Rogério Carolino Feitor - Livraria Camões
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A Peregrinação em Português, Françês e Alemão<br />
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netas, levou-o a escrever as suas memórias, conhecidas<br />
por Peregrinação. A arte do magistério, se<br />
teve entre nós algum cultor, passou, sem dúvida,<br />
por homem tido por aventureiro e que talvez<br />
nunca o tenha sido, em pleno. O ensino consignado<br />
está longe de sair de um magister dixit, está<br />
mesmo nos antípodas.<br />
É um pai, preocupado com a educação dos filhos,<br />
que escreve uma mirabolante aventura não individual,<br />
como exultoriamente pretende, mas de<br />
um colectivo de que, de facto, fez parte e aqui,<br />
sim, temos de reconhecer que soube jogar com a<br />
parte em nome do todo, como ninguém antes o<br />
fizera em obra prima da literatura portuguesa.<br />
É um ingénuo, aparentemente despido de maldade,<br />
sempre desconcertante pelas notas de<br />
humildade, enquanto narrador, que seduz o leitor<br />
prevenido. Passa por, ou descreve, o português<br />
viajante de muitos rostos: soldado, mercador,<br />
diplomata, especulador, jogador, aventureiro,<br />
pirata… Os recursos estilísticos, mais em destaque:<br />
imagem, ironia, antítese, sinédoque e a<br />
hipérbole – são jóias de ourives de talento, postas<br />
no papel como cartas de póquer por magnífico<br />
acrobata da pena.<br />
Em Peregrinação há dois mundos distintos: o do<br />
homem e o da mulher aos quais está ligado uma<br />
abóbada celeste com fortes esteios numa arquitectura<br />
numérica. O mundo do homem é do<br />
exterior, é o da depredação, o do rasgão físico ou<br />
moral que deixa o bicho homem quantas vezes<br />
nu e na exaustão. E, oh leitores atentos, que lição<br />
nos dá antes de Darwin sobre a sobrevivência da<br />
espécie, tendo como exemplar o animal humano.<br />
O homem lobo do homem…<br />
Perante o exótico, perante o nu masculino, o<br />
olhar da mulher oriental não é amoroso mas caritativo.<br />
Em ambientes de grande luxo, em cortes<br />
Fernão Mendes Pinto<br />
príncipe da Contra - Reforma<br />
e palácios, sabia dançar, tocar e distrair sem que<br />
fossem alvo de volúpia. A mulher oriental está<br />
eivada de nobreza de alma. Não há direito à vulgaridade<br />
ou à lamúria esteja ela onde estiver.<br />
Representa a Grande Mãe, a regeneradora do<br />
mundo. A devassidão de costumes não existe na<br />
Peregrinação por terras do Oriente. O seu olhar<br />
de velho jesuíta manteve-se indiferente ao corpo.<br />
Não é um feminista no sentido que conferimos<br />
actualmente ao termo, mas é, seguramente, um<br />
dos homens da Contra-Reforma que pugnava por<br />
uma mulher vanguardista despida de pensamentos<br />
inferiores ou indignos e capaz de se dignificar<br />
a si e ao homem caído na lama. A pretexto de<br />
que era a educação dos filhos, a quem a obra,<br />
essencialmente, se destinava, é exemplar a lição<br />
dada, a cada passo, ao homem pela mulher. O<br />
poder paternal impede-o de falar às suas filhas<br />
das aventuras vividas pelo homem. A mulher tem<br />
por missão purificar o mundo subvertido. A casa<br />
é um espaço privado, íntimo, governado pela<br />
mulher. O exterior é quase sempre um local de<br />
folia inspirado pela violência, praticada por<br />
homens de coração mais duro do que o ferro.<br />
Fernão Mendes Pinto é um Príncipe da arte de<br />
contar, genuíno como o homem espalha a morte,<br />
como é capaz de lhe sobreviver e como só a mãe<br />
o pode regenerar. O compatriota, muita vez,<br />
mergulha na maior miséria, perde os trapos mais<br />
rudimentares que lhe cobrem os órgãos genitais,<br />
fica desmascarado, deixa cair as “mostras de fora”.<br />
A Peregrição, monumento posto em planalto,<br />
sobranceiro ao Tejo, face a Lisboa, tem em<br />
Cristo, o Rei de braços abertos em direcção à<br />
humanidade moralmente doente, tresmalhada,<br />
descrente, mas em busca de um farol, que lhe<br />
guie os passos, em dia de cerrada nebelina, em<br />
vale de lágrimas.