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Shame European Stories Book_Portugal

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SHAME<br />

EUROPEAN STORIES


Assine a nossa petição pedindo aos nossos líderes que<br />

tornem a Europa #safeforkids<br />

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em<br />

dignidade e em direitos.<br />

Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos


GUIDO FLURI<br />

«<strong>Shame</strong> - <strong>European</strong> <strong>Stories</strong>» – a Europa pode e deve fazer justiça<br />

As pessoas que foram fotografadas para a exposição «SHAME – <strong>European</strong> stories»<br />

são testemunhas. Contam as suas vivências, os abusos que sofreram, que tiveram de<br />

suportar. As suas histórias de vida são diferentes.<br />

As pessoas afetadas provêm dos mais diversos países da Europa. As suas histórias<br />

de vida são diferentes, mas nelas encontramos pontos semelhantes. Não se<br />

trata apenas de abusos no passado, mas também da vida após os abusos. Ainda<br />

hoje, muitas das pessoas afetadas sofrem de injustiça e vergonha. Muitos estão<br />

psicologicamente afetados e vivem na pobreza, devido à violência de que foram<br />

vítimas. Acima de tudo, sofrem com o silêncio profundo da sociedade e do<br />

poder político. Foram abandonadas em crianças e são agora deixadas a cuidar<br />

de si próprias na velhice.<br />

Olhando a História<br />

Na Suíça, os casos de abuso também foram tabu durante décadas. Em instituições<br />

estatais, eclesiásticas e em casas particulares, milhares de crianças eram<br />

sistematicamente humilhadas, castigadas e, por vezes, abusadas sexualmente.<br />

Nas quintas, dezenas de milhares de crianças eram exploradas como mão-de-obra<br />

barata. Houve esterilizações, castrações, e abortos forçados. Medicamentos foram<br />

testados em centenas de pacientes em clínicas psiquiátricas suíças. Este capítulo<br />

negro da história social suíça foi silenciado ao longo de décadas. As vítimas não<br />

foram ouvidas nem se atreveram a contar as suas experiências. Tinham vergonha dos<br />

abusos sofridos. Ficaram sem direitos.<br />

Neste contexto, a minha Fundação lançou, na Suíça, uma iniciativa popular que teve<br />

êxito graças à grande solidariedade da população e de figuras da política. Mais de<br />

10.000 vítimas receberam indemnizações – trata-se de uma contribuição solidária<br />

para, de certa forma, reparar a injustiça sofrida. Hoje, a história dos abusos está a<br />

ser revista de forma exaustiva em todo o país. Há memoriais por todo o país. Estes<br />

assuntos são abordados nas escolas; são temas de livros e de filmes. Este capítulo<br />

negro da história social suíça faz agora parte da história da Suíça. Hoje, ninguém que<br />

foi vítima tem de se esconder. Pode dizer: «Eu sou vítima, fui injustiçado».<br />

A reconciliação com o passado na Europa<br />

Os valores em que a Europa se baseia incluem o respeito pela dignidade humana,<br />

liberdade e igualdade; o Estado de direito; e o respeito pelos direitos humanos.<br />

Em alguns países da Europa, têm sido desenvolvidos esforços para aliviar o<br />

sofrimento. Na maioria deles, ainda não se verificou um confronto sério com os<br />

abusos.<br />

Quando grupos de vítimas de toda a Europa abordaram a nossa Fundação<br />

com o objectivo de criar redes e iniciar uma iniciativa europeia, como a que<br />

desenvolvemos na Suíça, percebemos que tínhamos de apoiar este projeto.<br />

A exposição «<strong>Shame</strong> – <strong>European</strong> stories» pretende alertar consciências e preparar o<br />

caminho para uma solução justa na Europa. O apoio do Conselho da Europa a esta<br />

exposição não é apenas honroso, é, acima de tudo, relevante. Mostra que a Europa,<br />

como comunidade de Valores, quer mudanças. As vítimas, as pessoas afetadas, os<br />

sobreviventes – todos eles merecem obter justiça durante a sua vida.<br />

Guido Fluri<br />

Promotor da «Justice Initiative»


MARIJA PEJČINOVIĆ BURIĆ<br />

Prefácio à Exposição «<strong>Shame</strong> – <strong>European</strong> stories» – Resposta europeia aos casos de<br />

abuso de crianças<br />

A violência sexual contra crianças não é apenas abominável, mas também a fonte<br />

de danos intensos, profundos e duradouros. Acontece em todos os países, a<br />

crianças de todas as origens, e pode ocorrer apenas uma vez, ou repetidamente, em<br />

qualquer lugar, desde a sua própria casa, na escola ou até no clube desportivo local.<br />

Muitas destas crianças sofrem em silêncio, com medo das consequências de dizer a<br />

verdade sobre o que lhes está a acontecer ou de não se acreditar nelas.<br />

Em 2007, foi aprovada a Convenção do Conselho da Europa para a proteção<br />

das crianças contra a exploração e abuso sexual (também conhecida como «a<br />

Convenção de Lanzarote»). Um total de 48 países são seus signatários, incluindo<br />

todos os Estados membros do Conselho da Europa. A Convenção de Lanzarote é o<br />

instrumento jurídico internacional mais ambicioso e abrangente no seu domínio,<br />

com uma abordagem estratégica em quatro vertentes que dá prioridade à<br />

prevenção, proteção, ação penal e incentivo à cooperação nacional e internacional.<br />

rosto aos sobreviventes de abuso sexual infantil. Este projeto, com origem na<br />

Suíça, visa mostrar a realidade do abuso sexual de crianças, com um ênfase muito<br />

importante nas experiências de primeiro contacto.<br />

Estou satisfeita por o Conselho da Europa ter sido capaz de acolher a exposição<br />

<strong>Shame</strong> – <strong>European</strong> <strong>Stories</strong> na nossa sede em Estrasburgo e espero que funcione<br />

como um estímulo para novas ações.<br />

Marija PEJČINOVIĆ BURIĆ<br />

Secretária-Geral do Conselho da Europa<br />

Mais de 10 anos após a entrada em vigor da Convenção de Lanzarote, muito foi<br />

alcançado, incluindo uma maior sensibilização, a promoção de iniciativas eficazes,<br />

tais como as Casas da Criança ou Barnahus e a adoção, em muitos países, de nova<br />

legislação. Ao longo dos anos, o trabalho do Comité dos Signatários da Convenção<br />

permitiu também a identificação de boas práticas, lacunas e tendências, incluindo as<br />

novas ameaças colocadas pelas Tecnologias Informáticas e de Comunicação.<br />

É de vital importância que as organizações em toda a Europa ajudem a prosseguir<br />

com este tipo de avanços.<br />

Assim, elogio a Fundação Guido Fluri, através da sua Justice Initiative, por dar voz e


MANUELA RAMALHO EANES<br />

Há quarenta anos, um grupo de pessoas de diferentes áreas profissionais – médicos,<br />

magistrados, professores, psicólogos, técnicos de serviço social, educadores – deram<br />

vida e juraram amor e fidelidade a um Projeto novo de esperança de um mundo<br />

melhor, para as nossas crianças, onde a paz, a dignidade, a tolerância, a igualdade e a<br />

solidariedade fossem uma realidade mais sentida e realizada no dia-a-dia por todos.<br />

Assim nasceu o Instituto de Apoio à Criança.<br />

Tendo como missão a promoção e defesa dos Direitos da Criança, a sua grande<br />

prioridade foi desde logo a Criança Maltratada e Abusada Sexualmente de que<br />

ninguém falava, nem a própria comunicação social.<br />

Quarenta anos de reflexão, de ajuste a novas realidades sociais, de aglutinação de<br />

experiências, de preocupação em identificar, refletir, prevenir e atuar sobre os fatores<br />

que geram os problemas da inquietante realidade em que vivem as nossas crianças e<br />

jovens, e que desencadeiam comportamentos de risco, cada vez mais imprevisíveis e<br />

que, consequentemente, exigem respostas prontas, adequadas, criativas e inovadoras.<br />

Quarenta anos de atenção ao pulsar da sociedade, analisando e discutindo com<br />

parceiros e outros intervenientes, as questões que podem e devem favorecer a<br />

mudança de atitudes e de comportamentos, não só do público-alvo – as crianças, mas<br />

também das instituições, dos profissionais e do público em geral.<br />

Com o rosto visível desta iniciativa, a exposição fotográfica itinerante, «SHAME»,<br />

reforçam-se os valores fundadores do Conselho da Europa que se centram no respeito<br />

pelo valor da dignidade de toda e qualquer pessoa humana, pela sua liberdade nas<br />

suas várias dimensões, pela igualdade perante a Lei e o acesso à justiça.<br />

Esta Exposição é mais uma forma de estarmos presentes e apoiarmos a restauração da<br />

justiça para as vítimas de abuso na Europa.<br />

Manuela Ramalho Eanes<br />

Presidente Honorária do Instituto de Apoio à Criança<br />

Neste caminho, o IAC foi membro fundador da «Fundação Europeia contra os Abusos e<br />

Exploração Sexual de Crianças», e foi um dos primeiros países a ter uma linha telefónica<br />

específica para a denúncia e apoio às vítimas de abusos e exploração sexual.<br />

É na continuidade desta filosofia de intervenção, e sempre em parceria, que o IAC, em<br />

setembro de 2021, aderiu ao desafio da Fundação Suíça «Guido Fluri», juntando-se ao<br />

Projeto «Justice Initiative» cuja missão é «restaurar a justiça» em relação às Crianças<br />

Vítimas (ainda que já em idade adulta) de qualquer tipo de abusos/violência na Europa.


DULCE ROCHA<br />

Quando o Instituto de Apoio à Criança se associou a este Projecto da Fundação Guido<br />

Fluri, ainda não nos tínhamos apercebido bem da sua importância para a causa da<br />

criança vítima de crime.<br />

Compreendemos logo que era um Projecto ambicioso, pela sua dimensão europeia, e<br />

que a causa era justa, pois pretendia não apenas sensibilizar a comunidade para serem<br />

apoiadas as vítimas de abusos na infância, como solicitar aos líderes europeus que ao<br />

reconhecerem o sofrimento prolongado destas vítimas, promovessem medidas no<br />

sentido da reparação dos danos físicos e psíquicos sofridos.<br />

Faltava pouco mais de um ano para comemorarmos o nosso 40º aniversário e tínhamos<br />

de aceitar este honroso convite. Por um lado, desde a sua fundação, que o Instituto<br />

de Criança tem estado ao lado das vítimas de todas as formas de violência, tendo<br />

criado, um ano antes da aprovação da Convenção sobre os Direitos da Criança,<br />

uma linha telefónica de apoio, inovadora a nível europeu para atendimento e<br />

encaminhamento de casos de maus tratos e abusos, que já recebeu mais de 100 mil<br />

apelos. Este Serviço, o SOS Criança, evoluiu e dispõe agora também de apoio<br />

psicológico, que tem ajudado muitas crianças e tem sido solicitado em múltiplas<br />

situações de crise, designadamente em casos de abusos sexuais, quando os serviços<br />

oficiais não conseguem dar resposta adequada.<br />

Por outro lado, sempre considerámos que os abusos físicos, psicológicos e sexuais são<br />

deploráveis e não devem ser tolerados. A fragilidade própria das crianças conduz<br />

sempre a uma maior dificuldade na detecção dos crimes e o encobrimento aqui tem<br />

um maior impacto, dada a histórica discriminação deste grupo etário.<br />

Daí que tenhamos preconizado medidas de combate a estes crimes, de natureza<br />

diversa, desde campanhas que visam a prevenção, a pedidos de alterações legislativas<br />

para uma maior eficácia na punição com vista à efectiva erradicação destas infracções<br />

com consequências tão traumáticas e dolorosas para as vítimas.<br />

Temos consciência de que foi recente a descoberta da enorme extensão deste<br />

fenómeno, pois a ocultação que lhe está associada inviabiliza muitas vezes o seu<br />

conhecimento. Acresce que a desvalorização dos seus efeitos e o terror que impõe o<br />

silêncio às vítimas são devastadores e impede-as de agir durante muito tempo. Por<br />

isso, nos pareceu logo que os objectivos eram justos e a metodologia proposta era<br />

ajustada.<br />

Já depois de a ele termos aderido, em <strong>Portugal</strong> foi criada uma Comissão Independente<br />

para o estudo dos abusos sexuais na Igreja Católica Portuguesa, que entretanto<br />

apresentou os seus resultados. Chocantes os testemunhos, tal como chocantes foram<br />

os que são agora publicados neste livro. São depoimentos vivos do sofrimento, mas<br />

quase todos contêm também conclusões de esperança.<br />

Lloyd De Mause disse um dia que «a história da Infância era um pesadelo do qual<br />

só agora começámos a despertar». Está na hora de transformar o desespero em<br />

confiança.<br />

Assim, sem esquecermos os crimes, o trauma, a inquietude, a devastação, importa<br />

agora olhar em frente. Continua a ser necessário reconhecer, reparar, compensar. Mas<br />

depois, centremo-nos no futuro, na recuperação psicológica, seguida de um grande<br />

movimento no sentido da uniformização de previsões legais e procedimentais, por<br />

forma a que nesta matéria se construa uma Europa mais unida em torno dos cidadãos<br />

mais vulneráveis, as crianças, mas que queremos sejam os seres humanos mais<br />

promissores do nosso mundo, com mais Justiça, mas sobretudo com mais Dignidade.<br />

Dulce Rocha<br />

Presidente do Instituto de Apoio à Criança


SIMONE PADOVANI<br />

De Janeiro a Maio de 2022, viajei por toda a Europa – de <strong>Portugal</strong> à Roménia, da<br />

Grécia à Noruega, totalizando cerca de 25.000 km – para me encontrar com as<br />

vítimas de abuso e maus tratos e para as retratar e entrevistar em vídeo.<br />

As histórias que ouvi não me passaram ao lado sem deixar rasto. Elas mudaram<br />

a minha perceção da Europa. No meio de nós vivem pessoas que viveram um<br />

sofrimento sem fim, mas nunca receberam justiça.<br />

O que tentei contar e transmitir àqueles que vão ver este projeto é como as vidas<br />

das pessoas que conheci, infelizmente, tinham uma linha evolutiva paralela à<br />

normal. Isto acontece com os abusos. Quando isso acontece, a pessoa é forçada a<br />

confrontar-se com uma nova linha de vida. E encontrei muitas, demasiadas linhas<br />

de vida paralelas.<br />

É daqui que vem o título: SHAME – <strong>European</strong> <strong>Stories</strong>. É uma provocação e, ao mesmo<br />

tempo, uma palavra recorrente nas experiências das vítimas. Muitas vezes, as vítimas<br />

sentem vergonha. Não contam, e têm vergonha do que experienciaram. No entanto,<br />

elas são as vítimas. E é lamentável que não tenhamos visto o sofrimento nem ouvido<br />

os gritos silenciosos.<br />

E, felizmente, existem pessoas assim, como Guido Fluri, o fundador da Justice<br />

Initiative; como Pascal e Vera, com quem me foi permitido realizar este projeto<br />

fotográfico, e todas as associações europeias que deram vida a este projeto com<br />

coração e alma. Nunca poderei agradecer-lhes o suficiente por me mostrarem<br />

toda a sua infinita humanidade.<br />

Este trabalho é dedicado a todas elas, a todas estas pessoas que mudam o mundo<br />

com pequenos milagres.<br />

Simone Padovani<br />

Fotojornalista internacional<br />

As histórias de abuso são histórias de sobrevivência e histórias de vida: além de<br />

terem sofrido crueldades desumanas e de viverem com as consequências todos os<br />

dias para a vida, as pessoas afetadas ainda conseguem ter pequenos e incríveis<br />

gestos para com a humanidade todos os dias, devolvendo-lhes a sua humanidade.<br />

Eles não pedem nada em troca; fazem-no porque continuam a ser humanos.<br />

Precisamos de mudar as coisas agora e agir, com pequenos gestos, ouvindo<br />

realmente aqueles que nos rodeiam e atravessam as nossas vidas, assumindo uma<br />

posição e pedindo soluções aos stakeholders, aos governos, e à Comunidade<br />

Europeia.


ITÁLIA


Eu tinha 13 anos de idade. A minha mãe era muito<br />

religiosa. Ela mandou-me para a igreja. E um dia, em 1981,<br />

o padre violou-me. O que se repetiu durante anos.<br />

Quando eu tinha 15 anos, fiquei devastado. Comecei a<br />

consumir drogas. Fiquei doente. Demorei quase 40 anos<br />

a compreender porque é que a minha vida tinha tomado<br />

este caminho. Um dia, porém, virei as costas à morte<br />

para sempre, ao desejo de me matar, que carreguei<br />

dentro de mim durante anos. Tornei-me um sobrevivente<br />

e comecei a erguer-me novamente.<br />

Os culpados são pessoas: os padres que abusaram de<br />

nós e aqueles que os encobriram. Eu sofri, mas agora<br />

tenho uma missão na vida: oferecer aos outros o meu<br />

testemunho com vista à prevenção. Será que chegámos<br />

a este ponto? Pedir às vítimas para assumir este papel!<br />

Têm consciência de como é desolador? Esta é uma das<br />

razões pelas quais eu vivo. Mas nós, como comunidade,<br />

e especialmente no Vaticano, não haverá ao menos um<br />

sentimento de vergonha?<br />

Francesco 51<br />

Abuso sexual pelo clero


Quando ouvi pela primeira vez a palavra<br />

«sobreviventes», não compreendi o seu significado e<br />

perguntei: «os rapazes que cometeram suicídio por<br />

causa do padre eram sobreviventes?» Então percebi<br />

que já não era uma vítima, mas um sobrevivente.<br />

Sinto a necessidade de dizer a todos a mesma coisa:<br />

perante a violência, é preciso denunciá-la, e é preciso<br />

fazê-lo imediatamente. E não quero saber dos meus<br />

antigos amigos, aqueles rapazes da sacristia/os<br />

acólitos que, hoje, quando se encontram comigo na<br />

rua, atravessam e vão para o passeio do outro lado. Se<br />

eu não tivesse feito o que fiz, outras crianças teriam<br />

estado em perigo como eu. Todos temos de assumir a<br />

responsabilidade.<br />

Alessandro 24<br />

Abuso sexual pelo clero


Ele não me largou. Senti-me como se estivesse<br />

paralisada. Quando ele me largou, eu fugi, e<br />

lembro-me que a parte de trás do meu vestido estava<br />

molhada. Ainda me lembro: era um pequeno vestido<br />

que a minha mãe tinha feito. Ela era a minha costureira.<br />

Um vestido de xadrez branco e verde com gola<br />

redonda.<br />

Gostaria que o mundo tivesse mais cuidado na<br />

defesa de pessoas frágeis, especialmente as crianças<br />

e adolescentes. Muitas vezes, eles não sabem como<br />

se defender. Gostaria que aqueles que cometem estes<br />

actos nunca fossem perdoados, que não houvesse<br />

um estatuto de prescrição para estes crimes, e que<br />

houvesse um ponto de convergência geral cultural e<br />

civilizacional, que difunda e enraíze a mensagem de<br />

que a violência, especialmente contra crianças, nunca<br />

é permitida ou tolerada.<br />

Giuliana 79<br />

Abuso na família e outros abusos


As histórias normalmente começam pelo princípio. Eu<br />

começaria esta pelo fim, no dia 4 de fevereiro de 2022,<br />

o dia em que Chiara, minha filha e da Cristina, pôs fim<br />

à sua vida de uma forma trágica e inesperada para<br />

nós. Foi a isso que conduziu o abuso que sofreu do<br />

avô materno. E agora não sabemos o que será de nós,<br />

porque nos deparamos com esta terrível dor todos os<br />

dias. Ao despertar, é como sair de um «Buraco Negro»<br />

que absorve toda a dor, energia e alegria, tornando<br />

difícil a capacidade de fazer e existir.<br />

É importante que a lei seja alterada e que se faça<br />

justiça a toda esta multidão de pessoas que são muito,<br />

muito mais numerosas do que se possa pensar.<br />

Descobrimos isto, infelizmente, depois do nosso<br />

trauma, que abriu em nós uma infinidade de outros<br />

dramas.<br />

Alessandro 62<br />

Pai da vítima de abuso que cometeu suicídio


Naquele momento, apercebi-me de que não iríamos<br />

superar isto. Como é que se sobrevive a tal dor<br />

quando se foi abusado daquela forma? Os meses<br />

seguintes foram de agonia. Questionando-nos,<br />

perguntando-nos repetidas vezes, como foi isto<br />

possível? Depois do suicídio de Chiara, deixei de<br />

trabalhar. A pessoa que está aqui tem uma luz<br />

diferente da pessoa que eu era. Sou uma outra pessoa,<br />

e aquela pessoa, de antes, já não existe. Já não existe…<br />

Existe esta coisa, que sou eu agora.<br />

Os pedófilos são reais, eles existem. Os pedófilos<br />

existem onde há crianças. Em primeiro lugar e acima<br />

de tudo nas famílias. Em oratórios. Nas escolas. Em<br />

clubes desportivos. O mais importante é estar<br />

vigilante, prestar atenção. Se a criança mostrar o<br />

menor sinal, não confie em ninguém, lamento dizê-lo.<br />

Mas é melhor ser mais cauteloso do que chorar depois.<br />

Cristina 58<br />

Mãe da vítima de abuso que cometeu suicídio


Comecei a ser abusada sexualmente por um tio. Houve<br />

uma tentativa inicial de comunicação no seio da família,<br />

mas que não foi levada em consideração, como<br />

acontece frequentemente nas famílias, em parte devido<br />

ao tabu que existe, devido à dificuldade dos membros<br />

da família em, realmente, aceitarem o que aconteceu.<br />

Surgem sintomas dissociativos e, por vezes, pensamos<br />

que somos um fantasma vivendo num corpo. Por isso<br />

pensamos até em suicídio e, infelizmente, muitas vítimas<br />

escolhem esse caminho como um gesto extremo na<br />

esperança de pôr fim a essa sensação de angústia<br />

devastadora. É uma sensação que nos suga totalmente.<br />

Gostaria que todos contribuíssem para mudar esta<br />

sociedade, porque espero que as gerações futuras<br />

possam verdadeiramente viver num mundo melhor.<br />

Casos como este continuam a repetir-se e a permanecer<br />

escondidos. Muitas vezes, os abusadores não são<br />

incriminados, apesar de terem cometido verdadeiros<br />

homicídios psicológicos.<br />

Irene 32<br />

Abuso na família


SUÍÇA


O pai «adoptivo» ( de acolhimento) estava<br />

simplesmente muito frustrado consigo próprio. Ele<br />

veio ter comigo e disse-me: «Dou-te cinco minutos;<br />

sabes para onde deves ir». Depois veio e abusou de<br />

mim; a primeira vez eu tinha sete anos e meio.<br />

Situação que se repetiu ao longo dos anos. Quando fiz<br />

doze anos, reparei que estava grávida. Tive de dar à<br />

luz a criança em casa, e a criança foi-me tirada de<br />

imediato.<br />

Hoje sinto-me libertada. Porque ele (o pai de<br />

acolhimento) morreu, e eu consegui esquecer em<br />

relação à maioria das coisas. Não com tudo, mas com<br />

muita coisa.<br />

Anita 56<br />

Abuso sexual em famílias de acolhimento


Nessa altura, eu tinha dez anos, e o agricultor<br />

tratava-me como um empregado. Ele disse-me que<br />

eu era um empregado e nada mais. Só o suportava<br />

porque havia animais na quinta, e eu gostava de<br />

trabalhar com estes animais.<br />

Hoje sinto-me melhor. Mas ainda tenho a sensação de<br />

que sou alguém sem raízes, ou referências.<br />

Sentimentos de inferioridade também surgem de<br />

vez enquando. Nunca me livrei deles; eles estão<br />

impressos em mim.<br />

Bernhard 72<br />

Trabalho infantil


Todos os dias me foi dito e repetido para que não<br />

tivesse dúvidas que eu não valia nada. Que eu era<br />

apenas um fardo para os outros. E não me era<br />

permitido fazer quaisquer exigências, porque era<br />

apenas lixo. Com base nisso, não havia lugar para a<br />

felicidade.<br />

Quando acordei após a terceira tentativa de suicídio,<br />

disse a Deus: «Ouve, se existes, a responsabilidade<br />

agora é tua. Entra em contacto, mostra-te, mas agora<br />

está nas tuas mãos». De repente, as portas abriam-se<br />

de uma forma que nunca pensei ser possível. Isso<br />

fortaleceu a minha fé. Aprendi que não posso culpar<br />

Deus por algo que as outras pessoas estragaram.<br />

Lydia 72<br />

Trabalho infantil e abuso sexual


FRANÇA


Um dia, vieram duas pessoas dos serviços sociais e<br />

levaram-me à força. «Levaram-me à força» é o termo<br />

adequado porque a minha irmã lembra-se de mim<br />

deitada nos seus braços e agarrada a ela. Eu gritei e<br />

chorei, e ela também estava a gritar. Mas fui retirada<br />

dos seus braços e eles tiraram-me dali. Neste<br />

momento, não me lembro com que frequência fui<br />

abusada. Mas foram estes homens que me «tocaram»<br />

no dormitório.<br />

Eu desejava gritar, gritar: «cuidem das crianças». Há<br />

muitas crianças que sofrem, muitas crianças que são<br />

maltratadas, muitas crianças que são abusadas.<br />

Portanto, por favor, governos, pessoas com<br />

autoridade, serviços sociais. Tomem conta das<br />

crianças. Esse é também o vosso papel. Esse é<br />

também o papel dos pais. Os pais devem ter uma<br />

atitude amorosa e carinhosa para com os seus filhos.<br />

Por isso, tomem conta deles.<br />

Sylvie 54<br />

Rapto, abuso sexual, maus-tratos


O meu irmão e eu fomos adoptados juntos. E o abuso<br />

começou imediatamente. Foi sobretudo violência<br />

física e psicológica. Quando tinha dez anos, fiz a minha<br />

primeira tentativa de suicídio porque não era capaz de<br />

viver assim. Foi demasiado difícil.<br />

Tenho sorte de não estar completamente destruído<br />

psicologicamente e de ser finalmente capaz de<br />

refletir. E foi isso que me permitiu sobreviver.<br />

Compreendi como funciona o método de violência e<br />

agora o meu objectivo é ultrapassar esta situação e<br />

lutar pela defesa das crianças, testemunhar e lutar.<br />

Javier 44<br />

Rapto, adopção forçada, abuso sexual


Fui abusada por esta família que recebia dinheiro para<br />

cuidar de nós. O pai batia-me; ele batia-me com força.<br />

O único lugar em que me sentia segura era debaixo da<br />

mesa. E outra coisa importante é que todos os meses,<br />

a minha mãe levava-me ao cabeleireiro para me alisar<br />

o cabelo porque queria apagar as minhas origens.<br />

Eu diria a todos os governos, diria ao mundo: que não<br />

se tem o direito de abusar de uma criança. Não se tem<br />

o direito de decidir o futuro de um ser humano.<br />

Especialmente quando se trata de uma criança. Fomos<br />

transferidos como objectos. Fomos colocados como<br />

objectos no sistema de acolhimento. Hoje, eu diria<br />

aos pais que estão a acolher: não mintam aos vossos<br />

filhos porque estas mentiras podem ser muito,<br />

muito, muito, muito, muito chocantes quando<br />

tomamos consciência delas.<br />

Valérie 59<br />

Rapto, acolhimento familiar forçado, maus-tratos


Eu era uma pequena franco-japonesa de 5 anos de<br />

idade quando fui abusada sexualmente por uma prima<br />

de 39 anos durante o Verão quente de 1977. Estas<br />

violações atiraram-me para um buraco negro de 32<br />

anos. Quando a minha memória ressuscitou, comecei<br />

a falar incansavelmente, mesmo que estes crimes já<br />

tivessem prescrito em França.<br />

Estas experiências traumáticas abriram-me os olhos<br />

para a extensão global do abuso sexual de crianças.<br />

Juntei-me a outros corajosos sobreviventes e activistas<br />

que se esforçam por pôr fim a esta praga. A nossa<br />

batalha é a luta pela justiça, por um mundo justo e<br />

pela paz. Nunca desistiremos!<br />

Mie 50<br />

Abuso sexual na família


Eu tinha 8, 9, 10 e 11 anos quando um tio-avô meu, que<br />

era missionário, me violou. Ele apresentou-me esse<br />

abuso como uma descoberta do meu corpo, depois<br />

como uma forma de educação sexual. O que se seguiu<br />

foram quase 10 anos de amnésia traumática parcial. Eu<br />

tinha 12 anos quando dois primos meus de 13 e 15 anos<br />

me violaram e abusaram de mim. Eles apresentaram-me<br />

o seu crime como um jogo. O resultado foram 15 anos<br />

de amnésia traumática total.<br />

Agora falo alto, mostro-me porque já não tenho<br />

vergonha. A vergonha que eu costumava sentir tão<br />

fortemente. Já não tenho vergonha porque quero que as<br />

crianças sejam protegidas. Quero que as vítimas saibam<br />

que não estão sozinhas, que podem beneficiar de<br />

cuidados específicos para o trauma psicológico.<br />

Também quero que a amnésia traumática seja<br />

reconhecida. Quero que aqueles que não denunciaram<br />

estes crimes também sejam processados. Quero<br />

uma sociedade mais justa.<br />

Arnaud 41<br />

Abuso sexual do clero e abuso sexual na família


Eu tinha 10 anos de idade. Já era membro dos<br />

escuteiros de St Luc há 2 anos e adorava aquele<br />

grupo. Um dia, recebemos um desses distintivos, que<br />

orgulhosamente trouxemos às nossas mães babadas<br />

para costurar nas nossas camisolas. No final da<br />

reunião, quando o Padre Bernard nos mandou<br />

embora, pediu-me que ficasse um pouco mais.<br />

Lembro-me dos meus amigos que saíram da sala.<br />

Alguns tinham um sorriso incómodo para mim como se<br />

soubessem o que me esperava. Outros olhavam para<br />

os seus sapatos com desconforto e outros pareciam<br />

invejosos da atenção especial que o Padre me dava.<br />

Se há várias centenas de vítimas em França, há vários<br />

milhões em todo o mundo que ainda estão vivas.<br />

Em termos de «crime em massa», já há muito tempo<br />

que não fazemos melhor.<br />

François 43<br />

Abuso sexual do clero


O director acolheu-me, começou a mostrar-me as<br />

instalações e disse: «isto é a lavandaria». Pediu-me<br />

para me despir e começou a tocar-me. Tive<br />

dificuldades, mas ele fez-me compreender que tinha<br />

sido a lei que me tinha colocado ali e que eu iria ficar<br />

de qualquer forma até aos 18 anos.<br />

Representantes do mundo e das nações modernas,<br />

defendam as crianças e defendam os seus direitos<br />

desde o nascimento até serem adultos. Certifiquem-se<br />

de que os seus direitos são respeitados. Que todos os<br />

países europeus e o mundo façam cumprir as cartas,<br />

declarações e convenções que foram assinadas.<br />

Temos de acabar com o sofrimento das crianças,<br />

temos de acabar com esta carnificina. Façam um<br />

esforço, e dêem amor aos vossos semelhantes.<br />

Fawzy 59<br />

Abuso sexual no orfanato


ESPANHA


Uma noite, quando eu estava a dormir, acordou-me.<br />

Eu tinha rastejado para fora do cobertor, as minhas<br />

calças foram puxadas para baixo e a minha t-shirt foi<br />

puxada para cima. Acordei, sentei-me meio a dormir<br />

e puxei as minhas calças e o cobertor para cima.<br />

Cobri-me a mim próprio. Mas ele agarrou-me,<br />

cegou-me com a lanterna e puxou-me de volta para o<br />

chão. Despiu-me novamente e, nesse momento, o meu<br />

cérebro estilhaçou-se.<br />

O que vos quero dizer é que a infância é o início das<br />

nossas vidas, o início, onde acumulamos valores, onde<br />

começamos formas de vida, onde começamos a ter<br />

maus pensamentos e onde formamos a nossa<br />

personalidade. Tudo o que eu quero é que ninguém<br />

mais volte a sofrer o que eu sofri.<br />

Emiliano 55<br />

Abuso sexual pelo clero


Um dia na escola estava a chover, e o padre<br />

convidou-me para ir ao seu quarto para me secar. Eu<br />

era um pouco solitário. Eu não jogava futebol como o<br />

meu irmão gémeo, que era um líder natural. Eu era um<br />

tipo de pessoa mais solitária. E este homem conhecia<br />

muito bem a minha vida e a minha situação. Ele<br />

convidou-me para o seu quarto para me secar, e foi aí<br />

que tudo começou. Ele abusou de mim durante mais<br />

de um ano. Todos os dias.<br />

Pedia ao mundo que fosse mais recetivo à escuta das<br />

crianças e mais sensível, para perceber os sinais de<br />

quando isto acontece a uma criança e que reagisse de<br />

forma protetora, bem como, educasse as crianças para<br />

que se sintam confortáveis e capazes de falar sobre<br />

estas questões sem tabus e sem o peso da religião.<br />

Fernando 61<br />

Abuso sexual pelo clero


A situação em que me encontrei não me deixou viver,<br />

oprimiu-me e sufocou-me. Não consegui falar sobre isso.<br />

O meu abusador também abusou dos meus irmãos. O<br />

fardo tornou-se cada vez mais pesado, porque me sentia<br />

culpado e cúmplice. E, além disso, tinha-me mantido em<br />

silêncio e pensava ter deixado que aquilo acontecesse.<br />

Senti-me responsável pelas ações do pedófilo e ao<br />

longo dos anos e com a ajuda da terapia, compreendi<br />

que tinha feito o suficiente para sobreviver.<br />

Fui abusado sexualmente entre os 8 aos 11 anos de idade,<br />

em inúmeras ocasiões, por um treinador de futebol.<br />

Certamente, se eu pudesse ter contado a alguém sobre<br />

os abusos, quando começaram, o sofrimento teria sido<br />

muito menor. Mesmo assim, não tive culpa nem pelo<br />

meu abuso, nem pelo abuso de outras crianças. Porque<br />

a culpa é única e exclusivamente dos que cometem os<br />

abusos e dos que os encobrem. Se virem uma<br />

criança em risco, não fiquem calados. Dêem-lhe uma<br />

oportunidade de viver e de ser uma criança.<br />

Pepe 49<br />

Abuso sexual no desporto


Ele costumava levantar-se imediatamente e vir<br />

sentar-se ao meu lado. Costumava meter a mão<br />

dentro das minhas calças e começar a apalpar-me. Aos<br />

12 anos de idade eu não estava plenamente consciente<br />

do que estava a acontecer, mas sabia que era anormal<br />

e que não gostava (era desconfortável).<br />

Há algo ainda mais doloroso do que o abuso: o<br />

encobrimento e a revitimização. A igreja deveria ser<br />

responsável por atenuar a dor causada por estes<br />

crimes, especialmente, como a face visível do bem<br />

e do cristianismo. Alguém que presuma carregar a<br />

bandeira do bem nunca poderá cometer estes crimes<br />

e, quando o fizer, deverá ser punido de forma<br />

mais severa.<br />

Juan 25<br />

Abuso pelo clero


PORTUGAL


Eles consideravam-nos selvagens; só porque não<br />

tínhamos mãe nem pai. Só por eu ter copiado algo de<br />

forma errada, o diretor deu-me um murro no olho com<br />

o seu relógio e quase me fez perder a visão. A minha<br />

boca está assim por causa da tareia que me deram.<br />

As crianças e jovens que vivem numa instituição não<br />

são selvagens; são apenas pessoas sem pai nem mãe.<br />

As pessoas precisam de compreensão, amor, e afeto.<br />

Nas instituições, as crianças crescem<br />

frequentemente no meio da violência, e precisam<br />

de acompanhamento, ajuda psicológica e apoio à<br />

medida que crescem.<br />

Marco 31<br />

Abuso em instituições de acolhimento


Ele disse-me que eu não podia contar a ninguém<br />

porque ele era padre e eu apenas uma rapariga e era<br />

a palavra dele contra a minha e eu não era nada, a<br />

minha palavra não valia nada. Se eu dissesse às freiras,<br />

elas iriam mandar-me embora da Congregação. Elas<br />

não iriam querer alguém como eu, impura o que seria<br />

de mim depois de abandonada? E, isso causou-me um<br />

medo assustador de que alguém descobrisse o que<br />

ele me tinha feito. Eu não era culpada mas ele fez esta<br />

chantagem.<br />

São vidas despedaçadas, personalidades<br />

despedaçadas e sonhos despedaçados.<br />

É um mundo desfeito. Eramos crianças com tanta<br />

alegria interior e depois do abuso tudo isso<br />

desapareceu. O problema é toda a sociedade<br />

permitir que isto aconteça mostrando indiferença<br />

ao não falar do tema.<br />

Filipa 43<br />

Abuso pelo clero


Aconteceu numas férias, em casa de familiares. Assim<br />

que consegui, liguei para casa a pedir ajuda, para me<br />

irem buscar e foram. Quando cheguei a casa e contei<br />

tudo o que tinha acontecido, ninguém fez nada. Hoje sei<br />

que foi por medo de enfrentar a família e esperança que<br />

eu esquecesse, uma vez que era pequena. Coisa que<br />

nunca se esquece e deixa marcas para a vida.<br />

As crianças não mentem e só falam da realidade que<br />

conhecem. Por isso quando alguma vos pedir ajuda,<br />

ajudem! Nunca duvidem! E mesmo que essas crianças<br />

não consigam verbalizar o pedido de ajuda, é nossa<br />

obrigação como adultos estarmos atentos aos sinais<br />

que elas vão dar! Temos que agir, proteger as crianças,<br />

mesmo aquelas que ainda não percebem que precisam<br />

de ajuda. Temos de respeitá-las e empoderá-las. Só com<br />

informação e educação, é possível existir prevenção. O<br />

Estado tem obrigação de garantir a segurança<br />

destas crianças e afastá-las dos agressores de forma<br />

rápida e permanente, dar todo o tipo de apoio e facilitar<br />

as denúncias, para uma acção rápida e séria da justiça.<br />

Melania 38<br />

Abuso sexual na família


Uma vez, o padre levou-me à boleia com ele até ao<br />

Porto para visitar uma benfeitora. À noite, quando a<br />

senhora disse: «Já arranjei um sofá para o rapaz», ele<br />

disse: «Não, não é preciso, o rapaz dorme comigo».<br />

Então, nessa noite, pegou na minha mão para apalpar<br />

os seus testículos e para se masturbar. Este<br />

comportamento foi repetido por ele noutras ocasiões<br />

no Refúgio da Mãe do Céu.<br />

A dor, a memória e o trauma de uma criança<br />

abusada ou violentada não prescrevem. Por isso,<br />

também não pode haver a possibilidade de prescrição<br />

para os crimes daquela natureza. Essa prescrição é um<br />

troféu para os abusadores e criminosos.<br />

António 70<br />

Abuso sexual pelo clero


Eu tinha cinco, quase seis anos, e a minha mãe<br />

mandou-me para um colégio interno católico dirigido<br />

por freiras para me proteger da sociedade e das<br />

condições brutais em que vivíamos. Fui abusada dos<br />

cinco aos nove anos de idade por um padre que<br />

estava nessa instituição. A primeira vez foi num<br />

confessionário. Ele tirou-me um sonho, o de ter a<br />

minha própria família, que ainda não tenho, porque<br />

tenho muito medo que aconteça o mesmo aos<br />

meus filhos.<br />

A dor não prescreve! A prescrição, no caso de abuso<br />

de crianças... é o maior ato de cobardia que existe!<br />

Cristina 52<br />

Abuso sexual pelo clero


IRLANDA


Fui roubada à minha mãe e colocada numa casa<br />

religiosa a «Mãe-Filho», nunca disseram à minha mãe<br />

onde eu estava. Retiraram-me sem o seu ou o meu<br />

consentimento. Não tinham o direito de o fazer.<br />

Ninguém deveria ter o direito de roubar uma criança<br />

à sua mãe só porque é jovem e solteira. As<br />

consequências são traumáticas e prejudiciais.<br />

Precisamos de proteger os Direitos da Criança.<br />

As crianças precisam de ser salvaguardadas em todos<br />

os momentos.<br />

Oona 53<br />

Rapto, instituição de acolhimento


Ainda hoje, é chocante saber que fui sujeito, na<br />

Irlanda, a experiências humanas quando era criança,<br />

numa instituição chamada «mãe-filho», dirigida<br />

por uma ordem religiosa. Várias crianças mestiças<br />

como eu foram selecionadas para um ensaio de<br />

vacinação contra a poliomielite em 1965, sem o<br />

consentimento das nossas mães. Isto foi uma violação<br />

do Código de Nuremberga.<br />

As crianças têm direitos humanos e devem ser<br />

protegidas contra a discriminação racial e as violações<br />

dos direitos humanos. As crianças não podem, não<br />

devem ser usadas para quaisquer experiências<br />

humanas sem o pleno consentimento dos seus pais ou<br />

tutores. Enquanto crianças, não tínhamos voz e, as<br />

nossas mães solteiras também não.<br />

Conrad 58<br />

Abuso em instituições de acolhimento, ensaios clínicos


E tive que dormir com um homem, tão precocemente,<br />

que tinha mais 21 anos que eu e ele agrediu-me e<br />

abusou sexualmente de mim. Fui também abusado<br />

psicologicamente, por esse homem mais velho.<br />

E desde que lá estive ele tem vindo a assediar-me.<br />

É sabido que inúmeras crianças como eu e os meus<br />

irmãos com diferentes histórias e origens, foram<br />

vítimas de vários tipos de abusos: físicos, sexuais,<br />

separação forçada da família e violação do nosso<br />

direito à educação. Primeiro de tudo é necessário<br />

reconhecer cada uma das crianças entregues a<br />

acolhimento familiar ou institucional e dizer: olhem<br />

estes sobreviventes merecem mais.<br />

James 72<br />

Abuso sexual em instituições de acolhimento


Lembro-me de uma vez ele me ter batido com o cinto<br />

que trazia à cintura e de não ter podido deitar-me de<br />

costas durante uma semana. A minha pele sangrava e<br />

ele continuava a bater-me. Não podia contar a<br />

ninguém porque não tínhamos contacto com ninguém<br />

toda a semana. Escondiam-nos. Para não sermos<br />

vistos.<br />

E os governantes disseram-me que eles me tinham<br />

apoiado, mas eles estão a varrer-nos para debaixo do<br />

tapete e nós… nós procuramos um pedido de<br />

desculpa e uma compensação como demonstração de<br />

algum respeito pelas nossas vidas.<br />

David 66<br />

Abuso em instituições de acolhimento


Retiraram-me porque lhes convinha para eu ir<br />

trabalhar numa quinta. Fui espancado, diversas vezes,<br />

ele batia-me com o seu cinto. Tirava-me as calças,<br />

deitava-me, nos seus joelhos de cabeça para baixo e<br />

batia-me. Depois saía sangue do meu rabo.<br />

Merecemos dignidade e respeito, por tudo o que nos<br />

fizeram passar. Tenho uma irmã com menos 10 anos<br />

que eu que está desaparecida porque nos separaram.<br />

Jason 79<br />

Abuso sexual em instituições de acolhimento


NORUEGA


Lembro-me de me sentar ali no sofá. As outras foram<br />

dançar, dançaram com rapazes mais velhos e<br />

divertiram-se imenso. Sentei-me no sofá, e foi-me<br />

oferecido um copo de refrigerante. Aceitei-o. Não me<br />

lembro de mais nada daquela noite antes de acordar.<br />

Quando acordei um homem estava deitado em cima<br />

de mim e a fazer sexo comigo. Recuperei os sentidos<br />

quando isso aconteceu.<br />

Em geral, devíamos todos olhar uns pelos outros e<br />

certificar-nos de que todos estão seguros. Tenho de<br />

vir a público e assumir esta enorme responsabilidade.<br />

Iris 34<br />

Abuso sexual


Foi a primeira vez que conheci o meu tio. Ele era<br />

pedófilo e abusou de mim. Eu não compreendia então<br />

esse segredo, ou que esse comportamento era<br />

completamente errado.<br />

Desde o início dos tempos, milhares lutaram por nós.<br />

Todas aquelas mulheres corajosas e espantosas. Todas<br />

elas sofreram de negligência e foram tratadas como<br />

objectos. Eu dou-lhes toda a minha compaixão e<br />

respeito. Portanto, aos homens e mulheres que têm<br />

uma escolha: usem a vossa voz, falem, e acabem com<br />

esta violência.<br />

Letisha 35<br />

Abuso sexual


SUÉCIA


O abuso sexual começou quando eu tinha 12 anos de<br />

idade e continuou durante a minha adolescência. A<br />

última vez que aconteceu foi quando eu tinha 20 anos<br />

de idade. Agora tenho pesadelos todas as noites e<br />

ainda tenho dificuldade em lidar com as consequências<br />

psicológicas. Tenho frequentemente ataques de pânico.<br />

Costumava pensar que a culpa era minha e sentia-me<br />

envergonhada. Sentia que a culpa seria minha se mais<br />

agressões sexuais me acontecessem.<br />

O mais importante agora é que todos vós, como seres<br />

humanos e como sociedade civil, vos torneis muito<br />

melhores a ouvir as crianças. Gostaria também de<br />

dizer aos políticos que precisam de reforçar as leis que<br />

protegem os direitos das crianças. Precisamos também<br />

de reforçar e divulgar os mecanismos necessários no<br />

trabalho de deteção e identificação para localizar as<br />

crianças vítimas de agressões sexuais.<br />

Saga 23<br />

Abuso e exploração sexual


FINLÂNDIA


Quando aconteceu pela primeira vez, ele tinha<br />

acabado de me tocar. Depois estava uma vez em<br />

casa sozinha, a ver televisão e quando saí da sala, ele<br />

agarrou-me pelo ombro e empurrou-me para baixo<br />

da cama. Agarrou-me, arrancou-me as calças à força e<br />

atirou-me de barriga para baixo. Foi a primeira vez que<br />

ele me penetrou, e violou-me.<br />

Recuperar de crimes de violência sexual demora muito<br />

tempo, e é preciso muito tempo para poder contar a<br />

alguém especialmente, em casos de incesto, no seio<br />

da família. Precisamos de mudanças legislativas<br />

significativas.<br />

Heli 49<br />

Abuso sexual


Os meus agressores são os meus pais. A minha mãe<br />

disse-me que mesmo quando era um bebé pequeno<br />

fui espancada por chorar. Por isso, esse tipo de<br />

violência tem estado presente na minha vida. As<br />

minhas memórias mais antigas estavam relacionadas<br />

com o abuso sexual. O meu pai admitiu que me violou,<br />

pela primeira vez, quando eu tinha cerca de 4-5 anos<br />

de idade.<br />

Como se pode fechar o coração a crianças tão<br />

pequenas e fazer algo tão horrível? Deviam ter<br />

vergonha!<br />

Seijamirjami 44<br />

Abuso sexual


Fiquei muitas vezes na casa de uma família próxima, e foi<br />

aí que ocorreu o meu trauma de abuso sexual. E, porque<br />

lá passei algumas noites, fiquei também traumatizada<br />

pelo facto de ter conhecimento que onde fiquei, outras<br />

crianças também foram abusadas. É estranho como uma<br />

criança tão pequena se pode sentir culpada por não<br />

poder fazer nada a esse respeito.<br />

Antes de mais, gostaria de me dirigir aos decisores da<br />

Igreja da Laestadian para questionar: Como se pode não<br />

agir quando se sabe o que está a ser feito a estas<br />

crianças pequenas nas suas igrejas? Como podem<br />

imaginar que são os únicos que realmente vão para o<br />

céu? Há aqueles de entre vós que têm os meios para<br />

intervir. E vocês têm. Nós vítimas informámos e<br />

dissemos o que poderia ser feito para intervir, mas nada<br />

foi feito. E, gostaria também de transmitir uma mensagem<br />

semelhante à Igreja Luterana: Porque não<br />

intervêm na vossa própria comunidade, em relação<br />

aos abusos que ocorrem nestas pequenas comunidades<br />

religiosas?<br />

Outi 49<br />

Abuso sexual


Eu tinha cerca de oito anos de idade quando esta pessoa<br />

entrou na minha vida e me levou a um mundo não<br />

destinado a crianças. Tornou-se o nosso segredo e<br />

também me foi dito que tinha feito algo de errado. Isto<br />

transformou-se numa espécie de muro da vergonha<br />

dentro do qual passei a minha infância e no qual cresci. A<br />

minha própria ideia do que é o desenvolvimento normal<br />

para uma criança, por exemplo, tornou-se incrivelmente<br />

distorcida, demorei muito tempo a aprender e a<br />

compreender o que me aconteceu.<br />

As pessoas têm de ver as crianças, ver as suas<br />

preocupações e olhar para além dos seus sorrisos. E<br />

quanto ao castigo, deve pelo menos exigir que a pessoa<br />

deva estar presente na terapia da vítima. Isso seria talvez<br />

mais próximo de um verdadeiro castigo. Mas não<br />

tenho a certeza de como conseguir uma situação em<br />

que os abusadores compreendam realmente o que<br />

fizeram. Porque parece que eles não compreendem o<br />

impacto das suas ações e a extensão das<br />

consequências. E só através desta compreensão se<br />

poderia operar uma verdadeira mudança.<br />

Minna 48<br />

Abuso sexual


DINAMARCA


Fui exposto a abusos sexuais na minha infância em<br />

Emdrupvej, onde cresci. Começou sem os meus pais<br />

saberem que havia uma pessoa assim na aldeia, um<br />

amigo deles. Infelizmente, não me lembro de quantas<br />

vezes, mas, aconteceu muitas vezes. Tive muitos<br />

pensamentos suicidas por causa disso. Tinha vergonha<br />

e estava deprimido.<br />

Será um processo para toda a vida, onde poderei não<br />

só precisar de ver psicólogos, mas também<br />

procurar alguns psicoterapeutas, tratamentos<br />

corporais, e muitas outras coisas. Porque não se tem<br />

manifestado apenas na minha cabeça. Está também<br />

no interior do corpo. Também preciso de voltar a<br />

conhecer o meu corpo.<br />

Mikael 51<br />

Abuso sexual


O abuso sexual começou quando eu tinha 3 anos<br />

de idade. Começou comigo a tomar banho com o<br />

meu padrasto. Não me lembro com que frequência<br />

aconteceu, mas foi regularmente.<br />

Há tantas crianças de quem não temos consciência de<br />

estar expostas a estas coisas violentas, que são tão<br />

boas a escondê-las do mundo exterior. Não se dá por<br />

isso. Estão habituadas a adaptar-se onde quer que se<br />

encontrem e a empenharem-se para que nenhum<br />

adulto se aperceba de quão mal se estão a sentir.<br />

Gry Sara 49<br />

Abuso sexual


PAÍSES BAIXOS


Imediatamente após o meu nascimento, fui<br />

abandonada. Acabei por ser colocada numa casa de<br />

acolhimento onde a vida melhorou. Só muito mais tarde,<br />

depois de olhar para os meus documentos e de ouvir as<br />

histórias da minha irmã biológica, é que descobri que o<br />

meu pai biológico não me abandonou, não concordou<br />

com a minha adopção. Ele lutou durante 5 anos para<br />

anular a adopção. As autoridades nem sequer<br />

investigaram se crescer com o meu pai e a minha avó era<br />

uma opção melhor do que uma casa, onde as condições<br />

não eram certamente as melhores nos anos 60.<br />

O que eu gostaria de dizer é que ainda hoje, quando as<br />

crianças são separadas dos pais por qualquer razão, quer<br />

acabem em famílias de acolhimento ou numa instituição,<br />

devemo-nos lembrar que as crianças carregam sempre<br />

os pais com elas. Elas são parte dos seus pais. Os pais,<br />

mesmo que não estejam presentes, são parte da<br />

identidade da criança. Penso que as autoridades não<br />

devem esquecer isso. Por vezes, os pais são um pouco<br />

sacudidos e penso que isso não é bom, especialmente<br />

para as crianças.<br />

Monique 56<br />

Adopção forçada


Fui adoptado por pais holandeses que têm 2 filhos seus.<br />

Cresci numa boa família, mas quando comecei a<br />

procurar os meus pais biológicos, descobri, ao fazer um<br />

teste de ADN, que a minha «mãe biológica», de facto,<br />

não era ela. Senti que a minha identidade me tinha sido<br />

retirada. Mais tarde descobri que, os meus documentos<br />

de adopção tinham sido trocados com os de um<br />

rapazinho que também tinha sido dado para adopção.<br />

Se for adoptado ou imigrante, ou não for criado no<br />

seu próprio país, cultura ou família: vá procurar a sua<br />

origem. Vá visitar o seu local de nascimento, o seu<br />

país de origem, ou encontre a sua família, porque são<br />

importantes para si como pessoa de sentimentos, os<br />

seus sentimentos. O corpo não o nega. É muito fácil<br />

afastá-los, também é muito assustador trabalhar os<br />

nossos sentimentos. Descobre o quê e onde residem<br />

as tuas origens. É importante conhecer a tua origem.<br />

Rodrigo 41<br />

Os documentos de adopção foram trocados


BÉLGICA


Nasci de um pai belga branco e de uma mãe<br />

congolesa. Cresci com o meu irmão e os meus avós<br />

na Bélgica. De repente, encontrámos uma irmã que<br />

vivia no Congo. Não sabíamos da existência dela. Ela<br />

mostrou-nos um caderno com a morada dos nossos<br />

avós na Bélgica e fotografias nossas e do nosso primo.<br />

Percebemos que o nosso pai se tinha mantido em<br />

contacto com ela e mandava-lhe coisas. Ela<br />

explicou-nos que tinha sabido durante toda a sua vida<br />

que era uma criança ilegítima. E pensava que não era<br />

bem-vinda na família.<br />

Temos de abordar isto honestamente e mostrar que<br />

existe uma vontade de mudar e de fazer reparações.<br />

Precisamos de reconhecer o impacto que o<br />

colonialismo teve, e ainda tem, sobre as crianças que<br />

sofreram com ele. Tem de parar. E temos de fazer<br />

reparações e impedir que tais coisas voltem a<br />

acontecer.<br />

Claudine 70<br />

Abusos coloniais


Sei que também não foi fácil para a minha filha. Ela<br />

também enfrentou reações racistas na escola, todas<br />

escondidas atrás de um sorriso. É tudo menos fácil.<br />

Continua a ser difícil. É por isso que lhe digo que ela é<br />

o produto de diferentes etnias, de pessoas com uma<br />

coragem infinita que lutaram pela sua existência. E ela<br />

tornou-se o grande resultado desta luta.<br />

Já não vivemos como no século anterior, quando os<br />

governos temiam que as pessoas «mestiças» fossem<br />

igualmente competentes como as pessoas «brancas»<br />

e que, por isso, escondessem o seu lado «negro».<br />

O tempo passou e esta visão já não é verdadeira.<br />

Todas as pessoas pertencem à mesma raça. A<br />

convivência torna a vida mais rica. Nenhuma criança<br />

deve ser vítima de racismo. Uma criança é sagrada.<br />

Sandra 55<br />

Abusos coloniais (segunda geração)


Descobri através da minha investigação, que nasci em<br />

França. A minha certidão de nascimento não menciona<br />

o nome dos meus pais e não contém qualquer<br />

informação. Fui recolhido por uma instituição belga e<br />

depois adoptado por uma família. Nasci com uma<br />

doença hereditária que afecta os meus rins. Mas como<br />

não havia informação sobre o meu nascimento, não<br />

havia forma de me tratar. Quando o médico<br />

perguntou à minha mãe adotiva sobre uma doença<br />

renal na família, ela não podia dar uma resposta.<br />

A instituição belga tinha apagado todas as informações<br />

relevantes.<br />

As nossas raízes pertencem-nos, não devemos ser<br />

separadas delas. Espero que as minhas mensagens não<br />

fiquem aquém ou falhem porque, as crianças que<br />

crescem permanecem mais fortes quando sabem<br />

quem são e quem são os seus pais.<br />

Benoit 60<br />

Adopção forçada


Nasci durante o período colonial. O meu pai era belga,<br />

a minha mãe era africana. Após a morte do meu pai, a<br />

administração colonial belga proibiu a minha mãe de<br />

ficar connosco. Após três tentativas, a polícia<br />

levou-nos e colocou-nos numa instituição especial para<br />

crianças mulatas. Isolaram-nos das comunidades<br />

branca e negra e reinstalaram-nos na Bélgica, onde<br />

cresci separada dos meus irmãos. Eu era uma criança<br />

muito solitária, numa família de acolhimento difícil.<br />

Nenhum dinheiro foi gasto comigo porque eu era o<br />

fruto de um amor proibido: demasiado inteligente para<br />

confiar, demasiado bonita para ser amada.<br />

Espero que haja mudanças. Cada um pode tomar<br />

conta do outro. Cada pessoa pode mudar as coisas<br />

para melhor.<br />

Jacqui 66<br />

Abusos coloniais


ALEMANHA


E foi aí que numa manhã, o primeiro abuso aconteceu.<br />

Ele acariciou-me, e sim, aproveitou-se da minha<br />

fraqueza naquele momento. Isso é difícil para mim.<br />

Culminou num acampamento de férias de seis semanas,<br />

longe dos grandes campos de escuteiros.<br />

Estas ações têm lugar em alcateias diferentes e<br />

separadas. Há as famílias, há os diferentes grupos de<br />

jovens, e eles querem manter tudo nestas alcateias. E<br />

se olharmos para dentro delas, por um momento, eles<br />

querem que as fechemos de novo rapidamente. Tente<br />

ver as ligações e reúna as diferentes equipas.<br />

Harald 55<br />

Abuso sexual nos escuteiros


Este padre ignorou qualquer risco de ser descoberto<br />

e escolheu os locais mais impensáveis para cometer as<br />

suas violações: A galeria da capela onde todos tocavam<br />

o órgão e onde o coro da igreja cantava normalmente;<br />

a sacristia ou o ginásio. Também o balneário ou o<br />

laboratório de fotografia da escola. Em todos os lugares<br />

possíveis, ele fez-me tudo o que quis.<br />

Fortalecer as Crianças! Os direitos das crianças são<br />

direitos humanos. Ancorar os direitos das crianças nas<br />

leis do vosso país. E a todos os vizinhos e amigos e<br />

cidadãos do país: intervenham quando virem violência<br />

contra as crianças!<br />

Karl 71<br />

Abuso sexual pelo clero


Como estudante de uma escola de prestígio, fui<br />

abusado sexualmente por dois padres jesuítas.<br />

Forçaram-me a fazer o que queriam e disseram-me que<br />

era para o meu próprio bem. Abusaram da minha<br />

confiança e da minha fé. Isto moldou a minha vida, as<br />

minhas relações com outras pessoas e a minha relação<br />

comigo próprio. Fiquei envergonhado para além do que<br />

pensava possível. E mantive-me em silêncio.<br />

Depois de décadas de silêncio, finalmente falar sobre<br />

isto foi um acto de libertação. Desde então, quero que<br />

todas as pessoas que sofreram violência na sua<br />

infância possam experimentar esta libertação. Para<br />

muitas pessoas, o assunto é desconfortável. Posso<br />

compreender isso. Mas se nós, como sociedade,<br />

queremos que as crianças e os jovens cresçam<br />

num mundo sem violência sexual, temos de aprender<br />

a ouvir.<br />

Matthias 59<br />

Abuso sexual pelo clero


ÁUSTRIA


As minhas primeiras memórias de infância são marcadas<br />

pela violência, pelo álcool e pelo abuso. E a constante<br />

deslocação de e para a casa de acolhimento de<br />

crianças ou para as famílias de acolhimento. Para mim,<br />

era uma tortura ir para um novo lar/instituição ou para<br />

uma nova família de acolhimento. Regressava sempre<br />

feliz a minha casa, apesar da brutalidade e da violência<br />

que vivia em casa.<br />

Sim, pessoas importantes e poderosas deviam<br />

realmente ser responsabilizadas juntamente com<br />

aqueles que têm feito estas coisas às crianças. Não<br />

importa como. Hoje em dia, dizem que as crianças têm<br />

de viver com isso, as crianças sofrem para toda a vida.<br />

E, como adulto, o trauma volta uma e outra vez,<br />

especialmente hoje. Não consigo lidar com ele.<br />

Romana 64<br />

Abusos sexuais, físicos e mentais em instituições de acolhimento


Ela fez-nos masturbar enquanto estava de pé no<br />

balneário ou sentada num banco. Ela (a governanta)<br />

puxou com tanta força que começou a sangrar.<br />

Cada abuso anuncia-se a si próprio de antemão! E<br />

quando as pessoas reparam nestes sinais, então é<br />

garantido que alguns dos abusos podem ser evitados.<br />

E é isso que eu desejo.<br />

Robert 71<br />

Abusos sexuais, físicos e mentais em instituições de acolhimento


ESLOVÉNIA


Sofri abusos sexuais por parte do meu avô. Entre os<br />

cinco e os oito anos de idade. A minha família era muito<br />

próxima do meu avô. Ele era uma parte importante das<br />

nossas vidas, mas os meus pais deixavam-me muitas<br />

vezes ao seu cuidado. E foi assim que tudo começou.<br />

O mais pequeno comentário pode fazer a diferença. Se<br />

estivermos dispostos a ouvir as pessoas e a ver essas<br />

coisas, podemos ajudar muitas outras pessoas. E falar<br />

sobre isso só pode ser bom. Nunca pode ser mau.<br />

Tjaša 28<br />

Abuso sexual na família


SÉRVIA


A 20 de Novembro de 1981, cheguei alegremente ao<br />

Hospital de Maternidade da Frente Narodni pensando<br />

que tinha vindo para dar à luz. Cheguei às 10:10 e<br />

muito rapidamente reparei que todo o pessoal<br />

estava um pouco nervoso. Após uma hora ou duas,<br />

disseram-me que algo estava errado. Estavam a<br />

preparar-me para a indução para acelerar o parto. Eu<br />

estava tão angustiada e assustada. A parteira disse-me<br />

para virar a cabeça para que eu não visse o nascimento<br />

da criança, porque eu daria à luz um nado-morto com<br />

meia cabeça.<br />

Eu teria ficado tão feliz por abraçar o meu filho. Eu<br />

diria apenas: «Onde estás tu, meu filho? Tu és tudo no<br />

mundo para mim».<br />

Dušanka 64<br />

O seu filho foi roubado da maternidade


Em Belgrado somos vítimas de tráfico humano.<br />

Tiraram-me o meu filho; tiraram-me a saúde; tiraram-me<br />

a vida.<br />

Dirijo-me a todos os governantes do mundo: o vosso<br />

bebé não vos foi tirado. Assim, ajudem a aprovar leis,<br />

não só na Sérvia, mas em todo o mundo, que dão a<br />

cada mãe o direito de saber o paradeiro do seu filho, e<br />

deixem a cada mãe a decisão de ficar com o seu filho<br />

ou de o entregar para adopção. Vocês, crianças, não<br />

são os culpados.<br />

Milena 65<br />

O seu filho foi roubado da maternidade


Eu estava a trabalhar. Faço entregas e distribuo pão<br />

de Obrenovac a Arandjelovac. Quando cheguei a Novi<br />

Beograd para ver o que tinha acontecido ao nosso filho,<br />

eles não me deixaram vê-lo. Mais uma vez, eu e a minha<br />

mulher fomos expulsos. Eles disseram que a criança<br />

estava bem. E quando liguei para o hospital mais tarde<br />

nesse dia, eles disseram que estava tudo bem.<br />

As pessoas más que compram os filhos de outras<br />

pessoas deveriam pelo menos dizer a essas crianças<br />

que foram compradas. E deviam saber que têm pais<br />

que estão vivos e saudáveis e que têm uma família. O<br />

mundo inteiro não tem conhecimento destas crianças.<br />

Tomislav 72<br />

O seu filho foi roubado do hospital


ROMÉNIA


Reparei no que se passava no centro: drogas,<br />

prostituição, espancamentos entre crianças,<br />

espancamentos entre o pessoal e as crianças. Alguns<br />

educadores seccionavam as crianças. Quando tentei<br />

falar sobre o que se estava a passar no centro, comecei<br />

a representar uma ameaça.<br />

Gostaria que as crianças das instituições estivessem<br />

verdadeiramente envolvidas na sociedade através de<br />

diferentes projectos e actividades. Espero que até<br />

2023 os orçamentos para as crianças aumentem, e que<br />

as suas necessidades sejam ouvidas.<br />

Andreea 21<br />

Abuso na família e em instituições de acolhimento


A minha mãe morreu quando eu nasci. O meu pai<br />

deixou-me. E as autoridades levaram-nos e<br />

colocaram-nos em orfanatos. Não me lembro<br />

exactamente onde. Todos nós tivemos problemas de<br />

integração na sociedade.<br />

As autoridades que lidam com crianças que deixam<br />

o sistema, ou com os jovens em geral, deveriam<br />

olhar mais de perto. Tive de lidar sozinho com a<br />

discriminação e a humilhação.<br />

Vasile 41<br />

Abuso em instituições de acolhimento


A minha mãe morreu quando eu nasci. O meu pai<br />

morreu no dia seguinte. Cresci numa época em que o<br />

sistema educativo não oferecia a igualdade de<br />

oportunidades que afirma oferecer.<br />

É muito importante que o mundo nos compreenda.<br />

Refiro-me aos parlamentos, aos governos, às<br />

instituições e a alguns países, especialmente os da<br />

Europa de Leste. Certas medidas só serão tomadas se<br />

forem forçados a fazê-lo. Eles, os governantes,<br />

consideram existir outros problemas mais importantes<br />

do que aqueles contra os quais estamos a lutar: como<br />

a violência e os abusos.<br />

Cosmin 22<br />

Abuso em instituições de acolhimento


Quando chegámos, tudo era muito mau. Sem<br />

electricidade, sem água. Crianças a chorar, a gritar, a<br />

lutar. Fomos mordidos por ratos e eles agiam como se<br />

não tivessem coração.<br />

Deveríamos pôr fim ao abuso. Quero uma vida melhor<br />

para nós e para todos aqueles que foram vítimas de<br />

abusos.<br />

Sirmanca 37<br />

Abuso no orfanato


GRÉCIA


O aspecto mais estranho e mais trágico de tudo isto<br />

é que aconteceu na véspera de Ano Novo. E de alguma<br />

forma o nosso novo ano começou com uma família<br />

completamente desfeita. O que restava da minha<br />

família era que estávamos todos isolados em ambientes<br />

diferentes: a minha mãe estava morta, o meu pai estava<br />

no hospital psiquiátrico, a minha irmã estava no<br />

hospital onde tinha tentado suicidar-se, o meu irmão<br />

estava com a família da minha mãe, e eu - a difícil - fui<br />

colocada numa instituição para raparigas. Havia muita<br />

raiva e dor e um sentimento de desespero entre todos<br />

os membros da família.<br />

Queria dizer que se deve amar as pessoas<br />

independentemente da sua sexualidade, cor de pele e<br />

nacionalidade e não se deve julgá-las e ter<br />

preconceitos. Não isole e estigmatize as pessoas,<br />

apenas porque elas são diferentes de si.<br />

Effie 21<br />

Negligência dos pais seguida de institucionalização


Depois de viver 13 anos da minha vida em Instituições,<br />

o que me aconteceu foi devastador. O pior que me<br />

aconteceu enquanto criança foi ter perdido a<br />

capacidade de amar e ser amado.<br />

Penso que todos devemos tomar conta das crianças.<br />

Ajudar as crianças a viverem em melhores condições<br />

para termos um mundo melhor.<br />

Argyris 63<br />

Abuso em instituições de acolhimento


Ao princípio tudo corria bem, depois os adultos<br />

começaram a abusar de mim. E, depois o diretor da<br />

Fundação começou a fechar-me à chave em quartos<br />

sem luz, comida e água, durante dias. Aos 11 anos,<br />

deixei de aceitar e comecei a reagir. E, por isso, ele<br />

colocou-me num hospital psiquiátrico.<br />

As coisas têm que mudar nas Instituições. Nenhuma<br />

criança deve sofrer qualquer abuso. Nenhuma criança<br />

deveria ser fechada e abusada num quarto, seja em<br />

que país for.<br />

Theodoros 27<br />

Abuso em instituições de acolhimento


Todas as imagens, entrevistas e testemunhos<br />

relacionados com situações de abuso de crianças em<br />

diferentes países estão disponíveis em<br />

https://justice-initiative.eu/shame-europeanstories/<br />

Digitalize o QR Code para acesso rápido


AGRADECIMENTOS<br />

Itália<br />

Rete L’Abuso<br />

Eca Global<br />

La Gabbianella<br />

Amnesty International Italia<br />

Università di Pisa<br />

Associazione il Provolo<br />

Gian Carlo Bruno<br />

Save The Children<br />

Emergency<br />

Suíça<br />

Anne Berger<br />

Corina Dürr<br />

Sina Hasler<br />

Maria Belén Muñoz Gerstein<br />

Vera Pagnoni<br />

Pascal Krauthammer<br />

Sonja Glauser-Rychener<br />

Tânia Fluri-Simão<br />

França<br />

Sylvie Arcos<br />

Erick-Alexander Mijangos<br />

Valérie Andanson<br />

Élisabeth Rabesandratana<br />

Laurent Sermet<br />

Sylviane Paulinet<br />

Jean-Lucien Herry<br />

Jean-Claude Giannota<br />

Cécile Baquey<br />

Anne David<br />

Marion Felman<br />

Pierre Verdier<br />

Stefania Cateleta<br />

Espanha<br />

Juan Cuatrecasas Asua<br />

Leticia De La Hoz<br />

Juan Cuatrecasas Cuevas<br />

Pepe Godoy<br />

Fernando García Salmones<br />

Emiliano Álvarez<br />

Javier Méndez<br />

Alberto Cano<br />

Anna Cuartas (Anna Currilla)<br />

Isabel Campos Pérez (Constanza Rúa)<br />

Miriam Ruiz Salmerón<br />

Covadonga González<br />

Mamen Escalante<br />

José Manuel Vidal<br />

Jesús Bastante<br />

Ana Cuevas<br />

<strong>Portugal</strong><br />

Instituto de Apoio à Criança<br />

Marco Branco<br />

Melânia Gomes<br />

Filipa Almeida<br />

Noruega<br />

Ecpat Norge<br />

Suécia<br />

Child10<br />

Inte din Hora<br />

Finlândia<br />

Protect Children/Suojellaan Lapsia ry<br />

Dinamarca<br />

Landsforeningen Spor<br />

Países Baixos<br />

Rodrigo van Rutte<br />

Monique Weustink<br />

Bélgica<br />

Jacqui Goegebeur<br />

Alemanha<br />

Maria Mesrian<br />

Karl Haucke<br />

Matthias Katsch<br />

Áustria<br />

Weisser Ring<br />

Romana Schwab<br />

Natascha Smertnig<br />

Eslovênia<br />

Tita Mayer<br />

Prof. Dr. Darja Zaviršek<br />

Sérvia<br />

Association Missing Babies of Belgrade<br />

Milena Jankovic<br />

Dušanka Buzanin<br />

Tomislav Petrovic<br />

Mila Tolstoj<br />

Jovan Krstic<br />

Ana Stanimirov<br />

Kosovo<br />

Serbeze Haxhiaj<br />

Romênia<br />

Asociaţia Phoneo<br />

Muzeul Abandonului<br />

Institutul de Investigare a Crimelor<br />

Co- munismului şi Memoria Exilului<br />

Românesc Andy Guth<br />

Maria Roth<br />

Daniel Rucăreanu<br />

Consiliul Tinerilor Instituţionalizaţi<br />

Grécia<br />

Eliza - Society for the Prevention of<br />

Cruelty to Children


Impressão<br />

SHAME – EUROPEAN STORIES<br />

Título: SHAME – EUROPEAN STORIES<br />

Fotografia: © Simone Padovani<br />

Conceção Gráfica: © Krauthammer & Partner<br />

Edição: Fundação Guido Fluri<br />

Schulhausstrasse 10<br />

CH-6330 Cham<br />

Suíça<br />

Coordenação Editorial: Pascal Krauthammer & Vera Pagnoni<br />

Layout: Krauthammer & Partner<br />

Publicação: julho 2023<br />

Site web: www.justice-initiative.eu<br />

© 2023 Fundação Guido Fluri<br />

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser<br />

reproduzida, fotocopiada, armazenada num sistema de recuperação ou transmitida<br />

sob qualquer forma, ou por qualquer meio, sem o prévio consentimento por escrito<br />

do editor ou dos titulares de direitos de autor. Impresso e encadernado na Itália.

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