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Revista Dr Plinio 305

Agosto de 2023

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Publicação Mensal<br />

Vol. XXVI - Nº <strong>305</strong> Agosto de 2023<br />

Um passado de fidelidade,<br />

penhor de esplendoroso futuro


Sebastian Mierzwa(CC3.0)<br />

Insaciável do sublime<br />

A<br />

alma contrarrevolucionária deseja a Terra organizada à maneira do Céu e que, para<br />

isso, tudo, inclusive as menores coisas, tenda para o mais sublime, nobre e elevado.<br />

E nisso ela é insaciável.<br />

Daí vem o mistério do encanto de determinados monumentos. Por exemplo, a Abadia do<br />

Monte Saint-Michel, na França. Qual o sentido daquela flecha? É conduzir as almas para um<br />

fim insaciável. Ela parece entrar diretamente no céu. Podemos ficar horas contemplando-a, e temos<br />

a impressão de que nos ajuda a conceber, a imaginar coisas cada vez mais maravilhosas,<br />

mais magníficas.<br />

(Extraído de conferência de 27/11/1976)


Sumário<br />

Publicação Mensal<br />

Vol. XXVI - Nº <strong>305</strong> Agosto de 2023<br />

Vol. XXVI - Nº <strong>305</strong> Agosto de 2023<br />

Um passado de fidelidade,<br />

penhor de esplendoroso futuro<br />

Na capa,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1994.<br />

Foto: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

As matérias extraídas<br />

de exposições verbais de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

— designadas por “conferências” —<br />

são adaptadas para a linguagem<br />

escrita, sem revisão do autor<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

ISSN - 2595-1599<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Roberto Kasuo Takayanagi<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Virgílio Rodrigues, 66 - Tremembé<br />

02372-020 São Paulo - SP<br />

E-mail: editoraretornarei@gmail.com<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pigma Gráfica e Editora Ltda.<br />

Av. Henry Ford, 2320<br />

São Paulo – SP, CEP: 03109-001<br />

Preços da<br />

assinatura anual<br />

Comum............... R$ 200,00<br />

Colaborador. .......... R$ 300,00<br />

Propulsor.............. R$ 500,00<br />

Grande Propulsor....... R$ 700,00<br />

Exemplar avulso. ....... R$ 18,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

editoraretornarei@gmail.com<br />

Segunda página<br />

2 Insaciável do sublime<br />

Editorial<br />

4 Indispensável recurso à<br />

Soberana do Céu e da Terra<br />

Piedade pliniana<br />

5 Dominai-me,<br />

ó Mãe!<br />

Dona Lucilia<br />

6 Um filho engendrado<br />

na extrema velhice<br />

De Maria nunquam satis<br />

12 O Sapiencial e Imaculado Coração de<br />

Maria, invocação da Contra-Revolução<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

15 Fascínio e intransigência<br />

Hagiografia<br />

18 Um antegozo da<br />

visão beatífica<br />

Calendário dos Santos<br />

22 Santos de Agosto<br />

Perspectiva pliniana da História<br />

24 Luzes e sombras na vida<br />

de grandes personagens<br />

Luzes da Civilização Cristã<br />

32 Galhardia em tempo<br />

de paz ou de guerra<br />

Última página<br />

36 Rainha por excelência<br />

3


Editorial<br />

Indispensável recurso à<br />

Soberana do Céu e da Terra<br />

o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam” (Sl 126, 1), diz o salmista.<br />

E Deus não estabeleceu outra base para nossa salvação senão Jesus Cristo. Portanto, todo edifício<br />

que não é construído sobre essa pedra firme é como se fosse elevado sobre a areia move-<br />

“Se diça e, mais cedo ou mais tarde, cairá infalivelmente.<br />

Para que floresça e frutifique o nosso apostolado, torna-se indispensável essa vida sobrenatural, que é a<br />

vida de Nosso Senhor Jesus Cristo em nós. A realização prática desse ideal de vida interior se acha naquela<br />

perfeita comunhão a que chegou o Apóstolo das Gentes: “Já não sou eu que vivo, é Jesus Cristo que vive<br />

em mim” (cf. Gl 2, 20).<br />

Daí decorre a conclusão de que, em nossas lides apostólicas, devemos regular nossas inclinações naturais<br />

e nos esforçar por adquirir o hábito de julgar e de nos dirigir em tudo de acordo com as luzes do Evangelho<br />

e os exemplos de nosso Divino Salvador.<br />

O alvo de todos os nossos trabalhos de apostolado deve ser tornar todo homem perfeito em Jesus Cristo,<br />

porque só n’Ele habitam toda a plenitude da Divindade e toda a plenitude de graças, de virtudes e de<br />

perfeições.<br />

Pertencemos a Nosso Senhor Jesus Cristo como seus membros e servos, que Ele resgatou por um preço<br />

infinitamente caro, pelo preço de seu Sangue. Antes do Batismo, pertencíamos a satanás. O Batismo<br />

nos tornou verdadeiros escravos de Jesus Cristo e assim não devemos viver, trabalhar e morrer senão para<br />

glorificar esse Homem-Deus em nosso corpo e fazê-Lo reinar em nossa alma, porque somos sua conquista<br />

e sua herança.<br />

Essas verdades, que se aplicam de modo absoluto a Nosso Senhor Jesus Cristo, também se aplicam de<br />

modo relativo a Nossa Senhora. Tendo-A Jesus Cristo escolhido para companheira inseparável de sua vida,<br />

de sua morte, de sua glória e de seu poder no Céu e na Terra, deu-Lhe, por graça, relativamente a sua<br />

Majestade, os mesmos direitos e privilégios que Ele possui por natureza. “Tudo o que a Deus convém por<br />

natureza, convém a Maria pela graça”, afirma São Luís Grignion. De modo que, segundo os Santos Padres,<br />

tendo ambos a mesma vontade e o mesmo poder, possuem os mesmos súditos e os mesmos servos.<br />

A Santíssima Virgem foi o meio de que Nosso Senhor Se serviu para vir a nós. É também o meio do<br />

qual nos devemos servir para ir a Ele. Nossa Senhora não é como as outras criaturas que, se a elas nos apegássemos,<br />

poderiam nos afastar em vez de nos aproximar de Deus. Unir-nos a Maria Santíssima é unir-nos<br />

a Jesus Cristo, seu Filho. É por isso que São Boaventura, repetindo o que já haviam afirmado os Santos<br />

Padres, diz que a Santíssima Virgem é o caminho para ir a Nosso Senhor.<br />

Para que floresça e frutifique o nosso apostolado, para que nos guiemos em tudo de acordo com as luzes<br />

do Evangelho e possamos seguir os exemplos de nosso Divino Salvador, indispensável se torna recorrermos<br />

sempre à Rainha e Soberana do Céu e da Terra, Mãe de Deus e Mãe dos homens, Medianeira de<br />

todas as graças, dessas mesmas graças sem as quais, ao tentarmos lançar as bases de qualquer obra, apenas<br />

edificaremos sobre a areia. *<br />

* Cf. O Legionário n. 557, 11/4/1943.<br />

Declaração: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625 e<br />

de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras ou<br />

na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não têm<br />

outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


Piedade pliniana<br />

Dominai-me,<br />

ó Mãe!<br />

P. L. B. Vaes<br />

Minha Mãe, eu não sou<br />

bastante forte para me<br />

dar a Vós; dominai-me!<br />

Entrai na minha alma com graças<br />

tais que eu praticamente não resista.<br />

Esta porta, minha Mãe, que por<br />

miséria não abro, arrombai-a; eu<br />

Vos espero atrás dela com meu sorriso,<br />

meu reconhecimento e minha<br />

gratidão.<br />

Notre-Dame de Laon<br />

Catedral de Laon, França<br />

5


Dona Lucilia<br />

Durante décadas, na sobriedade e no silêncio de sua alma,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> guardava toda veneração que tinha por Dona<br />

Lucilia. Até que o afeto entusiasmado de um filho, gerado<br />

segundo a lei do espírito, soube discernir o lumen da alma<br />

dela e tornar-se o porta-estandarte de sua figura.<br />

Fotos: Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Dona Lucilia com <strong>Plinio</strong> nos braços<br />

Há na História almas<br />

especialmente amadas<br />

por Deus a quem<br />

Ele pede grandes sacrifícios, um<br />

dos quais é morrerem sem terem<br />

visto o resultado daquilo que fizeram.<br />

A essas almas, sujeitas a tão<br />

longas esperas e a tão grandes<br />

perplexidades, Nossa Senhora por<br />

vezes obtém de Deus favores que<br />

as consolem, à maneira de pressentimentos<br />

proféticos.<br />

Numa expectativa<br />

serena...<br />

Via-se que Dona Lucilia esperava<br />

algo da vida, não na ordem do<br />

prazer nem do realce pessoal, mas<br />

uma certa reciprocidade de mentalidades,<br />

de afinidade de pensamentos,<br />

de temperamentos, de modos<br />

de ser. Seu temperamento era ávido<br />

de abarcar um largo afeto, uma<br />

ampla consonância com um número<br />

enorme de pessoas. Porém, a<br />

Providência não lhe deu isso.<br />

Mamãe tinha o desejo de fazer bem<br />

a incontáveis jovens, a quem, por diversas<br />

razões, ela não conhecia. Esse<br />

amor se concentrava muito em mim,<br />

em minha irmã, na neta e no bisneto,<br />

mas com algo que ia muito mais longe.<br />

Ela chegou ao último extremo de<br />

uma longa velhice nessa expectativa,<br />

calma, um tanto tristonha, mas de<br />

uma tristeza luminosa, nobre, sem<br />

agitações, sem histerias nem angústias.<br />

Ia caminhando para dentro das<br />

sombras da morte com toda a serenidade<br />

e com um fundo de certeza de<br />

que isso um dia viria.<br />

...sustentada por<br />

uma confiança<br />

Devido às circunstâncias inerentes<br />

a uma família pouco numerosa, cujos<br />

membros estavam absorvidos pelas<br />

preocupações contemporâneas, minha<br />

mãe, no fim de sua vida, passava<br />

longos períodos de solidão, sobretudo<br />

depois da morte de meu pai.<br />

Quando sofri a crise vertiginosa de<br />

diabetes 1 e a consequente cirurgia no<br />

6


pé com início de gangrena, deu-se um<br />

desabar de minhas resistências, minadas<br />

pela doença, mas também por<br />

aborrecimentos e problemas transcendentes<br />

esmagadores. Tudo isso<br />

me deixava em um estado de acentuado<br />

cansaço, tornando muito difícil<br />

para mim manter prosas mais longas;<br />

e a conversa com ela exigia um grande<br />

esforço, porque ela estava com a<br />

audição e a visão muito prejudicadas.<br />

Compreende-se que eu não pudesse<br />

fazer-lhe companhia. Por isso,<br />

durante a minha convalescença,<br />

eu só consentia que ela entrasse em<br />

meu quarto uma vez por dia, à noite,<br />

pouco antes de ela se recolher. Nessas<br />

ocasiões, tão logo ela chegava, eu<br />

a cumulava, inundava de agrados, de<br />

gentilezas.<br />

Ela estava entregue<br />

a uma enfermeira,<br />

a qual desempenhava<br />

de modo competente<br />

o mero serviço<br />

profissional, mas<br />

sem o carinho, sem o<br />

afeto de um filho.<br />

Durante o dia minha<br />

mãe passava horas<br />

na sala de jantar,<br />

sozinha, tomando sol.<br />

Não conseguindo ler<br />

um livro nem ouvir<br />

música, pode-se imaginar<br />

seus solilóquios.<br />

Devia ser um fim de<br />

vida muito triste, de<br />

quem realmente sofria<br />

a solidão, caminhando<br />

contra o vento<br />

durante 92 anos.<br />

Até mesmo nessa<br />

hora extrema ela foi<br />

sustentada por uma<br />

heroica confiança,<br />

fazendo com que ela<br />

não perdesse a certeza de alcançar<br />

o que almejava. Por isso, no fundo,<br />

em meio a esse sofrimento, mamãe<br />

tinha esta ideia: “No fim, algo se realizará.”<br />

Tenho a impressão de ela<br />

pressentir que os filhos viriam em<br />

grande quantidade. De fato, vieram<br />

Quarto de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. Acima, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1967<br />

depois de sua morte, mas ela os esperava<br />

em vida e isso a animava.<br />

Olhar no qual transparecia<br />

a constância de uma vida<br />

Tudo isso eu notava no olhar dela.<br />

Sou muito sensível aos olhares, pois<br />

eles dizem mais do que as palavras.<br />

Assim, várias vezes, neles eu a contemplava<br />

ora acolhedora, ora risonha;<br />

séria, pensativa em tal circunstância;<br />

afável, acariciante em outra.<br />

O olhar dela sofrido era uma síntese<br />

de todos os outros e o que mais especialmente<br />

me comovia.<br />

Quantas vezes o comparei a uma<br />

chama de lamparina, cuja labareda<br />

discreta se mostra em proporções variadas,<br />

à maneira de expressões fisionômicas.<br />

Ora é triunfante, atingindo<br />

a plenitude de si mesma; ora se encolhe<br />

e fica quase tão pequena que<br />

se tem vontade de alertá-la: “Presta<br />

atenção, vais-te apagar!” Mas renasce<br />

7


Dona Lucilia<br />

mais adiante e se apresenta tranquila,<br />

estável, normal, ao longo de toda a<br />

noite. De vez em quando, um estalido.<br />

É uma “dor”, um “sofrimento”<br />

engendrando uma fagulha com<br />

uma vida efêmera, elevando-<br />

-se pelo ar e desaparecendo.<br />

A chama continua impávida<br />

na sua prisão e no seu trono,<br />

na sua glória e na sua<br />

dor, no seu círculo rubro<br />

de vidro dentro do qual<br />

ela brilha junto ao azeite,<br />

que é o afeto do qual ela<br />

se abastece.<br />

Com efeito, como a<br />

lamparina ardendo junto<br />

ao Coração Eucarístico de<br />

Jesus presente no tabernáculo,<br />

assim foi mamãe aos<br />

pés das imagens do Sagrado<br />

Coração de Jesus e de Nossa<br />

Senhora das Graças. E no turbilhão<br />

de minha vida, ela era,<br />

dentro do escuro, a chama que<br />

não se apagava, uma luz contínua a<br />

brilhar, sempre ela mesma.<br />

Eu pensava: “Conheci tudo isso,<br />

mas não sei se saberei descrever a alguém,<br />

porque quem não viu não sabe<br />

bem o que é, e não há uma descrição<br />

que possa dar disso uma ideia exata.”<br />

“Seus amigos têm para<br />

comigo uma atenção e<br />

uma consideração!”<br />

Não me ocorria a ideia de que ela<br />

fosse chamada a desempenhar uma<br />

missão post-mortem 2 junto aos membros<br />

do nosso Movimento. Embora<br />

vários deles tivessem para com ela<br />

atenções e obséquios, deixando entrever<br />

terem notado nela algo do<br />

que eu via, a atitude de outros levava-me<br />

a supor que ela morreria sem<br />

ver seus anseios maternos atendidos.<br />

Nos últimos meses de sua vida,<br />

minha casa começou a ser muito frequentada<br />

pelos membros mais jovens<br />

do Grupo que vinham me visitar<br />

em minha convalescença. Assim,<br />

Rosário e livro<br />

de orações de<br />

Dona Lucilia<br />

ela começou a tomar<br />

contato com eles, recebendo-os<br />

na sala de visitas,<br />

o “Salão Azul”,<br />

onde conversavam.<br />

Não acompanhei essas visitas<br />

muito de perto porque eu estava de<br />

cama e o meu quarto fica longe da<br />

sala de visitas. Eu tinha noção da<br />

presença de alguns desses rapazes<br />

ali que, indo me visitar, cumprimentavam-na.<br />

Mas eu pensava tratar-se<br />

apenas dessas saudações formais,<br />

antigas – “Minha senhora, boa tarde,<br />

como está passando?” Portanto,<br />

não dei maior importância ao fato.<br />

Entretanto, chamava-me a atenção<br />

ver como, ao passar na cadeira<br />

de rodas pelo corredor para vir falar<br />

comigo e depois continuar para se<br />

recolher em seus aposentos, ela estava<br />

com o corpo mais teso e muito<br />

mais animada do que antes. Eu<br />

pensava: “Talvez seja por saber<br />

que estou fora de perigo e isso<br />

lhe dá alívio, um certo ânimo.”<br />

Mais tarde tomei conhecimento<br />

da imensidade<br />

dos agrados feitos a ela,<br />

das flores que lhe levavam,<br />

das conversas mantidas,<br />

de como ela os convidava<br />

para tomar chá e<br />

de tudo quanto lhes contava<br />

sobre o meu passado.<br />

Quando vemos as fotografias<br />

dela tiradas naquele<br />

tempo, por exemplo,<br />

a que deu origem ao Quadrinho<br />

3 , embora se note certa<br />

tristeza, ela está mais animada<br />

e alegre.<br />

Mais de uma vez mamãe me disse,<br />

muito comprazida: “Seus amigos<br />

têm para comigo uma atenção e<br />

uma consideração como ninguém.”<br />

Eu via que esses encontros lhe causavam<br />

um contentamento muito<br />

grande, pois, embora ela não tivesse<br />

a força de expressão necessária para<br />

explicitar, ela notava atuar neles<br />

um fator no sentido daquilo que ela<br />

sempre esperou na vida, o qual não<br />

encontrava nas outras pessoas.<br />

Eu não podia imaginar que a fonte<br />

de onde brotaria o apostolado de-<br />

8


la estava nesse ponto onde tudo parecia<br />

tender para o fim.<br />

Enquanto minha atitude era de<br />

uma sobriedade total, guardando tudo<br />

dentro de minha alma, com muita<br />

veneração, mas no silêncio, sem<br />

comentar nada, ali estava borbulhando<br />

algo do futuro.<br />

O afeto entusiasmado<br />

de um filho<br />

De fato, naquelas ocasiões minha<br />

mãe conheceu alguém que foi o primeiro<br />

a levantar – com a liberdade<br />

que um filho não tem – o estandarte<br />

da figura dela: o meu João 4 . Eu<br />

não fazia ideia, absolutamente, até<br />

que ponto ele tinha sido o elemento<br />

motor do movimento de carinho, de<br />

respeito em torno dela nos seus últimos<br />

meses de vida, durante a minha<br />

doença. Era o afeto entusiasmado<br />

de um filho que, segundo a lei da<br />

carne ela não teve, mas segundo a lei<br />

do espírito ela engendrou na sua extrema<br />

velhice.<br />

O João contava-me que ele conhecera<br />

mamãe e se enlevara muito,<br />

recebendo benefícios espirituais<br />

no trato com ela, dos quais ele procurava<br />

fazer participar outros membros<br />

de nosso Movimento. Certo dia<br />

ele teve a curiosidade de ver qual era<br />

a atitude dela em seu isolamento, se<br />

teria alguma expressão que significasse<br />

um desfalecimento ou algo semelhante.<br />

Junto à sala de jantar fica o “Salão<br />

Azul” e, separando os dois ambientes,<br />

há uma porta com vidro<br />

transparente coberto por uma dessas<br />

cortininhas chamadas brise-bise.<br />

O João foi, pé ante pé, até a porta<br />

e abriu um pouquinho o brise-bise,<br />

sem minha mãe perceber. Ficou<br />

observando-a enquanto ela rezava o<br />

Rosário. Mamãe estava sentada na<br />

cadeira de rodas com muita compostura<br />

e, em determinado momento,<br />

fez uso de um lenço, dobrando-o<br />

de um modo tão ordenado, colocando-o<br />

em cima do colo com tanta distinção,<br />

que esse gesto, de si tão simples,<br />

o empolgou. Na solidão e na<br />

provação, tudo era feito com a dignidade<br />

pela qual uma pessoa deixa<br />

sentir o seu aroma espiritual indicando,<br />

dentro da aridez, a verticalidade<br />

de uma alma reta.<br />

O João discerniu isso nela e soube<br />

vê-la com os olhos com que eu a<br />

via, percebendo o lumen da alma dela<br />

que outros não notavam. Por essa<br />

razão ele foi, ainda em vida de Dona<br />

Lucilia, o animador do movimento<br />

em torno dela. E isso se deve a um<br />

passado de fidelidades que outros<br />

não tiveram.<br />

Algum tempo depois, esses perfumes<br />

acumulados na alma do meu<br />

João começaram a se espalhar, como<br />

incenso, e a aromatizar o ambiente.<br />

Com efeito, ele foi o grande fotógrafo<br />

dos últimos meses de mamãe<br />

e o responsável pela multiplicação e<br />

difusão das fotografias dela.<br />

Aurora que confirmava<br />

as esperanças<br />

Relacionando com tudo quanto se<br />

passou depois, fico com a impressão<br />

de que antes de cerrar os olhos ela<br />

mais ou menos pressentiu o que viria,<br />

e daí aquele contentamento que<br />

precedeu de pouco sua morte.<br />

Nos últimos dias de sua vida mamãe<br />

pôde ver um pouco da aurora<br />

de algo que se prolongaria depois. E<br />

assim ela recebeu uma confirmação<br />

de que não tinha se enganado.<br />

Sr. João Clá em 1967<br />

“Salão Azul” e, ao fundo, sala de jantar do apartamento de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

9


Dona Lucilia<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> e Sr. João Clá no<br />

início da década de 1970<br />

Ao fechar os olhos para esta vida e<br />

abri-los para a eternidade, Dona Lucilia<br />

entendeu que aqueles – eu falo no<br />

plural para ser discreto – conhecidos<br />

por ela no fim de sua vida haveriam de<br />

trazer-lhe o objeto de sua espera.<br />

Tive uma amostra disso em um<br />

episódio para mim inesquecível. Eu<br />

pedira a Nossa Senhora, em consideração<br />

à dedicação devotada à minha<br />

mãe, a graça de receber um sinal<br />

qualquer de ter ela saído do Purgatório.<br />

E, na Missa de sétimo dia,<br />

de modo graciosíssimo, isso me foi<br />

dado: um raio de luz incidiu numa<br />

orquídea iluminando-a por inteiro,<br />

depois afastou-se. Dava-me a ideia<br />

de mamãe percorrendo o corredor<br />

do meu apartamento, chegando perto<br />

de mim e depois continuando, para<br />

não me interromper.<br />

Creio ter sido esse fato um modo<br />

de ela dar-me a entender, depois da<br />

morte, que vira o triunfo e agradecia.<br />

Assim, sem que ninguém pudesse<br />

imaginar, sua missão começaria na<br />

sepultura, junto à qual iniciou-se<br />

o convívio pessoal dela com cada<br />

um dos que iam visitá-la para pedir-lhe<br />

graças. E, uma vez mais, é<br />

o João o grande “culpado” pelo<br />

fato de acorrerem tantas pessoas<br />

ali, a suplicar a intercessão dela.<br />

Ele, portanto, no momento desse<br />

agradecimento, ocupa um papel<br />

especial, pois tudo quanto ela<br />

esperou se constituiu magnificamente.<br />

Socorro em circunstâncias<br />

inimagináveis<br />

Desde então, a ação dela veio<br />

se tornando intensa, significando<br />

muito em relação ao futuro,<br />

porque uma coisa não nasce de<br />

tão pouco para se expandir até<br />

onde se expandiu, sem tender a<br />

muito mais.<br />

A meu ver, Dona Lucilia é<br />

para meus discípulos o que é<br />

para mim, ou seja, uma espécie<br />

de redução a um tamanho mínimo<br />

– porque tudo em comparação com<br />

Nossa Senhora é mínimo – de Nossa<br />

Senhora do Perpétuo Socorro. Um<br />

socorro em tudo, de todas as formas,<br />

agindo inesperadamente, dos modos<br />

mais inimagináveis, discreto e com<br />

um estilo todo dela, que era sua forma<br />

de convívio em vida. À medida<br />

que as provações aumentarem também<br />

aumentarão as nossas ocasiões<br />

de pedir a intercessão dela, tendendo<br />

ao muito insigne. É como eu vejo.<br />

Podemos dizer ter havido três fases<br />

na vida de mamãe: uma pré-história,<br />

na qual a ação dela era percebida<br />

e sentida só por mim em toda a<br />

amplitude; depois a ação dela sentida<br />

nos últimos anos da vida pelo João<br />

Clá e por alguns outros; por fim, a expansão<br />

que se realizou com amplitude<br />

no Cemitério da Consolação onde,<br />

nas horas mais diversas, sempre<br />

se vê alguém parado junto à sua sepultura.<br />

Está rezando? Não se sabe.<br />

É certo que está se acalmando, porque<br />

mamãe, evidentemente por ordem<br />

de Nossa Senhora, por meio de<br />

quem passam todas as graças e a partir<br />

de Nosso Senhor Jesus Cristo, fon-<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante visita ao túmulo de sua mãe, em agosto de 1987<br />

10


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em visita ao Êremo de São Bento, em fevereiro de 1994, cuja sala principal<br />

fora recém-decorada com as últimas fotografias de Dona Lucilia<br />

te da graça, exerce uma ação temperamental<br />

sobre quem recorre a ela.<br />

Ali se faz sentir a mesma ação<br />

dulcificante, alentadora dos temperamentos,<br />

orientadora das maneiras<br />

de ser, dando confiança, estímulo, e<br />

que, em vida, me fez um bem enorme!<br />

Eu encontrava uma conexão<br />

entre o Sagrado Coração de Jesus,<br />

do qual ela era devotíssima, e essa<br />

disposição, esse feitio de alma dela.<br />

Ultrapassando os<br />

umbrais da morte<br />

Em determinado momento, senti<br />

algo que não sei definir, mas era como<br />

se, por cima dos umbrais da morte<br />

e de tudo quanto se punha para tapar<br />

aquela lamparina prestes a entrar<br />

para uma sepultura até o dia do Juízo,<br />

ela ainda brilhasse para mim, e<br />

compreendi que ela me acompanhava.<br />

Depois, que alegria ao ver, no fundo<br />

de um grande olhar andaluz, vivaz 5<br />

– e de tantos olhares nascidos desse –,<br />

estar ela viva também! Eu noto nele o<br />

mesmo crepitar, a mesma movimentação<br />

de uma lamparina e percebo<br />

bem como se ateia um incêndio, não<br />

de chamas destrutivas, mas de lamparinas<br />

durante a noite, até o momento<br />

de atear fogo ao mundo.<br />

Que Nossa Senhora estabeleça<br />

a hora na qual as lamparinas – e eu<br />

aqui não considero apenas os jovens<br />

olhos que se abriram há alguns anos<br />

para tanta luz, mas todos aqueles<br />

que me acompanham nessa vereda –<br />

ateiem esse fogo para que possamos<br />

dizer: “Emitte Spiritum tuum et creabuntur,<br />

et renovabis faciem terræ!” 6<br />

Minha Mãe, mandai o vosso Esposo,<br />

o Divino Espírito Santo, naquilo<br />

que Ele tem de tão sublimemente<br />

coruscante, o espírito posto<br />

por Ele em Vós, como vosso Esposo,<br />

e todas as coisas serão recriadas.<br />

Então, ó Mãe, Vós reinareis e será<br />

renovada a face da Terra! v<br />

(Compilação de conferências de<br />

1979 a 1993)<br />

1) Em fins de 1967, permanecendo em<br />

convalescença até março de 1968.<br />

2)Do latim: Depois da morte.<br />

3) Quadro a óleo que muito agradou<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, pintado por um de seus<br />

discípulos, com base nas últimas fotografias<br />

de Dona Lucilia. Ver <strong>Revista</strong><br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 119, p. 6-9.<br />

4) Mons. João Scognamiglio Clá Dias,<br />

E.P., fiel discípulo e secretário pessoal<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante mais de quatro<br />

décadas; à epoca, leigo.<br />

5) Idem.<br />

6) Do latim: “Enviai o vosso Espírito<br />

criador e renovareis a face da Terra”<br />

(Sl 103, 30).<br />

11


De Maria nunquam satis<br />

Thomas Hummel(CC3.0)<br />

O Sapiencial e Imaculado<br />

Coração de Maria, invocação<br />

da Contra-Revolução<br />

Por meio de seu Imaculado e Sapiencial Coração, Maria<br />

Santíssima exerce sua realeza de distintos modos<br />

no Céu, na Terra, no Purgatório e nos infernos.<br />

Creio que, com toda legitimidade,<br />

podemos festejar o Imaculado<br />

Coração de Maria na<br />

festa de Nossa Senhora Rainha, por<br />

uma razão muito simples: um dos<br />

modos pelos quais Ela torna efetivo o<br />

seu domínio na Terra é por meio de<br />

seu Coração Imaculado e Sapiencial.<br />

Rainha-Mãe e<br />

Rainha reinante<br />

Há uma invocação de Nossa Senhora,<br />

muito bonita: Regina Cordium,<br />

Rainha dos Corações, a qual pode ser<br />

vista na perspectiva destes atributos:<br />

primeiro, Nossa Senhora enquanto<br />

Rainha; segundo, o seu Imaculado e<br />

Sapiencial Coração.<br />

Como tudo isso se encaixa e se<br />

entende?<br />

Sabemos que Nossa Senhora, de<br />

direito, é a Rainha do Céu e da Terra.<br />

Em primeiro lugar, por ser a Rainha-Mãe<br />

de toda a Criação; sendo<br />

Mãe de Deus, Ela está para a Criação<br />

numa situação parecida com a<br />

das rainhas-mães nos países de estrutura<br />

monárquica.<br />

De outro lado porque Deus Nosso<br />

Senhor entregou-Lhe a regência<br />

efetiva do Céu e da Terra. Tendo este<br />

poder, Nossa Senhora impera sobre<br />

os Anjos, os Santos, as almas do<br />

Purgatório, os homens que estão no<br />

mundo, Ela manda até sobre os infernos;<br />

tudo Lhe está completa e inteiramente<br />

sujeito. Ela é uma Rainha<br />

reinante, com todas as honras da<br />

realeza.<br />

A Rainha Maria 1 da Inglaterra,<br />

por exemplo, esposa do Rei Jorge<br />

V 2 , nunca exerceu o poder, passou<br />

a vida inteira cercada das honras<br />

da realeza e, quando faleceu o rei,<br />

ela passou a ser a rainha-mãe, pois<br />

a coroa passou para o seu filho, Jorge<br />

VI 3 e depois para a sua neta, Isabel<br />

II 4 . Esta, por sua vez, tornou-se<br />

reinante, porque na pequena medida<br />

de poder que tem uma rainha da<br />

Inglaterra, ela reina.<br />

Nossa Senhora não é só a Rainha-<br />

-Mãe por ser Mãe de Nosso Senhor<br />

Jesus Cristo, mas é Rainha reinante,<br />

porque Deus confiou-Lhe este poder<br />

de direito. Ora, como Ela o exerce<br />

e o transforma em fato?<br />

12<br />

Imaculado Coração de<br />

Maria - Igreja de São Jorge,<br />

Mechernich, Alemanha


De Coração a corações,<br />

Nossa Senhora reina no Céu<br />

No Céu Ela executa o reinado de<br />

dois modos. Em primeiro lugar, estando<br />

os Anjos e Bem-aventurados<br />

confirmados em graça, não fazem<br />

senão a vontade de Deus. Assim sendo,<br />

é certíssimo que Nossa Senhora<br />

mandando sobre eles em nome de<br />

Deus, eles obedecem.<br />

No entanto, estou certo de que,<br />

ainda que Deus não tivesse assim<br />

disposto, eles quereriam obedecer a<br />

Nossa Senhora pelo extremo amor<br />

que Lhe demonstram, pelo conhecimento<br />

que têm de suas virtudes, da<br />

superioridade d’Ela. E como toda<br />

superioridade confere um mando,<br />

ainda que não houvesse essa ordem<br />

de Deus, os Anjos e Santos do Céu,<br />

pela expressão de uma tênue vontade<br />

de Nossa Senhora, se moveriam<br />

todos nessa direção. Isso seria propriamente<br />

um império de um Coração<br />

sobre corações.<br />

Em que sentido? O coração é um<br />

órgão físico, símbolo da mentalidade,<br />

ou seja, do modo pelo qual a pessoa<br />

vê e deseja as coisas. O Imaculado<br />

Coração de Maria é uma expressão<br />

da mentalidade sapiencial e imaculada<br />

d’Ela e exprime, entre outras<br />

coisas, também a sua bondade e doçura<br />

inefáveis, sua misericórdia inesgotável.<br />

Por todas essas razões, os Anjos<br />

e Santos do Céu consideram Nossa<br />

Senhora com toda a intensidade<br />

e A amam tanto quanto lhes é dado<br />

amar. O resultado desse amor é tal<br />

que Ela reina sobre eles, o Coração<br />

d’Ela sobre o coração deles, ou seja,<br />

a mentalidade d’Ela sobre a mentalidade<br />

deles.<br />

O modo sapiencial de Ela ver as<br />

coisas torna-se uma regra de sabedoria<br />

para eles; a vontade santíssima<br />

e imaculada d’Ela é uma lei para a<br />

vontade deles. Quer dizer, simplesmente<br />

de Coração a coração Nossa<br />

Senhora domina o Céu.<br />

Coroação da Santíssima Virgem - Museu do Petit Palais, Avignon, França<br />

Domínio sobre as<br />

almas do Purgatório<br />

As almas que estão no Purgatório<br />

também não pecam mais, a bem-<br />

-aventurança já lhes está garantida.<br />

Não há perigo de uma alma penada,<br />

por exemplo, revoltar-se contra<br />

os padecimentos extremos dos quais<br />

sofre. Por quê? Porque lá todas estão<br />

confirmadas em graça, então<br />

pensam como Nossa Senhora, querem<br />

o que Ela quer, vivem para Ela<br />

e, por esse motivo, quando Ela as visita,<br />

há para elas uma alegria indizível,<br />

todas cantam satisfeitíssimas de<br />

dentro de seus tormentos.<br />

Ela leva sempre um número enorme<br />

de almas para o Céu e, para as<br />

que ficam, Ela espalha em torno de<br />

Si um orvalho, o qual lhes diminui as<br />

penas, aumenta a esperança de chegar<br />

ao Céu aliviando os seus padecimentos.<br />

Portanto, é também de Coração<br />

a coração que Nossa Senhora<br />

domina e reina sobre aquelas almas<br />

e não só pela vontade expressa<br />

de Deus.<br />

Maria impera efetivamente<br />

sobre a Terra?<br />

E na Terra como são as coisas?<br />

Há na Terra uma luta entre os que<br />

obedecem e os que não obedecem a<br />

Nossa Senhora.<br />

Nós, homens, temos a triste liberdade<br />

– que é de fato uma servidão –<br />

de não fazer a vontade de Deus. Em<br />

outros termos, as paixões desregradas<br />

nos arrastam, são tiranas que<br />

nos levam muitas vezes a fazer o que<br />

não quereríamos, por culpa nossa;<br />

elas nos dão a possibilidade de dizer<br />

“não” a Deus...<br />

Se fôssemos livres destas más paixões,<br />

nunca rejeitaríamos a vontade<br />

divina. Mas, temos de lutar contra<br />

elas, e só com a graça de Nossa Senhora<br />

conseguimos sacudi-las, limitá-las<br />

e até extingui-las. Sem isso nos<br />

tornamos escravos de nossos defeitos.<br />

Flávio Lourenço<br />

13


De Maria nunquam satis<br />

Assim sendo, como o Sapiencial<br />

e Imaculado Coração de Maria torna<br />

efetiva a sua autoridade jurídica<br />

e indiscutível sobre o mundo?<br />

Nossa Senhora tem o direito<br />

de ser obedecida por todos e,<br />

neste sentido, Ela é Rainha do<br />

mundo inteiro. Ora, os homens<br />

têm a possibilidade – não o direito<br />

– de desobedecê-La. De onde<br />

haver um número enorme de<br />

pessoas que A desobedecem.<br />

Ora, Nossa Senhora torna efetivo<br />

seu império de uma forma<br />

muito simples: pelo seu Coração<br />

Ela toca os corações e faz com<br />

que as almas, recebendo graças<br />

muito abundantes, sigam a Ela.<br />

Evidentemente não é automático.<br />

Uma pessoa pode resistir à graça,<br />

mesmo sendo muito abundante.<br />

Peca, mas pode resistir.<br />

No entanto, inúmeras são as almas<br />

que aceitam Nossa Senhora e, recebendo<br />

graças caudalosas, A servem.<br />

Essas graças como são? É a graça que<br />

Ela derrama em nossos corações de<br />

vermos o Coração d’Ela, de conhecermos<br />

e amarmos a sabedoria d’Ela,<br />

a nota de imaculada que existe em toda<br />

a pessoa d’Ela, e é por essa forma<br />

que Ela Se torna obedecida por nós.<br />

O Coração d’Ela é um cetro com<br />

o qual Ela governa todos aqueles<br />

que lhe obedecem.<br />

Os infernos A obedecem<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Nossa Senhora também impera<br />

sobre os maus.<br />

Conta-se que, no momento de erguerem<br />

a Cruz no alto do Gólgota, o<br />

demônio quis impor a Nosso Senhor<br />

um último sofrimento: aproveitando-se<br />

que a Cruz estava meio bamba,<br />

ele queria jogá-la de encontro ao<br />

chão, a fim de que a Sagrada Face de<br />

Cristo se rompesse completamente.<br />

Quando Nossa Senhora teve conhecimento<br />

disso, Ela apenas deu<br />

uma ordem: “Isto Eu não permito.”<br />

Acabou-se, não se discute, não aconteceu<br />

o fato horroroso.<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1986<br />

Ela permitiu tudo quanto era necessário<br />

para a Redenção do gênero humano,<br />

mas essa suprema humilhação,<br />

essa dor última não era necessária. Ela<br />

interrompeu e o demônio obedeceu-A.<br />

Muitas vezes, ao longo da História,<br />

acontecem aos bons, aos que defendem<br />

o bem, prodígios desconcertantes,<br />

em última análise porque<br />

Nossa Senhora mandou. Neste sentido,<br />

Ela pode também mandar. Mas<br />

não é um mandar que force a pessoa<br />

a dizer “sim” à graça de Deus. Nesse<br />

ponto Ela não força.<br />

Aspecto contrarrevolucionário<br />

do Imaculado<br />

e Sapiencial Coração<br />

Nossa Senhora tem o império de<br />

direito sobre todos e, às vezes, Ela o<br />

torna efetivo e ninguém pode resistir.<br />

Ora, muitas vezes é efetivo não por<br />

um império de vontade d’Ela, mas<br />

pelo amor que Ela comunica a muitas<br />

almas. Eis a razão pela qual tantas<br />

pessoas se dedicam, lutam e se imolam;<br />

é por causa do Sapiencial e Imaculado<br />

Coração de Maria.<br />

Nessas condições, eu tenho certeza<br />

de que a festa de Nossa Senhora<br />

Rainha é a festa do Coração<br />

d’Ela. Aliás, em Fátima Ela disse:<br />

“Por fim o meu Imaculado Coração<br />

triunfará!”<br />

Triunfar, quer dizer reinar. Se<br />

eu pudesse representar o Coração<br />

de Nossa Senhora, gostaria de encimá-lo<br />

com uma coroa, a fim de<br />

indicar bem o caráter régio do seu<br />

Coração Sapiencial e Imaculado.<br />

Podemos, com toda propriedade,<br />

cultuar, venerar seu Imaculado<br />

Coração na festa de Nossa Senhora<br />

Rainha, fazendo nosso este pedido:<br />

“Tornai meu coração semelhante<br />

ao vosso.” Semelhante não<br />

quer dizer vagamente parecido,<br />

mas análogo em tudo quanto está<br />

no desígnio da Providência que o<br />

seja. “Tornai-o sapiencial, de uma<br />

sapiencialidade que seja uma participação<br />

da vossa; tornai-o puro, de<br />

uma pureza que seja uma participação<br />

da vossa.”<br />

Para ser sapiencial e puro é preciso<br />

ser contrarrevolucionário. Por quê?<br />

Porque a Revolução é, de modo escandaloso,<br />

o auge da insensatez e da<br />

impureza, diretamente o contrário da<br />

sabedoria e da pureza, sobretudo da<br />

pureza imaculada de Nossa Senhora.<br />

O Sapiencial e Imaculado Coração<br />

de Maria poderia ser considerado<br />

sob a invocação de Nossa Senhora<br />

da Contra-Revolução, por ser o<br />

aspecto que a Revolução mais odeia<br />

de Nossa Senhora. É por onde nós,<br />

filhos da Contra-Revolução, mais<br />

nos afirmamos filhos d’Ela. v<br />

(Extraído de conferência<br />

sem registro de data)<br />

1) Victoria Mary Augusta Louise Olga<br />

Pauline Claudine Agnes (*1867 -<br />

†1953), princesa de Teck.<br />

2) George Frederick Ernest Albert<br />

(*1865 - †1936).<br />

3) Albert Frederick Arthur George<br />

(*1895 - †1952).<br />

4) Elizabeth Alexandra Mary (*1926 -<br />

†2022).<br />

14


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Fascínio e<br />

intransigência<br />

Nossa Senhora quer<br />

que nos deixemos<br />

fascinar pela<br />

Contra-Revolução<br />

considerada como<br />

um todo e que<br />

detestemos tudo<br />

quanto se oponha<br />

a ela. A própria<br />

Santíssima Virgem<br />

nos acompanhará<br />

pela via de todas as<br />

intransigências e de<br />

todas as seriedades,<br />

pois para isso Ela<br />

nos convida.<br />

José M.C.<br />

Quando, por uma ação da<br />

graça, alguém contempla<br />

em Nosso Senhor, em Nossa<br />

Senhora, aquilo que deve contemplar,<br />

a pessoa se deslumbra. Na medida<br />

em que isso se dá, entra um pedido<br />

da graça para reconhecer com<br />

toda a seriedade, ver de frente o que<br />

se opõe ao objeto do deslumbramento<br />

e não pactuar com o oposto.<br />

Cristo Rei<br />

(coleção particular)<br />

15


<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta...<br />

Reciprocidade entre<br />

deslumbramento e fidelidade<br />

Ter fome e sede de discernir essas<br />

oposições, de maneira a perceber,<br />

por um pequeno sintoma, o mal existente<br />

atrás do que se opõe ao deslumbramento,<br />

isso é ter fome e sede<br />

de justiça.<br />

Há, portanto, uma ação recíproca:<br />

deslumbramentofidelidade, fidelidadedeslumbramento.<br />

Quem forma<br />

esse estado de alma vigilante e<br />

combativo correspondeu ao fascínio,<br />

mas também se conserva fascinado.<br />

Quem não o tem não se deixa<br />

fascinar, pois é próprio do homem<br />

que renunciou a ser fascinado pelo<br />

bem encontrar sempre a possibilidade<br />

de se acomodar porque, como<br />

ele não tem em vista o valor daquilo,<br />

tende a sacrificá-lo por outras coisas.<br />

As composições, os arranjos e os jeitos<br />

entram por causa disso.<br />

Poder-se-ia perguntar: o que acontece<br />

primeiro, o deslumbramento<br />

ou a fidelidade? É o deslumbramento.<br />

Algo deslumbra e a pessoa caminha<br />

naquela direção. Mas, logo no<br />

primeiro passo, a graça pede: “Queres<br />

ser intransigente? Queres romper<br />

com o que é contra mim?”<br />

Para dar uma metáfora que ajuda<br />

a exprimir meu pensamento, considerem<br />

um indivíduo que faça explorações<br />

astronômicas, mas com o telescópio<br />

sujo. O que ele verá? Uma<br />

mancha de gordura. Porém ele a tomará<br />

por um planeta, por uma galáxia.<br />

Só com o telescópio admiravelmente<br />

limpo ele poderá contemplar<br />

o céu. Assim, a alma da pessoa íntegra<br />

é parecida com um telescópio<br />

límpido.<br />

Alguém dirá: “Isso supõe, já no<br />

primeiro passo, uma grande retidão<br />

de alma.” É verdade, mas a grande<br />

retidão veio por causa do deslumbramento<br />

originário. Sem este não há<br />

retidão. Tendo havido o deslumbramento,<br />

a alma se entrega. Isso é o fascínio.<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Coragem de vincar a diferença<br />

para se fascinar com o bem<br />

É necessária coragem para ser<br />

assim, pegar os próprios mitos revolucionários<br />

e arrancá-los da alma.<br />

Esta costuma ser uma fonte de<br />

tensão e dificuldades de alguns comigo,<br />

porque estou sempre pedindo<br />

a favor de Nossa Senhora essa<br />

posição de intransigência, de luneta<br />

limpa.<br />

Eu noto que isso produz um sobressalto<br />

e, no fundo, um fechamento:<br />

“O que esse homem quer de<br />

mim? Que eu fique diferente de todo<br />

o mundo?!” A resposta é: De todo<br />

o mundo revolucionário.<br />

O que marcava Noé em relação<br />

ao mundo destruído pelo dilúvio<br />

é como ele soube ser diferente.<br />

Se queremos ficar de fora do<br />

dilúvio, como não ser diferentes?!<br />

E isso nós devemos vincar, sulcar,<br />

marcar até com ferro em brasa em<br />

nós. Assim teremos nos entusiasmado<br />

e sido sensíveis ao fascínio<br />

do bem.<br />

Complexidade da “política<br />

da graça” nas almas<br />

Como se dá esse fascínio?<br />

O bem fascina sob formas diferentes,<br />

porque há mil modalidades de<br />

bem nas almas. Há almas que contêm<br />

uma certa forma de bem muito<br />

característica nelas, mas em todo<br />

resto são apenas boas.<br />

Existem, entretanto, almas mais<br />

ou menos como – se assim se pudesse<br />

imaginar – uma torre cortada em<br />

diagonal, de maneira que em parte<br />

caiu e em parte tem um toco que se<br />

prolonga até o alto. Tem a altura primitiva?<br />

Sim, mas de um lado é uma<br />

ruína trágica, de outro, não aconteceu<br />

nada.<br />

Há almas assim. Não foram fiéis à<br />

graça a não ser num ponto ou noutro,<br />

e nesses elas corresponderam<br />

mesmo. Porém, nos outros relaxaram.<br />

O resultado é: em algo elas fascinam<br />

e em algo, pelo contrário, decepcionam.<br />

Eu ousaria chamar isso de “a política<br />

da graça”. Ela é extremamen-<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> durante conferência em 1982<br />

16


te complexa e não sabemos quantas<br />

coisas podem se passar numa alma e<br />

nem como se passam.<br />

Li em algum historiador – não<br />

lembro quem – o caso de uma mulher<br />

que antes da Revolução Francesa<br />

não levava uma boa vida do ponto<br />

de vista moral. Essa senhora, no<br />

turbilhão revolucionário, discerniu<br />

a pessoa de Maria Antonieta, admirou-a,<br />

tomouse de uma dedicação<br />

desinteressada, arriscou a vida e fez<br />

proezas de toda ordem pela Rainha.<br />

Com isso, ela completou alguma<br />

coisa no píncaro da torre trincada<br />

que apontava para Deus. Não recordo<br />

se ela terminou na guilhotina<br />

ou não, mas é lindo ver como ela teve<br />

mais dedicação do que muitas duquesas<br />

cuja primeira providência,<br />

quando a Revolução Francesa arrebentou,<br />

foi passar correndo a fronteira<br />

e ficar do lado de lá das tropas<br />

alemãs, assegurando a própria sobrevivência.<br />

O que se passou com aquela mulher?<br />

Houve um momento de deslumbramento,<br />

ela se deixou fascinar<br />

pelo bem.<br />

Susan Ovelha<br />

Nossa Senhora com o Menino<br />

(coleção particular)<br />

O que Nossa Senhora quer de<br />

nós? Que nos deixemos fascinar pela<br />

Contra-Revolução considerada como<br />

um todo, e cujo contrapeso é detestarmos<br />

tudo quanto não esteja de<br />

acordo com ela. Se não fizermos isso,<br />

estaremos fraudando a nossa vocação.<br />

Se Maria Santíssima nos chamou<br />

é porque o caminho é viável e<br />

Ela nos acompanhará pela via de todas<br />

as intransigências, de todas as seriedades,<br />

pois para isso Ela nos convida.<br />

v<br />

(Extraído de conferência de<br />

7/3/1982)<br />

17


Hagiografia<br />

Flávio Aliança<br />

Um antegozo da<br />

visão beatífica<br />

Santo Agostinho – Igreja de<br />

Santa Maria, Kitchener,<br />

Canadá<br />

O Colóquio de Óstia, uma das<br />

mais célebres passagens das<br />

Confissões de Santo Agostinho,<br />

abre os horizontes para os grandes<br />

luzeiros da hagiografia e da<br />

Doutrina Católica. Nele transparece<br />

o cântico de dois corações abertos<br />

para receber de Deus tudo quanto<br />

nesta vida terrena se possa haurir<br />

a respeito das alegrias do Céu.<br />

No dia 28 de agosto comemora-se<br />

a festa de Santo<br />

Agostinho e, nesta ocasião,<br />

podemos comentar um trecho<br />

famoso de sua biografia. Aliás, recomendo<br />

muito este livro: as Confissões,<br />

desde que a pessoa saiba lê-lo,<br />

pois tem algumas descrições filosóficas<br />

não muito compreensíveis para<br />

qualquer um. A parte biográfica,<br />

porém, está ao alcance de todo leitor<br />

piedoso e é estupenda!<br />

O último lance da vida<br />

de Santa Mônica<br />

Nas Confissões há um trecho verdadeiramente<br />

magnífico, muito famoso,<br />

e é chamado o “Êxtase de<br />

Óstia” ou “Colóquio de Óstia”. O<br />

episódio é o seguinte: Santa Mônica<br />

passou trinta anos ou mais chorando<br />

e pedindo a Deus a conversão de<br />

Santo Agostinho. Entretanto, parecia<br />

que quanto mais ela rezava,<br />

tanto mais esta conversão se tornava<br />

longínqua. De desatino em desatino,<br />

Santo Agostinho acabou comendo<br />

as bolotas dos porcos e, então,<br />

começou um processo de conversão<br />

que fez dele o grande Doutor<br />

da Igreja.<br />

Depois da conversão, Santo Agostinho<br />

resolveu voltar com Santa Mônica<br />

para a África do Norte, de onde<br />

eles eram naturais, a fim de ali residirem.<br />

Naquele tempo, esta região<br />

era romana.<br />

No trajeto para a África, eles percorreram<br />

parte da Itália até um porto pequeno<br />

perto de Roma, que tinha naquele<br />

tempo uma certa importância, situado<br />

na cidade de Óstia. Lá tomariam<br />

o navio e seguiriam para Tagaste.<br />

Enquanto estavam na hospedaria<br />

de Óstia, encostados junto a uma janela,<br />

começaram a conversar. E, ao<br />

longo desta conversa a respeito de<br />

Deus e das coisas do Céu, os dois<br />

juntos tiveram um êxtase.<br />

Santo Agostinho retrata esse colóquio<br />

extraordinário na hospedaria<br />

de Óstia e é um dos trechos mais famosos<br />

das Confissões.<br />

18


Poucos dias depois, ainda na cidade<br />

de Óstia, Santa Mônica morreu.<br />

Sua missão na Terra estava cumprida<br />

e Nosso Senhor Jesus Cristo a chamou<br />

ao Céu para gozar do prêmio<br />

que ela merecia. O último lance de<br />

sua vida foi a alegria de ter com o filho<br />

esse colóquio, o qual era um prenúncio,<br />

um antegozo da visão beatífica.<br />

Dois santos conversando<br />

sobre a vida eterna<br />

Resolvi trazer o colóquio diretamente<br />

do livro Confissões de Santo<br />

Agostinho, porque é uma página<br />

célebre e abre os nossos horizontes<br />

para os grandes luzeiros<br />

da hagiografia e da<br />

Doutrina Católica.<br />

Próximo já do dia em<br />

que ela ia sair desta vida<br />

– dia que Vós conhecíeis<br />

e nós ignorávamos...<br />

Essas interpelações<br />

diretas de Santo Agostinho<br />

a Deus são magníficas!<br />

Os Solilóquios que<br />

ele escreveu, por exemplo,<br />

têm qualquer coisa<br />

de absolutamente estupendo!<br />

...sucedeu, segundo<br />

creio, por disposição de<br />

vossos secretos desígnios,<br />

que nos encontrássemos<br />

sozinhos, ela e eu, apoiados<br />

a uma janela cuja<br />

vista dava para o jardim<br />

da casa onde morávamos.<br />

Era em Óstia, na<br />

foz do Tibre, onde, apartados<br />

da multidão, após<br />

o cansaço duma longa<br />

viagem, retemperávamos<br />

as forças para embarcarmos.<br />

Falávamos a sós, muito<br />

docemente, esquecendo<br />

o passado e dilatando-nos<br />

para o futuro. Na presença<br />

da Verdade, que sois Vós, alvitrávamos<br />

qual seria a vida eterna dos santos,<br />

“...que nunca os olhos viram, nunca<br />

o ouvido ouviu, nem o coração do homem<br />

imaginou.”<br />

Que beleza dois santos conversando<br />

sobre a vida eterna! E a alegria de<br />

Santa Mônica em sentir aquele filho,<br />

outrora perdido, incendiado agora<br />

de desejos do Céu. É uma verdadeira<br />

maravilha!<br />

Sim, os lábios do nosso coração<br />

abriam-se ansiosos para a corrente celeste<br />

da nossa fonte, a fonte da Vida,<br />

que está em Vós, para que aspergidos<br />

segundo a nossa capacidade, pudéssemos<br />

de algum modo pensar num assunto<br />

tão transcendente.<br />

Santa Mônica com Santo Agostinho menino<br />

Museu Amadeo Lia, La Spezia, Itália<br />

Faço notar a maravilha da expressão<br />

“os lábios do coração”, quer dizer,<br />

aquilo por onde o coração bebe,<br />

sorve, estavam abertos para receber<br />

de Deus tudo quanto nesta vida terrena<br />

se possa haurir a respeito das<br />

alegrias do Céu.<br />

A procura do Absoluto<br />

Encaminhamos a conversa até à<br />

conclusão de que as delícias dos sentidos<br />

do corpo, por maiores que sejam e<br />

por mais brilhante que seja o resplendor<br />

sensível que as cerca, não são dignas de<br />

comparar-se à felicidade daquela vida,<br />

nem mesmo que delas se faça menção.<br />

Elevando-nos em afetos mais ardentes<br />

por essa felicidade, divagamos<br />

gradualmente por todas<br />

as coisas corporais até<br />

ao próprio céu, de onde<br />

o Sol, a Lua e as estrelas<br />

iluminam a Terra.<br />

É uma verdadeira<br />

procura do Absoluto.<br />

Eles, primeiro, consideraram<br />

as coisas da<br />

Terra que lisonjeiam os<br />

sentidos, porque estavam<br />

no Império Romano<br />

decadente, onde havia<br />

fortunas fabulosas<br />

e pessoas que, para deleitar<br />

os sentidos, gastavam<br />

quantias assombrosas.<br />

Então, o primeiro<br />

confronto é entre a felicidade<br />

celeste e a dos<br />

homens tidos em conta<br />

de felizes.<br />

Flávio Aliança<br />

Das coisas<br />

materiais ao êxtase<br />

Diante da resposta<br />

de que todo terreno<br />

não é nada, eles começam<br />

a percorrer os céus,<br />

a imaginar, com os dados<br />

do céu material e visível,<br />

como seria o paraíso<br />

celeste material, mas<br />

19


Hagiografia<br />

invisível, e como se goza a glória da<br />

visão beatífica nesse paraíso.<br />

Subíamos ainda mais em espírito, meditando,<br />

falando e admirando as vossas<br />

obras. Chegamos às nossas almas e passamos<br />

por elas para atingir essa região de<br />

inesgotável abundância, onde apascentais<br />

eternamente Israel com o pastio da<br />

verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria,<br />

por Quem tudo foi criado, tudo o que<br />

existiu e o que há de existir, sem que Ela<br />

própria Se crie a Si mesma, pois existe como<br />

sempre foi e como sempre será. Antes,<br />

não há n’Ela ter sido, nem haver de<br />

ser, pois simplesmente “é”, por ser eterna.<br />

Depois de considerarem todas as<br />

coisas materiais, eles percorrem as<br />

espirituais e chegam até a alma como<br />

elemento para se ter alguma ideia da<br />

beleza e da perfeição de Deus. Finalmente,<br />

os espíritos de ambos se detêm<br />

no ápice de tudo isto: a Sabedoria<br />

Eterna e Incriada, que sempre foi,<br />

é e sempre será, fim e explicação de<br />

todas as coisas. Como isto é diferente<br />

de uma meditação heresia branca!<br />

Enquanto assim falávamos, anelantes<br />

pela Sabedoria, atingimo-la momentaneamente<br />

num vislumbre completo<br />

do nosso coração.<br />

É o êxtase. Ou seja, enquanto eles<br />

falavam a respeito dessas coisas, conduzidos<br />

pela graça, a Sabedoria Se revelou<br />

e eles viram a Deus, numa visão,<br />

num fenômeno místico.<br />

São dois santos conversando,<br />

uma conversa que é uma oração e<br />

que vai subindo de voo, de ponto<br />

em ponto e, quando chega no seu<br />

ápice – tudo com tanta simplicidade,<br />

numa janela de uma hospedaria<br />

de Óstia, nos quartos dos fundos<br />

dando para um jardim – lhes aparece<br />

Nosso Senhor como a Sabedoria<br />

Eterna.<br />

As palavras são coisas<br />

vazias à vista do que Deus<br />

revelou de Si mesmo<br />

Suspiramos e deixamos lá agarradas<br />

“as primícias do nosso espírito”.<br />

O que havia de melhor neles ficou<br />

na visão, não voltou para a Terra.<br />

...Voltamos ao vão ruído dos nossos<br />

lábios, onde a palavra começa e<br />

acaba. Como poderá esta, meu Deus,<br />

comparar-se ao vosso Verbo que subsiste<br />

por Si mesmo, nunca envelhecendo<br />

e tudo renovando?<br />

Aqui está uma insinuação de<br />

que Deus lhes disse uma palavra<br />

sobre a própria Sabedoria d’Ele. E<br />

era algo tão elevado que qualquer<br />

tentativa de transmissão seria um<br />

balbucio. A visão cessou e as palavras<br />

deles eram vazias à vista do<br />

que Deus tinha revelado de Si mesmo.<br />

Um vislumbre<br />

paradisíaco e inefável<br />

Ele imagina uma alma sem cogitar<br />

de nada mais criado, que consegue<br />

abstrair de tudo e, de repente,<br />

ouve uma palavra de Deus a respeito<br />

de Si próprio.<br />

Gabriel K.<br />

Colóquio de Óstia - Basílica da Mãe do Bom Conselho, Genazzano<br />

20


Dizíamos pois: suponhamos uma<br />

alma onde jazem em silêncio a rebelião<br />

da carne, as vãs imaginações da<br />

terra, da água, do ar e do céu.<br />

Suponhamos que ela guarde silêncio<br />

consigo mesma, que passe para<br />

além de si, nem sequer pensando em<br />

si; uma alma na qual se calem igualmente<br />

os sonhos e as revelações imaginárias,<br />

toda a palavra humana, todo<br />

o sinal, enfim, tudo o que sucede passageiramente.<br />

Imaginemos que nessa mesma alma<br />

exista o silêncio completo, porque,<br />

se ainda pode ouvir, todos os seres lhe<br />

dizem: não nos fizemos a nós mesmos,<br />

fez-nos O que permanece eternamente.<br />

Se ditas estas palavras os seres<br />

emudecerem, porque já escutaram<br />

quem os fez, suponhamos então que<br />

Ele sozinho fala, não por essas criaturas,<br />

mas diretamente, de modo a ouvirmos<br />

a sua palavra, não pronunciada<br />

por uma língua corpórea, nem por<br />

voz de um Anjo, nem pelo estrondo do<br />

trovão, nem por metáforas enigmáticas,<br />

mas já por Ele mesmo.<br />

Suponhamos que ouvíamos Aquele<br />

que amamos nas criaturas, mas sem<br />

o intermédio delas, assim como nós<br />

acabávamos de experimentar, atingindo,<br />

num voo de pensamento, a Eterna<br />

Sabedoria, que permanece imutável<br />

sobre todos os seres.<br />

Se essa contemplação continuasse<br />

e se todas as outras visões de ordem<br />

muito diferente cessassem, se unicamente<br />

essa arrebentasse a alma e a absorvesse,<br />

de modo que a vida eterna<br />

fosse semelhante a esse vislumbre intuitivo,<br />

...<br />

É a visão beatífica.<br />

...pelo qual suspiramos não seria isso<br />

a realização do “entra no gozo do<br />

Senhor”? E quando sucederá isso? Será<br />

quando todos ressuscitarmos? Mas<br />

então não seremos todos transformados?<br />

Ele afirma que, se uma alma pudesse<br />

ficar eternamente apenas naquele<br />

vislumbre, já teria um prazer<br />

paradisíaco inefável, extraordinário.<br />

Morte de Santa Mônica - Convento de Santo Agostinho, Quito<br />

Santa Mônica não queria o<br />

filho para si, mas para Deus<br />

Ainda que isto dizíamos não pelo<br />

mesmo modo e por estas palavras,<br />

contudo bem sabeis, Senhor, quanto<br />

o mundo e os seus prazeres nos pareciam<br />

vis naquele dia quando assim<br />

conversávamos. Minha mãe acrescentou<br />

ainda: “Meu filho, quanto a mim,<br />

já nenhuma coisa me dá gosto, nesta<br />

vida. Não sei o que faço ainda aqui,<br />

nem porque ainda cá esteja, esvanecidas<br />

já as esperanças deste mundo. Por<br />

um só motivo desejava prolongar um<br />

pouco a minha vida: para ver-te cristão<br />

e católico antes de eu morrer. Deus<br />

concedeu-me esta graça superabundantemente,<br />

pois vejo que já desprezas<br />

a felicidade terrena para servirdes ao<br />

Senhor. Que faço eu, pois, aqui?”<br />

Dias depois ela morreu. Nessa visão<br />

ela teve o prenúncio da própria<br />

morte e compreendeu que não tinha<br />

nada mais para fazer.<br />

Que diferença entre uma mãe<br />

santa e uma mãe piegas! Esta diria:<br />

“Agora que meu filho está convertido,<br />

começou para mim a vida. Ouvirei<br />

os sermões e as obras dele, vou<br />

viver com ele uma vida gostosinha<br />

na casa episcopal, admirando a virtude<br />

e o talento daquele que eu gerei<br />

para a vida natural e arranquei,<br />

pelas minhas orações, à morte eterna<br />

para dar um grande santo. Agora<br />

é que está bom!”<br />

Santa Mônica não queria ver o filho<br />

dela para nada disso, mas sim para<br />

Deus. Quando ela sentiu que Santo<br />

Agostinho estava nas mãos de<br />

Deus, não quis perder mais tempo<br />

na Terra. Poucos dias depois ela expirou.<br />

É uma santa e o último grande<br />

lance de sua vida está contado<br />

por um grande santo. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

31/8/1965)<br />

Gabriel K.<br />

21


Danilo I.<br />

C<br />

alendário<br />

1. Santo Afonso Maria de Ligório,<br />

bispo e Doutor da Igreja (†1787).<br />

Santo Eleazar, escriba (†c. 160 a.C.).<br />

Venerável ancião que, durante a perseguição<br />

de Antíoco Epífanes, recusando-se<br />

a comer carne sacrificada aos ídolos,<br />

preferiu a morte a viver na desonra.<br />

2. São Pedro Julião Eymard, presbítero<br />

(†1868).<br />

São Sereno, bispo (†d. 601). Hospedou<br />

Santo Agostinho, futuro arcebispo<br />

da Cantuária, e seus companheiros<br />

quando foram enviados pelo<br />

Papa São Gregório Magno para evangelizar<br />

a Inglaterra.<br />

3. Santo Asprenate, bispo (†s. II-<br />

-III). Segundo a tradição, foi o primeiro<br />

bispo de Nápoles, na Itália.<br />

4. São João Maria Vianney, presbítero<br />

(†1859).<br />

São Justino e São Crescenciano,<br />

mártires (†258). Receberam a coroa do<br />

martírio na perseguição de Valeriano.<br />

Beato Tomás Percy<br />

dos Santos – ––––––<br />

5. Dedicação da Basílica de Santa<br />

Maria Maior. Localizada no monte Esquilino,<br />

em Roma. Foi erigida durante<br />

o pontificado de Sisto III após o Primeiro<br />

Concílio de Éfeso, o qual proclamou<br />

a Virgem Maria como “Mãe de Deus”.<br />

6. Transfiguração do Senhor.<br />

7. Santo Agapito e Felicíssimo, diáconos<br />

e mártires (†258). Diáconos<br />

do Papa São Sixto II, sofreram o martírio<br />

no cemitério de Pretextato.<br />

Santa Afra, mártir (†304). Convertida<br />

de uma vida de pecado à fé católica.<br />

Sendo ainda catecúmena, foi denunciada<br />

como cristã e lançada ao fogo,<br />

em Augsburgo, Alemanha.<br />

8. São Domingos de Gusmão, presbítero<br />

e fundador (†1221).<br />

Beato João Felton, mártir (†1570).<br />

Deu a conhecer publicamente a bula<br />

de excomunhão lançada pelo papa<br />

São Pio V contra a Rainha Isabel I, da<br />

Inglaterra, fato pelo qual foi esquartejado<br />

junto à catedral de São Paulo,<br />

em Londres.<br />

9. Beato Florentino Asêncio Barroso,<br />

bispo e mártir (†1936). Fuzilado<br />

durante a perseguição à Igreja ocorrida<br />

na Guerra Civil Espanhola.<br />

10. São Lourenço, diácono e mártir<br />

(†258). Três dias após o martírio do<br />

Papa Sixto, seguiu o Romano Pontífice<br />

superando de modo prodigioso as<br />

chamas, consumando seu sacrifício sobre<br />

uma grelha. Foi sepultado em Roma,<br />

no lugar chamado Campo Verano,<br />

no cemitério que recebeu o seu nome.<br />

11. Santa Clara de Assis, virgem e<br />

fundadora (†1253).<br />

Santa Rustícola, abadessa (†632).<br />

Perdeu seu pai no dia de seu nascimento,<br />

sendo educada de forma cristã por<br />

sua mãe. Raptada por um nobre que<br />

a escolhera por esposa, foi posta em liberdade<br />

pela intervenção da abadessa<br />

do mosteiro de Arles, onde permaneceu<br />

o resto de sua vida. Mais tarde, eleita<br />

abadessa, dirigiu santamente as monjas<br />

durante quase sessenta anos.<br />

12. São Muredach, bispo (†c. s. V).<br />

Exerceu seu ministério episcopal em<br />

Killala, na Irlanda.<br />

Beata Vitória Díez y Busto de Molina,<br />

virgem e mártir (†1936). Professora<br />

no Instituto Teresiano, durante a perseguição<br />

contra a Igreja proclamou sua fé<br />

cristã, sendo por isso martirizada. Exortava<br />

os outros a seguirem o mesmo caminho,<br />

tornando-se exemplo de firmeza<br />

face aos ataques dos inimigos da fé.<br />

São Jacinto<br />

13. XIX Domingo do Tempo Comum.<br />

14. São Maximiliano Maria Kolbe,<br />

presbítero e mártir (†1941). Membro<br />

da Ordem dos Frades Menores Conventuais,<br />

fundou a Milícia de Maria<br />

Imaculada.<br />

Santo Ursicino, mártir (†s. IV). Sofreu<br />

o martírio em Hilírico, na atual Croácia.<br />

Era tribuno no exército romano e,<br />

por inveja de um companheiro, foi acusado<br />

de ser cristão. Padeceu diversas torturas,<br />

depois das quais foi decapitado.<br />

15. São Jacinto, presbítero (†1257).<br />

Pertencente à Ordem dos Pregadores,<br />

foi designado por São Domingos para<br />

propagar a Ordem na Polônia e, junto<br />

com o Beato Ceslau e Henrique Germânico,<br />

pregou o Evangelho nos territórios<br />

da Boêmia e da Silésia.<br />

Flávio Lourenço<br />

22


––––––––––––––––– * Agosto * ––––<br />

16. Santo Arsácio (†c. 358). No tempo<br />

do imperador Licínio, professou a<br />

fé cristã, abandonou a vida militar e<br />

retirou-se à solidão, em Nicomédia.<br />

Beato João de Santa Marta, presbítero<br />

e mártir (†1618). Entrou na Ordem<br />

Franciscana e, ordenado sacerdote,<br />

foi enviado em missão ao Japão. Escreveu<br />

vários tratados refutando o paganismo.<br />

Preso por testemunhar a fé cristã,<br />

depois de três anos recebeu a condenação<br />

à morte por decapitação, em Kioto.<br />

17. Santa Beatriz da Silva, virgem<br />

(†1492). Nascida de uma família nobre<br />

de Portugal, depois de ter acompanhado<br />

seus pais a Ceuta passou à corte de<br />

Castela, como dama de honra de sua<br />

parenta, a infanta Dona Isabel de Portugal.<br />

A fim de se dedicar a uma vida<br />

cristã mais perfeita, retirou-se para o<br />

convento da Ordem de São Domingos,<br />

em Toledo, onde permaneceu mais de<br />

trinta anos. Fundou a Ordem da Imaculada<br />

Conceição de Nossa Senhora.<br />

18. Santos Mártires da “Massa<br />

Cândida” (†s. III-IV). Fiéis da região<br />

de Útica, África Proconsular, atual<br />

Tunísia, que, seguindo os ensinamentos<br />

de seu bispo São Quadrato,<br />

professaram a fé em Cristo e por Ele<br />

aceitaram generosamente o martírio.<br />

Beato Antônio Banassat, presbítero<br />

e mártir (†1794). Foi preso por<br />

ódio à Fé cristã e morreu de fome durante<br />

a Revolução Francesa.<br />

19. São João Eudes, presbítero<br />

(†1680). Fundou a Congregação de<br />

Jesus e Maria para a formação dos sacerdotes<br />

nos seminários, e também<br />

a Congregação de Nossa Senhora da<br />

Caridade do Bom Pastor. Destacou-<br />

-se por sua ardorosa devoção aos Sagrados<br />

Corações de Jesus e Maria.<br />

20. Solenidade da Assunção de Nossa<br />

Senhora (Transferida do dia 15).<br />

São Bernardo de Claraval, abade e<br />

Doutor da Igreja (†1153).<br />

21. São Pio X, papa (†1914). Bispo<br />

de Mântua e Patriarca de Veneza.<br />

Eleito Papa, incitou os fiéis a intensificar<br />

a vida cristã com a participação<br />

na Eucaristia. Combateu com energia<br />

o erro do Modernismo.<br />

São Quadrato, bispo e mártir<br />

(†s. III-IV).<br />

22. Nossa Senhora Rainha.<br />

Beato Tomás Percy, mártir (†1572).<br />

Conde de Notúmbria, decapitado no<br />

reinado de Isabel I, da Inglaterra, por<br />

causa da sua fidelidade à Igreja Romana.<br />

23. Santa Rosa de Lima, virgem<br />

(†1617). Padroeira da América Latina.<br />

24. São Bartolomeu, Apóstolo (†s. I).<br />

Santo Audeno, bispo (†684). Abdicando<br />

do cargo de conselheiro do rei<br />

Dagoberto, foi elevado ao episcopado<br />

e governou com sucesso a Diocese de<br />

Rouen durante quarenta e três anos,<br />

durante os quais fundou muitas igrejas<br />

e promoveu a construção de vários<br />

mosteiros.<br />

25. São Luís IX, Rei de França<br />

(†1270).<br />

São José de Calasanz, presbítero<br />

(†1648). Fundador da Ordem dos<br />

Clérigos Regulares Pobres da Mãe de<br />

Deus das Escolas Pias (Escolápios).<br />

26. Santa Joana Isabel Bichier des<br />

Âges, virgem (†1838). Durante a Revolução<br />

Francesa, ajudou Santo André<br />

Huberto Fournier a exercer clandestinamente<br />

o seu ministério e, restituída a<br />

paz à Igreja, fundou a Congregação das<br />

Filhas da Cruz, destinada à educação<br />

dos pobres e à assistência aos enfermos.<br />

27. XXI Domingo do Tempo Comum.<br />

Santa Mônica, mãe de família<br />

(†387).<br />

Beato João Juvenal Ancina<br />

28. Santo Agostinho, bispo e Doutor<br />

da Igreja (†430).<br />

São Moisés, o Etíope, monge<br />

(†c. 400). Primeiramente foi escravo,<br />

mas foi expulso por seu amo por<br />

ser ladrão. Tendo-se convertido, retirou-se<br />

à Scetes, no Egito, junto a São<br />

Macário o Grande e abraçou como<br />

penitência a vida monástica. Ordenado<br />

sacerdote, retirou-se ao deserto de<br />

Petra. Reuniu vários discípulos dentre<br />

seus antigos companheiros, converteu-os<br />

e os conduziu à vida monástica.<br />

29. Martírio de São João Batista,<br />

Precursor do Senhor (†s. I).<br />

Beata Teresa Bracco, virgem e mártir<br />

(†1944). Trabalhadora do campo;<br />

durante a Segunda Guerra Mundial, foi<br />

martirizada defendendo sua pureza.<br />

30. Beato João Juvenal Ancina,<br />

bispo (†1604). Foi um dos primeiros a<br />

entrar no Oratório de São Filipe Néri.<br />

31. Beatos Edmígio (Isidoro Primo<br />

Rodríguez), Amálio (Justo Zariquiégui<br />

Mendoza) e Valério Bernardo<br />

(Marciano Herrero Martínez) mártires<br />

(†1936). Membros da Congregação<br />

dos Irmãos das Escolas Cristãs; durante<br />

a perseguição desencadeada contra<br />

a Igreja na Guerra Civil na Espanha,<br />

foram mortos por ódio à Fé cristã.<br />

Flávio Lourenço<br />

23


Perspectiva pliniana da História<br />

Luzes e sombras na vida<br />

de grandes personagens<br />

Flávio Lourenço<br />

Passados dois<br />

séculos da Revolução<br />

Francesa, as figuras<br />

de Luís XVI e Maria<br />

Antonieta aparecem<br />

reabilitadas aos<br />

olhos da opinião<br />

pública. Contudo,<br />

isso não impede que<br />

a Revolução continue<br />

o seu curso, o qual<br />

teria sido cortado<br />

se o Rei soubesse<br />

utilizar-se dos<br />

recursos colocados<br />

à sua disposição.<br />

Luís XVI não compreendeu<br />

que revolucionário não se<br />

amansa: doma-se. E quando<br />

não se doma, resolve-se o caso de<br />

outra maneira… Ele, pelo contrário,<br />

esperava amansar o povo com a política<br />

descrita anteriormente 1 .<br />

Duzentos anos depois da<br />

Revolução, aparece a verdade<br />

Luís XVI - Museu Palácio de Tau, Reims<br />

Daí decorreu uma situação com<br />

profunda repercussão sobre o modo<br />

pelo qual a Revolução é comemo-<br />

24


ada nos dias de hoje.<br />

Duzentos anos depois,<br />

essa política produziu<br />

efeitos que não<br />

deixam de ser muito<br />

interessantes do ponto<br />

de vista contrarrevolucionário.<br />

Porque, dispondo<br />

dessa máquina de difundir<br />

notícias por todo<br />

país e, portanto,<br />

espalhar mentiras se<br />

eles quisessem fazê-lo,<br />

os revolucionários tinham<br />

a possibilidade<br />

de convencer momentaneamente<br />

a França<br />

de tudo quanto quisessem.<br />

E para levantar<br />

o povo contra o rei,<br />

eles não só produziram<br />

uma fome artificial,<br />

cortando a circulação<br />

dos víveres dentro<br />

da França, causando<br />

revoltas; mas tam-<br />

Maria Antonieta com trajes de camponesa - Galeria<br />

Nacional de Arte de Washington<br />

bém apresentaram<br />

Luís XVI como um tirano<br />

sanguinário. Maria<br />

Antonieta, a rainha,<br />

foi apresentada<br />

como uma mulher que<br />

vivia num luxo desenfreado,<br />

o qual era a causa dos grandes<br />

gastos da corte. Gastos estes que,<br />

por sua vez, causavam a pobreza da<br />

nação. Por tudo isso, era necessário<br />

acabar com a influência do rei tirânico<br />

e da rainha dissoluta, luxuriosa.<br />

Fizeram do rei e da rainha, então,<br />

o alvo de uma campanha de calúnias<br />

quase sem precedentes na História<br />

que, finalmente, levou-os à guilhotina.<br />

Passaram-se os anos, o que era velho<br />

foi ficando antigo. Os historiadores<br />

começaram a estudar os arquivos,<br />

os documentos, os decretos, as<br />

correspondências do rei e da rainha,<br />

e perceberam que todo o quadro revolucionário<br />

era artificial, mentiroso.<br />

O rei, outrora tido como tirano,<br />

era na realidade um moleirão, um<br />

homem sem energia, um pobre coitado.<br />

A rainha, tida como uma mulher<br />

de luxo exorbitante, pelo contrário,<br />

se fazia censurar pela excessiva<br />

simplicidade das modas que usava.<br />

Tinha mania de vestir-se de pastorinha<br />

e andar assim trajada por Paris<br />

ou Versailles. Não era como as senhoras<br />

do reinado anterior, de Luís<br />

XV. Maria Antonieta representava<br />

uma espécie de modernidade pastoril<br />

e simplória – aliás, de muita elegância<br />

–, numa França até então habituada<br />

ao luxo real. Portanto, ela<br />

Gabriel K.<br />

também era uma coitada.<br />

Além disso, ela era<br />

austríaca e irmã do<br />

imperador do Império<br />

Romano Alemão, ou<br />

seja, o chefe da Casa<br />

d’Áustria. A Áustria<br />

era inimiga tradicional<br />

da França. Então,<br />

dizia-se que a rainha<br />

trabalhava o mais possível<br />

para que a Áustria<br />

invadisse a França<br />

para salvar a monarquia.<br />

Isso significava<br />

fazer entrar o inimigo<br />

dentro de casa: a rainha<br />

era uma traidora.<br />

Lendo a coleção de<br />

cartas de Maria Antonieta<br />

para sua família,<br />

vê-se o contrário. Ela<br />

sempre agiu para evitar<br />

que o irmão interviesse,<br />

porque ela participava<br />

da ideia do<br />

marido. Ela imaginava<br />

que, tratando com<br />

bondade o povo, este<br />

acabaria percebendo<br />

a loucura da situação<br />

e liquidaria por si<br />

mesmo a Revolução.<br />

De maneira que isso<br />

tudo foi se difundindo aos poucos<br />

e o quadro da Revolução mudou: o<br />

rei e a rainha eram uns coitados!<br />

Uma mesma política causou<br />

dois efeitos diferentes<br />

Além do mais, o rei era um homem<br />

muito honesto. A rainha, por<br />

sua vez, reunia em si todas as qualidades<br />

capazes de tornar encantadora<br />

uma dama.<br />

O ambiente da corte era tão impregnado<br />

de moralidade, ao contrário<br />

da corte de Luís XV – avô de Luís<br />

XVI – que, por exemplo, a irmã do<br />

Delfim – Madame Clotilde de Fran-<br />

25


Perspectiva pliniana da História<br />

ce 2 – a qual se casou com o Duque<br />

de Piemonte e Rei de Sardenha 3 ,<br />

morreu em odor de santidade, com<br />

virtudes heroicas reconhecidas pela<br />

Santa Sé e proclamada venerável.<br />

Luís XVI teve outra irmã, Madame<br />

Elisabeth 4 , solteira, que acompanhou<br />

o rei e a rainha até a Torre do<br />

Templo onde estiveram presos, sendo<br />

para eles um apoio e ajudando-<br />

-os na educação dos dois filhos. Ela<br />

morreu guilhotinada por causa desse<br />

ato de dedicação.<br />

Além disso, havia uma princesa<br />

de um ramo colateral da família real,<br />

Luísa de Condé 5 , pessoa muito piedosa<br />

e que fundou em Paris um convento<br />

de Beneditinas do Santíssimo<br />

Sacramento, que deviam fazer adoração<br />

perpétua 6 .<br />

O convento foi construído sobre<br />

as ruínas do Templo onde Luís XVI<br />

e Maria Antonieta estiveram presos,<br />

para a reparação dos crimes e pecados<br />

que ali se cometeram contra a<br />

autoridade real. Ela não foi beatificada,<br />

mas é tida como santa. Ou seja,<br />

uma pessoa de alta virtude.<br />

Enfim, tudo isso foi saindo aos<br />

poucos do pantanal das mentiras da<br />

Revolução, impregnando a História<br />

e, posteriormente, a opinião pública.<br />

Ao cabo de algum tempo, ficou claríssimo<br />

que aquilo era uma conspiração<br />

da mentira, da calúnia mais atroz,<br />

do ódio mais debandado a serviço de<br />

planos de anarquia social, cuja ponta<br />

explodiu no fim da Revolução Francesa,<br />

com a primeira revolta comunista<br />

promovida por Babeuf 7 , um revolucionário<br />

republicano que fez uma tentativa<br />

de implantar o regime comunista,<br />

tal qual, na França.<br />

Hoje vemos que o eixo da História<br />

mudou e que a excessiva mansidão<br />

de Luís XVI e de Maria Antonieta<br />

produziu em nossos dias um<br />

sentimento de compaixão em relação<br />

a eles, tornando-os populares<br />

depois da morte. Em alguma medida,<br />

embora pequena, realizaram suas<br />

esperanças – com duzentos anos<br />

de atraso –, de que o povo acabasse<br />

dando-lhes razão.<br />

Nessa perspectiva, a opinião pública<br />

fica também preparada para<br />

uma análise mais objetiva das ideias<br />

da Revolução.<br />

Por exemplo, o homem que estava<br />

no píncaro da popularidade poucos<br />

anos antes da Revolução era Voltaire;<br />

ele era, dentre os enciclopedistas, o<br />

homem mais ímpio da França. Era tão<br />

asqueroso que, num ato de revolta,<br />

poucos instantes antes de morrer – o<br />

fato é horrível, mas é preciso contá-lo<br />

para se compreender bem –, ele bebeu<br />

o conteúdo do próprio vaso noturno.<br />

Voltaire está hoje com o crédito<br />

muito rebaixado. Enquanto Luís<br />

XVI e Maria Antonieta, que outrora<br />

estavam no auge do descrédito,<br />

agora são glorificados, deixando<br />

a Revolução sem coragem de atacá-<br />

-los de frente.<br />

Andrea Pozzi (CC3.0)<br />

Aleksander Kucharski (CC3.0)<br />

Mme. Elisabeth no Templo e Mme. Clotilde de France<br />

26


Vejam o remexe-mexe<br />

da História: a Revolução<br />

serviu-se da política débil<br />

e estulta que os reis quiseram<br />

adotar para derrubá-los<br />

e dominar a França,<br />

grosso modo, durante dois<br />

séculos, e assim infestar o<br />

mundo. Mas, em contrapartida,<br />

essa mesma política<br />

serviu para, em determinado<br />

momento, desmoralizar<br />

a Revolução. Essa<br />

é a pluralidade de aspectos<br />

que o fenômeno revolucionário<br />

tem.<br />

Alguém perguntará:<br />

“Então, Luís XVI e Maria<br />

Antonieta foram espertos<br />

ao agir desse modo?”<br />

Não! Porque não é muito<br />

consolador saber que eles<br />

foram reabilitados na opinião<br />

pública quando esta<br />

continua avançando, apesar<br />

de tudo, no caminho<br />

que a Revolução traçou,<br />

ou seja, rumo ao Comunismo.<br />

Contudo, é preciso<br />

compreender bem esse aspecto colateral<br />

da atitude dos reis para entendermos,<br />

na sua prolixidade e na sua<br />

multiplicidade de aspectos, a marcha<br />

do fenômeno “Revolução e Contra-<br />

-Revolução”.<br />

O que deveria ter<br />

feito Luís XVI?<br />

Não entendo nada de cirurgia,<br />

mas vou imaginar um cirurgião que<br />

resolve operar um paciente de câncer<br />

– um tumor não aparente, que<br />

não está à flor da pele. Primeiro, o<br />

médico manda tirar uma radiografia,<br />

depois analisa-a e faz seu plano<br />

de ação: “O câncer está penetrado<br />

em tal lugar; eu devo cortar aqui, lá<br />

e acolá. Mas a minha meta é extirpar<br />

qualquer célula cancerosa, porque<br />

ela vai espalhar a doença para outros<br />

lugares do organismo.”<br />

François-Noël Babeuf<br />

A Revolução, de si, é difusiva como<br />

o câncer e, por isso, deve ser extirpada<br />

por completo.<br />

Luís XVI tinha diante de si duas<br />

alternativas: ou considerar as massas<br />

que se aproximavam e mandar descarregar<br />

a cavalaria sobre elas, como<br />

fez o Príncipe de Lambesc 8 ; ou, caso<br />

isso não fosse possível – como realmente<br />

aconteceu – ele deveria fazer<br />

uma lista dos erros da Revolução<br />

e mandar pedir ao Papa Pio VI uma<br />

condenação; mas pedir de tal forma<br />

que o Pontífice não pudesse recusar.<br />

Eu imagino uma carta do rei ao<br />

Papa nos seguintes termos: “Ou Vossa<br />

Santidade condena com radicalidade<br />

esses erros, de maneira a não<br />

ficar dúvida nenhuma, ou eu vos responsabilizarei<br />

pelo sangue derramado<br />

no meu país. Se esses erros não<br />

forem condenados, a França sofrerá<br />

um morticínio para o qual vou me<br />

Divulgação (CC3.0)<br />

preparar, embora preferisse<br />

não vê-lo. Portanto,<br />

é preciso que eu sinta todo<br />

o peso do clero católico<br />

combatendo do meu lado.<br />

Aí sim, eu sou fiador de<br />

que minha espada garantirá<br />

a integridade do altar,<br />

dos ministros sagrados, do<br />

culto católico inteiro e assegurará<br />

uma França católica!<br />

Se não houver isto,<br />

eu, só com meu poder militar,<br />

não extirpo essa situação.<br />

“Este meu pedido precede<br />

ao uso das armas,<br />

mas, se eu tiver que fazer<br />

uso delas, a Europa ficará<br />

sabendo que entrei<br />

em combate porque Vossa<br />

Santidade não quis ser<br />

enérgico, pois eu fiz o possível<br />

para não derramar<br />

sangue.”<br />

Se fosse eu, sem dúvida<br />

escreveria essa carta e obteria<br />

do Papa o lançamento<br />

desse documento.<br />

Resposta ambígua do<br />

Papa e revide do rei<br />

Pio VI era muito medroso, quase<br />

tão medroso quanto Luís XVI.<br />

Aconteceu, porém, que o monarca<br />

tentou tomar uma medida desse gênero.<br />

Mandou uma carta em segredo,<br />

por meio de um portador, pedindo<br />

ao Papa a condenação dos Direitos<br />

do Homem elaborados pela Revolução.<br />

O que fez Pio VI? Respondeu<br />

à missiva do rei e enviou-a por<br />

um mensageiro, dizendo:<br />

“Eu recebi seu pedido e a condenação<br />

está feita. Ora, ela foi feita<br />

em segredo num consistório do Sacro<br />

Colégio dos cardeais. Portanto,<br />

o documento que envio à Vossa Majestade<br />

é secreto também. Mas, para<br />

tranquilidade de sua consciência, esses<br />

erros estão condenados.”<br />

27


Perspectiva pliniana da História<br />

Luís XVI deveria ter<br />

respondido o seguinte:<br />

“Tenho em minhas<br />

mãos um documento de<br />

Vossa Santidade mostrando<br />

que não posso<br />

contar com vosso apoio.<br />

Fique sabendo que, no<br />

momento oportuno, farei<br />

a matança desses<br />

bandidos para libertar<br />

o meu povo. Nessa data,<br />

enviarei missivas para<br />

todos os reis da Europa<br />

com a cópia dessa<br />

carta secreta que me enviastes.<br />

Vossa Santidade<br />

ainda está em tempo de<br />

corrigir a situação…”<br />

Nessas condições,<br />

o rei, ou poderia mandar<br />

esmagar os revoltosos<br />

ou – o que eu acho<br />

muito mais interessante<br />

– prender todos os enciclopedistas<br />

na Bastilha,<br />

mandar queimar os livros<br />

deles em praça pública<br />

à maneira da Inquisição<br />

e exterminar,<br />

assim, a difusão das ideias revolucionárias.<br />

Porque mais vale a pena eliminar<br />

os grandes culpados do que os<br />

pequenos.<br />

Além disso, o monarca poderia<br />

pagar alguém para fazer uma suma<br />

das máximas revolucionárias contidas<br />

na Enciclopédia e publicar, dizendo:<br />

“O Papa não quis condenar<br />

esses erros, mas eu os condeno; isso<br />

é contra a Doutrina Católica. Eu vou<br />

fazer a minha Enciclopédia, nela vocês<br />

ficarão sabendo a verdade.”<br />

Alguém objetará: “Mas, coitado,<br />

Luís XVI não tinha talento para<br />

fazer isso.” Se não tinha talento,<br />

pelo menos podia convocar gente<br />

que o tivesse; trancá-la numa fortaleza<br />

e dizer: “Quando vocês terminarem<br />

o trabalho ficarão em liberdade.<br />

Eu lhes darei tanto dinheiro como<br />

pagamento – um bom dinheiro –,<br />

National Gallery of Ireland, Dublin (CC3.0)<br />

Pio VI - Galeria Nacional da Irlanda<br />

mas façam como eu quero que seja<br />

feito, porque do contrário vocês não<br />

sairão daí. Eu vou mandar carcereiros<br />

fiscalizarem o trabalho para ver<br />

se está saindo como eu quero.”<br />

Esses seriam alguns recursos. Haveria<br />

muitos outros…<br />

O papel da corte<br />

Na descrição que fiz do mundo<br />

dos salões omiti o papel da corte, a<br />

qual ficava em Versailles e não em<br />

Paris, duas cidades distintas. As pessoas<br />

principais da corte possuíam casas,<br />

ora numa cidade, ora noutra. E<br />

algumas tinham apartamentos concedidos<br />

pelo rei no castelo de Versailles,<br />

pois este era enorme e capaz<br />

de acolher muita gente.<br />

A corte constituía, portanto, o salão<br />

dos salões e era muito prestigioso<br />

pertencer a ela, ser recebido ou<br />

receber visitas de pessoas<br />

da corte, ganhar distinções<br />

do rei, da rainha,<br />

etc. O prestígio social se<br />

fazia, em larga medida,<br />

em virtude disso.<br />

E, se o rei e a rainha<br />

tivessem uma ideia exata<br />

de qual era a doutrina da<br />

Revolução e, por conseguinte,<br />

também do que<br />

seria uma desejável doutrina<br />

contrarrevolucionária,<br />

eles já poderiam,<br />

pela habilidade, ter feito<br />

muita coisa para destroçar<br />

a rebelião nascente<br />

em Paris, sem o caráter<br />

enérgico e rubicundo<br />

das medidas acima mencionadas.<br />

Bastava irem,<br />

aos poucos, expulsando<br />

os fidalgos revolucionários<br />

e introduzindo os<br />

nobres contrarrevolucionários<br />

nos cargos da corte,<br />

de modo a fazer dela<br />

um foco permanente de<br />

Contra-Revolução, dando<br />

prestígio aos bons.<br />

Os reis tinham muita influência<br />

na nomeação de bispos e na promoção<br />

do clero; poderiam promover,<br />

ali dentro, os mais ortodoxos ou<br />

obter do Papa a nomeação de prelados<br />

bons, com pensamentos contrarrevolucionários,<br />

e não verdadeiras<br />

pústulas como Talleyrand 9 , Bispo<br />

de Autun, homem praticamente sem<br />

fé e, sobretudo, sem moral. Estimulando<br />

a Contra-Revolução ideológica<br />

no país de todos os modos, a corte<br />

poderia ter tido recursos de ação<br />

colossais.<br />

Entretanto, Luís XVI não usou<br />

nenhum desses recursos. Havia mil<br />

meios de prevenção da Revolução<br />

antes de usar a repressão. Depois,<br />

havia mil meios de repressão. Nada<br />

disso os reis fizeram. Na minha opinião,<br />

eles não tinham uma ideia nítida<br />

e articulada do que é a opinião<br />

28


pública. E por isso ficaram meio hébétés<br />

10 nesse vai-e-vem das coisas.<br />

Poder oculto que criava os<br />

“Cahiers de Doléances”<br />

Charles Maurice de Talleyrand-Périgord<br />

Museu Carnavalet, Paris<br />

A meu ver, havia um modo facílimo<br />

de desmoralizar a organização<br />

dos Estados Gerais quando estes foram<br />

convocados. Para me exprimir<br />

melhor, vou falar linguagem moderna.<br />

Cada distrito eleitoral daquele<br />

tempo escolhia os deputados por um<br />

sistema de voto indireto. Eles nomeavam<br />

quem elegeria os deputados.<br />

Ora, desde que houve Estados<br />

Gerais – já na Idade Média era assim<br />

–, esse pequeno corpo de deputados<br />

elaborava também um documento<br />

intitulado Cahier de Doléances 11 .<br />

Portanto, era a lista das coisas que o<br />

povo desejava que fossem<br />

modificadas porque lhes<br />

fazia sofrer, e pediam para<br />

serem tomadas as providências<br />

necessárias.<br />

Existia o Cahier de Doléances<br />

da Bretanha, outro<br />

da Alsácia, outro da Lorena.<br />

O deputado de cada local<br />

se dirigia para os Estados<br />

Gerais com a incumbência<br />

de dar a conhecer<br />

as doléances de sua jurisdição,<br />

e apresentava os pedidos.<br />

Daí nascia um debate<br />

e se tomava uma decisão.<br />

Ora, os Cahiers de Doléances<br />

foram exaustivamente<br />

estudados por autores<br />

contemporâneos e verificou-se<br />

que esses livros<br />

não tinham sido feitos pelos<br />

representantes populares,<br />

pois existiram exemplares<br />

de zonas diversas<br />

uma das outras, como, por<br />

exemplo, Lyon e Havre,<br />

com as mesmas queixas,<br />

repetindo palavra por palavra,<br />

em páginas inteiras.<br />

Tal prova indicava a existência<br />

de uma máquina que fazia as<br />

doléances e as enviava para Paris, a<br />

fim de exercerem certo efeito sobre<br />

o público. Mas tudo aquilo era falsificado<br />

e, portanto, a Assembleia funcionava<br />

a serviço de um outro poder.<br />

E de um poder oculto.<br />

Luís XVI podia ter mandado examinar<br />

essas queixas de modo muito<br />

amável: “O rei quis conhecer, ele<br />

próprio, as doléances de seu querido<br />

clero, de sua querida nobreza e de<br />

sua querida plebe; mandou examiná-las<br />

e teve a surpresa de encontrar<br />

tal coisa assim.”<br />

Antes que os Estados continuassem<br />

a funcionar, o rei deveria ter<br />

aberto uma investigação nacional<br />

para saber como havia sido elaborado<br />

aquilo. Ele poderia chamar para<br />

um inquérito os senhores que tinham<br />

cadernos iguais: “Senhores,<br />

apresentem-se aqui diante da Inquisição<br />

e expliquem como é que, morando<br />

em zonas tão diferentes uma<br />

da outra, os senhores imaginam para<br />

seus respectivos povos situações<br />

iguais; não é possível. Como receberam<br />

isso? Quem lhes deu? Por<br />

que os senhores aceitaram trazer isso?<br />

Eu quero saber com exatidão. Se<br />

não, vão ser chamados para responder<br />

por crime de estelionato, porque<br />

falsificaram as intenções do povo<br />

aceitando as intenções de uns ideólogos<br />

revolucionários, agitadores, inquietos<br />

e incontentáveis.”<br />

Isso bastava para fazer explodir a<br />

Revolução.<br />

Meios de evitar a Revolução<br />

Havia, também, muita confusão<br />

na administração do patrimônio<br />

público da França,<br />

ninguém sabia ao certo<br />

como estava. Isso não era<br />

tão irregular, porque antigamente<br />

as questões de<br />

dinheiro se tratavam com<br />

certa bonomia e relaxamento,<br />

chegando às vezes<br />

ao excesso; o dinheiro não<br />

era um ídolo como é nos<br />

dias de hoje.<br />

Então, encarregaram<br />

um banqueiro suíço-francês,<br />

Necker 12 , para estudar<br />

a situação do tesouro da<br />

França e elaborar um relatório.<br />

Mas não mandaram<br />

ninguém fiscalizá-lo para<br />

ver se estava trabalhando<br />

direito.<br />

Necker apresentou um<br />

relatório muito bem redigido<br />

– eu desconfio ter sido<br />

redigido por algum enciclopedista,<br />

pois eles<br />

eram muito bons literatos<br />

–, que foi espalhado por<br />

toda a França como o último<br />

modelo da melhor ciência<br />

econômica possível.<br />

Flávio Lourenço<br />

29


Perspectiva pliniana da História<br />

Porém, estava cheio de erros. Hoje<br />

não se admitem mais tais propostas.<br />

Por que, então, não mandaram examinar<br />

antes? Porque esse trabalho<br />

era a peça chave para provar que os<br />

Estados precisavam ser reformados.<br />

Em outras palavras, era o libelo de<br />

acusação, no plano administrativo e<br />

econômico, contra a monarquia.<br />

Ora, o rei, contra quem se dirigiu<br />

tal acusação, não mandou controlar<br />

a situação tendo todos os meios ao<br />

seu alcance? É algo inimaginável! É<br />

claro que se um homem verdadeiramente<br />

católico<br />

estivesse na direção<br />

de um país<br />

nessas circunstâncias,<br />

ele teria usado<br />

de toda a força<br />

necessária, mas<br />

teria feito todo o<br />

necessário para<br />

evitá-la. É evidente!<br />

Só um animal<br />

sanguinário prefere<br />

usar a força podendo<br />

evitá-la.<br />

Enfim, todos esses métodos políticos:<br />

mandar controlar os cahiers<br />

de doléances, o trabalho do Necker,<br />

desmontar o prestígio dos salões<br />

de Paris por meio de suspensões<br />

ou afastamentos desses ou daqueles<br />

em relação à corte, tudo isso poderia<br />

ter evitado a Revolução, se Luís<br />

XVI tivesse agido logo no começo<br />

do seu reinado. Como católico, o<br />

rei devia preferir isso. Mas ele não<br />

viu nada, não soube nada, não quis<br />

nada e morreu com a cabeça cortada<br />

na guilhotina.<br />

Aspectos luminosos<br />

e deploráveis que<br />

se misturaram<br />

Os acontecimentos da Revolução<br />

Francesa têm uma tal prolixidade,<br />

complexidade de aspectos, que é<br />

preciso considerar também um outro<br />

ponto.<br />

No meio de todas as culpas que<br />

cabem ao rei e à rainha, é preciso dizer<br />

que Pio VI, por ocasião das exéquias<br />

de Maria Antonieta, celebrou<br />

Auguste Couder (CC3.0)<br />

Bibliothèque nationale de France (CC3.0)<br />

Abertura dos Estados Gerais a 5 de maio de 1789. Em destaque, Jacques Necker - Biblioteca Nacional da França<br />

30


G. Beys (CC3.0)<br />

Morte de Pio VI - Biblioteca Nacional de Portugal<br />

uma Missa na Basílica de São Pedro,<br />

na qual declarou por opinião pessoal,<br />

ou seja, sem fazer uso da infalibilidade<br />

papal, que os monarcas morreram<br />

mártires. Porque se eles tivessem<br />

concordado com a separação<br />

entre a Igreja e o Estado, simplesmente<br />

por isso, não teriam sido mortos.<br />

E eles sabiam disso. Há, portanto,<br />

aspectos luminosos e deploráveis<br />

que se misturam.<br />

O próprio Pio VI teve uma morte<br />

digníssima. Entretanto, Ludwing<br />

von Pastor 13 – tido por muitos como<br />

o melhor historiador do papado<br />

–, conta que Pio VI era um homem<br />

muito vaidoso, pois passava um certo<br />

número de horas por dia com as<br />

mãos metidas em um recipiente com<br />

leite de amêndoas, porque se acreditava<br />

naquele tempo que isso tornava<br />

a pele mais branca. E como ele tinha<br />

as mãos muito bonitas, queria que<br />

estas aparecessem muito alvas ao entrar<br />

na Basílica de São Pedro sendo<br />

carregado na sede gestatória dando<br />

bênçãos.<br />

Para um homem qualquer é algo<br />

inconcebível pensar se as mãos<br />

são bonitas ou feias. E para um Papa<br />

é inadmissível! Ele fez isso. E teve<br />

fraquezas diante da Revolução,<br />

inegáveis.<br />

Contudo, a partir de certo momento,<br />

começou a resistir, razão pela<br />

qual foi levado preso até a França<br />

pela Revolução. Chegando lá, estava<br />

tão doente que parou, porque<br />

não aguentava mais viajar tantas horas<br />

de carruagem desde Roma. E o<br />

“povo” – de fato, era um bando de<br />

sacripantas acumulado pela polícia<br />

– agrupou-se diante da casa onde<br />

o Pontífice residia e pediu-lhe para<br />

aparecer. Ele saiu da cama, vestiu-se<br />

com a indumentária própria a<br />

um Papa, chegou ao terraço do quarto<br />

e o “povo”, vaiando, disse: “Ecce<br />

homo” 14 . Pouco depois morreu. Isso<br />

demonstra uma grande dignidade.<br />

Esses personagens são muito complexos.<br />

Quando se quer fazer um juízo<br />

pessoal, é mais complexo julgá-los<br />

do que parece à primeira vista. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

19/7/1989)<br />

1) Cf. <strong>Revista</strong> <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> n. 304, p. 16-21.<br />

2) Marie Adélaïde Clotilde Xavière<br />

(*1759 - †1802).<br />

3) Carlo Emanuele IV (*1751 - †1819).<br />

4) Élisabeth Philippe Marie Hélène de<br />

France (*1764 - †1794).<br />

5) Louise Adélaïde de Bourbón-Condé<br />

(*1757 - †1824).<br />

6) Louise Condé fundou a Abadia de<br />

Saint-Louis du Temple, fazendo parte<br />

da ordem dos Beneditinos da<br />

Adoração Perpétua do Santíssimo<br />

Sacramento, uma congregação fundada<br />

por Mechtild do Santíssimo Sacramento.<br />

7) François Noël Babeuf (*1760 -<br />

†1797), jornalista que participou da<br />

Revolução Francesa, conhecido pelo<br />

nome de Gracchus Babeuf.<br />

8) Charles-Eugène de Lorraine (*1751<br />

- †1825).<br />

9) Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord<br />

(*1754 - †1838).<br />

10) Do francês: atordoado.<br />

11) Cahiers de Doléances são registros<br />

nos quais a assembleia de cada região<br />

da França anotava as petições e as<br />

queixas da população.<br />

12) Jacques Necker (*1732 - †1804). Foi<br />

em três ocasiões encarregado pelo rei<br />

Luís XVI da economia da monarquia<br />

francesa.<br />

13) Ludwig von Pastor (*1854 - †1928).<br />

Historiador alemão e diplomata para<br />

a Áustria.<br />

14) Do latim: eis o homem.<br />

31


Luzes da Civilização Cristã<br />

Galhardia em<br />

tempo de paz<br />

ou de guerra<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

Os uniformes militares de outrora<br />

estimulavam o heroísmo e<br />

proporcionavam ao combatente a<br />

sensação e a vivência da glória que<br />

há em sacrificar a vida pela pátria,<br />

dando-lhe condições de enfrentar<br />

a morte com galhardia. Trajes<br />

de aparência delicada evitavam<br />

a deformação da carreira bélica,<br />

impedindo um caráter carniceiro,<br />

e formavam verdadeiros cavaleiros.<br />

Edouard Dětaille (CC3.0)<br />

Vou comentar dois soldadinhos trazidos pelo<br />

João 1 da Europa. São peças de coleção representando<br />

oficiais de cavalaria do tempo de Luís XV 2 .<br />

Objeções apresentadas pelo espírito moderno<br />

Farei, a propósito desses cavaleiros, alguns comentários<br />

na linha “Ambientes, Costumes e Civilizações”. Que<br />

objeções o espírito moderno teria contra eles?<br />

Vou apresentar as seguintes: Primeiro, eles são muito<br />

orgulhosos, vestidos ricamente como para uma festa. E pelo<br />

modo de se trajar, bater no tambor, tocar a corneta, dão a<br />

impressão de desprezar quem não está vestido assim, com<br />

esses adornos. Portanto, não têm a caridade cristã.<br />

Outra objeção: O homem deve ser mais sério e não<br />

se enfeitar tanto assim. O próprio para o homem varonil<br />

é o macacão. Esses cavaleiros estão adornados como<br />

32


nem sequer as mulheres se enfeitam<br />

hoje.<br />

Terceira objeção: Se não são varonis,<br />

não podem ser bons soldados.<br />

Esses bonecos representam os<br />

homens que eram assim: serviam<br />

para dançar minueto, mas não para<br />

combater; eram pelintras.<br />

Hoje em dia, se um homem colocar<br />

essas botinhas finíssimas, esse<br />

chapeuzinho na cabeça, vestir esse<br />

paletó de grande qualidade, ornar<br />

o seu tambor, tocar a cornetinha<br />

desse jeito, fica um pelintra. Esse<br />

não pode ser um batalhador.<br />

Mais uma objeção: Infeliz povo<br />

que precisava pagar tanto dinheiro<br />

para oficiais inúteis e para um<br />

exército com esses homens ricos<br />

vestidos assim, os quais, na quase<br />

totalidade, eram nobres. Isso se fazia para enfeitar a nobreza,<br />

enquanto ao pobre povo faltava o pão. E nós não<br />

podemos permitir isso.<br />

Respeito pela carreira militar<br />

em tempo de paz<br />

O que a História descreve a respeito deles? Os guerreiros<br />

desse tempo eram de uma coragem prodigiosa.<br />

Soldados franceses, ingleses, alemães, espanhóis<br />

e de outras nações avançavam uns sobre os outros<br />

com uma intrepidez que deixam as pessoas<br />

até hoje assombradas. Batalhavam dispostos a<br />

morrer.<br />

Não se usava trincheira no tempo em que a arma<br />

branca era muito empregada. Ela começou a<br />

ser utilizada com o uso corrente da arma de fogo.<br />

É conhecido o modo de um oficial francês, do<br />

tempo de Luís XV, chamar a atenção dos soldados<br />

que iam combater: “Messieurs 3 – chamar um soldado<br />

de monsieur mostra o abismo de diferença<br />

com o tratamento que hoje se empregaria ‘ó macacada’<br />

– Messieurs, prendam bem o chapéu na cabeça!<br />

Nós vamos ter a honra de dar uma carga de cavalaria!”<br />

E eles, com mosquetão ou espada, se lançavam<br />

contra os inimigos. Havia a carnificina: rolavam<br />

pelo chão, ficavam amputados, cegos, doentes<br />

para a vida inteira, ou morriam.<br />

Eles lutavam assim porque realça a grande<br />

nobreza que há em dar a vida pela pátria. Estimula<br />

o heroísmo proporcionando ao indivíduo<br />

a sensação e a vivência de como é glorioso caminhar<br />

para a morte. Dessa forma ele sente muito mais a<br />

glória da guerra do que um soldado camuflado.<br />

Isso dá ao indivíduo a consciência da importância da<br />

morte e, portanto, faz com que esteja em condições de<br />

enfrentá-la com galhardia.<br />

Mas isso não é só para a hora da batalha. Um dos critérios<br />

– não o único – para medir o valor de um povo é analisar<br />

o respeito que ele tem pela carreira militar quando<br />

está em tempo de paz. As nações que respeitam muito a<br />

Raymond Desvarreux-Larpenteur (CC3.0)<br />

David, Gustave de Noirmont (CC3.0)<br />

33


Luzes da Civilização Cristã<br />

Given by F. R. Bryan (CC3.0)<br />

carreira militar quando não estão em guerra, possuem o<br />

senso do sacrifício, do ideal e vão para a frente.<br />

Quando, pelo contrário, não têm esse respeito, elas<br />

se achincalham e não combatem bem na guerra. E esses<br />

cavaleiros, usando durante o tempo de paz esses trajes,<br />

eram homenageados por toda a nação. Recebiam o respeito<br />

que a carreira merece por estar em ordem ao sacrifício,<br />

não só no tempo de batalha, mas no de paz. Olhando<br />

para um homem desses, um indivíduo do povo diria:<br />

“Que maravilha, ele vai morrer por mim!”<br />

Só os nobres eram obrigados a combater<br />

É preciso notar um lado muito bonito disso. Na época<br />

desses uniformes, não existia a mobilização geral de um<br />

país. Só os nobres eram obrigados a combater. Os plebeus<br />

iam se quisessem, quando lhes conviesse, pelo pagamento.<br />

De maneira que a nobreza era a classe militar<br />

fadada à morte para o bem comum.<br />

E assim como se respeita o padre porque imolou sua<br />

vida para o bem da Igreja, é natural que se respeitasse o<br />

militar que tinha sacrificado sua vida para o bem do Estado.<br />

Por fim, não podemos imaginar esses trajes como sendo<br />

só dos cavaleiros e, em torno deles, todo mundo se<br />

vestindo como nós.<br />

As classes mais letradas e cultas tinham trajes especiais<br />

esplêndidos. Por exemplo, as carreiras de professor<br />

Arquivo <strong>Revista</strong><br />

34


Horace Vernet (CC3.0)<br />

universitário e de juiz davam lugar a vestes<br />

magníficas, de grande solenidade.<br />

Quando um rapaz do interior colava grau,<br />

tinha o direito de percorrer sua cidade com o<br />

traje de doutor, montado num cavalo que um<br />

outro puxava pela rédea, proclamando seu<br />

nome e em que profissão se tornara doutor. E<br />

o pessoal batia palmas. Quer dizer, tratava-<br />

-se de uma época em que tudo era mais solenizado<br />

porque tinha um alto espírito.<br />

Mais ainda: toda carreira é suscetível de<br />

deformações. Por exemplo, o advogado na<br />

sua banca se encontra com certa frequência<br />

diante das situações mais dramáticas.<br />

Se ele permanece muito tempo na carreira,<br />

corre o risco de se endurecer e até embrutecer<br />

face ao sofrimento dos outros. Coisa<br />

análoga pode acontecer com o médico. Assistir<br />

à morte das pessoas com toda a naturalidade,<br />

indiferença, torna-o um indivíduo<br />

duro.<br />

A carreira militar pode fazer com que o<br />

homem fique com um senso de extermínio<br />

baixo e duro. Então, é preciso rodeá-lo de aparências delicadas,<br />

a fim de que não seja um carniceiro pago, mas<br />

um cavaleiro.<br />

Elegância do cavaleiro<br />

Considerem os adornos dessas duas obras-primas.<br />

Um cavaleiro está vestido de vermelho e sentado sobre<br />

uma espécie de selim rubro e dourado, todo bordado<br />

e de qualidade excelente. Observem o seu porte ereto,<br />

a altivez com que segura a corneta também ela adornada<br />

por um lindo pano que tremula ao vento. O chapéu<br />

é preto e bastante sério, como convém ao homem, e compensa<br />

o que a roupa tem de muito leve. Entretanto, o negrume<br />

do chapéu é contrabalançado por uma penugem<br />

branca que esvoaça ao vento. Notem a harmonia entre a<br />

cor do chapéu e a da bota.<br />

Tem-se a impressão de que o cavalo<br />

aprendeu a elegância com o cavaleiro.<br />

O mesmo se poderia dizer do outro<br />

cavaleiro vestido de verde. Apenas<br />

chamo a atenção para o fato de que<br />

o tambor facilmente poderia causar a<br />

impressão de uma coisa maçuda. Revestido<br />

desse tecido fica uma beleza!<br />

Enquanto avança, o cavaleiro repica,<br />

majestoso, o tambor: “bumba, bumba...”<br />

É a alegria de viver. v<br />

(Extraído de conferência de<br />

12/5/1984)<br />

Rama (CC3.0)<br />

1) João Scognamiglio Clá Dias, secretário<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

2) Luís XV (*1710 - †1774), Rei da França.<br />

3) Do francês: senhores.<br />

35


Nossa Senhora do Coro,<br />

Virgem da Mercê - Basílica<br />

da Mercê, Santiago do Chile<br />

João C. V. Villa<br />

Rainha por excelência<br />

O<br />

que vem a ser a invocação “Rainha de todos os corações”? O coração não é principalmente<br />

símbolo da ternura e do afeto. Na linguagem da Escritura, que é o sentido empregado<br />

pela Igreja quando usa essa jaculatória, o coração significa o ânimo, a mentalidade, a<br />

vontade do homem. Ser Rainha dos Corações significa que Maria Santíssima tem poder sobre<br />

a mente e a vontade dos homens. Ela pode desvencilhá-los dos defeitos que eles têm e tornar tão<br />

vivo o atrativo para o bem, que os leve – não por uma imposição tirânica, mas pela ação da<br />

graça – para onde Ela deseje. Então, Nossa Senhora Rainha dos Corações é, por excelência, Nossa<br />

Senhora Rainha.<br />

(Extraído de conferência de 31/5/1972)

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