgir apenas espontaneamente por

impulso interno, nem que todas as manifestações da arte

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108 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

das crianças sejam completamente idênticas ou devam

satisfazer não mais do que o seu gosto subjetivo. O mais

importante no jogo não é o prazer que a criança obtém ao

jogar, mas a utilidade objetiva e o significado objetivo do

jogo, do qual a própria criança não se apercebe. Este significado,

como é sabido, consiste no desenvolvimento e

no exercício de todas as forças e capacidades das crianças.

Do mesmo modo, a escrita criativa das crianças pode ser

estimulada e orientada a partir de fora e deve ser avaliada

a partir do ponto de vista do significado objetivo que tem

para o seu desenvolvimento e educação. Tal como ajudamos

as crianças a organizar os seus jogos, escolhemos

e orientamos a sua atividade lúdica, também podemos

estimular e orientar a reação criativa das crianças. Há

muito que os psicólogos estabeleceram um conjunto de

procedimentos e técnicas que servem um objetivo: o de

induzir experimentalmente a reação criativa da criança.

Para esta finalidade dão-se às crianças tarefas especiais,

ou temas, ou propõe-se uma série de estímulos musicais,

artísticos, tomados da realidade, etc., com o objetivo de

induzir nas crianças a criatividade literária. No entanto,

todas estas técnicas enfermam de uma artificialidade

extrema e todas elas servem um único objetivo, para o

qual foram criadas, quer dizer, o de causar uma reação

nas crianças que possa servir como uma boa matéria de

estudo.

Precisamente no sentido do seu estudo, esta reação

deverá ser evocada através de um estímulo simples

conhecido do psicólogo, para que este possa segurar nas

suas mãos a linha dessa reação criativa. Outras tarefas

completamente distintas oferecem-se à estimulação pedagógica

da criação infantil. Aqui, a tarefa é diferente, tal

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 109

como as suas técnicas. O melhor estímulo para a criação

artística infantil consiste em organizar a vida e o contexto

social das crianças de tal modo que crie a necessidade e

a possibilidade da criação infantil. Como exemplo podemos

referir as revistas ou os jornais de parede infantis.

«O jornal, se for bem organizado», diz Zhurin,

«combina mais capacidades do que qualquer outra atividade.

As mais diversas capacidades das crianças podem

ser aqui aplicadas: as crianças que gostam de pintura

e de desenho pintam e ilustram; as que têm tendência

para a literatura escrevem; os que gostam de organizar,

organizam as reuniões e distribuem o trabalho; os que

gostam de copiar, colar e recortar, e que são muitos, com

gosto se envolvem nestas atividades. Numa palavra, na

conceção de um jornal podemos encontrar aplicação

para as capacidades e interesses das crianças. Os mais

velhos e os mais capazes arrastam atrás de si os menos

hábeis. E tudo isto se realiza naturalmente, sem qualquer

pressão externa. O jornal pode desempenhar um papel

importante no desenvolvimento da linguagem escrita

da criança. É bem sabido que o trabalho que as crianças

realizam com interesse e de livre vontade traz melhores

resultados do que quando são obrigadas a fazê-lo.»

O maior valor da revista, em certa medida, reside

no facto de ela aproximar a escrita criativa da criança da

sua própria vida. As crianças começam a compreender

porque têm as pessoas necessidade da escrita. A escrita

torna-se para elas uma atividade com sentido e uma

tarefa imprescindível. Os jornais de parede escolares têm

a mesma ou maior importância, permitem também juntar

no esforço coletivo o trabalho de diferentes tendências

infantis, ou tardes criativas, e semelhantes formas de

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110 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

trabalho estimulam a criatividade e a inventividade da

criança.

Já falámos que uma das formas primárias da criatividade

da criança é o sincretismo, isto é, a forma em que não

se distingue ainda a poesia e a prosa, a narrativa e o texto

dramático. Deste modo, falamos do sincretismo literário

das crianças que não distinguem os géneros artísticos.

Mas existe ainda um sincretismo mais amplo, que consiste

sobretudo na ligação de diferentes modalidades artísticas

numa única ação artística. A criança inventa, compõe e

imagina tudo aquilo de que fala, como acontecia com as

crianças mencionadas por Tolstoi.

A criança desenha e fala ao mesmo tempo sobre

o que está a desenhar. A criança dramatiza e compõe o

discurso para a sua personagem. Este sincretismo aponta

para a raiz comum a partir da qual se separaram todos os

géneros da arte infantil. Esta raiz comum é representada

pelo jogo infantil que serve de etapa preparatória para

a criatividade artística. Mas mesmo quando, desta raiz

comum do jogo sincrético geral, se diferenciam formas

independentes, mais ou menos autónomas da criação

das crianças, como o desenho e a dramatização da composição

escrita, mesmo nessa situação, cada uma das

formas não se autonomiza completamente das outras,

antes absorve e assimila ativamente os elementos das

outras formas.

Numa das características da criação infantil encontramos

o traço do jogo a partir do qual ela procede.

A criança raramente trabalha durante muito tempo sobre

a sua própria obra, na maioria das vezes completa-a num

único momento. O esforço criativo infantil lembra, neste

caso, o jogo que surge a partir da urgente necessidade da

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 111

criança e proporciona, na maioria das vezes, uma rápida

e completa libertação do seu sentir.

A segunda ligação com o domínio do jogo consiste

no facto de, tanto na criação literária infantil como nos

jogos, na sua base, a criança ainda não ter cortado os

laços com os seus interesses e a sua experiência pessoal.

Bernfeld investigou as novelas escritas por adolescentes

dos catorze aos dezassete anos. Em todas elas, como

refere o autor, há uma marca profunda da vida privada

dos autores, algumas representam uma autobiografia

disfarçada, outras modificam em grande medida a base

íntima da narrativa, mas não tanto que ela se perdesse

completamente do seu trabalho. Baseando-se neste subjetivismo

da criação infantil, muitos autores inclinam-se

para a afirmação de que já na infância podemos distinguir

dois tipos de escrita: a escrita subjetiva e a escrita objetiva.

Parece-nos que estas duas características da escrita infantil

podem ser encontradas durante o período de transição, na

adolescência, pois são o reflexo do ponto de viragem que a

criatividade imaginativa infantil experiencia na passagem

do tipo subjetivo para o objetivo. Em certas crianças, os

traços do passado podem ser mais expressivos; noutras,

serão mais marcados os traços da imaginação futura.

Não há dúvida de que este facto está diretamente

ligado às características individuais de uma determinada

criança. Tolstoi identificava-as por referência aos dois

tipos que correspondem à imaginação plástica e emocional,

definidas por Ribot. A sua personagem Semka

destacava-se pelo tipo de criatividade plástica. A sua

narrativa caracterizava-se pelo modo como construía a

descrição artística, em que os pormenores mais verdadeiros

se sucediam uns aos outros.

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112 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

«Ao narrar, Semka via e descrevia tudo o que estava

perante os seus olhos: as tamancas geladas de madeira de

bétula e a lama que escorria quando o gelo derretia e que

se tornavam em carvão quando a velha os atirava para

a lareira.» A sua imaginação reproduzia e combinava as

imagens visuais exteriores e construía a partir delas um

quadro novo. Fedka criava combinando de modo geral os

elementos emocionais e juntava-lhes as imagens externas.

Ele «via apenas aqueles pormenores que evocavam nele o

sentir com que olhava para um rosto familiar». As impressões

que selecionava, na base de uma emoção comum,

eram apenas aquelas impressões que correspondiam à

emoção predominante que o dominava: o sentimento de

pena, de compaixão e comoção. Alfred Binet chamou a

estes dois tipos o «observador» e o «imaginativo» e considerou

que estes dois tipos poderão ser encontrados, em

igual proporção, entre os artistas e os homens de ciência,

como entre os adolescentes. Binet estudou os produtos

da criatividade artística de duas raparigas de onze e doze

anos e meio, uma das quais era do tipo criativo objetivo

e a outra do tipo subjetivo.

O professor Solovev, ao analisar a criação de dois

adolescentes, mostrou em que medida a pertença a um ou

a outro tipo define todos os pormenores e as particularidades

do discurso da criança. Isto reflete-se na escolha dos

epítetos, isto é, das definições, tanto das próprias imagens

como dos sentimentos com os quais elas estavam imbuídas.

Eis algumas das imagens dos epítetos que encontrámos

na criação artística de raparigas (artistas objetivas):

a neve é fofa, branca, argêntea e limpa. Uma violeta é

azul, uma borboleta colorida, as nuvens são ameaçadoras,

mãos geladas, as espigas douradas, o bosque bem cheiroso,

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A CRIATIVIDADE LITERÁRIA NO PERÍODO ESCOLAR 113

escuro, o sol vermelho e claro, dourado e primaveril. Tudo

isto corresponde às impressões e perceções reais, tudo

nos proporciona um quadro visual das coisas. O mesmo

não se passa com a outra rapariga. Os seus epítetos, face

a toda a sua expressividade e visualidade, são sobretudo

emocionais: a tristeza sem esperança e os pensamentos

negros e sombrios, como um corvo.

Resta concluir. Quem observar com cuidado a criação

literária da criança poderá perguntar-se: qual é o

sentido da criação literária se não for capaz de alimentar

na criança um futuro escritor, um criador, ou se não for

mais do que apenas um curto e episódico fenómeno

no desenvolvimento do adolescente, que mais tarde se

desvanece e, por vezes, desaparece completamente?

O sentido e a importância desta criação literária residem

no facto de ela permitir à criança fazer uma viragem brusca

no desenvolvimento da imaginação criativa, imprimindo

uma nova direção à sua fantasia que permanecerá para

o resto da sua vida. O seu sentido reside no facto de ela

aprofundar, alargar e purificar a vida emocional da criança,

que é despertada e sintonizada, pela primeira vez, para o

lado sério, e a ela se dispõe; por último, o seu significado

reside no facto de que a criatividade, ao exercitar as suas

tendências criativas e hábitos, permite à criança dominar

a linguagem humana, a ferramenta mais subtil e complexa

de transmissão do pensamento e dos sentimentos humanos,

o mundo interior do homem.

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CAPÍTULO 7

A CRIATIVIDADE TEATRAL

NA IDADE ESCOLAR

A criatividade teatral ou a dramatização é o que mais

se aproxima da criatividade literária da criança. A par da

criatividade verbal, a dramatização ou a realização teatral

é o género criativo mais frequente e comum praticado

pelas crianças. E compreende-se porque está esta forma

mais próxima das crianças, que se explica a partir de dois

momentos fundamentais: em primeiro lugar, porque o

drama se baseia nas ações e em factos que são obras da

própria criança; é a forma de criatividade que está mais

próxima dela, que liga de modo direto a criação artística

com as experiências vividas pela criança.

«A expressão dramática como forma de superação

das impressões vivenciais», diz Anna Petrova, «está

profundamente enraizada na criança e encontra a sua

expressão de um modo espontâneo, independentemente

dos desejos dos adultos. As impressões exteriores

do meio são tomadas e concretizam-se pelas crianças

através da imitação. Através do instinto e da imaginação,

a criança representa as qualidades espirituais que

ela própria nunca experimentou (heroísmo, bravura,

abnegação), e cria situações e circunstâncias que a vida

não põe à sua disposição. As fantasias infantis não

estão relegadas para o campo do sonho, como ocorre

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116 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

nos adultos. Cada uma das coisas que imagina, tudo o

que experimenta, quer concretizar em imagens vivas

e encarnadas em ações.»

Na forma dramática é expresso, de modo claro, o

ciclo completo da imaginação sobre o qual falámos no

primeiro capítulo. Aqui, a imagem, criada a partir de elementos

da realidade, concretiza-se e encarna de novo a

realidade, apesar da sua forma condicional; o anseio para

a ação e a concretização da realização, que está presente

no próprio processo da imaginação, encontram aqui a

sua plena realização. A criança, que pela primeira vez vê

um comboio, dramatiza a sua representação: martela e

joga imitando ser a própria locomotiva, apita, tentando

repetir o que viu. E esta dramatização das impressões

sobre o comboio dá à criança um enorme prazer. A autora

que acabámos de citar refere-se a um rapaz de nove anos

que, depois de ver escavadoras,

[...] durante uma série de dias ficou inquieto, ao pretender ser

como aquela máquina. Até ao máximo das suas possibilidades,

fez do seu corpo uma roda, de modo frenético agita as mãos,

que representam as pás agarradas às rodas para recolher

a terra. Apesar da exaustão provocada por esta ginástica,

o rapazinho ocupa-se nesta atividade durante um longo

passeio pela cidade e repete-a constantemente em casa e no

pátio. Os «riachos» que correm nas ruas inspiram-no ainda

mais: ele pretende limpar os «canais» e o leito dos «riachos».

A criança para apenas para executar o papel do operador, o

que conduz a máquina, virando-a e colocando-a para fazer

«a limpeza do novo riacho» e depois outra vez, revira-se

e transforma-se numa roda, representando «a incansável

máquina escavadora, que trabalha com as suas pás». Outra

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A CRIATIVIDADE TEATRAL NA IDADE ESCOLAR 117

rapariga, enterrando os pés na areia, fica direita com os braços

ao longo do corpo e diz:

«Eu sou uma árvore. Vês, eu cresço. Estes são os ramos

e aqui as folhas». A criança levanta lentamente os braços

mexendo os dedos. «Vês? O vento sopra e abana-me». E a

«árvore» começa a inclinar-se e a agitar os seus dedos-folhas.

Outra causa da proximidade da forma dramatizada

da criança é a ligação entre esta e o jogo. O drama está

mais próximo e mais diretamente ligado ao jogo do

que qualquer outra modalidade expressiva, que é a

raiz de toda a criatividade nas crianças e, por isso, é a

mais sincrética, isto é, contém em si elementos de vários

tipos de modalidades criativas. E é nisto, sem qualquer

dúvida, que se encerra o enorme valor da representação

teatral infantil. Esta realização teatral dá-nos o

pretexto e o material para as mais diversas formas de

criatividade infantil. As próprias crianças compõem,

improvisam ou preparam a peça, determinam os papéis

ou, às vezes, encenam alguns excertos de material literário

de antemão já existente. Esta criatividade verbal

é compreendida e sentida como uma necessidade pelas

crianças, porque assume um sentido e é uma parte do

todo; é a preparação ou é uma parte natural de um

jogo completo e fascinante. A preparação dos adereços,

das decorações, dos fatos, dá o pretexto para o desenvolvimento

da criatividade inventiva e da técnica das

crianças. Elas desenham, modelam, cortam, cosem e

novamente estas ocupações assumem um significado

e um objetivo, como fazendo parte de um todo em que

estão envolvidas. Por fim, o próprio jogo, ao envolver

a apresentação real da peça pelos atores, completa este

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118 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

trabalho e providencia-lhe uma expressão final, completa

e total.

«Os exemplos citados», diz Petrova, «são suficientes

para demonstrar até que ponto as representações

infantis têm as suas raízes na ação. O jogo é a escola de

vida da criança, que a educa espiritual e fisicamente.

O seu significado é enorme para a formação do caráter

e para o amadurecimento da mundividência do futuro

adulto. Podemos considerar o jogo a primeira forma

de dramatização, caracterizada por uma significativa e

valiosa qualidade que une o ator, o espectador, o autor

da peça, o cenarista e o técnico numa única pessoa. Nela,

a criatividade da criança assume um caráter de síntese:

os seus poderes, intelectual, emocional e volitivo, são

estimulados diretamente pela força da própria vida sem

nenhuma tensão excessiva do seu psiquismo.»

Alguns pedagogos estavam terminantemente contra

a criação teatral das crianças. Eles apontavam para o

perigo desta modalidade expressiva no desenvolvimento

precoce da vaidade infantil e para a natureza não natural

do teatro, etc. E, na verdade, as atividades teatrais que

tentam reproduzir as formas do teatro adulto são pouco

conformes e recomendáveis para a criança. Partir do texto

literário, memorizar palavras de outras pessoas, que nem

sempre coincidem com o entendimento da criança e com

os seus sentimentos, constrange a criatividade infantil

e torna a criança num mero transmissor do texto e das

palavras de uma outra pessoa. É por isso que as peças

escritas pelas próprias crianças, ou criadas e improvisadas

por elas, estão mais próximas do seu entendimento.

Aqui podemos incluir as mais variadas formas e diferentes

graus do texto literário, elaborado e trabalhado

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A CRIATIVIDADE TEATRAL NA IDADE ESCOLAR 119

antecipadamente à simplificação ligeira dos papéis, que

a própria criança deve improvisar no desenrolar do jogo

dramático, segundo um novo texto verbal. Tais peças

serão obrigatoriamente desajeitadas e menos literárias

do que as peças já concretizadas e escritas pelos adultos,

mas terão a grande vantagem de terem sido realizadas a

partir do trabalho criativo das próprias crianças. É necessário

não esquecer que a lei básica da criatividade infantil

demonstra que o seu valor se baseia não nos seus resultados,

não no produto da criação, mas no próprio processo.

O que é importante não é o que as crianças criaram mas o

que elas criam e fazem exercitando a imaginação criativa e

a sua implementação. Numa verdadeira produção infantil,

tudo, desde o pano de cena ao desenrolar do drama,

deve ser feito pelas mãos e pela imaginação das próprias

crianças. Apenas deste modo a representação dramática

adquire o seu pleno significado e poder para a criança.

Como já foi dito, em torno da representação criam-se

então, e organizam-se, as diferentes formas da criatividade

infantil: técnica, cénica e artística, verbal e dramática,

no sentido pleno da palavra. O valor intrínseco dos

processos criativos da criança revela-se principalmente

no facto de os momentos instrumentais, como, por exemplo,

o trabalho técnico de preparação da cena, assumirem

para a criança um significado de modo algum menor do

que a própria peça e a sua representação em cena. Petrova

descreve a realização de uma peça de teatro na escola e

o interesse manifestado pelas crianças pela parte técnica

do trabalho relacionado com a encenação da peça.

«Para se abrir buracos», diz ela, «precisamos de um

instrumento, que nem sempre se encontra no inventário

instrumental escolar – como é o caso de um berbequim.

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120 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

O processo de furar é de fácil acesso aos mais pequenos;

as crianças pré-escolares ensinaram-me esta operação

técnica simples. O berbequim que eu trouxe criou um

momento importante na vida do próprio grupo: as

crianças fizeram buracos em cubos grossos e em pranchas

de madeira, que depois ligavam com paus em diversas

combinações. Dos buracos nasceram florestas, jardins

e cercas. O berbequim, aos olhos das crianças, era um

género de milagre da técnica…»

Tal como na obra teatral, é necessário disponibilizar

o material às crianças para produzirem toda a construção

do espetáculo; impor às crianças um texto de outra pessoa

conduz a um desalento mental; do mesmo modo, o

objetivo e o caráter principal da peça devem ser próximos

e compreensíveis para as crianças. Elas ficarão confusas

e inibidas num palco por todas as formas exteriores do

teatro dos adultos, se diretamente transferidas para a

cena infantil; a criança é um mau ator para as outras

crianças, mas é um excelente ator para si próprio; por

isso, todo o espetáculo deve ser organizado de tal modo

que as crianças sintam que atuam para si próprias e

sejam envolvidas pelo próprio interesse do enredo da

peça, pelo próprio curso das coisas e não pelo resultado

final. A grande recompensa é o prazer que o espetáculo

em si providencia à criança a partir da sua própria

preparação, do próprio processo do jogo dramático, e

não do êxito ou aprovação e dos aplausos dos adultos.

Do mesmo modo como as crianças, ao escreverem

uma peça literária, devem compreender por que o fazem

e estar cientes do objetivo subjacente à escrita, assim também

na produção teatral desenvolvida por elas devem

ter um objetivo bem definido.

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A CRIATIVIDADE TEATRAL NA IDADE ESCOLAR 121

«O teatro dos Pioneiros», escreve G. Rives, «não

consiste na representação pela representação, mas tem

sempre um objetivo bem determinado, por exemplo,

ilustrar este ou aquele aspeto da Revolução ou de um

evento extraordinário, ou a dramatização do trabalho

realizado no semestre anterior; todo o teatro dos Pioneiros,

ao mesmo tempo que visa este objetivo, não pode

renunciar à sua função como educação estética; todo o

teatro dos Pioneiros, além do seu sentido e propósito

propagandístico, deve definitivamente conter em si

alguns aspetos de criação artística.»

Próximo do teatro da criança, como forma expressiva,

encontra-se o contar das histórias, ou seja, a sua

expressão criativa oral, verbal e a dramatização, no

sentido mais estrito da palavra. O pedagogo e educador

A. V. Chicherin descrevia uma das produções infantis do

seguinte modo:

Algumas das mesas foram deslocadas e em cima delas

estão os bancos; num determinado sítio está enfiado um

tubo de cartão e uma bandeira, a partir do chão foi levantada

uma prancha, uma azáfama. Estão todos sentados num

barco a vapor. De repente aparecem dois rapazes que querem

fugir para a América; esgueiram-se para o porão (debaixo

das mesas). Aí, nesse sítio, há também os maquinistas e

o fogueiro, no topo está o homem do leme, o capitão, os

marinheiros e os passageiros… O vapor apita, retiram-se as

amarras, no porão sente-se um ruído uniforme. As pessoas

no convés balouçam ritmicamente. Além disto, algures lá

atrás, numa madeira que também baloiça, está escrito: «mar».

Aqui, o principal significado destes objetos auxiliares não

consiste em suscitar a ilusão do público espectador, em geral

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122 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

estranho ao jogo dramático, mas no facto de o próprio jogo,

dominando de um modo ousado qualquer tema, poder ser

posto em movimento, animar-se e ser retratado ativamente.

Este espetáculo-jogo está muito próximo da dramatização,

tão perto que, com frequência, as fronteiras

entre um e outro se desvanecem completamente. Sabe-

-se que alguns pedagogos introduzem as dramatizações

e o jogo dramático como método de ensino. Esta forma

ativa de expressão através do próprio corpo corresponde

à natureza motora da imaginação plástica da criança.

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CAPÍTULO 8

O DESENHO NA IDADE ESCOLAR

O desenho, como já referimos, é a forma preferencial

da atividade criativa das crianças na idade precoce.

«À medida que a criança vai crescendo e se aproxima do

período da adolescência, de um modo geral, começa a

desvanecer e a arrefecer o seu interesse pelo desenho.»

Herman Lukens, ao escrever sobre os resultados das

investigações que realizou sobre desenho infantil, relaciona

este desinteresse com a idade entre os dez e os

quinze anos. Depois desta atenuação do interesse, o gosto

para o desenho é novamente retomado na idade entre

os quinze e os vinte anos. No entanto, este renascimento

da criatividade plástica surge apenas nas crianças com

manifesto talento artístico. Quando o desinteresse surge,

a maioria das crianças deixa de desenhar para o resto

da vida e os desenhos de um adulto que não desenha

regularmente não são muito diferentes dos desenhos

das crianças de 8-9 anos, a idade em que o gosto pelo

desenho esmoreceu. Estes dados demonstram que, na

idade a que fazemos referência, a atividade do desenho

deixa de interessar a criança que, em geral, a abandona.

Barnes, que estudou mais de 15 000 desenhos, concluiu

que esta quebra de interesse surge entre os treze e os

catorze anos.

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124 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

«Pode afirmar-se», diz ele, «que as raparigas aos

treze e os rapazes aos catorze anos se tornam menos

dotados na expressão criativa. As crianças que recusam

desenhar completamente têm mais de treze anos. Outras

investigações nestas áreas mostram que, aos treze anos,

isto é, na puberdade, as crianças passam por uma transformação

dos seus ideais.»

Este enfraquecimento do gosto das crianças em

relação ao desenho, na sua essência, oculta a transição da

capacidade no desenho para um estádio novo e superior

do seu desenvolvimento, apenas acessível às crianças

quando elas se encontram em condições de estimulação

favoráveis, como, por exemplo, a aprendizagem do desenho

na escola, ou de terem acesso a modelos artísticos

em casa ou de possuírem um talento especial para esta

modalidade artística. Para se compreender este ponto

de viragem em relação ao desenho infantil, que ocorre

neste período, convirá salientar em traços muito gerais

as características principais do desenvolvimento do

desenho infantil. Georg Kerschensteiner desenvolveu

estudos sistemáticos sobre o desenho infantil e divide

todo o trajeto do desenvolvimento do desenho infantil

em quatro níveis.

Se ignorarmos o estádio da garatuja, dos traços

aleatórios no papel, informes, de elementos separados, e

considerarmos imediatamente o estádio em que a criança

começa a desenhar na verdadeira aceção da palavra,

encontraremos a criança na primeira etapa, ou seja, no

estádio do esquema. Neste estádio, a criança representa

de modo esquemático o objeto, muito pouco conforme à

imagem real desse objeto. No desenho da figura humana

a criança incluirá a representação de uma cabeça, pernas,

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O DESENHO NA IDADE ESCOLAR 125

por vezes os braços e um tronco. Neste estádio, todas as

representações da figura humana serão limitadas a este

modo de a desenhar. A estas representações da figura

humana chamamos «cabeças de duas pernas», quer dizer,

seres esquemáticos que a criança desenha em vez de

figuras humanas. Corrado Ricci, investigador do desenho

infantil, perguntou em certa ocasião a uma criança que

desenhou a tal cabeça com duas pernas:

«– O teu desenho só tem cabeça e pernas?

– Claro – respondeu a criança –, é o que lhe chega

para ver, andar e passear.»

A característica essencial deste estádio é a circunstância

de a criança desenhar de memória e não a partir

da natureza. Um psicólogo pediu a uma criança que

desenhasse a sua mãe, que estava sentada mesmo à sua

frente; verificou por observação direta que a criança

desenhava a mãe sem olhar para ela uma única vez. No

entanto, não apenas as observações diretas mas também

a análise do desenho revelaram que a criança desenha

de memória. Ela desenha o que sabe sobre as coisas, o

que nelas considera essencial e não o que vê ou o que,

por conseguinte, para si imagina das coisas a desenhar.

Quando uma criança desenha um cavaleiro montado de

perfil num cavalo, desenha de modo claro as duas pernas

do cavaleiro, embora para o observador, a partir daquele

ponto, seja visível apenas uma perna.

«Se ela quer desenhar um homem vestido», diz

Bühler, «então procede como se estivesse a vestir uma

boneca: em primeiro lugar, desenha-o nu, depois

veste-o; deste modo, todo o corpo é transparente e, no

bolso, pode ver-se um porta-moedas e, dentro deste,

as moedas.»

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126 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

O resultado do desenho aqui é algo a que designamos

por desenhos em «raio-X». Nos desenhos 6 e 7

[ver Apêndice] esta característica é bem visível. Quando

a criança desenha uma pessoa vestida, desenha as pernas

debaixo da roupa, que não vê. Uma outra prova

clara do facto de nesta idade a criança desenhar de

memória é a incongruência e a inverosimilhança do

desenho infantil. As partes maiores do corpo humano,

como por exemplo o tronco, estão frequentemente

ausentes do desenho, as pernas crescem diretamente

a partir da cabeça e, por vezes, também os braços; os

membros do corpo são frequentemente unidos de um

modo completamente diferente daquele que a criança

observa quando olha para o corpo de alguém que está

perto de si. Os desenhos que se encontram no apêndice

deste livro mostram a representação esquemática do

homem, nos quais se vê de modo claro o que envolve um

bosquejo esquemático. James Sully refere justamente a

propósito deste estádio:

«Reconhecer que a criança de 3-4 anos não é capaz

de desenhar uma representação da face humana melhor

do que o faz na realidade parece absurdo. Não há dúvidas

sobre isto; de facto, o desenho da figura humana sem

cabelo, orelhas, torso e mãos está muito aquém do que

a criança sabe e conhece. Como se explica? Eu explico-o

com o facto de que o pequeno artista é mais simbolista

do que naturalista, não está minimamente preocupado

com a semelhança precisa, deseja apenas representar

os indícios superficiais.» É obvio que esta pobreza nos

pormenores é resultado também das limitações técnicas.

Uma cabeça redonda com duas linhas de suporte corresponde

ao que a criança pode desenhar com facilidade

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O DESENHO NA IDADE ESCOLAR 127

e confortavelmente. Bühler, com toda a razão, diz que

o esquema da criança é racional e concreto porque os

esquemas, tal como os conceitos, contêm apenas as características

estáveis e fundamentais dos objetos. Quando

a criança desenha, desenha o que sabe sobre o objeto e

não o que vê. Por isso, a criança desenha mais do que

ela própria vê. Com frequência, pelo contrário, deixa de

fora muito do que indubitavelmente vê, porque para ela

não é o elemento essencial para o objeto considerado.

Os psicólogos concluíram unanimemente que neste estádio

o desenho da criança é como uma narração gráfica,

ou, melhor dizendo, é o relato gráfico sobre o objeto que

está a representar.

Diz Bühler: «Quando se pede a uma criança de sete

anos para descrever um cavalo, o que ocorre é a mesma

enumeração de pormenores do corpo tal como no ato de

desenhar: o cavalo tem uma cabeça e uma cauda, duas

pernas à frente e duas atrás, etc. Por isso, o desenho por

memória é entendido como narrativa gráfica.»

De facto, podemos encontrar para nós uma explicação

para estas coisas no seguinte: quando a criança

está a desenhar, pensa no objeto que está a desenhar

como se estivesse a descrever o objeto para si própria.

Na sua descrição verbal, ela não está cingida estritamente

à continuidade temporal ou espacial do objeto e

pode assim, dentro dos limites de referência do objeto,

considerar algumas partes isoladas ou então omiti-las e

saltar por cima delas: por exemplo, um coelho tem uma

cabeça grande e duas patas muito curtas, brancas como

neve, dedos e um nariz vermelho. Se a mão do pequeno

pintor for conduzida ingenuamente ou, com mais precisão,

orientada acriticamente por esta descrição simples

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128 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

composta por contrastes, então as patas curtas podem,

com muita facilidade, crescer a partir da enorme cabeça,

aproximadamente no mesmo sítio podem ser coladas as

mãos e o nariz pode ocupar o centro da cabeça redonda.

Isto é precisamente o que, de facto, se pode observar em

muitos dos desenhos de crianças.

O seguinte estádio é designado como o estádio da

forma e da linha. A criança, gradualmente, desenvolve

a necessidade de não apenas nomear características

concretas do objeto descrito, mas igualmente transmitir

as relações formais dos objetos. Neste segundo estádio

do desenvolvimento do desenho infantil observa-se

uma mistura da representação formal com a representação

esquemática; os desenhos são ainda «desenhos-

-esquemas», mas neles detetam-se já os primórdios da

verdadeira representação e semelhança com a realidade.

Este estádio não pode, com certeza, ser separado abruptamente

do estádio anterior; no entanto, é portador de

um maior número de pormenores, numa busca atenta

e mais realista da representação e inserção no desenho

das diferentes partes do objeto: as faltas gritantes, como,

por exemplo, a omissão do tronco, deixam de existir; o

desenho na sua globalidade aproxima-se já da imagem

atual do próprio objeto.

O terceiro estádio, segundo Kerschensteiner, é o

estádio da representação realística, no qual o esquema

desaparece totalmente dos desenhos das crianças.

O desenho tem agora a forma de uma silhueta ou contorno.

A criança não transmite ainda a ideia da perspetiva,

a plasticidade do objeto, que é desenhado no

plano, mas, em geral, a criança dá à sua representação

uma verosimilhança real. «São poucas as crianças», diz

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O DESENHO NA IDADE ESCOLAR 129

Kerschensteiner, «que vão além do terceiro estádio pelas

suas próprias forças, sem o auxílio do ensino. Antes

dos dez anos é muito raro encontrarmos isto. Apenas

se encontram em alguns casos excecionais. A partir

dos onze anos começa a ser possível identificar uma

percentagem determinada de crianças que possuem

um certo talento para a representação tridimensional

dos objetos.»

No quarto estádio da representação plástica, algumas

partes dos objetos são representadas de um modo

expressivo com a utilização da luz e da sombra; surge a

perspetiva, sugerem-se os movimentos e mais ou menos

a impressão plástica e tridimensional do objeto.

De modo a distinguir melhor os matizes destes

quatro estádios e seguir a evolução gradual por que

passa o desenho infantil, damos alguns exemplos.

Consideramos quatro exemplos sequenciais de representações

de elétricos. O primeiro desenho [Apêndice,

Figura 8] é um esquema puro: alguns círculos

irregulares, que representam as janelas, e duas linhas

alongadas, que representam o próprio vagão. É tudo

o que a criança desenhou ao transmitir o desejo de

representar a carruagem do elétrico. No próximo desenho

[Apêndice, Figura 9], segue igualmente o esquema

puro, apenas as janelas estão distribuídas ao longo dos

lados do elétrico; transmite uma ideia mais verdadeira

da relação formal entre as partes. O terceiro desenho

[Apêndice, Figura 10] é uma representação esquemática

do elétrico com a enumeração pormenorizada das

diferentes partes e dos pormenores: veem-se pessoas,

assentos, rodas, mas tudo continua ainda no registo do

desenho esquemático [Apêndice, Figura 11]. Por fim,

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130 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

no quarto desenho, feito por um rapaz de treze anos,

vemos uma representação tridimensional e plástica da

carruagem do elétrico, em perspetiva, o que dá uma

aparência real do objeto. As características dos quatro

estádios do desenvolvimento do desenho das crianças

acentuam-se mais quando elas realizam representações

da figura humana ou de um animal, aliás, dois dos

temas favoritos das crianças [Apêndice, Figuras 1-6].

Nos primeiros desenhos vemos puras representações

esquemáticas da figura humana, limitadas por vezes à

representação de duas ou três partes do corpo. A pouco

e pouco, este esquema vai sendo enriquecido com certos

pormenores e surge então o desenho em «raio-X», muito

mais pormenorizado.

No segundo estádio encontramos novamente um

tipo de representação esquemática em «raio-X», como

pode ser visto de modo claro no desenho de um rapaz de

dez anos, que desenhou o pai vestido com um uniforme

de condutor de elétrico [Apêndice, Figura 7]. O tronco

e as pernas podem ser vistas através da roupa, o boné

tem um número e o casaco tem duas filas de botões. Mas

apesar da riqueza dos pormenores o desenho continua no

primeiro estádio do esquema puro. No segundo estádio,

na combinação do esquema e da representação formal,

vemos uma tentativa para representar de um modo

mais realístico a imagem do objeto. Estamos perante a

combinação do esquema com a aparência e a forma real

do objeto. Neste caso vemos um desenho feito por uma

criança de dez anos. O desenho representa o pai e a mãe

da criança. Nestas figuras é muito fácil discernir os traços

da representação esquemática, mas as figuras são já dominadas

pela representação formal do objeto. Por fim, os

Copyright © Dinalivro, Lev Semenovitch Vygotsky e João Pedro Fróis, 2012 (Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou difundida electronicamente)


O DESENHO NA IDADE ESCOLAR 131

desenhos do terceiro estádio dão-nos os contornos planos

da representação realística do próprio objeto. Apesar de

conter alguns erros, como a violação da proporcionalidade

e do balanço, a criança torna-se realista; desenha o

que vê, transmite a ideia de postura e de movimento e

considera o ponto de vista do observador; o esquema no

seu desenho está agora completamente ausente.

Finalmente, no quarto estádio, a representação

plástica (tridimensional) tem em conta a forma do objeto

representado. Um exemplo disto é o desenho do rapaz a

dormir [Apêndice, Figura 18]. Este desenho foi feito por

um rapaz de treze anos.

Os mesmos quatro estádios podem ser observados

na representação dos animais, o que demonstra claramente

que a diferença na representação não resulta do

conteúdo e da natureza do tema do desenho, mas, ao

invés disso, está ligada à evolução experimentada pela

própria criança.

A primeira figura [Apêndice, Figura 19] representa

um cavalo que em vez de uma cabeça de cavalo tem uma

cara de pessoa. Neste primeiro estádio, as crianças desenham

todos os animais do mesmo modo. Os esquemas

de representação do gato, do cão e frequentemente da

galinha não se distinguem entre si. De modo constante e

esquemático, a criança desenha invariavelmente o tronco

e as pernas. Na nossa imagem, a cabeça tem definitivamente

um aspeto humano, apesar de pertencer a um

cavalo. No segundo estádio a criança continua o esquema

de um cavalo, junta-lhe alguns traços, que correspondem

ao aspeto real do cavalo, por exemplo, no tratamento

da forma típica da cabeça e do pescoço. O desenho da

criança de um cavalo distingue-se já do desenho do gato

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132 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

e dos outros animais, sobretudo do desenho esquemático

de pássaros.

No terceiro estádio desenha os contornos bidimensionais,

mas já com uma representação realista do cavalo,

e só no quarto estádio, como se pode ver [Apêndice,

Figura 20], a criança representa a imagem do cavalo

em perspetiva. Só então a criança desenha o que vê.

À primeira vista é paradoxal a conclusão que se pode

tirar daqui quando consideramos estes quatro estádios.

Esperar-se-ia que o desenho por observação fosse mais

fácil do que o desenho por memória. No entanto, as

experiências e a análise dos dados disponíveis mostram

que o desenho de observação, a representação real do

objeto, é apenas um estádio superior e mais concluído

do desenvolvimento do desenho infantil; é um estádio

que apenas algumas crianças alcançam.

Como pode explicar-se tudo isto?

Recentemente, o investigador do desenho das crianças,

o professor Bakushinsky 1 , ensaiou uma explicação

para este fenómeno, dizendo que o primeiro período

do desenvolvimento da criança, de acordo com esta

explicação, põe no plano da sua perceção do mundo

que a circunda a forma de orientação motora e tátil.

Estas formas de orientação são primárias em relação às

impressões visuais. A perceção visual subordina-se a

1

Anatoli Vassilevitch Bakushinsky (1883-1939), professor da Universidade

de Moscovo, organizador da Academia das Artes, conservador

da Galeria Tretyakov. Foi impulsionador dos estudos em pedagogia nos

museus de arte nos anos vinte. Pela primeira vez, na Rússia, estudou

o problema da relação entre a pedagogia das artes e as capacidades

criativas da criança, propondo uma teoria do desenvolvimento estético

e artístico. (N. T.)

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O DESENHO NA IDADE ESCOLAR 133

este modo dinâmico e tátil de orientação da criança no

mundo neste período.

«Todas as ações da criança», diz este autor, «bem

como os produtos da sua criação podem ser compreendidos

e explicados, no todo e nas suas partes, como relação

entre as dimensões motora-tátil e visuais da perceção do

seu mundo. A criança é um ser de movimentos reais e

espontâneos. Ela cria as ações reais. Antes de tudo, está

interessada no processo de agir e não no resultado da

ação. Prefere mais fazer coisas do que imaginá-las. Se possível,

tenta utilizá-las de um modo utilitário, sobretudo

através do jogo, mas é indiferente, ou quase indiferente

em relação à sua contemplação, sobretudo durante um

longo período de tempo. Durante este tempo, as ações

da criança têm uma tonalidade emocional muito forte.

A ação física domina o processo analítico da consciência.

Os produtos criativos caracterizam-se por serem extremamente

esquemáticos e, em geral, representam aspetos

simbólicos genéricos das coisas. As suas alterações e

ações não se reproduzem; refere-se a elas por palavras

ou mostra-as no jogo.»

A direção principal da evolução da criança consiste

num incremento crescente do papel da visão no domínio

do mundo. A partir da sua posição inicial de subordinação

torna-se gradualmente dominante e os sistemas

comportamentais motrizes e táteis subordinam-se ao

sistema visual. Durante o período de transição verifica-

-se uma luta entre duas disposições antagónicas do

comportamento da criança, que termina com a vitória da

disposição visual pura da perceção do mundo.

«O novo período está relacionado com o enfraquecimento

da atividade física exterior», diz Bakushinsky, «e

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134 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

com a intensificação da atividade mental. Um período

analítico e racional ocorre no desenvolvimento infantil,

que se prolonga ao longo do último período da infância

e da adolescência. O papel dominante na perceção do

mundo e representação criativa desta perceção é agora

balizado pelos órgãos da visão. O adolescente torna-

-se mais e mais visual, olha agora o mundo através de

vários aspetos, experimenta-o mentalmente como um

fenómeno complexo e perceciona nesta complexidade

não tanto a variedade e a presença das coisas, tal como

ocorreu no período anterior, mas a globalidade de relações

entre as coisas e suas alterações.»

A criança interessa-se pelo processo, não tanto com

o processo da própria atividade, mas com o processo

decorrente no mundo exterior.

Nas artes visuais, neste período, o adolescente tende

para uma forma ilusória e naturalista da representação.

Ele quer fazer as coisas tal como estas são na realidade;

o aparelho visual permite-lhe dominar os métodos da

representação do espaço através do uso da perspetiva.

Vemos assim que a passagem para a nova forma

de desenhar está relacionada neste período com as

alterações profundas que ocorrem no comportamento

do adolescente. É interessante analisar os dados de

Kerschensteiner em relação à frequência em que ocorrem

os quatro estádios. Vimos que o quarto estádio

de Kerschensteiner apenas se inicia quando a criança

tem onze anos, ou seja, exatamente na idade em que,

segundo a maioria dos autores, ocorre nas crianças o

desalento e a perda de interesse pela arte de desenhar.

É evidente, como já referimos anteriormente, que estamos

aqui a falar de crianças particularmente talentosas,

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O DESENHO NA IDADE ESCOLAR 135

ou que o ensino da escola ou situação particular em casa

são favoráveis ao desenvolvimento do desenho.

O desenho não é mais uma atividade intensa,

espontânea, voluntária, ou seja, uma ação espontânea

da criatividade infantil torna-se antes numa criatividade

associada à habilidade, com determinadas capacidades

criativas e a mestria do uso dos materiais, etc. A partir

dos dados proporcionados pelo autor pode fazer-se

uma ideia da distribuição relativa dos quatro estádios

em relação às idades: vemos que todas as crianças de

seis anos se encontram no primeiro estádio, do puro

esquema. A partir dos onze anos este estádio é menos

comum à medida que o desenho melhora e, no início

dos treze anos, surge o verdadeiro desenho no sentido

mais pleno do termo.

F. Levinstein [citado por Volkelt, 1930] 2 , outro

investigador que estudou o desenho infantil, obteve

dados muito interessantes que mostram como a criança,

em diversas idades, inclui os vários pormenores numa

representação esquemática da figura humana.

Vemos assim que o tronco está presente em cerca

de 50% dos desenhos de crianças de quatro anos e 100%

nas de treze anos; as pálpebras e as sobrancelhas estão

em 92% dos desenhos das crianças de treze anos, e nove

vezes menos nas de quatro anos. A conclusão geral a que

podemos chegar, observando estes dados, é a seguinte:

as pernas, cabeça e mãos encontram-se nos estádios mais

precoces do desenho infantil, as outras partes do corpo,

pormenores e roupa, crescem à medida que aumenta a

idade.

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2

Hans Volkelt, Die Prinzipien der Raumdarstellung der Kindes, 1930. (N. T.)


136 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Do que foi dito antes surge uma pergunta: como nos

devemos relacionar com a criação artística no período

de transição? Será porventura uma raridade, convirá

estimulá-la, dar-lhe significado, cultivá-la nos adolescentes,

ou deveremos pensar que esta forma de criatividade

morre naturalmente na fronteira deste período

de transição?

Eis como uma adolescente avalia os resultados do

seu trabalho no ateliê de educação artística, orientada

por Sakulina 3 :

«Agora as cores dizem-me alguma coisa. A forma

como elas se combinam causa em mim um determinado

estado de espírito. As cores e o desenho explicam o conteúdo

da pintura, o seu sentido, e então a minha atenção

concentra-se principalmente pelo modo de agrupamento

dos objetos, que igualmente cria uma determinada organização

na pintura e, de igual modo, a luz e a sombra dão

muita vida à pintura. Eu estou muito interessada nesta

luz. Quando desenho a partir da natureza tento sempre

transmiti-la o mais possível, porque com ela tudo se torna

mais vivo; mas é muito difícil representar a luz.»

No desenvolvimento da criatividade artística

infantil, incluindo as artes visuais, deve observar-se o

princípio da liberdade como condição essencial de toda

a criação. Isto quer dizer que as atividades criativas das

crianças não podem ser nem obrigatórias nem impostas

e devem surgir apenas a partir dos interesses da própria

criança. Por isso, o desenho no período de transição não

3

O trabalho desta autora e dos seus seguidores está incluído na coletânea

de textos A Arte na Escola Profissional [Iskusstvo v trudovoi shkole],

Moscovo, 1926.

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O DESENHO NA IDADE ESCOLAR 137

deve ser nem obrigatório nem imposto. No entanto, para

as crianças dotadas e mesmo para as que não planeiam

ser no futuro artistas profissionais, o desenho pode ter

um significado cultural de enorme importância. Como

foi dito no comentário acima citado, quando as cores e o

desenho começam a dizer alguma coisa ao adolescente,

ele domina uma nova linguagem que alarga os seus

horizontes, aprofunda os sentimentos e lhe transmite na

linguagem das imagens o que através de um outro modo

não poderia ter sido trazido à sua consciência.

Dois problemas importantes estão relacionados

com o desenho na idade da transição (adolescência), aos

quais daremos atenção ao terminar. O primeiro reporta-

-se ao facto de que para o adolescente não basta o mero

exercício da imaginação criativa, deixa de o satisfazer o

desenho feito de qualquer modo. Para a concretização da

sua imaginação criativa, o adolescente necessita agora de

adquirir hábitos e competências artísticas profissionais.

Ele deve aprender a dominar o material, método

específico de expressão providenciado pela pintura. Só

pelo cultivo deste domínio do material poderemos proporcionar

o desenvolvimento do desenho da criança no

caminho adequado à sua idade. Vemos, deste modo, o

problema em toda a sua complexidade. Este problema é

constituído por duas partes: por um lado, é necessário

cultivar a imaginação criativa; por outro lado, é necessário

o desenvolvimento especial de conhecimentos para

o processo de concretização das imagens criadas pela

imaginação. Apenas quando estes aspetos estiverem

suficientemente desenvolvidos, a criança poderá progredir

adequadamente e revelar o que de facto esperamos

dela. Outra questão relacionada com o desenho nesta

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138 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

idade prende-se ao facto de o desenho infantil estar

muito associado ao trabalho produtivo ou à produção

artística. Pospelova fala da sua experiência de ensino com

crianças na área da gravura. Neste processo de criação,

as crianças produziram uma gravura que exigia deles o

domínio de uma série de processos técnicos envolvidos

na sua preparação e impressão.

«O processo de impressão», diz a autora, «motivou o

interesse das crianças, sobretudo no processo de entalhe,

corte. Depois de realizadas as primeiras impressões, o

número de participantes neste ateliê cresceu consideravelmente.»

A gravura transformou-se para a criança num

objeto, não apenas de criação artística, mas igualmente

de criação técnica. Com frequência, devido às particularidades

da sua técnica, a gravura foi usada para outros

objetivos não artísticos. As crianças produziram títulos,

anúncios, carimbos; usaram a técnica da gravura nos

jornais de parede, prepararam ilustrações para as ciências

naturais e as ciências sociais, estabelecendo novos

diálogos no seu trabalho com a atividade tipográfica.

A autora, com toda a razão, conclui:

«O interesse manifestado pelos adolescentes pela

atividade técnica torna evidente que o método mais

adequado para captar a sua atenção para esta técnica produtiva

consiste em envolver neste processo a criatividade

artística pessoal.» Esta síntese entre o trabalho artístico e

o produtivo corresponde cabalmente à criatividade da

criança neste período. As duas gravuras referidas pela

autora na sua obra, representando um moinho e um

camponês, mostram até que ponto podem ser complexos

os processos técnicos e criativos quando se fundem.

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O DESENHO NA IDADE ESCOLAR 139

Toda a arte que cultiva métodos específicos de concretização

das suas imagens dispõe de uma tecnologia

específica e esta combinação da disciplina técnica com

os exercícios criativos é, invariavelmente, o mais valioso

dos métodos que o pedagogo dispõe para esta idade.

Labunskaia e Pestel descreveram assim a experiência de

trabalho no âmbito da produção artística.

«Que importância pode ter», perguntam os autores,

«a produção artística para as crianças no período de transição

e, mais difícil ainda, no sentido artístico-pedagógico

no período dos 13-14, 15 anos, quando mesmo os mais

dotados parecem contagiar-se pela ideia: “Não conseguimos

fazer isto como deve ser; como não sabemos,

não vale a pena fazer.” A educação artística continuada

pode ajudá-los a manter a motivação para a criação e

para o domínio dos materiais através do envolvimento

na produção artística. O lápis, o barro e as tintas, quando

são usados nos projetos artísticos, tornam-se aborrecidos.

Os novos materiais e os novos projetos utilitários darão

um novo ímpeto à criatividade. Se em idade mais precoce

a superação das dificuldades técnicas inibiam e minimizavam

os esforços criativos, agora o contrário é verdadeiro:

determinadas limitações, as dificuldades técnicas, como a

necessidade de usar o poder inventivo dentro de certos

limites, tornam mais importante a atividade criativa –

daqui o valor e a importância da orientação vocacional

para produção.»

A importância do fator técnico, com o qual se deve

munir a criatividade, para que seja possível neste período,

revela-se evidente quando temos em atenção ser este o

fator que faculta à criança a forma mais exequível para o

trabalho criativo. Os autores dizem, com toda a razão, que

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140 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

este tipo de labor criativo habitua a criança a revelar e a

afirmar a criatividade artística na edificação de uma vida

social proletária (a decoração do clube, a preparação das

bandeiras, os cartazes, os adereços do teatro, os jornais

de parede, etc.). Os autores, na sua experiência, utilizaram

os bordados, a pintura em madeira, os padrões na

tela, os brinquedos, a costura e a carpintaria. Todas estas

experiências conduziram a um mesmo resultado positivo:

ao mesmo tempo que houve um desenvolvimento das

capacidades criativas das crianças, ocorreu também o

desenvolvimento das capacidades técnicas. O próprio

trabalho adquiriu outro sentido e tornou-se alegre. A criatividade,

ao deixar de ser uma diversão e um jogo, que

não interessava ao adolescente, e ao ser construída na

base da técnica que ia dominando gradualmente, assim

como o seu empenho, passou a alimentar uma atitude

mais séria e crítica das crianças face às suas ocupações.

Observamos aqui, e na experiência da organização das

peças teatrais das crianças, como é fácil encontrar uma

saída para o âmbito da sua criação puramente técnica.

Seria completamente incorreto pensar que todas as

potencialidades criativas das crianças se limitam exclusivamente

à criatividade artística. Infelizmente, a educação

tradicional, ao manter as crianças longe do trabalho,

levou a que as crianças revelassem e desenvolvessem as

capacidades criativas, antes de tudo, na área da arte. É por

isto que a criação artística infantil foi mais bem estudada

e conhecida. No entanto, também na área das técnicas

encontramos um desenvolvimento intensivo da criatividade

da criança, particularmente nesta idade, a que mais

nos interessa agora. A elaboração de modelos de aviões e

de máquinas, a criação de novas construções, de desenho,

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O DESENHO NA IDADE ESCOLAR 141

e as atividades dos ateliês de jovens naturalistas – todas

estas formas da criatividade técnica infantil assumem

um enorme significado porque orientam o interesse e a

atenção das crianças para uma nova área, na qual se pode

revelar a imaginação criativa do Homem.

Como vimos, a ciência e a arte permitem a utilização

da imaginação criativa. A tecnologia é produto dessa

mesma atividade, é a imaginação cristalizada, tal como

a designou Ribot. As crianças que procuram dominar

os processos da criação científica e artística apoiam-se

também, do mesmo modo, na imaginação criativa, tal

como na área da criação artística. Nos nossos dias, com

o desenvolvimento da rádio, a difusão geral da educação

tecnológica nos últimos anos permitiu o desenvolvimento

de uma rede de ateliês de eletrotécnica. A par destes

ateliês existe uma série de clubes juvenis nas fábricas: de

aviação, de química, de construção, etc.

Este tipo de tarefa é também implementado no

desenvolvimento da criatividade da criança nos clubes

de jovens naturalistas, que procuram articular a atividade

criativa com projetos que visam o incremento económico;

os ateliês dos jovens naturalistas, juntamente com os

ateliês dos jovens técnicos, que se organizam nos clubes

de Pioneiros, deverão tornar-se escolas da criação técnica

dos nossos adolescentes.

Não nos deteremos em pormenor nesta ou noutra

forma de criatividade, como a musical, a escultórica, etc.,

porque não é nosso propósito facultar a enumeração

do quadro geral e sistemático de todas as modalidades

criativas das crianças. O nosso objetivo também não é

descrever os métodos de trabalho que as crianças utilizam

em cada uma das modalidades artísticas. O que

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142 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

ensaiámos foi sobretudo dar ênfase ao mecanismo que

subjaz à criatividade infantil, aos traços mais significativos

e particulares desta criatividade na idade escolar e,

através dos exemplos das formas mais bem estudadas

de criatividade nesta idade, mostrar o funcionamento

deste mecanismo e a presença daquelas características.

Em conclusão, interessa salientar a particular importância

do cultivo e da promoção da criatividade na idade

escolar. Todo o futuro do Homem é conquistado através

da imaginação criativa. A orientação para o futuro, através

de um comportamento baseado no futuro e derivado

desse futuro, é a mais importante função da imaginação.

Por isso, o objetivo educacional mais significativo do

trabalho pedagógico é a orientação do comportamento

da criança na idade escolar, com a intenção de a preparar

para o amanhã, na medida em que o desenvolvimento e

o exercício da criatividade constituem a principal força

no processo de concretização deste objetivo.

A formação de uma personalidade criativa virada

para o futuro prepara-se através da imaginação criativa

materializada no presente.

Copyright © Dinalivro, Lev Semenovitch Vygotsky e João Pedro Fróis, 2012 (Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou difundida electronicamente)


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1

Organizada por Pentti Hakkarainen (2004) e João Pedro Fróis.


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Copyright © Dinalivro, Lev Semenovitch Vygotsky e João Pedro Fróis, 2012 (Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou difundida electronicamente)


ÍNDICE ONOMÁSTICO

Bakushinsky, Anatoli (1883-

-1939) – académico e

museólogo russo 11, 132,

133

Barnes, Earl (1861-1935) –

psicólogo americano 123

Binet, Alfred (1857-1911) –

psicólogo francês 112

Blonsky, Pavel (1884-1941)

– psicólogo e pedagogo

russo 11, 78-81

Bühler, Karl (1879-1963) –

psicólogo alemão 50, 125,

127

Busemann, Adolf (1887-?) –

psicólogo alemão 102

Chicherin, A.V. (1900-?) –

filólogo russo 121

Compayre, Jules G. (1843-1913)

– pedagogo francês 65

Darwin, Charles R. (1809-

-1882) – naturalista inglês

25, 33

Dostoievsky, Fiodor M. (1821-

-1881) – escritor russo 16,

69

Gaupp, Reinhard (18-?-19-?)

– psicólogo alemão 77, 100

Giese, Fritz (1890-1935) –

psicólogo alemão 93-96

Gornfeld, Arkady (1867-1941)

– crítico literário, literato e

tradutor 70

Groos, Karl (1861-1946) –

psicólogo alemão 49, 50,

65

Janet, Pierre (1859-1947) –

neurologista e psicólogo

francês 64

Kerschensteiner, Georg

(1854-1932) – psicólogo e

pedagogo alemão 11, 124,

128, 129, 134

Levinstein, Siegfried (1876-?)

– psicólogo e pedagogo

alemão 135

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148 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Lukens, Herman (1865-?) –

psicólogo alemão 123

Lunatcharsky, Anatoli (1875-

-1933) – político e homem

de cultura russo 73

Malabranche, Nicolas (1638-

-1715) – teólogo e filosofo

francês 65

Petrova, A. N. (18-?-19-?) –

pedagoga russa 115, 118,

119

Pistrak, Moiseii

– pedagogo e educador

russo 93

Púshkin, Aleksandr (1799-

-1837) – poeta russo 30,

35, 42-45, 87

Révész, Géza (1878-1955) –

psicólogo húngaro 107

Ribot, Theodule (1839-1916)

– psicólogo francês 11, 24,

26, 27, 33, 38, 39, 41, 50, 51,

53-55, 59, 60, 61, 72, 73,

111, 143

Ricci, Corrado (1858-1934) –

historiador de arte

italiano 125

Soloviev, I. M (18-?-19-?) –

professor de educação

especial (surdos)

colaborador de

L. S. Vygotsky 76

Stern, William (1871-1938) –

filósofo e psicólogo

alemão 98

Sully, James (1842-1923) –

psicólogo inglês 126

Tolstoi, Lev (1828-1910) –

escritor russo 11, 25, 45,

48, 79, 81-87, 89, 90, 101,

110, 111

Vakhterov, Vassili (1853-1924)

98

Volkelt, Hans (1886-1964) –

psicólogo alemão 135

Waismann, Friedrich (1896-

-1959) – matemático

e filósofo austríaco 55

Wundt, Wilheim (1832-

-1920) – psicólogo

e fisiologista alemão 46

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APÊNDICE

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APÊNDICE 151

Figura 1.scribbling

Figura 2 e 3.

Figura 4.

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152 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Figura 6.

Figura 5.

Figura 7.

-

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APÊNDICE 153

Figuras 8 e 9.

Figura 10.

Figura 11.

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154 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Figura 12.

Figura 13.

Copyright © Dinalivro, Lev Semenovitch Vygotsky e João Pedro Fróis, 2012 (Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou difundida electronicamente)

Figura 14.


APÊNDICE 155

Figura 15.

Figura 17.

Figura 16.

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156 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

Figura 18.

Figura 19.

Figura 20.

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BIOGRAFIA DE

LEV SEMENOVITCH VYGOTSKY

Lev Semenovitch Vygotsky nasceu em Orsha (Bielorússia)

a 17 de novembro de 1896, no seio de uma família

de classe média. Em 1897, a família passou a viver em

Gomel. Aprendeu as primeiras letras com o tutor Solomon

Ashpiz, um adepto do método socrático. Concluiu

os dois últimos anos do ensino secundário numa escola

privada para judeus. A verdadeira alma da família era a

mãe, Cecília Moiseevna, conhecedora de várias línguas,

«pessoa de inteligência superior e bondade extraordinária»

(Vygotskaya, G., Lifanova, T., 1996). Em 1914, Vygotsky foi

admitido na Faculdade de Medicina de Moscovo, onde

permaneceu pouco tempo, optando pela Faculdade de

Ciências Jurídicas da Universidade Imperial de Moscovo.

Concluiu o curso de Direito em 1917. Nesse mesmo período

estudou História, Filosofia e Psicologia na Universidade

Popular de Shaniavsky, onde com 19 anos de idade,

apresentou a dissertação A Tragédia de Hamlet, Príncipe da

Dinamarca, ensaio de análise crítica, único e original sobre

a obra de Shakespeare. Em Moscovo fez crítica literária e

escreveu sobre os poetas simbolistas Andrey Biely, Vyacheslav

Ivanov, Nikolay Brodsky e Dmitry Merezhkovsky.

De 1919 a 1924 lecionou no Instituto Pedagógico

de Gomel e entre 1924 e 1934 psicologia e pedagogia

em vários estabelecimentos do ensino superior de Mos-

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158 IMAGINAÇÃO E CRIATIVIDADE NA INFÂNCIA

covo, Leningrado, Tashkent. Em 1933, era o responsável

pelas cátedras de Pedologia do Instituto Pedagógico e

de Pedologia Geral e do Desenvolvimento no Instituto

de Medicina da Universidade de Moscovo. A atividade

como investigador iniciou-se na altura em que organizou

o Laboratório de Psicologia no Instituto de Pedagogia de

Gomel e continuou, a partir de 1924, como investigador

de 2.ª classe no Instituto de Psicologia de Moscovo. Em

1925, com a apresentação da dissertação de doutoramento

sob o título Psicologia da Arte foi-lhe atribuído

o lugar de investigador de 1.ª classe daquele instituto.

A partir dessa altura tornou-se membro efetivo respetivamente

dos Institutos de Atividade Nervosa Superior

e de Pedagogia Cientifica (Leontiev, A. A, 1990).

Durante a década de 1924-1934, Vygotsky escreveu

mais de duas centenas de obras, parte significativa dos

quais sobre metodologia do conhecimento científico

na psicologia. No final do ano de 1933, Vygotsky havia

escrito, publicado ou em vias disso, vários livros, artigos,

traduções e prefácios: Psicologia pedagógica (1925), Psicologia

da Arte (1925), O significado histórico da crise na Psicologia

(1927), Pedologia da idade escolar (1928), Pedologia do

adolescente (1930), Estudos sobre a história do comportamento

(1930), História do desenvolvimento das funções psicológicas

superiores (1931), Pensamento e linguagem (1932). Vygotsky

morreu em Moscovo no dia 11 de junho de 1934.

Leontiev, A. A. (1990). L.S.Vygotsky. Moskva: Prosvechenie.

(Apêndice: L. S. Vygotsky: Autobiografia, pp.140-141)

Vygotskaya, G., Lifanova, T. (1996). Lev S. Vygotsky: jizn, deiatelnost,

shtrikhi k portretu (Lev S. Vygotsky: vida, obra, esboços

para um retrato). Moscovo: Smysl.

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NOTA SOBRE O TRADUTOR

João Pedro Fróis é docente e investigador da Universidade

de Lisboa. Publicou estudos sobre Lev Vygotsky

no Journal of Aesthetic Education e no livro Essays on Aesthetic

Education for the 21st Century. Traduziu do mesmo

autor a História do Desenvolvimento das Funções Psicológicas

Superiores.

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