Comunidade e Africanidade na Capoeira Angola - Grupo de ...
Comunidade e Africanidade na Capoeira Angola - Grupo de ...
Comunidade e Africanidade na Capoeira Angola - Grupo de ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>Comunida<strong>de</strong></strong> e <strong>Africanida<strong>de</strong></strong> <strong>na</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>:<br />
jogo <strong>de</strong> muleekes i entre a peque<strong>na</strong> e a gran<strong>de</strong> rodas<br />
Eixo temático: (2) Educação, Socieda<strong>de</strong> e Práticas Educativas.<br />
Sara Abreu da Mata Machado 1<br />
Resumo:<br />
Este trabalho relata parte da pesquisa <strong>de</strong> campo que venho realizando com crianças e<br />
adolescentes moradores da comunida<strong>de</strong> Alto da Sereia (Salvador-BA), membros do <strong>Grupo</strong><br />
Nzinga <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. Busco compreen<strong>de</strong>r como acontecem as práticas pedagógicas da<br />
<strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> a partir da experiência <strong>de</strong>sses muleekes i afro-<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong> baixa renda.<br />
A metodologia é <strong>de</strong> cunho etnográfico, partindo do meu envolvimento ativo <strong>na</strong>s diversas<br />
ativida<strong>de</strong>s do grupo, como capoeirista, angoleira. Os referenciais teóricos concentram-se nos<br />
estudos sobre as culturas negro-brasileiras e sobre <strong>Capoeira</strong> e Educação. Este trabalho aponta<br />
caminhos possíveis, <strong>de</strong>safiantes e sinuosos on<strong>de</strong> a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> po<strong>de</strong> ser pensada como<br />
uma práxis educativa fundamentada <strong>na</strong> participação <strong>de</strong> crianças e adolescentes em um<br />
grupo/comunida<strong>de</strong>, assentado em princípios da cosmovisão afro-brasileira.<br />
Palavras-chave: <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, Educação, <strong>Comunida<strong>de</strong></strong>.<br />
Abstract:<br />
This paper reports part of my research that has been conducted with children and adolescents<br />
(called muleekes) living in the community of Alto da Sereia (Salvador-BA), members of<br />
<strong>Grupo</strong> Nzinga <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. The main purpose of this paper is to un<strong>de</strong>rstand how the<br />
pedagogical practices of <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> happen with children and adolescents, african<br />
<strong>de</strong>scents and low-income, from the experience of these muleekes. The methodology is gui<strong>de</strong><br />
by ethnographic referencies and is based on my active involvement in the various capoeira<br />
group activities, facilitated by my previous capoeira experience. The theoretical referencies<br />
are based on studies of black Brazilian cultures and of <strong>Capoeira</strong> and Education. This paper<br />
suggests possible paths, sinuous and challenging, where <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> can be thought as<br />
an educatio<strong>na</strong>l practice based on the participation of children and adolescents in a group /<br />
community, seated on the principles of the african-Brazilian worldview.<br />
Keywords: <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, Education, Community.<br />
1 Mestranda em Educação pelo PPGE da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia (início em 2010/1), parte do <strong>Grupo</strong> <strong>de</strong><br />
Pesquisas “Griô: Culturas Populares, Diáspora Africa<strong>na</strong> e Educação”. E-mail: sara.abreu@gmail.com<br />
1
Jogo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, jogo <strong>de</strong> fora, vamos formar essa roda <strong>de</strong> angola<br />
Antes <strong>de</strong> abrir este trabalho, peço licença (Agô) aos mais velhos e aos nossos<br />
ancestrais. Apresentarei aqui alguns resultados parciais da minha pesquisa <strong>de</strong> mestrado, em<br />
andamento, intitulada “Saberes e Fazeres <strong>na</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>: a Autonomia no jogo <strong>de</strong><br />
Muleekes i ”, <strong>na</strong> qual estudo as práxis educativas do Projeto Ginga Muleeke, realizado pelo<br />
<strong>Grupo</strong> Nzinga <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> com crianças e adolescentes (os muleekes), moradores da<br />
comunida<strong>de</strong> Alto da Sereia (Salvador/BA). Neste artigo, busquei compreen<strong>de</strong>r a <strong>Capoeira</strong><br />
<strong>Angola</strong> como uma cultura fundamentada em princípios da cosmovisão afro-brasileira que é<br />
realizada e constantemente (re)construída <strong>na</strong>s práticas cotidia<strong>na</strong>s <strong>de</strong> grupos que se i<strong>de</strong>ntificam<br />
como her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> uma tradição negra e <strong>de</strong> resistência em nossa socieda<strong>de</strong>. Como os muleekes<br />
se inserem em seu grupo ou comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pertencimento? Como eles dão significado às<br />
suas práticas, realizadas por meio da capoeira? Essas foram algumas questões que orientaram<br />
minha reflexão.<br />
O percurso metodológico parte do meu lugar como pesquisadora, que fala “<strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ntro” (LUZ, 2003). Falo como capoeirista, angoleira, pertencente a um grupo “irmão <strong>de</strong><br />
linhagem” do <strong>Grupo</strong> Nzinga. Foi a partir da “convivência angoleira” com os muleekes do<br />
Nzinga, em aulas, rodas, eventos e ativida<strong>de</strong>s diversas do grupo – buscando não ape<strong>na</strong>s<br />
compreen<strong>de</strong>r, racio<strong>na</strong>lmente, mas perceber, sentir, intuir, criar laços, afastar, olhar, escutar,<br />
enfim, jogar nessa roda <strong>de</strong> angola – que trago aqui algumas palavras, <strong>na</strong> tentativa <strong>de</strong> contar<br />
como esse “jogo” vem acontecendo, ressaltando alguns <strong>de</strong> seus momentos mais<br />
emocio<strong>na</strong>ntes, intrigantes, <strong>de</strong>sconcertantes, <strong>de</strong>safiadores. Lembrando que essas poucas<br />
palavras não são capazes – nem têm a intenção – <strong>de</strong> expressar toda a complexa trama do<br />
vivenciado.<br />
A escolha por falar sobre esse jogo <strong>de</strong> angola e, o mais importante e <strong>de</strong>safiador, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, tem o intuito <strong>de</strong> proporcio<strong>na</strong>r um diálogo entre dois campos do saber: o da<br />
aca<strong>de</strong>mia e o da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>. Partimos da posição <strong>de</strong> que o campo da Educação precisa<br />
estar mais sensível a uma prática educativa que consi<strong>de</strong>re o ser humano <strong>de</strong> forma integral e<br />
integrada, diante <strong>de</strong> visões “científicas” que costumam fragmentar e hierarquizar as<br />
dimensões materiais e espirituais, <strong>de</strong> mente e corpo, razão e emoção, teoria e prática.<br />
O <strong>Grupo</strong> Nzinga <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> formou-se em São Paulo-SP, em 1995, li<strong>de</strong>rado<br />
pelas Mestras Janja (Rosângela Araújo), Paulinha (Paula Barreto) e por Mestre Poloca (Paulo<br />
Barreto), discípulos dos Mestres João Gran<strong>de</strong>, Moraes e Cobra Mansa no <strong>Grupo</strong> <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong><br />
2
<strong>Angola</strong> Pelourinho (GCAP). O Instituto Nzinga <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> (INCAB) foi fundado<br />
em 2003 tendo atualmente se<strong>de</strong> em São Paulo, Salvador, Brasília, Alemanha e Moçambique.<br />
O grupo investe no trabalho educativo continuado com meni<strong>na</strong>s e meninos <strong>de</strong> baixa renda e<br />
majoritariamente afro-<strong>de</strong>scentes, a partir da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, mais especificamente da<br />
linhagem pastinia<strong>na</strong> ii .<br />
Uma peculiarida<strong>de</strong> do <strong>Grupo</strong> Nzinga é a presença consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> crianças e<br />
adolescentes, em praticamente todas as suas ativida<strong>de</strong>s. O espaço <strong>de</strong> sua se<strong>de</strong> em Salvador –<br />
pintado <strong>de</strong> laranja iii , localizado no “pé” do morro, em um terraço <strong>de</strong> um pequeno prédio – está<br />
sempre ocupado pelos muleekes “sereienses” (nome usado no <strong>Grupo</strong> para se referir aos<br />
moradores do Alto da Sereia iv ). Eles trazem uma energia <strong>de</strong> alegria <strong>de</strong>ntro do seu caos, que<br />
ora ultrapassa os limites e “tira os mestres do sério”, ou melhor, os <strong>de</strong>ixa muito sérios; ora os<br />
leva a brinca<strong>de</strong>iras, gargalhadas, afeto e <strong>de</strong>sperta sorrisos nos presentes.<br />
Algumas características me chamaram a atenção no trabalho <strong>de</strong>ste grupo (além da<br />
forte presença dos muleekes) e me instigaram a buscar compreen<strong>de</strong>r melhor sobre diversas<br />
questões sociais, políticas e culturais que vêm contribuindo para minha própria transformação<br />
e <strong>de</strong>senvolvimento pessoal. Dentre elas, está a presença <strong>de</strong> duas mestras mulheres e um<br />
homem (coisa rara <strong>na</strong> capoeira), atuantes <strong>na</strong>s causas do anti-racismo e anti-sexismo; o<br />
investimento <strong>na</strong> parte musical da capoeira, incluindo a formação <strong>de</strong> orquestras <strong>de</strong> berimbaus,<br />
com a presença protagonista dos muleekes; e, com <strong>de</strong>staque maior neste artigo, estão o<br />
convívio diário entre adultos e muleekes no grupo e a proximida<strong>de</strong> com elementos da<br />
chamada ancestralida<strong>de</strong> e cosmovisão afro-brasileira e com o candomblé. Um dos objetivos<br />
do grupo é buscar uma prática educativa voltada para a autonomia dos sujeitos, a partir <strong>de</strong>sses<br />
mesmos fundamentos (que inclui o respeito à hierarquia e às ditas “regras da tradição”).<br />
Buscar enten<strong>de</strong>r se isso é possível e como é uma das questões que vêm me acompanhando<br />
nesse percurso.<br />
Ritual: jogo <strong>de</strong> resistência entre a peque<strong>na</strong> e a gran<strong>de</strong> rodas<br />
Na primeira vez em que fui a uma roda <strong>de</strong> capoeira do <strong>Grupo</strong> Nzinga, fiquei encantada<br />
com aqueles muleekes e muleekas, com a forma como eles e elas tocavam, cantavam e<br />
jogavam <strong>na</strong> roda, com a força <strong>de</strong> sua presença ali. A ponto <strong>de</strong> aquele grupo ficar conhecido<br />
pelas “suas crianças” (e adolescentes) e elas representarem parte fundamental para manter o<br />
3
grupo e para a qualida<strong>de</strong> da música e da energia que envolve os que ali se encontram<br />
presentes. Os elementos que constituem o ritual das rodas <strong>de</strong> capoeira fundamentam as aulas<br />
do grupo e a participação dos muleekes. No início das aulas, os alunos já começam a<br />
esquentar o corpo jogando capoeira, geralmente são trabalhados tanto os movimentos da<br />
capoeira como os instrumentos e cantos e, muitas vezes, são feitas rodas “informais” no fi<strong>na</strong>l<br />
ou durante as aulas. As rodas “oficiais” do grupo, abertas ao público, são também momentos<br />
<strong>de</strong> rico aprendizado para os alunos.<br />
A compreensão do ritual a partir da cosmovisão africa<strong>na</strong> nos ajuda a refletir sobre os<br />
sentidos mais amplos <strong>de</strong> resistência que ele po<strong>de</strong> representar para a cultura negra – sem,<br />
entretanto, restringir-se aos negros, mas sendo constantemente (re)criado por aqueles que<br />
participam das comunida<strong>de</strong>s que mantém a realização <strong>de</strong>sses rituais. Chamamos para esta<br />
roda Muniz Sodré, que vê o ritual como “um espaço-tempo fundador (porque veicula uma<br />
força irredutível à i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> histórica domi<strong>na</strong>nte), aberto ao jogo <strong>de</strong> uma comunicação<br />
pluralista, voltada para as relações huma<strong>na</strong>s no presente”. Concordamos com o autor ao<br />
<strong>de</strong>stacar a importância da “trama do quotidiano vivido no aqui e agora do grupo que interessa<br />
à cosmovisão negra” (SODRÉ, 1988a, p.102), mostrando o posicio<strong>na</strong>mento e a luta política<br />
<strong>de</strong>ssas comunida<strong>de</strong>s, em <strong>de</strong>fesa e valorização do legado <strong>de</strong>ixado pelas culturas negras,<br />
historicamente excluídas em nossa socieda<strong>de</strong> (luta que atualmente é também pela pluralida<strong>de</strong>,<br />
em respeito às diferenças, abarcando, portanto, pessoas das diversas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s étnico-<br />
raciais, <strong>de</strong> gênero ou ida<strong>de</strong>).<br />
Muniz Sodré realiza um amplo estudo com referência, principalmente, <strong>na</strong>s<br />
comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> terreiro <strong>de</strong> candomblé, on<strong>de</strong> ele nos mostra alguns princípios da visão <strong>de</strong><br />
mundo daquelas que ele i<strong>de</strong>ntifica como “culturas <strong>de</strong> Arkhé”. De forma filosófica, política e<br />
do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>ssas comunida<strong>de</strong>s, Sodré (1988a, p.101) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a idéia <strong>de</strong> Arkhé “como<br />
tudo que se subtrai às tentativas racio<strong>na</strong>listas <strong>de</strong> apreensão absoluta do mundo, <strong>de</strong> positivação<br />
infinita das coisas”. Ele utiliza o termo grego para se referir à idéia <strong>de</strong> origem ou princípio,<br />
mas vai além, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo que essa Arkhé não implica a revelação <strong>de</strong> uma “verda<strong>de</strong> eter<strong>na</strong>”<br />
ou <strong>de</strong> “relações matematizáveis”, mas a “possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se contarem outras histórias sobre a<br />
essência do mundo, sobre a gênese e o <strong>de</strong>stino dos homens e das coisas, logo, sobre novas<br />
possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> transação com a História”. (p.102). (SODRÉ, 1988a, p.103)<br />
Ou seja, trata-se <strong>de</strong> elementos <strong>de</strong> continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma cultura que apresentava, em<br />
suas origens, outra visão <strong>de</strong> mundo, diferente da Oci<strong>de</strong>ntal, mas que vem sendo<br />
constantemente recriada, no cotidiano <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s que se i<strong>de</strong>ntificam e buscam dar<br />
continuida<strong>de</strong> a esses princípios, jogando no contexto da nossa socieda<strong>de</strong> atual. “A arkhé que o<br />
4
terreiro negro ‘solicita’ é a <strong>de</strong> uma origem e um <strong>de</strong>stino guiados pelo axé, pela força <strong>de</strong> vida e<br />
<strong>de</strong> realização” (SODRÉ, 1988a, p.102). O axé é um dos elementos fundamentais para os<br />
rituais negros: “Axé é força vital, sem a qual, segundo a cosmovisão <strong>na</strong>gô, os seres não<br />
po<strong>de</strong>riam ter existência nem transformação”. (I<strong>de</strong>m, Ib, p.129). O autor continua dizendo que<br />
essa noção <strong>de</strong> axé não se limita à cosmovisão <strong>na</strong>gô, mas também é referência ao povo Bantu<br />
(on<strong>de</strong> o <strong>Grupo</strong> Nzinga localiza sua referência).<br />
Percebo que esse continuum da cosmovisão i<strong>de</strong>ntificada como “afro-brasileira”<br />
encontra-se presente também nos saberes e nos fazeres da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, on<strong>de</strong> o ritual da<br />
roda <strong>de</strong> capoeira tem papel central. É nele on<strong>de</strong> se transmite o axé, algo que só po<strong>de</strong> ser<br />
percebido e sentido estando presente e envolvido no momento em que acontece. Seria<br />
impossível <strong>de</strong>screver, com palavras, a emoção que é estar ao lado <strong>de</strong> um muleeke tocando o<br />
berimbau e fazendo o corpo arrepiar, <strong>de</strong> outro cantando e fazendo a energia vibrar, outro<br />
jogando, mandingando e enga<strong>na</strong>ndo seu camarada, seja um adulto, outro muleeke ou mesmo<br />
seu mestre ou sua mestra. Muleekes, esses, com ida<strong>de</strong> variando entre cinco e <strong>de</strong>zoito anos.<br />
O axé vai sendo, assim, transmitido durante a realização <strong>de</strong> cada roda do <strong>Grupo</strong><br />
Nzinga, entre adultos, crianças maiores e menores, adolescentes, pessoas mais antigas e mais<br />
novas. Os mestres e alunos mais antigos v vão mostrando aos outros como atuar. Seja pelos<br />
“toques”, falados, durante um jogo, dando pistas sobre como eles po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>senvolver os<br />
movimentos (“relaxa o corpo, mandinga, dança”), cobrando o respeito junto à “atitu<strong>de</strong><br />
guerreira” (“<strong>de</strong>vagar, muleeke!” / “vai pra cima <strong>de</strong>le, muleeke!”). Seja no próprio diálogo dos<br />
corpos, no observar, no gesto <strong>de</strong> um mais antigo (ainda que novo <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>) com o mais novo,<br />
pacientemente mostrando, com cuidado, a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “vadiar” e brincar<br />
com o corpo.<br />
Ética e estética da não-violência<br />
As “regras” do ritual <strong>de</strong> uma roda <strong>de</strong> capoeira, por um lado, são relativamente muito<br />
recentes em nossa História, datados <strong>de</strong> meados do século XIX. Mas, po<strong>de</strong>mos compreendê-las<br />
como parte das formas simbólicas utilizadas por esses grupos para se posicio<strong>na</strong>rem em seu<br />
“contra-lugar” e re-criarem, permanentemente, seus sentidos <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural afro-<br />
brasileira. Apren<strong>de</strong>r os fundamentos do ritual <strong>na</strong>s rodas remete, também, ao aprendizado<br />
sobre o posicio<strong>na</strong>mento que seus participantes <strong>de</strong>vem assumir <strong>na</strong> “gran<strong>de</strong> roda”, da vida.<br />
Assim, os muleekes vão, aos poucos, e cada um a seu tempo, apren<strong>de</strong>ndo as “regras do jogo”,<br />
não ape<strong>na</strong>s durante sua participação <strong>na</strong>s rodas, mas também <strong>na</strong>s aulas, nos eventos e <strong>na</strong><br />
convivência com os mestres e os outros membros do grupo e da comunida<strong>de</strong> da capoeira.<br />
5
A capoeira não escaparia da diversida<strong>de</strong> contraditória que nos faz humanos. As<br />
atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “valentia” e agressão sempre fizeram e ainda fazem parte do mundo da capoeira.<br />
Uma das ban<strong>de</strong>iras <strong>de</strong>fendidas pelo Nzinga – em referência aos ensi<strong>na</strong>mentos <strong>de</strong> Mestre<br />
Pastinha – é a não-violência e ela reflete <strong>na</strong> própria estética do ritual das rodas do grupo, <strong>na</strong>s<br />
atitu<strong>de</strong>s e forma <strong>de</strong> jogar dos seus membros, incluindo os muleekes. Não que a capoeira ali<br />
seja ape<strong>na</strong>s uma brinca<strong>de</strong>ira! Ela é também brinca<strong>de</strong>ira, mas é muito séria! Serieda<strong>de</strong> esta que<br />
po<strong>de</strong> ser notada <strong>na</strong> forma como as mestras e o mestre falam e olham para os muleekes, quando<br />
precisam chamar a atenção pelo <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> uma “regra ética”, ou no próprio jogo <strong>de</strong><br />
capoeira, quando Mestre Poloca brinca, faz teatro, dança, ginga, pula, roda, mas também dá<br />
rasteiras, cabeçadas, joga os muleekes pra fora da roda, mostra que o jogo é “à vera”, sem, no<br />
entanto, machucar ou <strong>de</strong>srespeitar ninguém.<br />
Afi<strong>na</strong>l <strong>de</strong> contas, o sentido maior da luta, <strong>na</strong> capoeira, nunca se restringiu ao combate<br />
físico. Trata-se <strong>de</strong> uma luta muito mais abrangente, em seu sentido social, <strong>de</strong> resistência ao<br />
sistema vigente, <strong>de</strong> afirmação i<strong>de</strong>ntitária, <strong>de</strong>ntre outras coisas. Aliás, a agressão e a violência<br />
foram elementos fortemente combatidos por Mestre Pastinha, em seus manuscritos, como<br />
parte da ética que ele <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> para a capoeira angola:<br />
... todos aqueles que queira se <strong>de</strong>dicar a esse esporte, (...) <strong>de</strong>ve procurar<br />
municiosamente ás regras da capoeira <strong>de</strong> angola”; para que possa falar ou<br />
dicidir com autorida<strong>de</strong>. Infelizmente gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> nossos capoeiristas tem<br />
conhecimento muito incompleto das regras da capoeira, pois é o controle do<br />
jogo que protege aqueles que o praticam para que não discambe exesso do<br />
vale tudo (FILHO, 1997, p.28).<br />
Essas regras, segundo ele, remetem, <strong>de</strong>ntre outras coisas, ao controle para que o jogo<br />
“não discambe exesso do vale tudo”, ou seja, não se ba<strong>na</strong>lize, não se volte à agressão física e<br />
perca as suas características “tradicio<strong>na</strong>is”, ou fundamentais. Por isso a importância <strong>de</strong> buscar<br />
compreen<strong>de</strong>r seus fundamentos. Dentre as ditas “regras” da capoeira, Pastinha enfatiza, em<br />
vários momentos, a não-violência, o respeito ao outro, a solidarieda<strong>de</strong> grupal, a moral:<br />
é <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> dos construir para os infantius uma perso<strong>na</strong>lida<strong>de</strong> – dig<strong>na</strong> <strong>de</strong><br />
admiração, não <strong>de</strong>vem faltar as regras da discipli<strong>na</strong>, civilida<strong>de</strong>, do respeito às<br />
atenções, a boa disposição, o bôm humor, a solidarieda<strong>de</strong>, a lealda<strong>de</strong>, e o amor<br />
a verda<strong>de</strong>; estes são os alicerces que darão estabilida<strong>de</strong> à estrutura moral do<br />
ser (FILHO, 1997, p.71).<br />
Apren<strong>de</strong>r capoeira é, portanto, algo que vai muito além dos momentos <strong>de</strong> rodas ou<br />
aulas <strong>de</strong> capoeira, em si. As aulas e rodas são sim momentos <strong>de</strong>sti<strong>na</strong>dos à prática da capoeira,<br />
mas ao apren<strong>de</strong>r a jogar capoeira ou a participar da roda <strong>de</strong> capoeira, apren<strong>de</strong>mos sobre o jogo<br />
da vida, sobre conhecer a si próprio, sobre ter manhas, mandingas e malícias, ter ginga para<br />
6
lidar com as diversas situações e pessoas. Chamamos Sodré <strong>de</strong> volta à roda, para nos mostrar<br />
a relação entre o ritual e as práticas comunitárias, entre o axé e a realida<strong>de</strong> vivida:<br />
A força <strong>de</strong> vida dos negros, o axé, não tem <strong>na</strong>da <strong>de</strong> “impossibilida<strong>de</strong>”,<br />
nenhuma separação com a realida<strong>de</strong> vivida. É antes algo que se dá num espaço<br />
<strong>de</strong> práticas comunitárias e numa temporalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Arkhé, próxima daquela<br />
on<strong>de</strong> o mundo se or<strong>de</strong><strong>na</strong> pelo advento do que ‘talvez nunca existiu’<br />
exatamente assim, mas que só acontecerá <strong>de</strong>ssa forma e nessa distribuição<br />
simbólica prescritas pelo ritual (SODRÉ, 1988a, p.102).<br />
Esse sentido <strong>de</strong> ritual nos ajuda a compreen<strong>de</strong>r o sentido maior da “luta social” que a<br />
capoeira po<strong>de</strong> travar. Vejo essa luta refletida em uma “estética” <strong>de</strong> jogo ensi<strong>na</strong>da para os<br />
muleekes do Nzinga, pautada em valores como o respeito ao outro, a expressão e criativida<strong>de</strong><br />
corporal, o auto-conhecimento, a solidarieda<strong>de</strong> grupal.<br />
Feito o “arranjo <strong>de</strong>sse ritual” <strong>de</strong> cosmovisão africa<strong>na</strong>, buscarei aprofundar <strong>na</strong> trama <strong>de</strong><br />
significados <strong>de</strong> sua prática comunitária, refletindo sobre algumas questões que mais vêm me<br />
tocando <strong>na</strong> experiência com os muleekes do <strong>Grupo</strong> Nzinga, <strong>de</strong>ntre as quais: Como os<br />
muleekes se inserem no grupo? Como se dão as relações entre eles e os outros membros<br />
(adultos, vindos <strong>de</strong> diversas classes sociais e etnias, em sua maioria brancos e <strong>de</strong> classe<br />
média)? Como o grupo lida com os conflitos e afastamentos <strong>de</strong> alguns membros? Buscarei<br />
“<strong>de</strong>screver-refletindo” <strong>de</strong>s<strong>de</strong> essa experiência, usando como “óculos” para filtrar o olhar,<br />
neste momento, as idéias <strong>de</strong>senvolvidas até aqui. Será que esse grupo po<strong>de</strong> ser pensado como<br />
uma comunida<strong>de</strong>? Que tipo <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> seria esta? Que o gunga vi vá para as mãos dos<br />
muleekes – como eles bem sabem fazer – para dar início a mais um “jogo”.<br />
<strong>Comunida<strong>de</strong></strong> e níveis <strong>de</strong> pertencimento<br />
Os muleekes do “núcleo duro”<br />
Quando comecei a freqüentar as ativida<strong>de</strong>s realizadas no grupo Nzinga, havia um<br />
grupo <strong>de</strong> basicamente nove muleekes que estavam sempre – ou quase sempre – por lá, sendo 6<br />
meninos e duas meni<strong>na</strong>s. Nas rodas do grupo, em geral, a presença – encantadora – <strong>de</strong>les é<br />
fundamental para “segurar o ritmo”, tocando os instrumentos da bateria, e assim manter a<br />
energia vibrante que conecta os presentes e os ausentes, o axé, como nos explicou Muniz<br />
Sodré (1988a, 1988b). Eles chegam a assumir a posição <strong>de</strong> quem “comanda o ritual”, tocando<br />
o berimbau gunga e fazem a diferença <strong>na</strong> firmeza do toque do atabaque. Essa energia também<br />
tem seus altos e baixos. Em certos momentos da roda, parece que uma onda <strong>de</strong> preguiça paira<br />
7
no ar: olho para os muleekes e não vejo ninguém cantar <strong>na</strong> roda. Os mestres sempre pedindo<br />
para cantar. Até mesmo chegando a convidar os mais velhos para se retirarem da roda, como<br />
presenciei uma vez (e soube que não era a primeira), por não estarem contribuindo com o<br />
coro. Interessante que, nessa ocasião, Mestre Poloca, ao fi<strong>na</strong>l da roda, leu o seguinte trecho<br />
dos manuscritos <strong>de</strong> Mestre Pastinha: "É <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> todos capoeiristas, não é <strong>de</strong>feito não saber<br />
cantar; mais é <strong>de</strong>feito não saber respon<strong>de</strong>r, pelo meno o côro” (Filho, 1997, p.35). Assim, ele<br />
mostrou como eles buscam dar continuida<strong>de</strong> aos ensi<strong>na</strong>mentos <strong>de</strong> Mestre Pastinha – quando<br />
eles po<strong>de</strong>m ser contextualizados.<br />
Muito me admirei quando comecei a freqüentar o grupo e ver, a iniciativa daqueles<br />
muleekes, assumindo funções que são geralmente realizadas pelos alunos mais antigos nos<br />
grupos <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> (<strong>de</strong>pois fui perceber que eles estão entre os mais antigos ali). Um<br />
exemplo simbólico, a meu ver, está <strong>na</strong> posse das chaves do espaço da capoeira assumida por<br />
alguns <strong>de</strong>les. Simbólico, pois a posse das chaves é como ter a “posse” do espaço, ou pelo<br />
menos, o direito <strong>de</strong> “ir e vir” neste lugar que é on<strong>de</strong> se reúne a comunida<strong>de</strong>/grupo Nzinga.<br />
Assim, eles exercitam cotidia<strong>na</strong>mente sua autonomia ao cumprirem obrigações com o<br />
cuidado com o espaço, (como a responsabilida<strong>de</strong> por abrir, limpar e organizá-lo no horário) e<br />
o cuidado com os instrumentos (para que estejam prontos para as aulas e rodas). Esse grupo<br />
<strong>de</strong> muleekes, junto a alguns adultos, formam o chamado “núcleo duro” do Nzinga, <strong>na</strong>s<br />
palavras <strong>de</strong> Mestre Poloca. São aquelas pessoas que assumem um maior grau <strong>de</strong><br />
responsabilida<strong>de</strong> para que as ativida<strong>de</strong>s aconteçam. Uma das características dos grupos que<br />
seguem a “linhagem pastinia<strong>na</strong>” <strong>na</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> é que as tarefas necessárias para a<br />
realização do trabalho do grupo são geralmente <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> coletiva.<br />
A concepção <strong>de</strong> autonomia, para Paulo Freire, compreendida como um constante<br />
<strong>de</strong>vir, po<strong>de</strong> nos ajudar a refletir sobre essa experiência. Ele ressalta, como uma das<br />
características da autonomia, a assunção dos educandos como sujeitos sociais e<br />
transformadores. Segundo ele, uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é<br />
propiciar as condições em que os educandos, em suas relações uns com os outros e todos com<br />
o(a) educador(a) “ensaiam a experiência profunda <strong>de</strong> assumir-se. Assumir-se como ser social<br />
e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador...” (FREIRE, 1996, p.41).<br />
Fui percebendo, tanto no <strong>Grupo</strong> Nzinga quanto em minha experiência pessoal <strong>na</strong><br />
capoeira, como esse compromisso refere-se aos fundamentos do ritual, <strong>na</strong> cosmovisão<br />
africa<strong>na</strong>, como discutidos anteriormente. Ele é sempre cobrado e reforçado pelos mestres,<br />
oralmente, como parte das regras do “jogo” necessárias para guardar o sentido dos princípios<br />
comunitário e coletivo. “Atrasado!!! Muleeke, você está a-tra-as-do!”, é uma frase recorrente<br />
8
<strong>de</strong> Mestre Poloca nos inícios <strong>de</strong> aulas e rodas para aqueles que chegam <strong>de</strong>pois do horários. A<br />
frase, já esperada pelos alunos, seja adulto ou criança, chega a ser motivo <strong>de</strong> piadas entre eles.<br />
E mostra que esse compromisso não é algo dado. Ao contrário, ele vai sendo incorporado,<br />
mas também po<strong>de</strong> diminuir, para cada um a seu tempo e <strong>de</strong> acordo com sua iniciativa própria.<br />
É um constante jogo <strong>de</strong> trocas e retribuições, entre mestres e alunos – como o próprio jogo <strong>de</strong><br />
capoeira bem ensi<strong>na</strong> – que po<strong>de</strong>m ser agradáveis ou não, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do comportamento e da<br />
situação.<br />
A responsabilida<strong>de</strong> pelas chaves do espaço do Nzinga, assumidas por alguns muleekes,<br />
mostrou, por exemplo, que eles precisaram conquistar o merecimento necessário para guardá-<br />
las. Ao mesmo tempo, precisaram assumir um mais alto nível <strong>de</strong> compromisso e autonomia.<br />
Uma vez fiquei sabendo que um dos muleekes per<strong>de</strong>u as chaves e, com isso, per<strong>de</strong>u o direito<br />
<strong>de</strong> ficar com elas. Assim o jogo <strong>de</strong> merecimentos vai acontecendo: os muleekes, ao guardarem<br />
as chaves, ganham o direito <strong>de</strong> usar o espaço em horários diferentes dos reservados às<br />
ativida<strong>de</strong>s da capoeira, para, por exemplo, fazerem seus ensaios <strong>de</strong> dança. Por outro lado, eles<br />
po<strong>de</strong>m ser questio<strong>na</strong>dos pelos mestres quando algo <strong>de</strong> errado acontece no espaço, como sumir<br />
ou quebrar alguma coisa, ou quando não cumprem os horários. Vão, assim, apren<strong>de</strong>ndo a<br />
administrar os conflitos e a realizar acordos para <strong>de</strong>finir, a cada sema<strong>na</strong>, quem ficará<br />
responsável por abrir e limpar o espaço, entre outras coisas. Esse exemplo nos ajuda a<br />
enten<strong>de</strong>r o que Mestra Janja nos diz, com a seguinte passagem:<br />
Entre os angoleiros todas as etapas do aprendizado (e suas promoções) são<br />
exercícios <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças que se iniciam no princípio do comprometimento,<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da obtenção <strong>de</strong> uma “autorização” para fazê-lo. Ao<br />
contrário, esta <strong>de</strong>dicação é compreendida como resultante do envolvimento e<br />
compromisso, e é tida como um fundamento <strong>de</strong> avaliação permanente sobre o<br />
próprio pertencimento <strong>de</strong> cada um à comunida<strong>de</strong>. (ARAÚJO, 2004, p.133).<br />
É justamente esse tipo <strong>de</strong> envolvimento e compromisso com as tarefas coletivas, que<br />
permite a avaliação e auto-avaliação cotidia<strong>na</strong>mente sobre o pertencimento <strong>de</strong> cada um ao<br />
grupo, compreendido nesse sentido como comunida<strong>de</strong>. Além do chamado “núcleo duro”, há<br />
outros muleekes que freqüentam as ativida<strong>de</strong>s do Nzinga com menor nível <strong>de</strong> envolvimento.<br />
Alguns, <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> entre quatro e sete anos, aproximadamente, começaram aparecendo<br />
esporadicamente e atualmente já participam das aulas e rodas com mais freqüência, passando<br />
a usar o uniforme do grupo. Outros, aparecem esporadicamente ou em outras ativida<strong>de</strong>s<br />
realizadas pelo Nzinga, como o Cine Sereia (projeto <strong>de</strong> cineclube que exibe filmes para a<br />
comunida<strong>de</strong> todas as quintas-feiras). Daremos maior atenção aos muleekes do “núcleo duro”<br />
9
neste trabalho, para aprofundar nos movimentos e tensões que os aproximam e afastam do<br />
grupo, mostrando que a “dureza” <strong>de</strong>sse “núcleo” traz também di<strong>na</strong>micida<strong>de</strong> e complexida<strong>de</strong>.<br />
Relações e <strong>de</strong>safios no jogo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro<br />
A relação entre adultos e muleekes no <strong>Grupo</strong> Nzinga revelam algumas situações que<br />
ajudam a compreen<strong>de</strong>r a dinâmica do grupo/comunida<strong>de</strong>. À primeira vista, salta aos olhos a<br />
forma afetuosa e integrada com que eles se relacio<strong>na</strong>m. Mas como em qualquer grupo<br />
formado por seres humanos, os conflitos também existem. A responsabilida<strong>de</strong> pela limpeza<br />
do espaço nos revela alguns exemplos.<br />
Alguns muleekes queixavam-se dos adultos, dizendo que eles não ajudavam <strong>na</strong><br />
limpeza e cobravam que as crianças é que <strong>de</strong>veriam fazer o trabalho. Eles disseram que,<br />
atualmente, não se empenham mais como anteriormente, por se sentirem “injustiçados” –<br />
apesar <strong>de</strong>, em minhas observações, ver a continuida<strong>de</strong> e constância da presença <strong>de</strong> certos<br />
muleekes, como também <strong>de</strong> adultos. As queixas voltavam-se tanto para a questão da<br />
realização das tarefas coletivas, como ao espaço <strong>de</strong> escuta reivindicado pelos muleekes, como<br />
expresso <strong>na</strong> seguinte fala:<br />
Muleeke: ... não é só porque é criança que tem que ficar calado escutando o<br />
adulto não. Porque se uma criança, um adolescente, está certo, o adulto vem<br />
lá e sempre quer questio<strong>na</strong>r. A criança quer falar, já diz logo: “tá<br />
<strong>de</strong>srespeitando o mais velho”. E o seguinte é: os adultos só querem falar e<br />
não <strong>de</strong>ixam as crianças falar também, não escutam. E eu acho isso um<br />
absurdo. Por isso que eu bato o queixão mesmo, e discuto.<br />
Nessa fala, percebemos como os próprios conflitos po<strong>de</strong>m ser vistos como parte da<br />
aprendizagem “para a autonomia”, <strong>na</strong> forma como os muleekes reivindicam espaço para se<br />
posicio<strong>na</strong>rem – ainda que essa fala não tenha sido diretamente ou abertamente colocada para<br />
o grupo. Eles <strong>de</strong>monstram uma insatisfação que os estimula para a reivindicação. Além <strong>de</strong><br />
mostrarem sua consciência para reivindicar, <strong>de</strong> alguma maneira visualizaram que podiam<br />
aproveitar o espaço aberto com a pesquisa para se manifestar. Importante ressaltar que não<br />
preten<strong>de</strong>mos fazer juízo <strong>de</strong> valor; não nos cabe julgar quem estaria certo ou errado <strong>na</strong><br />
situação. Os adultos vii certamente mostrariam outros pontos <strong>de</strong> vista, como minha própria<br />
vivência mostrou. Devemos pon<strong>de</strong>rar que, no momento <strong>de</strong> expor suas emoções, os muleekes<br />
não consi<strong>de</strong>raram a participação dos adultos que geralmente cumprem as obrigações e<br />
inclusive ajudam a orientá-los. Mas o que buscamos compreen<strong>de</strong>r aqui é o processo<br />
pedagógico que acontece no relacio<strong>na</strong>mento com o outro – diferente, principalmente pela<br />
ida<strong>de</strong>, nesse caso.<br />
10
Neste aprendizado para a autonomia encontra-se, como fundamental, o sentido <strong>de</strong><br />
ética <strong>na</strong> tradição negro-africa<strong>na</strong>, como bem nos esclarece Muniz Sodré, mostrando a<br />
importância do cumprimento das obrigações coletivas, por cada pessoa, e como a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
um afeta o grupo como um todo – tudo está conectado, <strong>de</strong> alguma forma. Ele propõe o<br />
conceito <strong>de</strong> ética como “lugar do homem” (éthos) ou “estruturação das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
convivência no interior <strong>de</strong> um território <strong>de</strong>termi<strong>na</strong>do” e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que<br />
É a ética que faz com que os direitos e as obrigações vinculados ao estatuto do<br />
indivíduo e da comunida<strong>de</strong> sejam rigorosamente observados. Isto é muito evi<strong>de</strong>nte<br />
<strong>na</strong> tradição negro-africa<strong>na</strong>. O homem do axé, o muntu e congêneres têm <strong>de</strong> se<br />
manter nos limites <strong>de</strong> seus direitos e <strong>de</strong>veres. O <strong>de</strong>scumprimento das obrigações<br />
afeta ao mesmo tempo o indivíduo e o grupo (SODRÉ, 1988b, p.88).<br />
As falas dos muleekes mostram que eles procuravam justificar sua escolha em não<br />
seguir cumprindo as obrigações que chegaram a assumir anteriormente <strong>de</strong>vido ao seu não<br />
cumprimento por parte dos adultos, o que também não contribui para a comunida<strong>de</strong>. Mas<br />
também mostram que <strong>de</strong> certa forma eles percebem a importância <strong>de</strong>ssa ética, ao<br />
reivindicarem que ela seja seguida por todos e ao continuarem presentes e atuantes no grupo,<br />
apesar das queixas. Quando perguntei a eles o que ainda os mantinha no grupo, um <strong>de</strong>les<br />
respon<strong>de</strong>u: “O que me mantinha <strong>na</strong> capoeira era a união, né. Pra mim união significa o quê:<br />
grupo, família” (grifos nossos). Ele expressa, aqui, a importância do vínculo com as pessoas<br />
do grupo, construída <strong>na</strong> convivência diária, nos próprios conflitos e negociações, no trabalho<br />
coletivo, que traz o sentimento <strong>de</strong> pertencer, ser parte, <strong>de</strong> um grupo/família/comunida<strong>de</strong> –<br />
com todas as contradições que ela possa carregar. Abib (2005, p.151) complementa essa idéia,<br />
quando diz que a comunida<strong>de</strong> trata-se <strong>de</strong> “uma reconstrução criativa das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> se<br />
viver e se relacio<strong>na</strong>r com o mundo, com base em outros princípios e valores, pautados por<br />
uma dimensão mais solidária e humanizante”.<br />
Durante a realização do trabalho <strong>de</strong> campo, aconteceu o que mestre Poloca chamou <strong>de</strong><br />
“refluxo” no grupo. Alguns dos muleekes mais velhos, <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> entre 15 e 18 anos, haviam<br />
chegado a um nível <strong>de</strong> compromisso mais sério com o grupo <strong>de</strong> capoeira. Mas nesse<br />
momento, eles “recuaram”, fizeram uma “chamada” viii e começaram a se afastar dos treinos e<br />
rodas, gradualmente, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> se comprometer com as funções coletivas, mostrando-se<br />
algumas vezes “apáticos” e <strong>de</strong>sinteressados.<br />
Para compreen<strong>de</strong>r esse afastamento, <strong>na</strong> leitura das(o) mestras(e), faz-se importante<br />
consi<strong>de</strong>rar o momento <strong>de</strong> vida em que se encontram: fase da chamada adolescência, com<br />
muitas <strong>de</strong>scobertas, como a sexualida<strong>de</strong> e o envolvimento com outras ativida<strong>de</strong>s, a busca <strong>de</strong><br />
auto-afirmação i<strong>de</strong>ntitária, além das pressões em torno <strong>de</strong> sua inserção no mundo do trabalho,<br />
11
que recaem sobre eles <strong>de</strong> forma mais cruel, especialmente <strong>de</strong>vido à sua situação <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>svantagem sócio-econômica.<br />
Quando perguntei a um <strong>de</strong>sses muleekes porque ele não estava trei<strong>na</strong>ndo, ele se<br />
justificou pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhar para ajudar a família. Mas, como ele havia se afastado<br />
antes <strong>de</strong> começar a trabalhar, perguntei novamente, buscando enten<strong>de</strong>r melhor suas<br />
motivações pessoais. Ele respon<strong>de</strong>u: “É momento. É fase, fase boa e fase ruim”. Ele não quis<br />
ir mais fundo no assunto. Ape<strong>na</strong>s completou: “Mas nunca não sai <strong>de</strong> mim não! Eu, pra mim,<br />
eu faço o mesmo jogo ainda, ué”. Ou seja, ele mesmo avalia seu afastamento como<br />
temporário e não atribui como um afastamento da capoeira em si, ao contrário, afirma a<br />
permanência da capoeira em seu sentimento: “nunca sai <strong>de</strong> mim”.<br />
Para “comprovar” que continua sendo capoeirista, o muleeke diz que “ainda faz o<br />
mesmo jogo”. Procuramos enten<strong>de</strong>r o jogo aqui <strong>de</strong> forma mais ampla, como movimento da<br />
cultura, que no nosso caso se materializa tanto no diálogo <strong>de</strong> corpos, durante a roda <strong>de</strong><br />
capoeira, como também no relacio<strong>na</strong>r-se com o outro e com a própria atitu<strong>de</strong> no grupo – e <strong>na</strong><br />
vida. É também Muniz Sodré que nos ilumi<strong>na</strong> aqui, quando diz que “A força <strong>de</strong> conviver com<br />
a diversida<strong>de</strong> e integrar as diferenças sem per<strong>de</strong>r o horizonte da matriz simbólica originária é<br />
a principal característica do jogo negro” (Sodré, 1988, p.130). A i<strong>de</strong>ia do jogo nos ajuda a<br />
olhar para os movimentos <strong>de</strong> negociações no grupo, da aproximação e do afastamento, como<br />
o “jogo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e o jogo <strong>de</strong> fora”. Sodré continua:<br />
Há também algo que po<strong>de</strong> ser compreendido como a vigência <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m<br />
simbólica, on<strong>de</strong> as relações huma<strong>na</strong>s passam pelas regras da iniciação e do segredo<br />
e, em vez <strong>de</strong> signos linguísticos claros, regem-se pela pluralida<strong>de</strong> polimorfa dos<br />
lugares – uma or<strong>de</strong>m que acolhe a in<strong>de</strong>termi<strong>na</strong>ção. (SODRÉ, 1988b, p.130).<br />
Os muleekes que se afastaram continuam pertencendo à comunida<strong>de</strong> do Nzinga, pois<br />
<strong>de</strong> alguma forma permanecem vinculados ao grupo e à capoeira, à sua maneira. Eles<br />
aparecem <strong>na</strong> porta do espaço em horários <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> aula ou rodas, entram durante algumas<br />
ativida<strong>de</strong>s e recentemente um <strong>de</strong>les veio para participar da roda do grupo. Uma das formas<br />
mais expressivas que esse vínculo se mantém está no envolvimento com o candomblé.<br />
<strong>Capoeira</strong> e candomblé: fortalecimento dos laços ancestrais<br />
Nas ocasiões das festas no terreiro <strong>de</strong> Mutá Lambô ye Kaiongo, da Nação Angolão<br />
Paquetan, localizado no bairro Cajazeiras 11, em Salvador são momentos em que aqueles<br />
muleekes que se afastaram recentemente das ativida<strong>de</strong>s da capoeira se encontram com seus<br />
mestres. Interessante notar como os papéis po<strong>de</strong>m mudar, nessas situações: lá, os muleekes<br />
ocupam um nível hierárquico mais alto que os seus mestres <strong>de</strong> capoeira, assumindo a função<br />
12
<strong>de</strong> “Tatas Xicarangoma ix ”. O que po<strong>de</strong> proporcio<strong>na</strong>r outras experiências <strong>de</strong> aprendizagem,<br />
fundamentadas em princípios semelhantes.<br />
A situação, diria que ironicamente, inverte-se: esses muleekes chegaram ao terreiro <strong>de</strong><br />
candomblé por meio da capoeira e, atualmente, continuam envolvidos com o candomblé,<br />
apesar <strong>de</strong> estarem mais afastados da capoeira. Porém, o próprio vínculo com o candomblé<br />
contribui para alimentar, <strong>de</strong> alguma maneira, seu vínculo com a capoeira. Existe um incentivo<br />
mútuo, construído a partir da ligação entre os mestres do Nzinga e o Pai <strong>de</strong> Santo do terreiro<br />
<strong>de</strong> Mutá Lambô ye Kaiongo, o Tata Muté Imê: os mestres <strong>de</strong> capoeira “criam a ponte” para<br />
quem quiser passar e se aproximar do candomblé e o Pai <strong>de</strong> Santo orienta esses muleekes para<br />
“não largarem a capoeira” (conforme relatado por Mestre Poloca aos alunos no momento fi<strong>na</strong>l<br />
<strong>de</strong> uma aula). Incentivo esse que mantém o respeito à autonomia <strong>de</strong> cada um para participar<br />
ou não <strong>de</strong> um ou <strong>de</strong> outro e conserva a <strong>de</strong>vida in<strong>de</strong>pendência entre as duas manifestações.<br />
Essa proximida<strong>de</strong> dos mestres do <strong>Grupo</strong> Nzinga com o Candomblé, para além da<br />
própria fé e obrigações religiosas, <strong>de</strong>monstra também uma busca <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação e apoio<br />
mútuo <strong>na</strong> luta política contra diversas formas <strong>de</strong> hegemonia cultural oci<strong>de</strong>ntal que<br />
<strong>de</strong>squalificam ou <strong>de</strong>sconhecem o saber pautado <strong>na</strong> concepção <strong>de</strong> mundo dos africanos. Muniz<br />
Sodré, ao explicar sobre a Arkhé negra, nos ajuda a enten<strong>de</strong>r essa questão:<br />
A Arkhé negra (...) se insere <strong>na</strong> História da cotidianida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
escravo <strong>na</strong>s Américas como um “contralugar” (em face daqueles produzidos<br />
pela or<strong>de</strong>m hegemônica) concreto <strong>de</strong> elaboração <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> grupal e <strong>de</strong><br />
penetração em espaços intersticiais do bloco dirigente. Não se trata <strong>de</strong> uma<br />
“religião” que exiba uma gran<strong>de</strong> “verda<strong>de</strong> <strong>na</strong>tural”, mas da dimensão sagrada<br />
que permeia a História, em nome das classes subalter<strong>na</strong>s, para afirmar o<br />
presente, estabelecendo outras re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> social. (SODRÉ,<br />
1988a, p.103. Grifos nossos).<br />
A aproximação com o candomblé, no caso do <strong>Grupo</strong> Nzinga, vai <strong>de</strong> encontro com o<br />
processo <strong>de</strong> construção i<strong>de</strong>ntitária do grupo e a sua própria práxis educativa, calcada nos<br />
mesmos princípios que po<strong>de</strong>mos encontrar <strong>na</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>: a oralida<strong>de</strong>, a ritualida<strong>de</strong>, a<br />
comunida<strong>de</strong> e a ancestralida<strong>de</strong>.<br />
Berimbau está chamando, o jogo já vai “termi<strong>na</strong>r”<br />
Esse trabalho me possibilitou realizar o seguinte percurso: partindo da experiência<br />
com os muleekes <strong>na</strong>s práticas do <strong>Grupo</strong> Nzinga <strong>de</strong> <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, refletimos sobre as<br />
idéias <strong>de</strong> Arkhé e Axé, para as culturas negras, especialmente por meio dos rituais,<br />
13
materializados, fortalecidos e mantidos <strong>na</strong> realização das rodas <strong>de</strong> capoeira. Os rituais, por sua<br />
vez, só acontecem com a presença <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> pessoas reunidas em sentido <strong>de</strong><br />
comunida<strong>de</strong>, em sua dinâmica incessante, tensa e complexa. As “regras éticas” dos rituais<br />
revelam o posicio<strong>na</strong>mento ético e político da comunida<strong>de</strong>, como a questão do combate à<br />
violência e da inclusão protagonista <strong>de</strong> crianças – e mulheres –, tanto <strong>na</strong> peque<strong>na</strong> como <strong>na</strong><br />
gran<strong>de</strong> roda. A <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> po<strong>de</strong> ser aqui compreendida como um espaço <strong>de</strong> mediação<br />
que leva meninos e meni<strong>na</strong>s <strong>de</strong>ssa comunida<strong>de</strong> a estabelecerem vínculos com outros<br />
universos, como o do candomblé. E o candomblé, no caso <strong>de</strong>ste grupo, contribui para o<br />
fortalecimento e a manutenção <strong>de</strong> vínculos dos muleekes com a capoeira, ao reforçar<br />
princípios que fundamentam as práticas tanto do candomblé como da capoeira, relacio<strong>na</strong>dos à<br />
“cosmovisão afro-brasileira”.<br />
Percebi que há vários níveis <strong>de</strong> pertencimento em uma comunida<strong>de</strong> e voltamos nosso<br />
olhar, neste trabalho, aos muleekes que formam o chamado “núcleo duro”. Esse “núcleo duro”<br />
não se trata <strong>de</strong> algo estático. Ele é dinâmico, pois é formado por pessoas e suas relações, num<br />
processo constante <strong>de</strong> transformações e conflitos. Ele po<strong>de</strong> ora estar mais forte e coeso, ora<br />
mais fraco. No <strong>de</strong>correr da pesquisa, algumas pessoas saíram e outras entraram nesse<br />
“núcleo”. Mas é a presença atuante dos que permanecem, <strong>de</strong> corpo presente, que serve <strong>de</strong><br />
parâmetro e avaliação para o nível <strong>de</strong> pertencimento e merecimento no grupo e ainda para a<br />
conquista da autonomia, <strong>de</strong>ntro da organização hieráquica da comunida<strong>de</strong>. No caso do <strong>Grupo</strong><br />
Nzinga, o pertencimento ao grupo po<strong>de</strong> persistir mesmo <strong>na</strong> ausência <strong>na</strong>s ativida<strong>de</strong>s cotidia<strong>na</strong>s<br />
da capoeira, como o caso <strong>de</strong> alguns muleekes que estão afastados, mas continuam envolvidos<br />
<strong>de</strong> outras formas e próximos aos mestres e aos <strong>de</strong>mais membros. E os valores aprendidos por<br />
meio da capoeira são visíveis <strong>na</strong>s atitu<strong>de</strong>s, gestos, olhares e palavras dos mulekees que foram<br />
tocados pelo sentimento angoleiro – e assim talvez sempre se sentirão.<br />
Creio que mais importante que quem fica ou sai neste “jogo” são as transformações<br />
que as práxis educativas da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> po<strong>de</strong>m proporcio<strong>na</strong>r <strong>na</strong>s pessoas, por meio do<br />
envolvimento em um grupo/comunida<strong>de</strong>, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte se elas escolherem seguir outros<br />
caminhos <strong>na</strong> vida. Permanecer ou não no grupo é, no fi<strong>na</strong>l das contas, uma questão <strong>de</strong> escolha<br />
<strong>de</strong> cada um. Escolha que também faz parte do exercício ou processo <strong>de</strong> autonomia. Acredito<br />
que elementos como esses, presentes <strong>na</strong>s práticas pedagógicas <strong>de</strong> grupos ou comunida<strong>de</strong>s<br />
fundamentadas em princípios da dita “cosmovisão afro-brasileira”, possam trazer<br />
contribuições para pensarmos em práticas educativas mais inclusivas e que valorizem as<br />
práticas e os saberes advindos das raízes africa<strong>na</strong>s e populares <strong>de</strong> nossa cultura,<br />
historicamente renegadas e reprimidas em nossa socieda<strong>de</strong>.<br />
14
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />
ABIB, Pedro R J. <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>: Cultura Popular e o jogo dos saberes <strong>na</strong> roda.<br />
Campi<strong>na</strong>s: CMU/Unicamp / EDUFBA, 2005.<br />
ARAÚJO, R. C. Iê, Viva me Mestre: a <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong> da ´escola pastinia<strong>na</strong>´ como práxis<br />
educativa. São Paulo, USP, 2004.<br />
ALVES, Aristi<strong>de</strong>s (Org). Casa dos Olhos do Tempo que fala da Nação Angolão Paquetan<br />
Kunzo Kia Mezu Kwa Tembu Kisuelu Kwa Muije Angolão Paquetan. Salvador: Asa Foto,<br />
2010.<br />
FILHO, Ângelo Decânio. A herança <strong>de</strong> Pastinha. Salvador, Coleção São Salomão 3. 2a<br />
Edição: com dicionário dialetal, 1997.<br />
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes Necessários à Prática Educativa. Editora<br />
Paz e Terra. Coleção Saberes. 1996.<br />
LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Pallas, 2003. P.153<br />
LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador: Centro<br />
Editorial e Didatico da UFBA, Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Estudos da Cultura Negra no Brasil, 1995.<br />
SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cida<strong>de</strong>: a forma social negro-brasileira. Rio <strong>de</strong> Janeiro, RJ:<br />
Vozes, 1988a<br />
............................ A verda<strong>de</strong> seduzida: por um conceito <strong>de</strong> cultura no Brasil. 2. ed. Rio <strong>de</strong><br />
Janeiro, RJ: Francisco Alves, 1988b<br />
i Utilizaremos o termo muleeke para nos referir ao grupo <strong>de</strong> crianças e adolescentes do grupo Nzinga, pois, além<br />
<strong>de</strong> ser o termo que nomeia o trabalho realizado com eles, “Projeto Ginga Muleeke”, é um termo usualmente<br />
utilizado no dia-a-dia entre os integrantes e mestres do grupo. Um dos significados <strong>de</strong>sse termo é, “do quibundo<br />
muleke, garoto, filho, correspon<strong>de</strong>nte ao quicongo mu-léeke, criança e da mesma raiz <strong>de</strong> nléeke (pl.mileke),<br />
jovem, irmão mais novo. O termo será utilizado neste trabalho para se referir tanto aos meninos quanto às<br />
meni<strong>na</strong>s, crianças e adolescentes do <strong>Grupo</strong> Nzinga.<br />
ii Refere-se aos grupos que se i<strong>de</strong>ntificam como her<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> Mestre Pastinha <strong>na</strong> genealogia da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>,<br />
ou seja, seguem um “mo<strong>de</strong>lo educacio<strong>na</strong>l” que tem esse mestre como referência ancestral.<br />
iii A <strong>de</strong>coração do espaço do Nzinga é renovada geralmente <strong>na</strong>s viradas do ano, com a realização <strong>de</strong> mutirões<br />
envolvendo os membros do grupo e as famílias dos muleekes, moradores do Alto da Sereia.<br />
iv O Alto da Sereia localiza-se entre os bairros <strong>de</strong> Ondi<strong>na</strong> e Rio Vermelho (bairros <strong>de</strong> classe média), em<br />
Salvador, tendo o privilégio <strong>de</strong> uma belíssima vista para o mar.<br />
v Inclui-se, entre os “antigos”, os muleekes <strong>de</strong> mais tempo no grupo, ainda que sejam mais novos em ida<strong>de</strong>, pois<br />
aqui o “antigo” se refere ao tempo <strong>de</strong> experiência e ao nível <strong>de</strong> pertencimento no grupo.<br />
vi O berimbau gunga (aquele que tem a maior cabaça, portanto o som mais grave), é o instrumento que<br />
“comanda” o ritual da roda <strong>de</strong> capoeira, geralmente tocado pelo mestre ou os alunos mais antigos. Geralmente,<br />
<strong>na</strong>s rodas <strong>de</strong> capoeira angola em Salvador, o gunga é consi<strong>de</strong>ravelmente mais tocado por homens que por<br />
mulheres (pois há maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mestres, contra-mestres e treineis homens) e raramente por crianças. No<br />
<strong>Grupo</strong> Nzinga há uma proporção mais “equilibrada” e o espaço para as crianças e adolescentes são estimuladas a<br />
tocar os instrumentos que já apresentam capacida<strong>de</strong> para tocar.<br />
vii Ainda serão realizadas entrevistas com alunos adultos do grupo para escutá-los sobre essa questão.<br />
15
viii A chamada é um dos complexos movimentos da <strong>Capoeira</strong> <strong>Angola</strong>, em que um jogador chama o outro em um<br />
gesto, havendo um “corte” no jogo. Po<strong>de</strong> ser usado com estratégias diversas – seja para mudar o curso do jogo,<br />
para “pegar” o outro em um ataque surpresa, havendo diversas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ser realizado, o que <strong>de</strong>manda<br />
gran<strong>de</strong> cuidado ao respondê-la. No caso dos muleekes.<br />
ix “Título do sacerdote músico <strong>na</strong> <strong>na</strong>ção angola” (ALVES, 2010, 79).<br />
16