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O círculo da paz - AMB

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ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS - <strong>AMB</strong> ANO XV NÚMERO 74 BRASÍLIA, JULHO A AGOSTO DE 2004<br />

J O R N A L D O<br />

MAGISTRADO<br />

O <strong>círculo</strong> <strong>da</strong> <strong>paz</strong><br />

Comuni<strong>da</strong>des intencionais ao redor do mundo superam conflitos com base no<br />

diálogo, na soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de e na confiança<br />

CORREIOS


SCN Quadra 02, bloco D, torre B, sala 1302<br />

Shopping center Liberty Mall<br />

Brasília – DF<br />

CEP 70712-903<br />

Tel.: 61 2103 9000<br />

Fax: 61 2103 9005<br />

Internet: http://www.amb.com.br<br />

e-mail: amb@amb.com.br<br />

Presidente<br />

Cláudio Baldino Maciel – Ajuris (RS)<br />

Secretário-geral<br />

Guinther Spode – Ajuris (RS)<br />

Secretário-geral adjunto<br />

Alexandre Aronne de Abreu – Ajuris (RS<br />

Diretor-tesoureiro<br />

Ronaldo Adi Castro <strong>da</strong> Silva – Ajuris (RS)<br />

Assessores:<br />

Nelo Ricardo Presser – Ajuris (RS)<br />

Ricardo Gehling – Amatra IV (RS)<br />

Vice-presidentes<br />

Cláudio Augusto Montalvão <strong>da</strong>s Neves – Amepa (PA)<br />

Guilherme Newton do Monte Pinto – Amam (RN)<br />

Heraldo de Oliveira Silva – Apamagis (MG)<br />

Joaquim Herculano Rodrigues – Amagis (MG)<br />

Jorge Wagih Massad – Amapar (PR)<br />

Luiz Gonzaga Mendes Marques – Amamsul (MS)<br />

Roberto Lemos dos Santos Filho – Ajufesp (SP)<br />

Sônia Maria Amaral Fernandes Ribeiro – Amma (MA)<br />

Thiago Ribas Filho – Amaerj (RJ)<br />

Irno Ilmar Resler – Amatra XII (SC)<br />

José Nascimento – Amatra I (RJ)<br />

Coordenador <strong>da</strong> Justiça Estadual<br />

Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço – AMC (SC)<br />

Coordenador <strong>da</strong> Justiça Federal<br />

José Paulo Baltazar Júnior – Justiça Federal (RS)<br />

Coordenador <strong>da</strong> Justiça do Trabalho<br />

Enei<strong>da</strong> Cornel - (Amatra IX)<br />

Coordenador <strong>da</strong> Justiça Militar<br />

Carlos Augusto C. de Moraes Rego – Amajum (DF)<br />

Coordenador dos Aposentados<br />

Catarina Dalla Costa – Amatra IV (RJ)<br />

Conselho Fiscal<br />

João Pinheiro de Souza – Amab (BA)<br />

Jomar Ricardo Saunders Fernandes – Amazon (AM)<br />

Wellington <strong>da</strong> Costa Citty – Amages (ES)<br />

J O R N A L D O<br />

MAGISTRADO<br />

É uma publicação <strong>da</strong> Diretoria de Comunicação Social <strong>da</strong> <strong>AMB</strong><br />

Edição<br />

Assessoria de Comunicação <strong>da</strong> <strong>AMB</strong> – Warner Bento Filho<br />

Tel: 61 328 0247<br />

e-mail: imprensa@amb.com.br<br />

Colaboraram nesta edição<br />

Antonio Matiello, Letícia Capobianco, Rossana Alves, Taís<br />

Mendes, Vasconcelo Quadros, Lourenço Flores, Davi Brasil<br />

Simões Pires e Graça Ramos<br />

Diagramação<br />

TDA Desenho & Arte • www.t<strong>da</strong>brasil.com.br<br />

Capa<br />

Encontro na comuni<strong>da</strong>de de Finhorn, na Escócia,<br />

onde o calor humano combate o<br />

frio e quebra o gelo <strong>da</strong>s relações humanas<br />

Tiragem<br />

16 mil<br />

As matérias assina<strong>da</strong>s são de responsabili<strong>da</strong>de dos seus autores.<br />

A reprodução é permiti<strong>da</strong> desde que cita<strong>da</strong> a fonte.<br />

Prezados colegas:<br />

U<br />

ma socie<strong>da</strong>de democrática não supõe necessariamente a ausência de conflitos. Mas é impossível conseguir a <strong>paz</strong> onde<br />

falta democracia. A oportuni<strong>da</strong>de para que todos se manifestem livremente é a base para a <strong>paz</strong>. Estes dois conceitos<br />

– <strong>paz</strong> e democracia – permeiam esta edição do Jornal do Magistrado. A começar pelo exemplo do juiz Marco Villas<br />

Boas, que transformou o exercício <strong>da</strong> Presidência do Tribunal de Justiça do Tocantins numa experiência profun<strong>da</strong>mente<br />

democrática, onde não só os juízes são ouvidos, mas também a comuni<strong>da</strong>de é convi<strong>da</strong><strong>da</strong> a participar de decisões relativas,<br />

por exemplo, à aplicação do orçamento.<br />

E participação é também a palavra-chave para entender como as comuni<strong>da</strong>des intencionais no Brasil e ao redor do<br />

mundo conseguem resolver seus conflitos com base no diálogo e no entendimento, como mostra a matéria de capa desta<br />

edição. Esta é mais uma reportagem <strong>da</strong> série que desenvolvemos sobre como se faz justiça na ausência do Estado.<br />

A preocupação com a <strong>paz</strong> está presente também na reportagem que preparamos sobre a aplicação de penas<br />

alternativas – algo que ganha importância num País onde as prisões são escolas para o crime e para a violência.<br />

Outro exemplo de que <strong>paz</strong> e democracia an<strong>da</strong>m de mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s vem <strong>da</strong> atuação do juiz Jânio de Souza Machado,<br />

de Santa Catarina. O magistrado encerrou recentemente o período de dois anos e meio em que atuou como juiz agrário<br />

itinerante – uma experiência única e pioneira no País. Instalado o conflito, Jânio não toma qualquer decisão em relação à<br />

posse <strong>da</strong> terra e à solução do impasse sem antes ouvir não só proprietários e ocupantes, mas também representantes de<br />

movimentos sociais, autori<strong>da</strong>des e a comuni<strong>da</strong>de. Como resultado deste esforço, a palavra violência foi bani<strong>da</strong> dos conflitos<br />

agrários em Santa Catarina.<br />

E ain<strong>da</strong> temos, nesta edição, reportagem que mostra como outro tipo de democracia – a democracia econômica<br />

– pode contribuir também para diminuir os índices de violência na socie<strong>da</strong>de. Modelos de economia solidária como as redes<br />

de troca têm permitido que grupos de excluídos passem a integrar o processo de consumo.<br />

Temos, enfim, uma série de experiências que nos convi<strong>da</strong>m a refletir e a contribuir para um país mais justo, mais<br />

solidário, mais democrático. E em <strong>paz</strong>. Boa leitura e até breve.<br />

Especiais<br />

Seções<br />

Moe<strong>da</strong>s sociais resgatam excluídos<br />

Cláudio Baldino Maciel<br />

Presidente<br />

Penas alternativas funcionam melhor Página 6<br />

Comuni<strong>da</strong>des alternativas vivem e fazem a <strong>paz</strong><br />

Perfil:<br />

Marco Villas Boas<br />

Memória:<br />

Raymundo Faoro<br />

Estante:<br />

O dia em que Getúlio matou Allende, de Flávio Tavares Página 13<br />

Sessão Especial:<br />

O mundo perde Marlon Brando<br />

Entrevista:<br />

Jânio de Souza Machado<br />

Arte:<br />

Os segredos do baiano João Gilberto<br />

Artigo:<br />

Josias Menescal<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

Página 14<br />

Página 20<br />

Página 4<br />

Página 10<br />

Página 17<br />

Página 18<br />

Página 24<br />

Página 26<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

3


4<br />

P e r f i l<br />

“Democracia<br />

é básico”<br />

O desembargador Marco<br />

Villas Boas, presidente<br />

do Tribunal de Justiça<br />

do Tocantins, inova na<br />

administração judiciária com<br />

moderni<strong>da</strong>de, competência<br />

e, principalmente, profundo<br />

senso democrático.<br />

Por Warner Bento Filho<br />

primeira vista, o desembargador Marco Villas Boas, presidente do Tribunal de Justiça<br />

Àdo Tocantins, parece uma pessoa calma. E ele realmente é uma pessoa calma. Seus<br />

gestos tranqüilos dão a impressão de que, se replicados por 24 horas, não conseguirão<br />

concretizar muita coisa. Mas talvez o dia dele tenha mais de 24 horas. Com to<strong>da</strong> a<br />

paciência, ele consegue cumprir – e muito bem – com as suas obrigações como presidente<br />

do tribunal. E ain<strong>da</strong> encontra tempo (e espírito) para, em frente ao cavalete, pintar a óleo<br />

belas e também tranqüilas paisagens de seu Estado. Nas horas vagas, dedica-se a escrever<br />

não só livros jurídicos (já publicou três), mas também poemas e textos sobre a história do<br />

Tocantins - o que lhe rendeu uma cadeira na Academia Tocantinense de Letras – e ain<strong>da</strong>,<br />

religioso, separa umas horinhas para trabalhar por sua Igreja. É pouco? Pois ele ain<strong>da</strong> é visto<br />

como um pai dedicado.<br />

Imagina-se que este homem não tem sono nem cansaço e talvez seja isso mesmo, já<br />

que pelo menos uma <strong>da</strong>s pessoas que trabalha com ele no Tribunal costuma receber mensagens<br />

no celular às três ou quatro horas <strong>da</strong> manhã com orientações sobre o trabalho a ser<br />

feito depois que o sol raiar.<br />

Talvez ajude a conhecer a personali<strong>da</strong>de de Marco Anthony Steveson Villas Boas a<br />

informação de que ele é mineiro de Uberaba, onde nasceu dia 22 de maio de 1962. E que,<br />

como bom mineiro, trabalhe em silêncio, discretamente. Mas não ficou muito tempo em<br />

Minas. O pacato Marco não costuma gastar muito tempo no mesmo endereço. Em seus 42<br />

anos de vi<strong>da</strong>, já mudou de ci<strong>da</strong>de pelo menos sete vezes. Em 1968, a família foi de Uberaba<br />

para Formosa, em Goiás. Nove anos depois, volta para a ci<strong>da</strong>de, para fazer o colegial. Em<br />

1980, ingressa na Facul<strong>da</strong>de de Direito do Triângulo Mineiro, mas termina o curso em Brasília,<br />

na Facul<strong>da</strong>de de Direito do Distrito Federal (Ceub), em 1986. Então passou a advogar<br />

em Goiás e no DF, até 1989, quando prestou concurso para a magistratura no recém-criado<br />

estado do Tocantins e começou uma nova vi<strong>da</strong>. Iniciou a carreira em Dianópolis. Três anos<br />

depois, estava em Colméia e no ano seguinte, em Porto Nacional, já na Comarca de 3ª<br />

Entrância. Foi eleito juiz corregedor em quatro oportuni<strong>da</strong>des. Em 1994, foi escolhido para<br />

compor o Tribunal Regional Eleitoral. Em 1996, é removido por merecimento para o Juizado<br />

Especial Criminal <strong>da</strong> Comarca de Palmas, o primeiro a ser implantado no Tocantins. No<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO<br />

mesmo ano, é escolhido para exercer o cargo de juiz eleitoral <strong>da</strong> 29ª Zona, em Palmas, e<br />

em 1998 passa a ser juiz membro do Tribunal Regional Eleitoral. Em 2001 é promovido, por<br />

merecimento, a desembargador. No ano seguinte é eleito presidente <strong>da</strong> Corte.<br />

Uma carreira rápi<strong>da</strong>, que fez de Marco Villas Boas não apenas um jovem desembargador,<br />

mas um jovem presidente de tribunal. Sua pouca i<strong>da</strong>de impressiona os colegas,<br />

acostumados a presidentes de cabelos brancos. O juiz Mozart Vala<strong>da</strong>res Pires, presidente<br />

<strong>da</strong> Associação dos Magistrados do Estado de Pernambuco (Amepe), conheceu-o no Recife.<br />

“Mas você é muito jovem!”, surpreendeu-se Mozart. “É que o Estado é jovem”, respondeulhe<br />

o Desembargador.<br />

Mu<strong>da</strong>nça<br />

M a r c o V i l l a s B o a s<br />

Mineiro de Uberaba, Marco Villas Boas trabalha em silêncio, mas intensamente. Colaboradores seus costumam<br />

Experiente, embora jovem, inquieto e ao mesmo tempo paciente, Marco Villas Boas<br />

chegou à Presidência do Tribunal com determinação e vontade de mu<strong>da</strong>r. Não apenas a<br />

burocracia, mas sim mu<strong>da</strong>r conceitos, princípios. E acabou inaugurando uma nova maneira<br />

de administrar que serve de exemplo para todo o País.<br />

A passagem pelas diversas comarcas do Estado tinha lhe <strong>da</strong>do a experiência necessária<br />

para intuir as principais deman<strong>da</strong>s, os principais problemas do judiciário no Estado e o que<br />

precisava ser feito para vencê-los. Mas em lugar de impor qualquer decisão, chamou todos<br />

a opinarem. E aqui está a grande inovação trazi<strong>da</strong> por Villas Boas. Simples como costumam<br />

ser as boas idéias.<br />

O princípio <strong>da</strong> democracia se tornou a principal marca <strong>da</strong> administração do Desembargador.<br />

Seja para planejar o futuro <strong>da</strong> Justiça no Estado, seja para definir o orçamento, seja<br />

para montar uma rede de computadores, todos são ouvidos.<br />

Logo no começo de seu man<strong>da</strong>to, formou uma comissão de juízes que percorreu<br />

to<strong>da</strong>s as 45 comarcas do Tocantins, em 139 municípios, ouvindo juízes, servidores e a<br />

comuni<strong>da</strong>de. As informações recolhi<strong>da</strong>s conformaram uma ver<strong>da</strong>deira radiografia do Poder<br />

Judiciário no estado e serviram de base para a formação <strong>da</strong> proposta orçamentária e do<br />

Plano Plurianual.


eceber mensagens pelo telefone em plena madruga<strong>da</strong><br />

O diretor-geral do TJ do Tocantins, Jonas Demóstene Barros, participou do processo.<br />

“Muitas vezes nós simplesmente nos limitávamos a ouvir críticas, e críticas severas”, conta.<br />

“As reclamações mais freqüentes eram a morosi<strong>da</strong>de e a acessibili<strong>da</strong>de à Justiça. Fomos verificar<br />

as causas e vimos que as duas questões estavam relaciona<strong>da</strong>s com falta de estrutura, de<br />

equipamentos de informática e de capacitação dos servidores”, diz.<br />

Cogumelo atômico<br />

Foto: <strong>AMB</strong><br />

No Tocantins, com apenas 15 anos de emancipação, ain<strong>da</strong> há muito por construir. Enquanto<br />

fazia parte do estado de Goiás, a região teve, segundo Villas Boas, no máximo seis juízes.<br />

Logo que o Estado foi criado, havia sete desembargadores e quatro juízes de primeiro grau. Os<br />

primeiros anos de emancipação sugaram os recursos para obras de infra-estrutura, abertura de<br />

estra<strong>da</strong>s e a própria construção <strong>da</strong> capital, Palmas. A Belém-Brasília era a única rodovia asfalta<strong>da</strong><br />

em todo o Estado. Em quinze anos, foram construídos quatro mil quilômetros de asfalto.<br />

“A gente sabia que estava chegando em Palmas por causa <strong>da</strong> grande nuvem de poeira<br />

que havia permanentemente sobre a ci<strong>da</strong>de, como um cogumelo atômico”, conta Villas<br />

Boas. A necessi<strong>da</strong>de de grandes empreendimentos deixou poucos recursos para o Judiciário<br />

e até hoje as deficiências são grandes. “Nem máquina de escrever o Judiciário tinha”, lembra<br />

o Desembargador. É claro que as deficiências detecta<strong>da</strong>s pelo diagnóstico feito pela comissão<br />

não poderiam ser supera<strong>da</strong>s em apenas dois anos e, por isso, o Presidente recomendou a<br />

elaboração de um projeto de plano judiciário para dez anos.<br />

Um dos envolvidos neste trabalho, o desembargador Rafael Barbosa <strong>da</strong> Silva, surpreende-se<br />

com o resultado. “Houve uma participação muito grande dos magistrados. Se não<br />

fosse um processo democrático, não teríamos o sucesso que tivemos”, avalia.<br />

Além de man<strong>da</strong>r representantes para o interior, a fim de ouvir magistrados e a comuni<strong>da</strong>de,<br />

o desembargador encontra tempo para viajar ele próprio às comarcas, numa<br />

espécie de prestação de contas, às vezes com a participação <strong>da</strong> OAB e do Ministério Público.<br />

São oportuni<strong>da</strong>des que ele usa não só para falar do trabalho que vem desenvolvendo, mas<br />

também para mais uma vez discutir as deficiências do sistema e ouvir a comuni<strong>da</strong>de.<br />

Modernização<br />

Além do senso democrático e <strong>da</strong> competência administrativa, Villas Boas também impressiona<br />

pelo esforço de modernização do Judiciário. A Justiça do Tocantins está interliga<strong>da</strong><br />

online por um sistema de intranet. To<strong>da</strong>s as comarcas estão interliga<strong>da</strong>s com o Tribunal de<br />

Justiça, o que permitiu a unificação dos bancos de <strong>da</strong>dos. Hoje, é possível consultar qualquer<br />

processo, em qualquer instância, pela internet, a partir <strong>da</strong> a<strong>da</strong>ptação de um sistema<br />

de acompanhamento processual cedido pelo Tribunal de Justiça do Ceará. “Nesse projeto<br />

também estiveram envolvidos os juízes de primeiro grau, opinando sobre a arquitetura <strong>da</strong><br />

rede e apresentando sugestões para as adequações do sistema”, conta Villas Boas.<br />

“Sempre entendi que é interessante ouvir o que as pessoas têm a dizer. A crítica é<br />

sempre bem-vin<strong>da</strong>, mesmo sendo destrutiva, porque aju<strong>da</strong> a melhorar o trabalho. A falta de<br />

diálogo é responsável por grande parte dos problemas. A instituição <strong>da</strong> democracia é básica<br />

para o perfeito funcionamento do estado, em todos os poderes”, diz.<br />

A página do tribunal na internet foi indica<strong>da</strong> pelo jornal Folha De S. Paulo como o<br />

melhor site institucional <strong>da</strong> região Norte no ano passado. Lá é possível encontrar, além de<br />

notícias, jurisprudência e informações sobre os desembargadores, todos os demonstrativos<br />

fiscais, como balanços financeiros, balanços orçamentários, patrimoniais e outros.<br />

A modernização também passa pela formação e treinamento de magistrados e servidores.<br />

A partir de um convênio com a Universi<strong>da</strong>de do Tocantins, começa agora em agosto<br />

uma série de cursos à distância para qualificação do pessoal do interior. A mesma parceria<br />

permitiu, também, a criação de um curso superior de técnico jurídico, que será oferecido a<br />

todos os servidores do Poder Judiciário que tenham o segundo grau completo. “É preciso<br />

pensar numa administração duradoura”, diz o desembargador.<br />

Sendo democrático, <strong>da</strong>ndo espaço para que todos se expressem, em lugar de enfraquecer-se<br />

o presidente do TJ-TO ganha força e admiração: “ele não tem empregados nem<br />

colaboradores. O que ele tem são seguidores”, diz o diretor-geral do TJ, amigo e admirador<br />

confesso do chefe. “Ele é a prova de que a administração pública no Brasil é viável. É possível<br />

fazer muito com pouco ou quase na<strong>da</strong>. Basta empenho e comprometimento <strong>da</strong> equipe”,<br />

elogia Demóstene. “Ele é um bom administrador, uma pessoa dinâmica e interessa<strong>da</strong>”, resume<br />

o desembargador Rafael.<br />

Este dinâmico e interessado presidente de tribunal ain<strong>da</strong> guar<strong>da</strong> outras particulari<strong>da</strong>des:<br />

primeiro, desenvolveu uma boa relação com as associações de juízes, o que permite<br />

que o tribunal e as enti<strong>da</strong>des desenvolvam trabalhos conjuntos com bons resultados. “Ele<br />

sempre nos ouve e nos chama a participar. Temos ótimo relacionamento com o Tribunal”,<br />

testemunha a presidente <strong>da</strong> Associação de Magistrados do Estado do Tocantins (Asmeto),<br />

Ângela Prudente.<br />

Segundo, não nomeou nenhum parente para cargos no Tribunal. “O critério é a competência”,<br />

avisa o desembargador. “Não que meus parentes sejam incompetentes, mas eles<br />

estão em Uberaba e é bom que continuem por lá”, completa.<br />

Foto: divulgação<br />

O presidente do TJ-TO em reunião: “sempre entendi que é importante ouvir o que as pessoas têm a dizer”<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

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6<br />

E s p e c i a l<br />

Os presídios brasileiros, além de custarem caro ao bolso do contribuinte, estão superlotados e não oferecem condições dignas aos internos<br />

Alternativa ao fracasso<br />

As penas alternativas, embora apresentem melhores índices de recuperação,<br />

com baixa reincidência e custem muito menos aos cofres públicos, são pouco<br />

utiliza<strong>da</strong>s no Brasil. Mas a reali<strong>da</strong>de vem mu<strong>da</strong>ndo<br />

Vinte anos após a inclusão <strong>da</strong>s penas alternativas na legislação brasileira, o País ain<strong>da</strong> dá<br />

os primeiros passos para implementá-las de fato. Em 2003, de acordo o Ministério<br />

<strong>da</strong> Justiça, 33 mil pessoas foram beneficia<strong>da</strong>s com penas restritivas de direito, o que<br />

corresponde a apenas 11% <strong>da</strong> população carcerária brasileira. Poderiam ser muito mais<br />

os apenados a cumprirem suas sentenças fora de prisões, dizem os especialistas. No<br />

Reino Unido, por exemplo, onde a política de encarceramento vem sendo substituí<strong>da</strong> pela<br />

aplicação progressiva de penas não-privativas de liber<strong>da</strong>de, este índice chega a 80%.<br />

O quadro, no entanto, vem melhorando no Brasil. Segundo o Censo Penitenciário<br />

de 1995, eram aplica<strong>da</strong>s no País na época cerca de 2% de substitutivos penais em relação<br />

à pena privativa de liber<strong>da</strong>de. De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO<br />

(Depen), naquele ano, para uma população carcerária de 126.169 presos, apenas 2.524<br />

beneficiários receberam penas ou medi<strong>da</strong>s alternativas. “É por isso que o avanço dos últimos<br />

anos, ain<strong>da</strong> que insuficiente, é muito importante”, diz Deniz Mizne, diretor executivo do<br />

Instituto Sou <strong>da</strong> Paz, uma organização não-governamental que trabalha para a redução <strong>da</strong><br />

violência no Brasil.<br />

Recuperação<br />

Foto: Agência Estado<br />

Por Gisele Teixeira<br />

Há um consenso entre os especialistas, de que as possibili<strong>da</strong>des de recuperação de<br />

quem cometeu um delito considerado leve são comprova<strong>da</strong>mente muito maiores quando


o condenado não cumpre sua pena em regime fechado. Além disso, as chances de a pessoa<br />

reincidir são menores - em torno de 12%, contra o índice de 80% <strong>da</strong>s prisões brasileiras.<br />

Outro fator positivo é que, embora a aplicação de penas e medi<strong>da</strong>s alternativas,<br />

de acordo com a legislação vigente, não represente um “esvaziamento” dos presídios,<br />

impede o agravamento <strong>da</strong> superpopulação carcerária. O que não é pouco. De acordo<br />

com o Ministério <strong>da</strong> Justiça, o Brasil tem atualmente déficit de 100 mil vagas nos<br />

presídios. O governo gasta mais de US$ 1,5 bilhão por ano para manter a população<br />

carcerária do País, sendo que o custo mensal <strong>da</strong> manutenção do preso é, em média<br />

de R$ 680, ao passo que a aplicação de uma pena alternativa gira em torno de R$ 70<br />

por mês.<br />

Para aju<strong>da</strong>r a alavancar este processo, o país possui hoje uma rede de<br />

uni<strong>da</strong>des convenia<strong>da</strong>s com o Ministério <strong>da</strong> Justiça. São as 37 Centrais de Apoio e<br />

Acompanhamento às Penas e Medi<strong>da</strong>s Alternativas (Ceapa), organiza<strong>da</strong>s em 25 estados.<br />

Também colaboram neste esforço cinco varas de execução especializa<strong>da</strong>s: em Fortaleza,<br />

Recife, Porto Alegre, Salvador e Belém.<br />

Regras de Tóquio<br />

Márcio Thomaz Bastos:<br />

“Esperamos que em pouco<br />

tempo, pelo menos nas<br />

capitais, tenhamos uma vara<br />

especializa<strong>da</strong> que possa<br />

acompanhar com atenção o<br />

cumprimento <strong>da</strong> pena.”<br />

A gerente <strong>da</strong> Central Nacional de Apoio às Penas e Medi<strong>da</strong>s Alternativas (Cenapa),<br />

Heloísa Adário, conta que esta estrutura começou a ser organiza<strong>da</strong> no Brasil a partir <strong>da</strong><br />

elaboração <strong>da</strong>s Regras Mínimas <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s para a Elaboração de Medi<strong>da</strong>s Não-<br />

Privativas de Liber<strong>da</strong>de, as chama<strong>da</strong>s Regras de Tóquio. Elas foram recomen<strong>da</strong><strong>da</strong>s pela<br />

ONU, em 1990, com a finali<strong>da</strong>de de se instituírem meios mais eficazes de melhoria na<br />

prevenção <strong>da</strong> criminali<strong>da</strong>de e no tratamento dos delinqüentes.<br />

Depois, a Lei nº 9.099, de 1995, e a Lei nº 10.259, de 2001, que instituíram os<br />

Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito <strong>da</strong> Justiça Federal e Estadual, respectivamente,<br />

abriram uma importante via alternativa de reparação consensual do <strong>da</strong>nos resultantes <strong>da</strong><br />

infração. Além destas, também é considera<strong>da</strong> importante a Lei nº 9.714, de 1998, que<br />

ampliou consideravelmente o âmbito de aplicação <strong>da</strong>s penas alternativas, alcançando os<br />

condenados a até quatro anos de prisão (excluindo os condenados por crimes violentos)<br />

e instituindo dez sanções restritivas em substituição à pena de prisão. A criação <strong>da</strong> Cenapa,<br />

em 2000, no âmbito <strong>da</strong> Secretaria Nacional de Justiça, fechou o elo necessário para que as<br />

penas começassem a ser mais aplica<strong>da</strong>s.<br />

Mas ain<strong>da</strong> é preciso vencer alguns entraves. Entre eles, ampliar a divulgação dos<br />

tipos de penas e criar condições para que elas sejam realmente cumpri<strong>da</strong>s. Durante<br />

a Conferência Internacional de Penas e Medi<strong>da</strong>s Alternativas, realiza<strong>da</strong> em maio, em<br />

Brasília, o ministro <strong>da</strong> Justiça, Márcio Thomaz Bastos, se comprometeu a estimular<br />

este processo que, segundo ele, “é fruto de uma concepção mais humanista, custa<br />

menos ao Estado e tem baixa reincidência criminal”. Ele destaca que a mu<strong>da</strong>nça do<br />

panorama se <strong>da</strong>rá pela divulgação dos resultados positivos obtidos por essa via.<br />

Desconhecimento<br />

Foto: Elza Fiúza<br />

Mas é preciso também vencer o desconhecimento que ain<strong>da</strong> existe por parte <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> mídia. De acordo com o juiz federal Walter Nunes <strong>da</strong> Silva Júnior, do Rio<br />

Grande do Norte, “o Brasil tem uma cultura de prisão como sinônimo de pena”. Segundo<br />

ele, ain<strong>da</strong> persiste a imagem de que quem cometeu um crime tem como única alternativa<br />

ir para o cárcere. “Caso contrário, houve impuni<strong>da</strong>de”, diz.<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

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8<br />

E s p e c i a l<br />

Foto: Divulgação<br />

Para a diretora executiva do Instituto Brasileiro de Execução Penal, Márcia de<br />

Alencar, essa impressão é enganosa. Segundo ela, as penas alternativas “punem melhor<br />

e hierarquizam o grau de sanção diante <strong>da</strong> tipologia do crime, gerando coerência na<br />

administração do sistema <strong>da</strong> justiça criminal”. Márcia destaca que a ação criminosa de alta<br />

periculosi<strong>da</strong>de guar<strong>da</strong> outra lógica dentro do campo <strong>da</strong> criminali<strong>da</strong>de. “Dessa forma, o<br />

Estado e a socie<strong>da</strong>de não podem oferecer a mesma resposta penal”, conclui.<br />

A Secretária Nacional de Justiça, Cláudia Chagas, destaca que o comodismo <strong>da</strong>s<br />

instituições, que caíram na facili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s cestas básicas no início deste processo, deu às<br />

vítimas, durante um bom tempo, “a sensação de que saiu muito barato”. Segundo ela,<br />

se a pessoa tem recursos, o pagamento de uma cesta básica, por exemplo, não vai surtir<br />

nenhum efeito. Caso o condenado não tenha dinheiro, vai penalizar to<strong>da</strong> a família. Hoje, o<br />

quadro começa a mu<strong>da</strong>r. Do total <strong>da</strong> população carcerária condena<strong>da</strong> a penas alternativas<br />

em 2003, 70% prestaram serviços à comuni<strong>da</strong>de, sendo que os demais receberam<br />

como pena a prestação pecuniária, segui<strong>da</strong> de penas de limitação de fim de semana e<br />

multa. Atualmente, a legislação oferta aos aplicadores <strong>da</strong> lei dez mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des possíveis de<br />

penas fora dos estabelecimentos prisionais. Elas incluem, além <strong>da</strong>s já cita<strong>da</strong>s, proibição de<br />

exercício de cargo público e per<strong>da</strong> de bens, entre outras.<br />

Varas especializa<strong>da</strong>s<br />

Para ampliar a aplicação deste tipo de pena no Brasil, o Governo Federal quer<br />

estimular que tribunais estaduais criem, em to<strong>da</strong>s as uni<strong>da</strong>des <strong>da</strong> federação, varas de<br />

execução especializa<strong>da</strong>s em penas alternativas. “Esperamos que em pouco tempo, pelo<br />

menos nas capitais, tenhamos uma vara especializa<strong>da</strong> que possa acompanhar com atenção o<br />

cumprimento <strong>da</strong> pena”, diz Thomaz Bastos.<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO<br />

Haroldo Coreia Lima:<br />

“A disseminação passa<br />

pela instalação <strong>da</strong>s varas,<br />

prioriatariamente nas<br />

capitais e ci<strong>da</strong>des com maior<br />

densi<strong>da</strong>de demográfica.”<br />

Esta é uma medi<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>mental para a ampliação <strong>da</strong> aplicação <strong>da</strong>s penas alternativas,<br />

segundo o juiz Haroldo Correia de Oliveira Máximo, titular <strong>da</strong> Vara Especializa<strong>da</strong> de<br />

Execução de Penas Alternativas de Fortaleza (CE), a primeira do Brasil, cria<strong>da</strong> em<br />

novembro de 1998. “A disseminação passa pela instalação <strong>da</strong>s varas, prioritariamente nas<br />

capitais e ci<strong>da</strong>des com maior densi<strong>da</strong>de demográfica”, diz. O juiz informa que antes <strong>da</strong><br />

criação <strong>da</strong> vara especializa<strong>da</strong> em Fortaleza, a aplicação de penas alternativas oscilava em<br />

torno de 5% do número de sentenças condenatórias transita<strong>da</strong>s em julgado. “Atualmente,<br />

é de 25%, sem incluir medi<strong>da</strong>s alternativas como o Sursis e a suspensão condicional do<br />

processo”, informa.<br />

Máximo ressalta que a meta prioritária deste tipo de pena é a ressocialização<br />

<strong>da</strong>queles que transgrediram regras sociais. Em sua opinião, as alternativas penais<br />

são uma forma de garantir a reinserção do condenado à socie<strong>da</strong>de, humanizar o<br />

cumprimento <strong>da</strong> pena e atribuir a ela uma finali<strong>da</strong>de social. Ele destaca ain<strong>da</strong> o<br />

baixo índice de reincidência. Para o juiz, isso se deve ao trabalho de uma equipe<br />

multidisciplinar composta por profissionais de psicologia, assistência social e direito.<br />

E ao acompanhamento do cumprimento <strong>da</strong> pena. “Em Fortaleza, a Vara mantém<br />

convênio com 150 instituições que recebem 500 condenados que prestam serviços<br />

nesses locais”, explicou.<br />

Formação<br />

Entre os programas desenvolvidos estão projetos de qualificação para o trabalho,<br />

tratamento de saúde mental e dependência química e projetos de escolarização – segundo<br />

<strong>da</strong>dos nacionais, de 2003, 40,6% dos apenados possuem apenas o ensino fun<strong>da</strong>mental<br />

incompleto. “Em Fortaleza, oito turmas já concluíram cursos de formação profissional,


como bombeiro hidrosanitário e eletricista, o equivalente a 30%, em média, do total de<br />

sentenciados a partir de 2001”, informa Máximo.<br />

Outro bom exemplo vem <strong>da</strong> Ceapa de Minas Gerais. Em 2003, foram atendidos<br />

1.223 beneficiários de penas e medi<strong>da</strong>s alternativas nos municípios de Contagem, Ribeirão<br />

<strong>da</strong>s Neves e Juiz de Fora. Em sua maioria, do sexo masculino, solteiros e com escolari<strong>da</strong>de<br />

de nível fun<strong>da</strong>mental. Desse total, 69,1% prestaram serviços à comuni<strong>da</strong>de, 15,3%<br />

receberam pena de prestação pecuniária e 14,0% de cesta básica. Naquele estado, o<br />

trabalho de monitoramento <strong>da</strong>s penas é encarado como uma política de prevenção à<br />

criminali<strong>da</strong>de, e não exclusivamente como meio de execução penal.<br />

As Centrais de Apoio e Acompanhamento às Penas e Medi<strong>da</strong>s Alternativas vêm<br />

cumprindo um papel importante na estruturação do sistema, e enquanto não se implementam<br />

mais varas especializa<strong>da</strong>s. Elas são responsáveis pelo acompanhamento e fiscalização <strong>da</strong>s<br />

penas. “A eficácia e o sucesso de uma intervenção dependem diretamente <strong>da</strong> fiscalização”, diz<br />

o juiz estadual Henaldo Silva Moreira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.<br />

Inovação<br />

Deniz Mizne: “O Brasil<br />

precisa de um trabalho de<br />

monitoramento e fiscalização <strong>da</strong><br />

aplicação e também de melhoria<br />

e capacitação de enti<strong>da</strong>de<br />

que recebem os apenados.”<br />

Também do Distrito Federal, a promotora de Justiça do Ministério Público Estadual,<br />

Fabiana Costa Oliveira Barreto, traz outras boas notícias. Ela destaca que a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de<br />

conseguiu reduzir o tempo e os custos do julgamento de um processo em relação à<br />

Justiça comum. “São dois anos, contra nove a dez anos <strong>da</strong> Justiça comum”, compara.<br />

Segundo Fabiana, isso acontece porque houve uma inovação e desburocratização do<br />

Termo Circunstanciado; instituiu-se o mecanismo <strong>da</strong> transação penal e, ain<strong>da</strong>, possibilitouse<br />

a concentração <strong>da</strong> aplicação e <strong>da</strong> execução <strong>da</strong> pena em uma mesma pessoa. “Isso sem<br />

macular as garantias dos envolvidos”, completa.<br />

A promotora informa que, em pesquisa realiza<strong>da</strong> com beneficiários de penas<br />

alternativas no Distrito Federal, 78% dos entrevistados disseram não se sentir pressionados<br />

a receber uma pena alternativa. A maioria – 75% - achou correta a atitude <strong>da</strong> Justiça. “Os<br />

25% restantes apresentaram resposta negativa porque alegaram não ter cometido nenhum<br />

delito”, explica. Além disso, 62% acharam que tiveram oportuni<strong>da</strong>de de defesa.<br />

Estes resultados positivos aumentam a responsabili<strong>da</strong>de do envolvidos <strong>da</strong>qui para<br />

frente. Para o diretor executivo do Instituto Sou <strong>da</strong> Paz ain<strong>da</strong> falta uma série de ações para<br />

que o processo decole. Ele enumera, em primeiro lugar, uma maior conscientização dos<br />

juízes sobre a aplicação, as possibili<strong>da</strong>des e a importância dessas penas. “Além disso, o Brasil<br />

necessita de um trabalho de monitoramento e de fiscalização <strong>da</strong> aplicação e também de<br />

melhoria e capacitação <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des que recebem os apenados”, acrescenta Mizne.<br />

Por último, destaca que o papel <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de civil, <strong>da</strong>s ongs e dos institutos de pesquisa,<br />

por exemplo, ain<strong>da</strong> é muito sub-utilizado. “Esta questão ain<strong>da</strong> é vista como sendo apenas <strong>da</strong><br />

Justiça”, declara. Desde o ano passado, a Sou <strong>da</strong> Paz tem estu<strong>da</strong>do esse tema para elaborar<br />

um projeto de intervenção sobre penas alternativas e uma campanha de conscientização e<br />

estímulo para que elas sejam aplica<strong>da</strong>s. “É um processo em construção”, acrescenta.<br />

Perfil<br />

Foto: Cacalo Garrastazu<br />

O perfil do beneficiário de penas e medi<strong>da</strong>s alternativas no Brasil, segundo o Ministério<br />

<strong>da</strong> Justiça, é o mesmo <strong>da</strong> população <strong>da</strong>s prisões: 65% deles têm de 18 a 35 anos, são<br />

predominantemente do sexo masculino (87%), 70% têm ensino fun<strong>da</strong>mental e cerca de<br />

50% cometeram crime contra o patrimônio. Em 2003, os principais delitos foram furto<br />

(20,2%), porte ilegal de arma (16,2 %), lesão corporal culposa (16,1%) e uso indevido de<br />

entorpecentes (14,4%).<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

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10<br />

M e m ó r i a<br />

Um brasileiro: Raymundo Faoro<br />

Um enfisema pulmonar levou, há um ano, um dos maiores juristas brasileiros, que denunciou torturas a presos<br />

políticos na ditadura militar e liderou a luta pela anistia. Ferrenho defensor <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des individuais, Raymundo<br />

E<br />

m maio passado completou um ano que o Brasil perdeu Raymundo Faoro, um de<br />

seus filhos mais cultos, que muito lutou para restabelecer a democracia no país, abati<strong>da</strong><br />

pelo golpe militar de 1964.<br />

Mais conhecido por seu livro “Os Donos do Poder”, escrito em 1958, o jurista e<br />

acadêmico foi eleito presidente <strong>da</strong> Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 1977, para<br />

onde entrara seis anos antes, como representante de seu estado natal, o Rio Grande do<br />

Sul. Aqueles eram tempos difíceis, para o país e os advogados. Os Atos Institucionais ain<strong>da</strong><br />

estavam em vigor, boatos de torturas de presos políticos se confirmavam a todo o momento,<br />

e o habeas corpus era uma figura jurídica nega<strong>da</strong> pelo regime militar.<br />

Faoro tomou posse na OAB em 1º de abril de 1978, mesmo dia em que o então<br />

presidente <strong>da</strong> República, general Ernesto Geisel, fechou o Congresso e editou o Pacote de<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO<br />

Faoro morreu querendo ser lembrado apenas como “seu Raymundo”.<br />

Por Ângela Regina Cunha<br />

Abril, criando os senadores “biônicos” e praticamente garantindo a vitória do candi<strong>da</strong>to do<br />

regime militar na eleição indireta. Com Faoro na presidência, a OAB, ao lado <strong>da</strong> Associação<br />

Brasileira de Imprensa (ABI) e <strong>da</strong> Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tornou-se<br />

uma instituição combativa e influente. Nos dois anos de sua gestão, Faoro deu ao<br />

cargo uma dimensão única e, à enti<strong>da</strong>de, um peso político que permaneceria ain<strong>da</strong> algum<br />

tempo após o restabelecimento <strong>da</strong> democracia.<br />

Em 1978, a VII Conferência Nacional dos Advogados aprovou a Declaração de<br />

Curitiba, de repúdio ao estado de exceção vigente no país, pedindo a revogação dos atos<br />

institucionais e a anistia ampla, geral e irrestrita. Durante a Conferência, o presidente Geisel<br />

comunicou, através de senador Petrônio Portela e do representante <strong>da</strong> presidência <strong>da</strong> República,<br />

ministro Rafael Mayer, que seria decreta<strong>da</strong> a anistia.<br />

Foto: Agência Estado


Na gestão de Faoro (1977-1979), o Conselho Federal <strong>da</strong> OAB ain<strong>da</strong> se pronunciaria,<br />

através de parecer do conselheiro Sepúlve<strong>da</strong> Pertence, sobre o projeto de lei <strong>da</strong> anistia,<br />

concluindo que a proposta do Governo era um mero indulto coletivo e que, enquanto subsistissem<br />

a Lei de Segurança Nacional e a comuni<strong>da</strong>de de informações (representa<strong>da</strong> pelo<br />

temido SNI), não haveria espaço para o regime democrático pleno. A anistia só foi aprova<strong>da</strong><br />

pelo presidente Figueiredo, em agosto de 1979, depois <strong>da</strong> forte pressão <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />

Numa época em que os partidos políticos tinham participação limita<strong>da</strong> nas grandes<br />

decisões nacionais, o advogado Faoro lutava na oposição e transformou a OAB num instrumento<br />

real de diálogo, que atuava sem submissão aos militares.<br />

“Seu êxito à frente <strong>da</strong> OAB deve-se não ao fato de ele ter sido um grande jurista, mas<br />

sim porque, como um cientista político, ele soube, num momento difícil para o país, conduzir<br />

negociações com figuras <strong>da</strong> ditadura sem jamais perder a digni<strong>da</strong>de”, lembra o advogado<br />

Hélio Saboya, ex-presidente <strong>da</strong> OAB-RJ e colega de Faoro na Procuradoria do Estado do<br />

Rio de Janeiro.<br />

Através de Petrônio Portela, um hábil negociador, Faoro foi recebido pelo presidente<br />

Geisel. Uma história conta<strong>da</strong> na época ganhou tons de ver<strong>da</strong>de ao longo dos anos.<br />

Segundo ela, Geisel teria perguntado ao presidente <strong>da</strong> OAB o que poderia fazer pela<br />

abertura política e sinalizar para a socie<strong>da</strong>de civil essa disposição. “Restabeleça o habeas<br />

corpus”, disse-lhe Faoro.<br />

Geisel duvidou que aquilo pudesse ter reflexo na vi<strong>da</strong> política do país e no dia-a-dia<br />

do ci<strong>da</strong>dão brasileiro. Mas, antes de entregar o cargo a seu sucessor, o general João Baptista<br />

Figueiredo, enviou ao Congresso emen<strong>da</strong> abolindo o AI-5 e restabelecendo o habeas corpus.<br />

Faoro conseguira convencer o general presidente <strong>da</strong> importância <strong>da</strong>quele instrumento<br />

jurídico que, restabelecido, permitiu aos advogados localizar presos e acabar com a tortura<br />

nos cárceres políticos.<br />

“Não sei como ele e o Portella se aproximaram, mas os dois passaram a agir juntos,<br />

sem submissão. A OAB era um canal de diálogo, já que os partidos políticos não existiam<br />

na prática. E Faoro sozinho valia por to<strong>da</strong> a oposição”, conta Saboya.<br />

Nascido em 27 de abril de 1925, em Vacaria (RS), filho de agricultores, Raymundo<br />

Faoro mudou-se em 1930 com a família para Caçador (SC), onde fez o curso secundário<br />

no Colégio Aurora. Formou-se em Direito pela Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande<br />

do Sul e, em 1951, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a advogar. Em 1963,<br />

passou no difícil concurso para a Procuradoria do então Estado <strong>da</strong> Guanabara. Casouse<br />

com Pompéia, com quem teve três filhos, Angela, Antônio e André, que lhe deram<br />

sete netos.<br />

Desde muito jovem colaborou com a imprensa. Em 1947, ajudou a fun<strong>da</strong>r no<br />

Rio Grande do Sul a revista “Quixote”. Colaborou com diversos jornais e revistas do<br />

Sul, Rio e São Paulo. Seus últimos artigos foram para a revista “Carta Capital”, do amigo<br />

Mino Carta. Apesar do permanente contato com a imprensa, Faoro não procurava<br />

agra<strong>da</strong>r a ninguém.<br />

“Ele conquistava as pessoas, como conquistou o respeito <strong>da</strong> imprensa”, diz Saboya.<br />

O advogado carioca conta que, só uma vez, a relação dos dois quase ficou estremeci<strong>da</strong>.<br />

Foi quando Saboya deu um parecer na Procuradoria de Serviços Públicos com o qual<br />

Faoro não concordou.<br />

“Soube que ele ficou furioso. Fui até ele e disse: “não vai ficar zangado comigo só por<br />

causa de uma frase infeliz”. Saboya temia perder o amigo de mesa de papo e uísque nos<br />

fins de tarde depois do expediente na Procuradoria. “Lá, ele relaxava e contava casos do<br />

Rio Grande do Sul. Faoro era bravo com todo mundo, mas morria de medo <strong>da</strong> Pompéia,<br />

mulher dele”, relembra Saboya.<br />

O amigo conta ain<strong>da</strong> que Faoro sempre resistiu à idéia de entrar para a Academia Brasileira<br />

de Letras, apesar <strong>da</strong> consagração de “Os Donos do Poder”, livro que mereceu uma<br />

segun<strong>da</strong> edição em 1975, revista e amplia<strong>da</strong> de 271 para 766 páginas pelo próprio autor, e<br />

sucessivas reedições.<br />

Como imortal, Faoro só foi duas vezes à Academia: uma, no dia <strong>da</strong> eleição, outra,<br />

no dia <strong>da</strong> posse. Mas, desde sua eleição, por unanimi<strong>da</strong>de, em novembro de 2001, para<br />

a cadeira 6, antes ocupa<strong>da</strong> por Barbosa Lima Sobrinho, ele resolveu aparecer em algumas<br />

<strong>da</strong>s reuniões <strong>da</strong>s terças-feiras quando contava histórias saborosas e reafirmava suas posições<br />

sempre duras, segundo o então presidente <strong>da</strong> ABL, Alberto Costa e Silva.<br />

“Ele não gostava de se gabar <strong>da</strong>s lutas políticas. Sua grande importância foi como intérprete<br />

dos processos de formação do Brasil e do comportamento de nossas elites nesses<br />

processos”, disse Costa e Silva no velório de Faoro, no salão nobre <strong>da</strong> Academia.<br />

“Ele não se valorizou indo para a Academia, a ABL é que se valorizou com sua entra<strong>da</strong>”,<br />

analisa Saboya.<br />

Em 1989, Raymundo Faoro foi convi<strong>da</strong>do pelo PT para ser o candi<strong>da</strong>to a vice-presidente<br />

na chapa de Luiz Inácio Lula <strong>da</strong> Silva. Recusou, mas durante to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> apoiou<br />

o ex-operário e líder sindical, ao lado de quem subiu nos palanques no ABC paulista nas<br />

greves dos metalúrgicos e campanhas pela anistia e eleições diretas. Admirador do PT e<br />

eleitor confesso do atual presidente <strong>da</strong> República nas quatro últimas eleições para a presidência,<br />

Faoro, no entanto, nunca se filiou a nenhum partido. Justificou-se, numa entrevista<br />

ao jornal O Globo, a última à imprensa, uma semana antes de sua posse na ABL:<br />

“Os intelectuais não podem ter limitações partidárias ou de classe. Há de haver na<br />

socie<strong>da</strong>de um grupo de pessoas que se reserva o direito <strong>da</strong> crítica, seja quem for o governante,<br />

amigo ou inimigo”.<br />

Em 1992, assinou a pedido do presidente <strong>da</strong> Associação Brasileira de Imprensa, a<br />

petição de impeachment do então presidente Fernando Collor.<br />

Fez oposição a algumas idéias políticas e, principalmente, à política econômica do<br />

governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. “Foram oito anos de estagnação, de<br />

injustiça social, de concentração de ren<strong>da</strong>, de aumento <strong>da</strong> violência”, disse ele em 2002,<br />

quando defendeu a participação do Estado na economia e atacou as elites: “O melhor<br />

governo não é o mais ausente, é aquele que protege os interesses nacionais, abre o mercado<br />

interno. O Estado tem de ser ca<strong>paz</strong> de proteger todos os ci<strong>da</strong>dãos e não só aqueles<br />

sujeitos que o servem”.<br />

Ele via a eleição de Lula como um teste para a República que, na sua opinião, nunca<br />

deu oportuni<strong>da</strong>de a quem veio de baixo, o que aconteceu no Império.<br />

“No Império, que era aristocrático, muitos homens do povo chegaram alto, como<br />

Machado de Assis, que tinha menos instrução do que Lula. Mas a República não teve lugar<br />

para seus intelectuais, seus homens do povo e seus artistas”.<br />

Para o amigo Saboya, Faoro era um democrata e um liberal no que dizia respeito à<br />

defesa <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des, mas, do ponto de vista político e econômico, era de esquer<strong>da</strong>.<br />

“Ele era contra a implosão do Estado. Achava que a máquina do Estado era importante<br />

e não podia ficar sujeita aos interesses privados, muito menos aos interesses externos”,<br />

explicou Saboya.<br />

Mesmo entre os amigos mais próximos, Faoro era econômico nas palavras. Dava<br />

opiniões firmes, consistentes, nunca palpites sobre todos os assuntos.<br />

“Para mim, a palavra que melhor define o Faoro é paradoxal. Seu conceito e sua fama<br />

não compatibilizavam com o tipo de ação dele”, diz Saboya.<br />

Faoro gostava de Direito e de Política. Tinha rara erudição e deu à presidência <strong>da</strong> OAB<br />

uma importância que a enti<strong>da</strong>de não tinha, volta<strong>da</strong> que era para os advogados e as lides jurídicas.<br />

Mas teve coragem de defender o habeas corpus, um recurso poderoso para os advogados,<br />

quando nem todos viam a importância desse instrumento. Atribui-se a ele a criação, nos<br />

anos 70, <strong>da</strong> expressão “socie<strong>da</strong>de civil”, para diferenciar o povo dos militares então no poder.<br />

Nacionalista, lembrou em seu discurso de posse na ABL a luta de seu antecessor.<br />

“Reconstruído teoricamente por Barbosa Lima Sobrinho, o mais autêntico nacionalismo<br />

brasileiro enxotou a xenofobia, o chauvinismo e a patriota<strong>da</strong>. Não há exemplo de país que<br />

tenha se desenvolvido sem domínio de sua economia interna e sem nacionalismo. Essa<br />

tese era cara a Barbosa Lima”. E, sempre profético, previa: “Vai se retomar no mundo essa<br />

discussão do nacionalismo”.<br />

Personali<strong>da</strong>de única, um teórico do Direito, Faoro morreu no dia 15 de maio de<br />

2003 num hospital de Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro. No enterro, o ministro<br />

<strong>da</strong> Justiça, Márcio Thomaz Bastos foi emblemático ao classifica-lo. “Era um profeta”.<br />

Mas ele sempre disse que preferia ser lembrado como o chamava sua emprega<strong>da</strong>: “Seu<br />

Raymundo.”<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

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12<br />

M e m ó r i a<br />

O ABC de um<br />

Ensaísta, intelectual, historiador, cientista político, jurista, advogado, procurador do Estado do Rio de Janeiro, as múltiplas facetas de um homem rigoroso consigo<br />

mesmo e com os outros podem ser conferi<strong>da</strong>s em algumas <strong>da</strong>s definições que Raymundo Faoro deixou ao longo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> em entrevistas, discursos, artigos na<br />

imprensa e defesas.<br />

Academia “Mudei muito em relação à Academia. Não existe instituição que dê tanto para a cultura como a Academia. É claro que gente que<br />

deveria estar lá não está. Mas acho que o País mudou na Academia”.<br />

Anistia “A anistia não elimina a origem que a suscitou. O arbítrio não se apaga com a anistia, mas com sua eliminação pela instauração do<br />

direito nas relações entre os homens”.<br />

Arbítrio “O problema continuará se, concedi<strong>da</strong> a anistia, o arbítrio perdurar, não passando de remédio transitório para males crônicos, como<br />

pouco mudou com as 10 anistias de Franco” .<br />

Democracia “Unicamente por meio <strong>da</strong> democracia e seu aparelhamento institucional é que os interesses individuais se transmutam em interesses<br />

nacionais. E só por meio dela impede-se que os interesses nacionais sejam dominados pelos interesses particulares” (Discurso na 7ª<br />

Conferência <strong>da</strong> OAB, abril de 1978)<br />

Exercício <strong>da</strong> profissão “O advogado não pode ser confundido com quem defende, seja subversivo ou não”. (Em 1978, por ocasião do seqüestro, em<br />

Porto Alegre, do casal de uruguaios Lílian e Universindo Diaz, pela Polícia Federal)<br />

Habeas corpus “O habeas corpus é mais do que uma forma processual: ele se integra aos costumes, à maneira de sentir e viver <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de.<br />

Abolido o habeas corpus, a prepotência torna-se incontrastável, sem que a detenha a civilização e o controle espontâneo <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de”.<br />

(Julho de 1977)<br />

Liber<strong>da</strong>de “A liber<strong>da</strong>de só se torna efetiva com a liberação do medo – como proclama a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Nela<br />

se articulam os direitos humanos, que são o ponto final do Estado de Direito”. (Julho de 1977)<br />

Pena de morte “Um absurdo, não resolve na<strong>da</strong>. E o que é que a polícia faz na favela ou com os ex-contribuintes dela para que não revelem na<strong>da</strong>?<br />

Mata. E isso tem resolvido alguma coisa?”<br />

Poder “O poder se alarga na legitimi<strong>da</strong>de, determinável na participação mais ampla, não a participação seletiva que só a força mantém, a<br />

força arma<strong>da</strong> de sanções unicamente repressivas”. (1978)<br />

Revolução (ou golpe?) “A de 1964 quis ser uma revolução, ao lado de 1889 e de 1930. Apropriou-se, e nisso se distanciou de outras intervenções, do<br />

poder constituinte”.<br />

Socie<strong>da</strong>de civil “A socie<strong>da</strong>de civil sempre foi, no Brasil, controla<strong>da</strong> e sufoca<strong>da</strong> pela socie<strong>da</strong>de política”.<br />

Intelectual<br />

Terrorismo “À sombra do terrorismo, que é moralmente inaceitável, criou-se coisa pior que o próprio, o antiterrorismo. To<strong>da</strong>s as liber<strong>da</strong>des<br />

do ci<strong>da</strong>dão que pisa nos Estados Unidos estão suprimi<strong>da</strong>s, os ci<strong>da</strong>dãos americanos suspeitos ficam incomunicáveis, sem direito a<br />

advogado. O momento é gravíssimo porque distinguir violência política do terrorismo é muito difícil. Não existe uma definição legal<br />

de terrorismo. (Sobre os EUA pós 11 de setembro de 2001).<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO


E s t a n t e<br />

O poder de cuecas<br />

Flávio Ilha<br />

Talvez o momento mais pungente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> contemporânea brasileira tenha sido mesmo o suicídio de Vargas, naquela manhã de<br />

24 de outubro de 1954. Pela comoção pública, pelo desfecho trágico. Talvez. O fato é que vivemos, na nossa turbulenta história<br />

recente, de golpe em golpe, de supetão em supetão.<br />

Em síntese, é essa a matéria-prima do livro de Flávio Tavares – O dia em que Getúlio matou Allende (Record, 333 páginas, R$<br />

41): crises. Elas acompanham o jornalista (ou vice-versa) desde que, aos 20 anos, ele foi eleito presidente <strong>da</strong> União Estadual de<br />

Estu<strong>da</strong>ntes (UEE) gaúcha e começou, por dever de ofício, a se relacionar com o poder. E com os “empoleirados” no poder, na feliz<br />

idéia que resume sua impressão sobre essa gente: em geral manhosos, espertos, donos de um carisma indispensável à construção<br />

de personagens arraiga<strong>da</strong>s ao ritual mágico <strong>da</strong> política.<br />

Sim, porque não estamos diante de um romance (ain<strong>da</strong> que as páginas se suce<strong>da</strong>m com o gosto e a intimi<strong>da</strong>de de uma boa<br />

novela). Tavares li<strong>da</strong> com fatos, com coisas reais que presenciou e viveu. Getúlio, por exemplo: “Fazia tudo por imagens. Chegava,<br />

deixava uma impressão, a impressão de fazer alguma coisa, mas em ver<strong>da</strong>de talvez fosse só a imagem de fazer alguma coisa. O<br />

interlocutor é que se convencia de que ele fizera algo com seu poder onisciente”. A personali<strong>da</strong>de política do ditador-presidente<br />

revela-se como se estivéssemos diante de um painel ficcional <strong>da</strong>s fraquezas e <strong>da</strong>s grandezas humanas.<br />

É exemplar, portanto, a linha de abor<strong>da</strong>gem que se faz do poder e dos poderosos no livro. De Jânio: “Tudo nele era mutante, como<br />

se houvesse sido gerado e parido pelo imponderável”. De JK: “O gênio <strong>da</strong> aparência, do sorriso itinerante e <strong>da</strong> simpatia (...)”. Sem<br />

ser historiador, Tavares constrói um painel humano de nossa história. Com a diferença, sobre os acadêmicos, de que testemunhou<br />

ca<strong>da</strong> pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong>queles dias (com exceção de uma ou outra história, narra<strong>da</strong> por terceiros e checa<strong>da</strong> pelo repórter).<br />

Com Jango, o autor exercita até mesmo um certo sarcasmo. Ao se espalhar a notícia <strong>da</strong> renúncia de Jânio em plena viagem à China<br />

comunista, o então vice-presidente é apanhado de cuecas na porta do apartamento do hotel onde estava hospe<strong>da</strong><strong>da</strong> uma parte <strong>da</strong><br />

delegação brasileira, que já retornava. Era madruga<strong>da</strong> em Cingapura, a missão oficial já se encerrara e Jango decidira terminar seu<br />

périplo pelo Oriente em alto estilo. O difícil, no episódio, foi convencer a garota malaia que dormia com ele de que o fato de Jango<br />

ter sido entronizado presidente <strong>da</strong> República não a transformava em primeira-<strong>da</strong>ma do Brasil. “Foi a primeira e árdua tarefa do novo governo em cuecas, antes ain<strong>da</strong> dos difíceis obstáculos<br />

<strong>da</strong>s horas seguintes”, resume Tavares. Em outras palavras, uma espécie de suicídio político.<br />

As 264 páginas <strong>da</strong> primeira parte do livro abor<strong>da</strong>m momentos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> nossa história recente dessa forma: o poder na intimi<strong>da</strong>de de comuns mortais. Com a liturgia do cargo, é<br />

ver<strong>da</strong>de, mas com as trapalha<strong>da</strong>s, as indecisões e até os acasos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana. Uma ver<strong>da</strong>deira tragicomédia tupiniquim.<br />

Na segun<strong>da</strong> parte, Tavares apresenta textos construídos a partir do encontro com algumas <strong>da</strong>s personali<strong>da</strong>des com quem cruzou na sua agita<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de repórter mundo afora (Fri<strong>da</strong> Kahlo,<br />

De Gaulle, Guevara...). Mais uma vez, a vocação narrativa é fluente. Destaque para o encontro com o coman<strong>da</strong>nte Che, em 1961, numa conferência <strong>da</strong> OEA em Punta del Este (Uruguai).<br />

Numa analogia anatômica (e antológica) sobre a importância dos pés para um combatente, Tavares traça a trajetória do guerrilheiro até seu desfecho na Bolívia com um turbilhão de metáforas<br />

e personagens.<br />

Tudo isso em dez singelas páginas. Coisa de profissional.<br />

FOGO PÁLIDO<br />

Vladimir Nabokov<br />

Companhia <strong>da</strong>s Letras<br />

304 páginas, R$ 42,50<br />

Muito conhecido pelo seu clássico <strong>da</strong> perversão Lolita, o russo Vladimir Nabokov escreveu<br />

coisas muito melhores. Fogo Pálido, por exemplo. Fascinante relato sobre a análise<br />

literária de um poema fictício escrito em 999 linhas, lançado em 1962, o romance (escrito<br />

originalmente em inglês) havia sido publicado no Brasil numa edição do Círculo do Livro dos<br />

anos 80. Ganha, agora, uma versão mais au<strong>da</strong>ciosa, com tradução de Jório Dauster e Sérgio<br />

Duarte. Considera<strong>da</strong> pelos críticos a obra mais importante – e assombrosa – de Nabokov,<br />

Fogo Pálido mistura trama policial e delírio poético à característica linguagem irreverente do<br />

autor. Entre seus alvos, a falta de imaginação justamente <strong>da</strong> crítica literária, <strong>da</strong> qual ele foi um<br />

dos expoentes nas déca<strong>da</strong>s de 60 e 70.<br />

A DIVINA COMÉDIA DA FAMA Xico Sá<br />

Editora Objetiva<br />

240 páginas, R$ 32,90<br />

O pernambucano Xico Sá se inspira na estrutura de um clássico <strong>da</strong> literatura universal – a<br />

Divina Comédia, de Dante – para explorar os novos artifícios <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> <strong>da</strong> fama. Os ciclos<br />

do purgatório, do paraíso e do inferno, por onde circulam obrigatoriamente os modernos<br />

candi<strong>da</strong>tos à fama, são desven<strong>da</strong>dos aqui com humor e sarcasmo. Do paraíso <strong>da</strong> fama ao<br />

purgatório do anonimato, A Divina Comédia <strong>da</strong> Fama explora to<strong>da</strong>s as artimanhas dessa<br />

nova fogueira <strong>da</strong>s vai<strong>da</strong>des e de seus personagens ávidos em conquistar seu espaço no<br />

panteão <strong>da</strong> glória.<br />

CONTINHOS GALANTES Dalton Trevisan<br />

Editora L&PM<br />

112 páginas, preço a definir<br />

Continhos Galantes reúne 12 dos melhores contos de Dalton Trevisan, considerado o<br />

melhor contista brasileiro vivo. Selecionados pelo próprio autor, estas narrativas curtas foram<br />

originalmente publica<strong>da</strong>s em outros livros, mas se encontravam fora <strong>da</strong>s livrarias. Para esta<br />

edição, Trevisan fez algumas alterações e correções de texto, tornando os contos ain<strong>da</strong> mais<br />

pungentes e enxutos.<br />

O SOM E A FÚRIA Willian Faulkner<br />

Editora Cosac & Naify<br />

336 páginas, R$ 53<br />

Obra-prima de Willian Faulkner, O Som e a Fúria marca o início <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> segun<strong>da</strong> fase <strong>da</strong><br />

carreira do autor – depois de uma crise provoca<strong>da</strong> pela renúncia de seu terceiro romance<br />

– e ganha edição capricha<strong>da</strong> com tradução de Paulo Henriques Britto e apresentação de<br />

Rubens Figueiredo. O ambiente <strong>da</strong> escritura complexa de Faulkner é o sul dos Estados<br />

Unidos, escravocrata e derrotado na Guerra <strong>da</strong> Secessão, e narra a agonia de uma família <strong>da</strong><br />

velha aristocracia entre os dias 2 de julho de 1910 e 8 de abril de 1928.<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

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S é r i e<br />

Uma chance à <strong>paz</strong><br />

Por Warner Bento Filho<br />

A expressão “viver em <strong>paz</strong>” não é só um clichê para quem vive em comuni<strong>da</strong>des<br />

intencionais como as ecovilas ao redor do mundo. Fazer a <strong>paz</strong> e vivê-la é como uma<br />

obsessão entre as pessoas destes lugares. O que não quer dizer que elas não conheçam<br />

conflitos e disputas. Eles existem. Mas estas comuni<strong>da</strong>des desenvolveram diferentes maneiras<br />

de encara-los, onde o diálogo e o entendimento desempenham papel fun<strong>da</strong>mental.<br />

Comuni<strong>da</strong>des intencionais acompanham praticamente to<strong>da</strong> a história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de,<br />

com os mais diversos propósitos. Em território brasileiro, as primeiras experiências talvez<br />

tenham sido as dos jesuítas nos Sete Povos <strong>da</strong>s Missões, no Rio Grande do Sul, ain<strong>da</strong> no<br />

século XVII. Este tipo de assentamento ganhou importância no mundo a partir <strong>da</strong> revolução<br />

industrial, no século XVIII, que em pouco tempo transformou ci<strong>da</strong>des como Londres em<br />

lugares inabitáveis. O fechamento <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong>des rurais na Europa, na transição do<br />

feu<strong>da</strong>lismo para o capitalismo, expulsou <strong>da</strong> terra milhares de camponeses, que se refugiaram<br />

nas ci<strong>da</strong>des, conformando o enorme exército que alimentou o grande salto <strong>da</strong> produção<br />

industrial. Não havia moradias nem escolas nem salários nem saneamento nem hospitais<br />

para atender a to<strong>da</strong> a população que procurou abrigo nas ci<strong>da</strong>des. Pensadores que depois<br />

ficaram conhecidos como os socialistas utópicos buscavam então alternativas sustentáveis<br />

Na terceira reportagem <strong>da</strong> série sobre justiça não<br />

estatal, o Jornal do Magistrado mostra como se<br />

resolvem conflitos em comuni<strong>da</strong>des intencionais.<br />

Elas experimentam modelos de vi<strong>da</strong> mais libertários e<br />

Comuni<strong>da</strong>de de Tamera: laboratório para a criação de uma cultura de <strong>paz</strong> no mundo<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO<br />

resolvem suas questões na base do diálogo<br />

para os assentamentos urbanos. Caso do britânico Ebenezer Howard, autor <strong>da</strong>s “Ci<strong>da</strong>des-<br />

Jardins do Futuro”, um projeto de assentamento que reunia vantagens <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no campo<br />

com as facili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, conceito que depois foi assimilado pelo mercado imobiliário<br />

inclusive no Brasil - em São Paulo são famosos os bairros-jardins, inspirados em Howard.<br />

A própria Brasília incorpora em seu projeto a idéia <strong>da</strong> “ci<strong>da</strong>de-parque”, como reconhece o<br />

próprio autor do projeto urbano <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, o arquiteto Lúcio Costa.<br />

A mesma geração contestatária dos anos 60, do movimento hippie, do maio de 68<br />

e de woodstock, deu novo impulso às comuni<strong>da</strong>des “alternativas”. Hoje, as comuni<strong>da</strong>des<br />

intencionais têm essa cultura entre suas referências. Algumas <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des cria<strong>da</strong>s naquela<br />

época persistem até hoje. Mas novos valores foram incluídos nas comuni<strong>da</strong>des intencionais,<br />

entre eles o conceito de sustentabili<strong>da</strong>de não apenas ambiental, mas também econômica,<br />

social, espiritual. Enfim, nas diversas dimensões do ser humano e <strong>da</strong> sua relação a Natureza e<br />

o mundo. Estas comuni<strong>da</strong>des, mais comuns nos Estados Unidos e na Europa, começam a se<br />

firmar também no Brasil. Levantamento <strong>da</strong> organização “Intentional Communities” registra<br />

431 comuni<strong>da</strong>des pelo mundo afora, a maior parte nos Estados Unidos.<br />

Algumas delas especializaram-se em mediação de conflitos, como a comuni<strong>da</strong>de<br />

de Lebensgarten, na Alemanha. A comuni<strong>da</strong>de foi construí<strong>da</strong> sobre uma antiga fábrica de<br />

munição que serviu à ditadura de Hitler. Era um lugar para onde ninguém queria ir, e por<br />

isso as terras valiam pouquíssimo. Hoje é uma comuni<strong>da</strong>de que desenvolve tecnologias<br />

sustentáveis e exporta metodologias para mediação de conflitos. Eles desenvolveram também<br />

um caminhão movido a energia solar, que circula dentro <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Um dos principais<br />

problemas que enfrentam é o silêncio. O motor elétrico do caminhão não faz barulho e, por<br />

esse motivo, passaram a acontecer pequenos atropelamentos (o caminhão an<strong>da</strong> devagar).<br />

Agora, eles consideram a possibili<strong>da</strong>de de equipar o caminhão com um sino.<br />

Uma <strong>da</strong>s mais tradicionais comuni<strong>da</strong>des deste tipo no mundo está na Escócia,<br />

a Findhorn. A comuni<strong>da</strong>de tem mais de 40 anos e conta com população entre 500 e<br />

600 pessoas. Nasceu em 1962, num antigo lixão. Com muito trabalho, a comuni<strong>da</strong>de<br />

mudou a cara do lugar. O solo foi praticamente construído de novo, com o uso intenso de<br />

compostagem. Uma terra que não tinha na<strong>da</strong> além de substâncias tóxicas, hoje produz seis<br />

vezes mais do que a comuni<strong>da</strong>de é ca<strong>paz</strong> de consumir. O lugar ficou famoso por produzir<br />

repolhos de até 20 quilos.<br />

May East é uma brasileira que mora há anos em Findhorn. A casa dela é um antigo<br />

barril de uísque descartado por uma fábrica. Ela conta que qualquer decisão na comuni<strong>da</strong>de


Findhorn, na Escócia, desenvolve métodos para tornar o diálogo mais “produtivo” O Ipec, em Goiás: mosaico de experiências desenvolvi<strong>da</strong>s em comuni<strong>da</strong>des de diversos países<br />

envolve muita conversa. Às vezes até demais: em certa ocasião, a discussão em torno <strong>da</strong> cor<br />

do carpete a ser instalado em uma casa coletiva durou mais de dois anos.<br />

Da mesma maneira, os conflitos e disputas também são resolvidos com muita<br />

conversa. Mas até para conversar é preciso se educar e, como fizeram com a terra,<br />

eles desenvolveram alguns métodos para tornar a conversa mais “produtiva”. “Para nos<br />

comunicarmos existem dois movimentos: falar e ouvir. Mas na maior parte do tempo as<br />

pessoas tendem a fazer uma comunicação defensiva”, diz May. Ela conta que faz parte <strong>da</strong><br />

mitologia dos quakers a história de que Deus, quando criou o mundo, escreveu num papel<br />

a palavra “ver<strong>da</strong>de”. Desde então, ca<strong>da</strong> criança que nasce recebe um pe<strong>da</strong>cinho <strong>da</strong>quele<br />

papel. Por isso, to<strong>da</strong>s as pessoas carregam uma ver<strong>da</strong>de, que é um pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> grande<br />

ver<strong>da</strong>de. Por este motivo, to<strong>da</strong>s as vozes merecem ser ouvi<strong>da</strong>s.<br />

Ao longo dos mais de 40 anos de experiência, a comuni<strong>da</strong>de de Findhorn já<br />

experimentou diversas “fórmulas” para a resolução de conflitos. “Antes, chamávamos<br />

pessoas não envolvi<strong>da</strong>s no conflito<br />

para aju<strong>da</strong>r a resolvê-lo. Depois<br />

percebemos que ninguém resolve<br />

conflito de ninguém. A solução não<br />

pode vir de fora. Então, passamos<br />

para outro momento, o de facilitação<br />

de conflito. Mais recentemente,<br />

percebemos que a forma com que<br />

se observa a reali<strong>da</strong>de é a forma que<br />

a reali<strong>da</strong>de se apresenta. O nome<br />

que se dá à reali<strong>da</strong>de é a maneira<br />

como o problema se apresenta. Se<br />

eu me apresento como facilitadora<br />

de conflito, fica claro que alguém vai<br />

perder. Então agora a gente fala de<br />

May East: “ninguém resolve conflito de outro” facilitação de diferenças”, explica May.<br />

A resolução de conflitos em Findhorn em geral obedece a algumas instâncias de<br />

discussão. Se o problema é entre duas pessoas, o primeiro passo seria a tentativa de<br />

solução dos problemas entre as partes, sem recorrer a terceiros. Caso as duas pessoas<br />

encontrem dificul<strong>da</strong>des para chegar a um acordo, chamam uma terceira pessoa. Se ain<strong>da</strong><br />

assim não houver solução, o caso é levado para dois grupos. Normalmente as pessoas<br />

estão liga<strong>da</strong>s a grupos de profissões, por exemplo. Se a diferença é entre uma jardineira<br />

e um cozinheiro, então são chamados todos os cozinheiros e todos os jardineiros para<br />

aju<strong>da</strong>r a resolver o problema. Se ain<strong>da</strong> assim o problema persistir, apela-se para os Peace<br />

Makers (fazedores <strong>da</strong> <strong>paz</strong>), uma espécie de conselho de anciãos, formado por um grupo<br />

de 5 a 7 pessoas entre os mais antigos <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Esse estágio, porém, embora<br />

previsto nas regras <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, raramente foi usado. Um morador mais antigo,<br />

que está há 36 anos em Findhorn, se lembra de ter visto apenas uma ou duas questões<br />

chegarem lá.<br />

Findhorn e a maioria <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des trabalham também com base no consenso<br />

na hora de tomar decisões. Diferentemente <strong>da</strong> democracia formal, o consenso admite três<br />

posições: os participantes podem apoiar, ficar de lado ou bloquear. A primeira não supõe um<br />

apoio incondicional a uma proposta, mas uma aceitação no sentido de continuar discutindo<br />

e evoluindo em determinado sentido. Ficar de lado é como pedir um pouco mais de tempo<br />

para afunilar a discussão. É a alternativa para quem ain<strong>da</strong> não se sente pronto para decidir.<br />

Finalmente, bloquear determina<strong>da</strong> proposta é a posição mais radical e é adota<strong>da</strong> por alguém<br />

que não vê possibili<strong>da</strong>de de reconciliação. Alguém que adote esta posição será chamado<br />

para aju<strong>da</strong>r a desenhar uma nova proposta.<br />

Mas esta alternativa é outra que existe para não ser usa<strong>da</strong>, na maioria dos casos. Em<br />

Findhorn, segundo May, raramente alguém bloqueia uma proposta. Os problemas em geral<br />

são detectados numa fase de supervisão, uma espécie de checagem periódica entre os<br />

grupos e as pessoas para identificar pontos de tensão. “É como um trabalho de assepsia, feita<br />

por um facilitador em ca<strong>da</strong> grupo, no sentido de manter a comunicação aberta, evitando que<br />

se chegue ao conflito”, explica May.<br />

É claro, porém, que as pessoas terão oportuni<strong>da</strong>des de bloquear propostas, mas se<br />

isso começa a se tornar comum para alguém é sinal de que há algo errado. “Se você está<br />

bloqueando muito, pode ser que você esteja no lugar errado”, avalia a brasileira.<br />

Em outra comuni<strong>da</strong>de, a de Tamera, em Portugal, as pessoas sequer conseguem<br />

falar sobre como são tratados os casos de conflitos graves, porque elas simplesmente<br />

não se lembram de ter havido um. Os integrantes de Tamera pretendem, com seu<br />

trabalho, transformar a comuni<strong>da</strong>de em um “biótopo de cura”. Eles promovem<br />

encontros, cursos, seminários e oficinas durante todo o ano para centenas de visitantes.<br />

O objetivo é montar um modelo para uma cultura <strong>da</strong> <strong>paz</strong> no mundo. E não é só<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

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S é r i e<br />

O estilo Findhorn: casas de barril de uísque e muita conversa<br />

discurso. Neste momento, trabalham para aju<strong>da</strong>r na pacificação entre israelenses e<br />

palestinos. Todos os anos, a comuni<strong>da</strong>de recebe grupos de palestinos e israelenses para<br />

oficinas, num esforço para ajudá-los a descobrir maneiras para que possam viver juntos.<br />

Um segundo passo será montar aldeias de <strong>paz</strong> em Israel e na Palestina, com base na<br />

experiência acumula<strong>da</strong> pelas oficinas. A comuni<strong>da</strong>de já tem 26 anos. Atualmente, vivem<br />

e trabalham em Tamera cerca de 80 pessoas. O projeto <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de prevê a inclusão<br />

de “algumas centenas” de pessoas que “convivam segundo os princípios <strong>da</strong> cooperação<br />

não-violenta, em harmonia com to<strong>da</strong>s as demais criaturas e estabeleçam uma base para<br />

o trabalho pela <strong>paz</strong> global”<br />

Em Tamera, a preferência é que<br />

os conflitos não sejam tratados apenas<br />

entre duas pessoas, mas diretamente<br />

no grupo, que eles chamam de<br />

“fórum”. Estes fóruns, grupos que<br />

têm entre 15 e 30 pessoas, se<br />

reúnem diariamente para discutir os<br />

mais diversos assuntos. E é para lá que<br />

os conflitos e disputas também devem<br />

ser levados. “Entre duas pessoas,<br />

normalmente reage-se muito rápido.<br />

Acaba por tornar-se impossível<br />

perceber o outro”, avalia Amelie<br />

Weimar, que vive na comuni<strong>da</strong>de<br />

desde 1991. “Sem o fórum, a<br />

Amelie: à procura do aspecto universal<br />

dos conflitos individuais<br />

comuni<strong>da</strong>de não teria sobrevivido às<br />

muitas crises interiores e exteriores”,<br />

avalia. Para os habitantes de Tamera, os relacionamentos humanos devem estar embasados<br />

na transparência <strong>da</strong> relação, o que gera a confiança necessária entre os integrantes.<br />

A experiência em Tamera mostrou que em geral os conflitos que aparecem no grupo<br />

não são temas individuais, mas comuns à humani<strong>da</strong>de e históricos. “A estrutura dos conflitos<br />

acaba por ser sempre muito pareci<strong>da</strong>. Tentamos mostrá-los no fórum de tal forma que o<br />

aspecto universal se torne mais visível nele”, diz Amelie.<br />

Outro aprendizado feito pela comuni<strong>da</strong>de é que a maioria dos conflitos tem origem<br />

de ordem sentimental. “Quase todos temos nossas maiores feri<strong>da</strong>s na área do amor<br />

e muitas vezes devemos isso à infância: desapontamento, medo de per<strong>da</strong>, de não ser<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO<br />

entendido, solidão, ser enganado, violência psíquica e corporal. Muitas vezes os mecanismos<br />

de sobrevivência ou proteção <strong>da</strong> alma, que montamos nesta i<strong>da</strong>de, caracterizam consciente<br />

ou inconscientemente todo o nosso comportamento adulto”, avalia Amelie.<br />

Há pouco tempo a comuni<strong>da</strong>de elaborou um estatuto, com regras básicas para o<br />

convívio. Se alguém infringe estas regras, será convi<strong>da</strong>do a falar sobre isso no fórum. “Não<br />

há uma condenação implícita, mas o desejo de conhecer e entender o que aconteceu. Se<br />

a pessoa se arrepende, será perdoa<strong>da</strong>”, diz Amelie. Este princípio, no entanto, vale para<br />

infrações leves. Ela não sabe o que aconteceria numa infração mais grave, porque isto<br />

nunca aconteceu na comuni<strong>da</strong>de e<br />

sequer está previsto em suas regras.<br />

“A pessoa poderia ser excluí<strong>da</strong> de<br />

determinados encontros ou poderia<br />

ser afasta<strong>da</strong> <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de durante<br />

um tempo”, especula outra integrante<br />

<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, Meike Muller. Amelie<br />

Weimar faz parte <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de<br />

desde 1991 e não lembra de na<strong>da</strong> mais<br />

grave envolvendo seus membros.<br />

Quando determinado assunto<br />

não é resolvido no fórum, forma-se<br />

outro <strong>círculo</strong>, ampliado – às vezes com<br />

todos os membros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de – e<br />

fazem-se novas discussões, até que se<br />

chegue a um ponto comum.<br />

Meike Muller: em <strong>paz</strong> em Tamera<br />

Mas <strong>da</strong> mesma maneira que em Findhorn, não há muita divergência entre os<br />

integrantes. “Quem não é ca<strong>paz</strong> de seguir as bases éticas <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de não vai querer<br />

ficar, porque não vai se sentir bem aqui, não terá uma âncora”, diz Meike.<br />

O gaúcho André Soares, que vive hoje numa ecovila em Pirenópolis, Goiás, já rodou<br />

o mundo conhecendo experiências de comuni<strong>da</strong>des intencionais. Segundo ele, não levar os<br />

conflitos internos para a Justiça formal é uma questão de honra para as comuni<strong>da</strong>des. “Quando<br />

um problema de justiça sai do âmbito <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, a tendência é que o grupo passe por um<br />

período de crise muito forte, porque desaba o sonho. Depois, ou a comuni<strong>da</strong>de se deteriora<br />

e desaparece, ou se fortalece. Em geral, é depois disso que se identifica a importância de criar<br />

regras claras. Muitas comuni<strong>da</strong>des não gostam disso, principalmente as mais hippies, mas<br />

cedo ou tarde chegam à conclusão de que elas são necessárias”, avalia.<br />

Em comuni<strong>da</strong>des grandes, segundo André, é comum a existência de comitês de<br />

justiça, que funcionam como tribunais para resolver disputas, como uma espécie de<br />

poder judiciário paralelo. “As comuni<strong>da</strong>des intencionais experimentam possibili<strong>da</strong>des mais<br />

libertárias, mas também precisam ter regras claras. Não é à toa que temos um sistema de<br />

justiça formal”, diz.<br />

Tamera: a busca por um “biótpop de cura”


S e s s ã o E s p e c i a l Marlon Brando<br />

O adeus a um mito<br />

Por Davi Brasil Simões Pires<br />

A conturba<strong>da</strong> figura de Marlon Brando é uma dessas esfinges ain<strong>da</strong> por ser desven<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

Fiel representante <strong>da</strong> geração retrata<strong>da</strong> no filme “Rebel Without a Cause” de Nicholas Ray<br />

(impropriamente verti<strong>da</strong>, no Brasil, para “Juventude Transvia<strong>da</strong>”), a motivação de sua rebeldia<br />

jamais ficou clara ao público. Em entrevista concedi<strong>da</strong> ao lendário Truman Capote, Brando<br />

dá uma pista: “um excesso de êxito pode arruinar um homem tão irremediavelmente<br />

quanto um excesso de fracasso”.<br />

Uma certa dificul<strong>da</strong>de de conviver com a própria populari<strong>da</strong>de e com o sucesso levou<br />

o ator a uma vi<strong>da</strong> eremita numa ilha distante, <strong>da</strong> Polinésia Francesa. A seqüência de tragédias<br />

pessoais contribuiu para aguçar ain<strong>da</strong> mais seu proverbial mal-humor e o enfado com<br />

entrevistas e ba<strong>da</strong>lações naturais ao mundo hollywoodiano. Suas aparições na tela foram se<br />

reduzindo a participações especiais, com a marca indelével do talento.<br />

A entrega do Oscar, em 1972, foi um dos tais momentos de “excesso de êxito” do<br />

astro. Depois do magistral Don Corleone, em “O Poderoso Chefão”, a escolha de Brando<br />

para receber a estatueta doura<strong>da</strong> de melhor ator parecia inevitável.<br />

Confirmado o seu nome após o bordão “the winner is”, veio a surpresa <strong>da</strong> noite:<br />

Brando não compareceu para receber o seu segundo Oscar de melhor ator (a sexta<br />

indicação para o prêmio – haveria, ain<strong>da</strong>, mais uma, no ano seguinte, por O último Tango<br />

em Paris). Mandou representante: uma lin<strong>da</strong> morena, caracteriza<strong>da</strong> de índia, que leu uma<br />

mensagem do ator justificando sua ausência por razões políticas.<br />

A tal motivação política ninguém entendeu, pois ele jamais se integrou a militância de<br />

causas políticas, pacifistas ou ambientalistas, mas o fato reforçou o enigma e o mito em torno<br />

de sua figura.<br />

Marlon Brando morreu, no princípio de julho, bastante distante do glamour de sex<br />

simbol que o tornou inesquecível. Aos 80 anos, acumulava dívi<strong>da</strong>s e peso - chegou a ter<br />

mais de cem quilos.<br />

Ao longo <strong>da</strong> carreira, deu vi<strong>da</strong> a uma ver<strong>da</strong>deira galeria de tipos inesquecíveis do<br />

cinema: Stanley Kowalsky, de Uma Rua Chama<strong>da</strong> Pecado (1951), Emiliano Zapata, em Viva<br />

Zapata (1952), Marco Antônio, em Júlio Cezar (1953), o rebelde de O Selvagem (1954), o<br />

ex-boxeador fracassado de Sindicato<br />

de Ladrões (1955), Don Vito<br />

Corleone, de O Poderoso Chefão<br />

(1972), o viúvo atormentado de O<br />

Último Tango em Paris (1973) e o<br />

coronel Kurtz, no cult Apocalypse<br />

Now (1979), entre outros.<br />

No Brasil, as vídeo locadoras<br />

ain<strong>da</strong> não possuem muitos títulos<br />

com interpretações de Brando, em<br />

versão DVD. Ain<strong>da</strong> assim, há boas<br />

pedi<strong>da</strong>s, como os dois Oscars:<br />

Sindicato de Ladrões e O Poderoso<br />

Chefão e mais O Último Tango em<br />

Paris, Apocalypse Now, Sayonara<br />

e, sua última aparição no cinema, A<br />

Carta<strong>da</strong> Final.<br />

Em abril, para comemorar<br />

os 80 anos de Marlon Brando, a<br />

Columbia Pictures lançou em DVD<br />

“Caça<strong>da</strong> Humana” (The Chase),<br />

de 1966, dirigido por Arthur Penn,<br />

Foto: AFP<br />

com um elenco de então ilustres iniciantes: Jane Fon<strong>da</strong>, Robert Redford, Angie Dickinson<br />

e Robert Duval. A história é bem ao gosto <strong>da</strong> visão cáustica do diretor. O individualismo, o<br />

elevado consumo de álcool, o racismo, a violência, a irracionali<strong>da</strong>de do uso <strong>da</strong>s armas de<br />

fogo e o culto à futili<strong>da</strong>de não são personagens, mas uma espécie de pano de fundo – sem<br />

o qual não haveria história a contar.<br />

Brando, neste “Caça<strong>da</strong> Humana” representa a “Lei” em uma ci<strong>da</strong>dezinha do interior<br />

do Texas, ele é Calder – o xerife que não vê a hora de abandonar tudo e comprar seu<br />

próprio rancho. Calder é honesto e incorruptível, mas não é respeitado pelos ci<strong>da</strong>dãos, que<br />

destinam temor reverencial somente ao poderoso capitalista <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />

Ca<strong>da</strong> habitante <strong>da</strong> pequena ci<strong>da</strong>de passa a encarar seus medos e frustrações, quando<br />

Bubber Reeves, vivido por Robert Redford, foge <strong>da</strong> prisão. Calder tenta conter a precipitação<br />

do julgamento popular e, por outro lado, evitar que prevaleça a força do poder econômico.<br />

A fragiliza<strong>da</strong> estrutura de poder, sem substância e ineficaz, sustenta<strong>da</strong> exclusivamente na<br />

forma, gera um crescente desconforto.<br />

Ain<strong>da</strong> que o espectador se recuse a ver to<strong>da</strong>s nuances do simbolismo de “Caça<strong>da</strong><br />

Humana”, restará a atuação de um equilibrado elenco (posteriormente consagrado) e uma<br />

bela história, filma<strong>da</strong> com fotografia muito bem cui<strong>da</strong><strong>da</strong>, que desde o início já o terá fisgado,<br />

podendo, conforme sua resistência, leva-lo à tranqüili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> superfície ou aos desafios e a<br />

sedução <strong>da</strong>s profundezas. Se na<strong>da</strong> disso funcionar, valeu a homenagem a Marlon Brando.<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

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E n t r e v i s t a J â n i o d e S o u z a M a c h a d o<br />

“Conflito agrário não<br />

é caso para polícia”<br />

O juiz Jânio de Souza Machado dedicou os últimos dois anos e meio a encontrar<br />

soluções pacíficas para situações onde a violência parecia iminente. Atuando como juiz<br />

agrário itinerante em Santa Catarina – experiência pioneira e única no Brasil – o magistrado<br />

mudou a maneira de encarar os conflitos agrários, tratando como um problema social o<br />

que muita gente considera apenas um caso de polícia.<br />

Com esta postura, a palavra violência foi bani<strong>da</strong> do processo de reforma agrária<br />

em Santa Catarina. “Em alguns momentos, fizemos uso <strong>da</strong> polícia, mas nunca usamos de<br />

violência”, orgulha-se o juiz.<br />

Aos 49 anos, Jânio de Souza Machado, natural de Araranguá, acaba de encerrar<br />

sua atuação como juiz agrário e passa a trabalhar como juiz substituto de 2º Grau em<br />

Florianópolis.<br />

Em meio aos preparativos para a mu<strong>da</strong>nça, ele falou pelo telefone ao Jornal do<br />

Magistrado para contar a sua experiência. E fez um desabafo sobre a atuação do governo<br />

Lula na questão agrária: “a frustração é geral”.<br />

Por Warner Bento Filho<br />

Jornal do Magistrado - O saldo destes dois anos e meio como juiz agrário é positivo?<br />

Jânio de Sousa Machado - O balanço para mim é altamente positivo, porque<br />

com uma estrutura enxuta e desburocratiza<strong>da</strong>, atendemos ao princípio constitucional <strong>da</strong><br />

eficiência com o menor ônus para o erário publico e com resultados satisfatórios. Porque<br />

conseguimos encontrar solução para conflitos agrários sem o uso <strong>da</strong> força. O conflito agrário<br />

é tratado aqui como um conflito social e não policial.<br />

Resolver isto sem o uso <strong>da</strong> força é o pulo do gato na reforma agrária. Até hoje temos<br />

resolvido assim. Em alguns momentos fizemos uso <strong>da</strong> polícia, mas nunca usamos de violência.<br />

Embora Santa Catarina não tenha o histórico de violência que há em outros estados, já<br />

tivemos incidentes – inclusive com mortes - anos atrás, quando não havia a designação de<br />

juiz agrário. Hoje, a atuação do Incra encontra obstáculos em função <strong>da</strong> dificul<strong>da</strong>de de se<br />

encontrar proprie<strong>da</strong>de improdutiva. Temos em torno de 1200 a 1500 famílias acampa<strong>da</strong>s<br />

provisoriamente em beiras de estra<strong>da</strong>, fundos de fazen<strong>da</strong>, locais inadequados, provisórios.<br />

O Incra trabalha com a possibili<strong>da</strong>de de aquisição de proprie<strong>da</strong>des. Já fez no passado e<br />

faz isso hoje. Os proprietários também fazem ofertas de ven<strong>da</strong>. Aqui se trabalha com esta<br />

reali<strong>da</strong>de. Também se trabalha com desapropriações, a todo o tempo há técnicos fazendo<br />

vistorias. Existem áreas cuja produtivi<strong>da</strong>de está em discussão.<br />

Em resumo, foi uma experiência riquíssima. Infelizmente, os resultados não são os que<br />

a gente gostaria de ter, mas dentro <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de são os que se poderia alcançar, porque o<br />

juiz agrário não faz a reforma agrária, não desapropria. Ele atua num conflito já existente, é<br />

apenas um dos elementos necessários para solucionar um conflito agrário.<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO<br />

Foto: Júlio Cavalheiro<br />

Como o senhor procede quando se estabelece o conflito numa ocupação de terra?<br />

A primeira coisa que faço quando recebo a petição inicial de reintegração de<br />

posse ou o documento que seja é marcar uma audiência pública no local do conflito. À<br />

esta audiência pública, convido a comparecer o representante dos movimentos sociais,<br />

representantes do acampamento, convido o prefeito municipal, o presidente <strong>da</strong> Câmara de<br />

Vereadores, Incra, o secretário de Agricultura do Estado. E ain<strong>da</strong> enti<strong>da</strong>des como Pastoral<br />

<strong>da</strong> Terra, Pastoral <strong>da</strong> Saúde, Pastoral <strong>da</strong> Criança. Nesta oportuni<strong>da</strong>de, todos buscam uma<br />

solução para o conflito. Depois de supera<strong>da</strong> esta fase de negociação é que se pensaria em<br />

tratar aquele problema social como um conflito judicial. Não se consegue liminar sem que<br />

se ouçam as partes envolvi<strong>da</strong>s.<br />

E é importante dizer que a audiência é feita na comarca do local do conflito. O<br />

juiz é que se desloca. As partes ficam onde estão. Faço uso do Fórum <strong>da</strong> Comarca,<br />

<strong>da</strong> estrutura administrativa <strong>da</strong> Comarca. Desta maneira, atendemos o princípio <strong>da</strong><br />

eficiência constitucional.<br />

O senhor avalia que a sua atuação ajudou a diminuir o número de conflitos<br />

agrários no Estado?<br />

Não posso dizer que tenha diminuído o número de conflitos. Eu diria que o resultado<br />

prático é o afastamento <strong>da</strong> violência num conflito que normalmente é marcado pela<br />

violência. Pelo menos é o que vemos na imprensa em Minas Gerais, São Paulo, Bahia e


tantos outros Estados. Aqui eliminamos isso. Buscamos soluções que não usam violência.<br />

É um trabalho difícil, porque temos um grupo que quer a reforma agrária, assegura<strong>da</strong> pela<br />

Constituição, e temos o proprietário que quer ver assegurado o seu direito constitucional de<br />

proprietário. Dois direitos <strong>da</strong> Constituição que naquele momento entram em choque. E eu<br />

no meio levanto pedra<strong>da</strong> dos dois lados (risos).<br />

Como é a sua relação com os fazendeiros?<br />

O jogo de pressão existe em qualquer processo e na questão agrária não é diferente.<br />

Recebo visitas, telefonemas, contatos pessoais de gente vincula<strong>da</strong> a partidos políticos,<br />

deputados, de um lado e de outro. E vejo isso com normali<strong>da</strong>de, não me incomodo. Acho<br />

que faz parte do jogo mesmo. Ain<strong>da</strong> hoje estava me telefonando um deputado ligado ao<br />

grupo do proprietário que teve sua fazen<strong>da</strong> ocupa<strong>da</strong> dias atrás. Da mesma maneira, já recebi<br />

visita de deputado do PT falando a favor dos acampados. Está certo, o deputado representa<br />

um segmento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e vai trabalhar pelo grupo que o elegeu.<br />

Estes contatos chegam a descambar para a intimi<strong>da</strong>ção, o constrangimento?<br />

Não, sempre foi num tom cordial, respeitoso. Nunca me senti ameaçado, coagido.<br />

Eu seio que há esse jogo, que isso acontece com o Governo do Estado e com o próprio<br />

Tribunal de Justiça, mas isso não chega a me perturbar. Não me sinto ameaçado nem<br />

constrangido. As conversas têm funcionado dentro de um clima democrático, de exposição<br />

de idéias, de respeito. Eventualmente quando uma decisão contraria interesses de um dos<br />

lados, a parte recorre ao Tribunal, o que aconteceu numa única ocasião.<br />

O senhor começou seu trabalho como juiz agrário durante o segundo man<strong>da</strong>to<br />

do presidente Fernando Henrique e termina sob a administração de Lula. Na sua<br />

avaliação, o governo do PT avançou na questão agrária, que era uma de suas<br />

maiores bandeiras?<br />

Os movimentos sociais ligados à luta pela reforma agrária tinham uma grande<br />

expectativa em relação à mu<strong>da</strong>nça do governo. Esta expectativa não foi plenamente<br />

atendi<strong>da</strong>. Tanto que hoje temos no Estado estas 1.200 ou 1.500 famílias aguar<strong>da</strong>ndo<br />

definição de áreas para assentamentos. A reforma agrária é cara, tem alto custo. Só que<br />

este custo é social, deve ser pesado como custo social. Sabemos que somos um país com<br />

dificul<strong>da</strong>des. Há muita cobrança em termos de investimento e o administrador precisa<br />

fazer opções. Penso que haveria necessi<strong>da</strong>de de mais recursos orçamentários para<br />

atender a esta deman<strong>da</strong>.<br />

O senhor acha que só mais recursos já resolveriam os problemas?<br />

É preciso aumentar os recursos e aparelhar melhor o Incra.<br />

Haveria uma aparente contradição no fato de o governo dizer que a reforma<br />

agrária é importante e ao mesmo tempo não liberar recursos suficientes para<br />

esta área?<br />

Sim. Há uma frustração, embora ain<strong>da</strong> se espere que esta expectativa seja atendi<strong>da</strong>.<br />

Mas até este momento não foi atendi<strong>da</strong>, não. Foi assentado um número muito pequeno de<br />

agricultores no último ano do governo lula.<br />

Houve descontinui<strong>da</strong>de no processo?<br />

Houve sim. Houve mu<strong>da</strong>nça na parte burocrática. Isso é uma parte do problema.<br />

Por outro lado, está a ausência de recursos financeiros. As duas coisas acabaram se juntando<br />

e provocando este descompasso. Estive recentemente num encontro no Maranhão que<br />

tratava de conflitos agrários. Estavam pessoas de vários estados, inclusive juizes, movimentos<br />

sociais, representantes de órgãos federais <strong>da</strong> área agrária. A frustração é geral. Há muita<br />

cobrança por atitudes mais concretas e resultados mais imediatos.<br />

Há nisso também uma dificul<strong>da</strong>de política ou ela é meramente econômica?<br />

Sim, me parece que existe problema político. O tema proprie<strong>da</strong>de é um tema<br />

controvertido. Mexe com valores que são muito fortes no ser humano. O sentido de<br />

proprie<strong>da</strong>de é muito presente no ser humano e quando se mexe em proprie<strong>da</strong>de,<br />

principalmente em proprie<strong>da</strong>de imobiliária, mexe-se na estrutura de uma socie<strong>da</strong>de. Temos<br />

dificul<strong>da</strong>de em aceitar que por um ato de força, como é a desapropriação, o governo possa<br />

atender os reclamos de um segmento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira.<br />

Não podemos esquecer também que existe movimento forte contra a reforma<br />

agrária na socie<strong>da</strong>de e este segmento luta contra qualquer atitude do governo no sentido<br />

de implementá-la.<br />

O senhor se refere aos latifundiários?<br />

Sim, eles estão muito bem organizados no País, têm bons representantes no Congresso.<br />

É curioso que o problema <strong>da</strong> concentração de terras, tão antigo no País, se<br />

arraste até nossos dias, não?<br />

É, eu diria que é um problema que vem desde o descobrimento, com as sesmarias<br />

do Brasil Colônia, com a má distribuição de terra, a concentração na mão de poucos. Este<br />

problema não foi resolvido e hoje temos um grande número de pessoas excluí<strong>da</strong>s do<br />

processo de consumo. Estas pessoas acabam se organizando, encontram uma bandeira e<br />

passam a reivindicar com mais força.<br />

O MST considera que mesmo os latifúndios produtivos deveriam ser desapropriados.<br />

O que o senhor pensa sobre isso?<br />

Eu trabalho em cima <strong>da</strong> Constituição Federal. E ela garante a reforma agrária e<br />

garante o direito <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de produtiva, sem estabelecer limites. Não podemos então<br />

falar em limites, em tamanho de proprie<strong>da</strong>de, porque a Constituição não estabelece isso.<br />

A proprie<strong>da</strong>de produtiva, não importa o tamanho, é garanti<strong>da</strong> pela Constituição. O que se<br />

fala é estabelecer limites. Só que este limite não consta nem no texto <strong>da</strong> Constituição e nem<br />

numa lei ordinária. Então, não podemos pensar em limitar o que o legislador não limitou.<br />

Estabelecer limites para o tamanho <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de é uma boa idéia?<br />

Para falar a ver<strong>da</strong>de nunca me detive neste aspecto. Não tenho opinião forma<strong>da</strong>.<br />

Parece-me que se é produtiva, se está atendendo ao seu fim social, não há muita razão nesta<br />

discussão. O que importa é que ela aten<strong>da</strong> sua função social. Até em razão <strong>da</strong> extensão<br />

territorial do País. Não se pode comparar o Brasil com o Uruguai ou qualquer outro<br />

vizinho. Na reali<strong>da</strong>de brasileira, o que temos que fazer é que a proprie<strong>da</strong>de seja produtiva,<br />

precisamos fazer que ela cumpra função social.<br />

Um latifúndio considerado produtivo porque planta soja para exportação cumpre<br />

a sua função social?<br />

Ele gera fatores positivos. Favorece a balança comercial e isso repercute na socie<strong>da</strong>de. Não<br />

vejo isso por si só como um mal. Agora, não existe limitação territorial e esta é uma discussão<br />

interessante. É um debate que tem que ser feito na socie<strong>da</strong>de e no Congresso Nacional.<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

19


Taísa Matos, do grupo de economia solidária Flor e Ser, do Rio de Janeiro: mantas artesanais de lã em troca de flores, a moe<strong>da</strong> social em cabalístaca cédulas de 1, 7, 8 e 13.<br />

Um lugar ao sol<br />

20<br />

E s p e c i a l<br />

Crescem no País, alimenta<strong>da</strong>s pelo desemprego e a miséria, as experiências com redes de troca e moe<strong>da</strong>s sociais. Ocupando o<br />

espaço deixado pelo Estado, comuni<strong>da</strong>des se organizam e resgatam os excluídos do sistema, produzindo e consumindo segundo<br />

princípios carregados de profundo senso de justiça.<br />

Taísa trocou flores por pães integrais fabricados por Manu, que passou as flores para<br />

Alam em troca de aulas de piano. Alam também deu classes a Nana, que retribuiu com<br />

sessões de massagem, e a Erian, que lhe deu flores. Com as flores, Alam levou para casa a<br />

granola prepara<strong>da</strong> por Artemus, brotos produzidos por Mariana e brownies feitos por Juli,<br />

que entregou algumas flores a Taísa em troca de uma manta de lã, fabrica<strong>da</strong> por ela em seu<br />

tear manual.<br />

A quadrilha de Taísa, Manu, Alan, Nana, Erian, Artemus, Juli e mais umas 30 pessoas é<br />

parte de uma <strong>da</strong>nça que ganha mais espaço a ca<strong>da</strong> dia no País, a <strong>da</strong>s redes de troca e de moe<strong>da</strong>s<br />

sociais. Gente que trabalha, consome, produz e satisfaz boa parte de suas necessi<strong>da</strong>des<br />

diárias sem integrar o sistema econômico formal, colocando em prática princípios de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de<br />

e de comércio justo. Esta turma encontrou uma saí<strong>da</strong> para o enigma proposto pelo<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO<br />

Foto: Warner Bento Filho<br />

Por Warner Bento Filho<br />

sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Ele escreveu que a tecnologia moderna é ca<strong>paz</strong> de<br />

realizar a produção sem emprego. “O diabo”, completou, “é que a economia moderna não<br />

consegue inventar o consumo sem salário”.<br />

Taísa e seus 30 vizinhos, moradores do morro Santa Teresa, no Rio de janeiro, formam<br />

a rede de economia solidária Flor e Ser. E flor é o nome <strong>da</strong> moe<strong>da</strong> que eles utilizam<br />

para realizar suas trocas, disponível em cabalísticas cédulas de um, sete, oito e treze. O pessoal<br />

do Flor e Ser montou a rede mais por ideologia do que por necessi<strong>da</strong>de econômica, segundo<br />

Emmanuel Khodja, o Manu <strong>da</strong> quadrilha, que além de pães integrais, também produz<br />

incensários, colheres de bambu, cadernos artesanais, trabalha com projetos gráficos e web<br />

design, entre outras ativi<strong>da</strong>des. “Quero que a rede se converta no meu principal mercado e<br />

que ajude a transformar a vi<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong> um de seus integrantes”, diz.


Miséria e desigual<strong>da</strong>de<br />

A maioria dos clubes de troca, porém, encontra espaço em alguns dos piores problemas<br />

do País: concentração de ren<strong>da</strong>, desemprego, miséria. A recente Pesquisa de Orçamentos<br />

Familiares, feita pelo IBGE, revelou que 85% <strong>da</strong>s famílias brasileiras sentem dificul<strong>da</strong>de<br />

para chegar ao final do mês com seus rendimentos. Quase a metade delas (47%) considera<br />

insuficiente a quanti<strong>da</strong>de de alimento consumi<strong>da</strong> habitualmente. O quadro é pior nas regiões<br />

Norte e Nordeste, onde mais de 60% <strong>da</strong>s famílias informaram insuficiência alimentar,<br />

habitual ou eventual.<br />

Estas dificul<strong>da</strong>des não mostram um país pobre, mas extremamente injusto e desigual.<br />

A nona economia do mundo tem em seu território cerca de 50 milhões de pessoas (29,26%<br />

<strong>da</strong> população) vivendo em condições de indigência, com ren<strong>da</strong> inferior a 80 reais por mês,<br />

segundo estudo <strong>da</strong> Fun<strong>da</strong>ção Getúlio Vargas. A concentração de ren<strong>da</strong> no Brasil só não é<br />

pior que em países como Serra Leoa, República Centro-Africana e Suazilândia, entre mais<br />

de cem países analisados pela Organização <strong>da</strong>s Nações Uni<strong>da</strong>s (ONU).<br />

Sem emprego, sem salário, sem apoio do Estado e sem perspectivas, as<br />

comuni<strong>da</strong>des se organizam para gerar a sua própria ren<strong>da</strong> e viabilizar sua sobrevivência.<br />

Como resultado, já apareceram moe<strong>da</strong>s sociais como o pinhão (em Curitiba), a ecosol<br />

(em Santa Catarina), tupi e zumbi, além <strong>da</strong> flor (no Rio de Janeiro), palmas (em Fortaleza),<br />

gep (na Bahia), guajuvira (no Rio Grande do Sul) e taça (em Ponta Grossa, no Paraná),<br />

para citar algumas.<br />

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Desbancarizados<br />

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O Banco Palmas tem cerca de 1.500 clientes. Segundo as contas do coordenador<br />

do Palmas, João Joaquim de Melo Neto Segundo, que mora na favela desde que ela nasceu,<br />

o banco já viabilizou 1.200 ocupações e estruturou quatro empresas nos seus seis<br />

anos de existência. Entre elas, uma confecção, a Palma Fashion, e uma fábrica de materiais<br />

de limpeza, a Palma Limp, que comercializa sabão, amaciante de roupas e outros produtos.<br />

Sob o guar<strong>da</strong>-chuva do Banco Palmas, existe ain<strong>da</strong> a Palma Couros, que fabrica cintos<br />

e sapatos, e a Palmarte, que reúne artesãos. Além <strong>da</strong>s empresas, o banco auxilia centenas<br />

de pessoas, pequenos comerciantes, vendedores ambulantes, cabeleireiros, manicures e<br />

outros profissionais.<br />

Joaquim Segundo costuma dizer que os clientes do seu banco são os “desbancarizados”.<br />

“São aquelas pessoas que foram excluí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e, por isso, se alimentam <strong>da</strong> própria<br />

miséria”, diz.<br />

Auto-estima<br />

To<strong>da</strong> a produção agrícola sob influência do Banco Palmas está livre de venenos ou<br />

qualquer insumo químico. As feiras agrícolas <strong>da</strong> favela reúnem cerca de 40 produtores e<br />

todos os moradores são encorajados a ter uma horta e uma pequena criação de galinhas<br />

no próprio quintal. “As pessoas deixam de comprar verdura e frango e então cortam<br />

gastos. A filosofia central do Banco Palma é que a comuni<strong>da</strong>de é portadora <strong>da</strong>s soluções<br />

para seus problemas. Basta que a gente se organize”, diz Joaquim.<br />

As palmas são aceitas em praticamente todo o comércio <strong>da</strong> favela e podem ser<br />

adquiri<strong>da</strong>s, por exemplo, com a prestação de algum serviço comunitário, por meio <strong>da</strong><br />

associação. O banco oferece ain<strong>da</strong> um cartão de crédito, o Palmacard. “Qualquer família<br />

pode ter um”, conta Joaquim. Com o cartão, é possível fazer compras no comércio<br />

local. Funciona como a antiga caderneta de fiado, só que é garantido pelo Banco Palma.<br />

O caso mais sintomático talvez seja o do Conjunto Palmeira, uma favela onde vivem<br />

mais de 30 mil pessoas, na zona sul de Fortaleza, no Ceará. O assentamento tem mais de<br />

30 anos. Organizados em torno de uma associação comunitária, os moradores conseguiram<br />

instalar serviços como rede elétrica e drenagem. Mas apesar dos avanços, pesquisa realiza<strong>da</strong><br />

pela própria associação em 1997 mostrou que 80% dos residentes estavam desempregados<br />

e que 90% <strong>da</strong>s pessoas economicamente ativas ganhavam menos de dois salários mínimos.<br />

A taxa de analfabetismo chegava a 75% dos moradores.<br />

Diante deste quadro, a associação criou na<strong>da</strong> menos que um banco, o Banco Palmas,<br />

e implementou uma rede de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de reunindo produtores e consumidores em torno<br />

de uma moe<strong>da</strong> social, a palma. O banco oferece microcrédito para produção e consumo<br />

locais e viabilizou diversas iniciativas empresariais.<br />

Hoje, o conjunto Palmeira conta com feira de produtores, uma loja, um clube de<br />

trocas e uma “Escola <strong>da</strong> Soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de”. O banco também iniciou programa para apoiar<br />

moradoras <strong>da</strong> favela que viviam em situações de alto risco e passou a incentivar práticas de<br />

agricultura urbana, entre outras ativi<strong>da</strong>des. Alam: aulas de piano como moe<strong>da</strong> de troca com vizinhos do morro Santa Teresa, no Rio de Janeiro<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

21


22<br />

E s p e c i a l<br />

O cliente recebe o cartão com determinado crédito (em geral, 20 ou 30 reais). As<br />

compras são anota<strong>da</strong>s no verso do cartão, até o limite do crédito. O comerciante<br />

recebe o pagamento direto do banco, com o desconto de 3%. Segundo Joaquim, o uso<br />

do Palmacard significou incremento de 30% nas ven<strong>da</strong>s do comércio local, porque as<br />

pessoas costumavam comprar em grandes supermercados e redes de loja que ofereciam<br />

crediário. Com o Palmacard, as compras podem ser parcela<strong>da</strong>s em até seis prestações.<br />

“Os comerciantes passaram a vender mais e com segurança, pois o banco garante o<br />

pagamento”, comemora o chefão do Palma. A taxa de inadimplência não passa dos<br />

5%, segundo a contabili<strong>da</strong>de do banco, cinco vezes menor que os 26% registrados no<br />

comércio de Fortaleza.<br />

“Uma família que não tinha na<strong>da</strong> agora tem um banco e um cartão de crédito. Pode<br />

comprar uma cervejinha no final de semana e comer uma pizza com a família. Isso aumenta<br />

a auto-estima do ci<strong>da</strong>dão”, avalia Joaquim.<br />

Com esta estrutura, a associação comunitária conseguiu fazer o que o estado não<br />

faz, que é garantir a segurança alimentar <strong>da</strong> população, combater o desemprego, a fome<br />

e a miséria.<br />

Tango argentino<br />

Organizações deste tipo começaram a se tornar mais populares no Continente a partir<br />

do caos argentino imposto pelo “corralito”, o congelamento <strong>da</strong>s contas bancárias em 2001.<br />

Os clubes de troca e as moe<strong>da</strong>s sociais se consoli<strong>da</strong>ram no país vizinho como um sistema<br />

econômico paralelo ca<strong>paz</strong> de inserir milhões de pessoas no mercado de consumo. Segundo<br />

estimativas, um em ca<strong>da</strong> seis argentinos participa ou participou de algum sistema de escambo<br />

nos últimos anos. O sistema tomou tal dimensão que passou a sofrer alguns dos problemas<br />

do capitalismo, como a falsificação de moe<strong>da</strong> e a inflação.<br />

O sistema de trocas já havia sido experimentado em países <strong>da</strong> Europa e nos Estados<br />

Unidos, mas em nenhum deles ganhou a dimensão alcança<strong>da</strong> na Argentina. Embora seja<br />

uma espécie de escambo, raramente se troca produto por produto, mas produto pela moe<strong>da</strong><br />

social. Em ca<strong>da</strong> feira de troca, o novo participante recebe determinado crédito compatível<br />

com a mercadoria que ele tem para negociar. Em geral, algo em torno de 25 reais. Caso o<br />

associado desista de participar, deve devolver os créditos iniciais.<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO<br />

Sob influência <strong>da</strong> experiência argentina, o sistema se espalhou pelo Brasil e vai ganhando<br />

novos adeptos a ca<strong>da</strong> dia, com a diferença de que aqui as iniciativas no campo <strong>da</strong><br />

economia solidária se diversificaram mais que na terra do tango. Além <strong>da</strong>s redes de troca,<br />

apareceram empreendimentos auto-gestionáveis, softwares livres, sistemas de micro-crédito,<br />

grupos de consumidores, cooperativas solidárias e de consumo, desenvolveu-se a idéia<br />

do comércio justo, a certificação participativa e outros sistemas.<br />

O sol<br />

As edições do Fórum Social Mundial em Porto Alegre foram um importante<br />

impulsionador <strong>da</strong>s moe<strong>da</strong>s sociais no Brasil. Além <strong>da</strong>s discussões em torno do assunto, uma<br />

experiência prática aproximou as pessoas deste modelo, com a circulação de uma moe<strong>da</strong>,<br />

o sol. A particulari<strong>da</strong>de do sol era seu caráter temporário, além de funcionar como meio de<br />

câmbio para as moe<strong>da</strong>s de diversas nacionali<strong>da</strong>des trazi<strong>da</strong>s pelos participantes. “O circulante<br />

local equivalia ao real. Os comerciantes não eram obrigados a aceitá-lo, mas aderiram ao<br />

convênio e passaram a comercializar com o bônus. Com esta experiência, foi possível<br />

mostrar que a comuni<strong>da</strong>de pode ter seu circulante”, conta Camilo Rama<strong>da</strong>, do Instituto<br />

Istrodi, que ajudou a organizar a circulação do sol.<br />

Rama<strong>da</strong> levanta um novo <strong>da</strong>do para explicar em parte a falta de dinheiro no bolso<br />

senti<strong>da</strong> pela maior parte <strong>da</strong> população. “Hoje existe muito mais dinheiro do que em 1950,<br />

por exemplo, mas ele não consegue sair <strong>da</strong> economia especulativa para a economia<br />

produtiva. Ele se multiplica, mas fica em falta no mercado produtivo”, diz.<br />

Segundo levantamento <strong>da</strong> ain<strong>da</strong> embrionária organização dos clubes de troca no País, já<br />

há 78 grupos deste tipo em todo o território nacional. “É ain<strong>da</strong> um levantamento preliminar.<br />

Observa-se que surgem novos grupos a todo o momento. O Paraná é o estado onde está<br />

a maior parte, quase um terço do total”, conta Antônio Haroldo Pinheiro Mendonça, do<br />

Departamento de Fomento <strong>da</strong> Secretaria de Economia Solidária, liga<strong>da</strong> ao Ministério do<br />

Trabalho, que aju<strong>da</strong> a organizar um encontro nacional de clubes de troca com moe<strong>da</strong>s sociais,<br />

que acontece entre os dias 9 e 11 de setembro em Mendes, no Rio de Janeiro.<br />

Além do Paraná, os estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul se<br />

destacam como os principais difusores do modelo, que existe ain<strong>da</strong> em Santa Catarina,<br />

Ceará, Minas Gerais e outros estados.


Justiça<br />

Segundo Haroldo, há, por traz <strong>da</strong> mera necessi<strong>da</strong>de de inclusão na ativi<strong>da</strong>de<br />

econômica, uma insatisfação com o modelo econômico formal, baseado na exploração<br />

humana e na degra<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> natureza. Os grupos inspirados na economia solidária têm<br />

como princípio a sustentabili<strong>da</strong>de em to<strong>da</strong>s as suas dimensões – ambiental, econômica,<br />

social etc. Não se admite, por exemplo, o uso de agrotóxicos ou práticas agrícolas nocivas<br />

ao meio-ambiente, <strong>da</strong> mesma maneira que são vetados os produtos obtidos com base na<br />

exploração <strong>da</strong> força produtiva. São conceitos que não estão escritos em nenhuma lei, mas<br />

impregnados de um forte sentido de justiça.<br />

“A economia solidária, como diz a expressão, reúne economia e soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de. Implica<br />

não só em um campo econômico e socialmente justo, mas também ecologicamente sustentável,<br />

com qualificação dos produtores e outras questões. Mas só isso ain<strong>da</strong> não é economia<br />

solidária. É preciso colocar o bem viver <strong>da</strong>s pessoas acima de qualquer interesse. Não há<br />

lucro, mas compartilhamento dos excedentes”, resume Euclides André Mance, um dos<br />

maiores teóricos <strong>da</strong> economia solidária no Brasil. “O preço justo é a questão-chave. A lógica<br />

do mercado é a <strong>da</strong> oferta e <strong>da</strong> procura. Se houver pouca oferta, o preço sobe. Se houver<br />

uma superprodução, os agricultores entram em crise. A lógica do mercado não é a lógica <strong>da</strong><br />

abundância, mas a <strong>da</strong> escassez. Na economia solidária, trabalha-se com o preço justo. Se há<br />

superprodução, ela é compartilha<strong>da</strong>. Pelo mesmo preço, adquire-se uma quantia maior do<br />

produto abun<strong>da</strong>nte. A comuni<strong>da</strong>de pode criar alternativas para consumir o excedente sem<br />

provocar prejuízos aos produtores. Na lógica <strong>da</strong>s redes de economia solidária entende-se<br />

que se o produtor não vender não terá condições de comprar outra coisa”, explica Mance.<br />

A teia<br />

O sociólogo espanhol Di<strong>da</strong>c Sanchez-Costa, de pai catalão e mãe uruguaio-brasileira,<br />

dedica-se a criar redes de troca pelo mundo afora. Só na América Latina esteve envolvido na<br />

criação de pelo menos 20 grupos deste tipo, no Brasil, Argentina, Uruguai e Chile.<br />

Entusiasmado, ele vê enorme potencial neste tipo de iniciativa: “Resolve-se, com a criação<br />

de uma rede de troca num bairro, problemas graves no âmbito psicossocial, <strong>da</strong> auto-estima<br />

pessoal e comunitária, do controle local dos recursos locais, <strong>da</strong> recuperação dos tecidos solidários,<br />

o que aju<strong>da</strong> a acabar com a violência, por exemplo, desde a própria comuni<strong>da</strong>de. Redescobremse<br />

muitos recursos locais, sempre existentes e muitas vezes esquecidos ou subestimados por um<br />

capitalismo voraz que não os valoriza nem contempla, em nome <strong>da</strong> eficiência de uma economia<br />

para a qual o meio-ambiente e o ser humanos são externali<strong>da</strong>des”.<br />

Ao contrário do que se poderia pensar, o sociólogo diz que as redes de troca aju<strong>da</strong>m<br />

o modelo capitalista, na medi<strong>da</strong> em que integram grupos de excluídos à economia. “A implementação<br />

<strong>da</strong>s redes não priva o capitalismo de seus ganhos e sim, ao contrário, permite introduzir<br />

ao sistema muitos setores que estavam fora e agora, graças a um esquema paralelo<br />

mais amável, generoso, cooperativo e abun<strong>da</strong>nte, podem gerar riqueza”, diz.<br />

Di<strong>da</strong>c, agora de volta a Barcelona, embarcou num novo sonho, para o qual diz ter<br />

reunido mais e 300 pessoas em mais de 30 países: a idéia é adquirir um barco ca<strong>paz</strong> de ro<strong>da</strong>r<br />

o mundo fomentando as redes de trocas e montando uma teia mundial de economia solidária.<br />

Na América Latina, o grupo pretende formar uma integração econômica às avessas do<br />

que existe com o Mercosul, por exemplo, com base nos conceitos <strong>da</strong> economia solidária.<br />

Mais uma vez, a aposta, talvez utópica, na organização <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de para cumprir as deman<strong>da</strong>s<br />

que o Estado (ou os estados) não vê, não quer ver ou via, mas esqueceu.<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

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24<br />

A r t e<br />

O que é que o<br />

baiano tem?<br />

Há quase meio século João Gilberto canta<br />

quase sempre as mesmas músicas. Ain<strong>da</strong> assim<br />

mantém o feitiço que fez com que os japoneses<br />

o aplaudissem por 25 minutos depois de show,<br />

agora transformado em disco.<br />

Por Paulo Pestana<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO<br />

Danilo Chaib*<br />

Foto: Eduardo Nicolau/Agencia Estado


Um fato: a cantora Rosa Passos não sabia o que a esperava quando subiu ao apartamento<br />

de João Gilberto, numa noite de 1984, até que ele começou a tocar. Quando deu<br />

por si, seis horas depois, notou que o cantor não tinha mu<strong>da</strong>do a música, embora a ca<strong>da</strong><br />

passagem incluísse detalhes que a encantavam, como se estivesse diante <strong>da</strong> força kun<strong>da</strong>lini<br />

<strong>da</strong>s fábulas hindus.<br />

Um mito: enlouquecido, depois de uma noite ouvindo João Gilberto tocar a música O<br />

Pato pela enésima vez, o gato <strong>da</strong> família pulou <strong>da</strong> janela do edifício em que ele morava com<br />

a primeira mulher, Astrud Gilberto, espatifando-se no térreo. (Na ver<strong>da</strong>de, o gato, que vivia<br />

no parapeito <strong>da</strong> janela, cochilou e caiu – João Gilberto nem estava em casa, mas gravando<br />

o disco O Amor, o Sorriso e a Flor.)<br />

A carreira de João Gilberto, música à parte, foi construí<strong>da</strong> sobre fatos e len<strong>da</strong>s que<br />

se misturam para confundir fãs e críticos e para formar uma personali<strong>da</strong>de que se pode<br />

chamar de peculiar. De novo, as mesmas músicas, repetem os críticos do cantor, que,<br />

eles sim, podem ser acusados de falta de originali<strong>da</strong>de em suas considerações sobre os<br />

discos que o baiano lança. Quando não de surdez. Live in Tokio, disco gravado no final do<br />

ano passado durante a primeira turnê japonesa do cantor, antes mesmo de ser ouvido,<br />

chegou às lojas carimbado como repetição. Para os fãs, afirmação soa absur<strong>da</strong>, mesmo<br />

quando se sabe que apenas duas <strong>da</strong>s 15 músicas apresenta<strong>da</strong>s estavam inéditas, em disco,<br />

na voz do baiano.<br />

É preciso ficar claro que, mesmo cantando e tocando as mesmas músicas há quase 50<br />

anos, João Gilberto não se repete. Talvez este seja seu sonho secreto: atingir a perfeição e<br />

repeti-la à exaustão. Mas como os melhores músicos de jazz, ele renova as canções, procura<br />

saí<strong>da</strong>s diferentes, cria acordes surpreendentes, aposta, ca<strong>da</strong> vez mais, no silêncio. E usa sua<br />

prodigiosa memória para escavar – e em segui<strong>da</strong> lapi<strong>da</strong>r – gemas musicais preciosas.<br />

Como não tem aparelhagem de som, João Gilberto raramente inclui uma música que<br />

não tenha ouvido antes dos anos 60 – a maioria, aliás, nos anos 40, auge dos grupos vocais,<br />

sua maior referência. É o que ocorre agora com a inclusão de Acontece que Eu Sou Baiano,<br />

de Dorival Caymmi, grava<strong>da</strong> originalmente pelos Anjos do Inferno em 1944, e Louco, de<br />

Henrique de Almei<strong>da</strong> e Wilson Batista, lança<strong>da</strong> em 1947 por Aracy de Almei<strong>da</strong>.<br />

(As canções mais recentes que ele gravou – e não neste disco – são Desde que o<br />

Samba é Samba e Menino do Rio, ambas de Caetano Veloso.)<br />

Para entender João Gilberto é preciso compreender o tempo. Desde o tempo que<br />

ele criou numa bati<strong>da</strong> de violão, que pode ser esticado ou encurtado, de acordo com a<br />

inflexão do momento, até aquele que passa para todo mundo, com as mesmas 24 horas<br />

diárias, mas com minutos que podem durar mais ou menos, de acordo com a vontade de<br />

quem está no comando. E ele sempre esteve à frente.<br />

O tempo de João Gilberto não tem a medi<strong>da</strong> do relógio ou do calendário. Assim<br />

como o tempo musical, corrompido por ele, o passado e o futuro parecem se encontrar<br />

em sua música e sair com uma subversão <strong>da</strong> noção universal de tempo ao explorar a sensação<br />

atemporal que nem as teorias de Einstein podem explicar satisfatoriamente. A música<br />

de João Gilberto pode até ter um ponto de parti<strong>da</strong>, mas carrega a impressão de ser eterna.<br />

Se hoje se ouve bossa nova em todo o planeta e até mescla<strong>da</strong> com os mais diversos estilos<br />

musicais, o responsável é João Gilberto. Portanto, é ele o senhor do tempo.<br />

E tempo é repetição, constância. Mas antes que se repita a falsa la<strong>da</strong>inha <strong>da</strong> mesmice,<br />

é preciso compreender também a criação deste disco, a partir de três apresentações que<br />

João Gilberto fez no Japão, em setembro do ano passado. Era a primeira vez que o cantor<br />

se apresentava no país, os ingressos foram disputados a golpes de karatê, quando cambistas<br />

de olhos puxados pediram – e levaram – US$ 300 a ca<strong>da</strong> tíquete que custava US$ 300. A<br />

bilheteria rendeu US$ 1,8 milhão; tudo para ver e ouvir João e seu violão. Era, pois, mais do<br />

que justo que os japoneses tivessem acesso aos clássicos que a voz de João Gilberto criou.<br />

E, mais, a apresentação foi sensacional. Tanto que virou disco. É um clichê dizer que<br />

João Gilberto toca as mesmas coisas de formas sempre diferentes. Mas é também um fato.<br />

Afinal, foi ele quem ensinou à música brasileira que era possível ir além, romper fronteiras<br />

harmônicas e rítmicas; no que ain<strong>da</strong> não encontrou sucessor a altura. Já na abertura do disco,<br />

em Acontece que Eu Sou Baiano, ele quebra inteiramente a estrutura <strong>da</strong> canção de Caymmi<br />

e a reconstrói, devagarinho, puxando as cor<strong>da</strong>s e quase abdicando dos bordões – que ele<br />

parece trocar pela exploração dos graves <strong>da</strong> voz. E a partir de inflexões varia<strong>da</strong>s ele ressalta<br />

a letra gaiata.<br />

Já se perdeu a conta <strong>da</strong>s vezes que João Gilberto cantou Aos Pés <strong>da</strong> Cruz, que<br />

está no primeiro LP dele, de 1958, e também no novo CD. Além de ser encontrado<br />

em outras gravações. A música de Marino Pinto e Zé <strong>da</strong> Zil<strong>da</strong> não ganha alterações significativas,<br />

embora o violão de João Gilberto esteja mais afiado hoje e os acordes sejam<br />

ain<strong>da</strong> mais surpreendentes e desconcertantes; tanto quanto a vocalização, aliás, cheia<br />

de variações guturais.<br />

Sete <strong>da</strong>s 15 canções registra<strong>da</strong>s no disco são <strong>da</strong> primeira fase de João Gilberto, foram<br />

extraí<strong>da</strong>s dos três primeiros e seminais LPs gravados por ele e que – por uma pendenga jurídica<br />

estão fora de catálogo. Outras cinco canções são ain<strong>da</strong> mais antigas que estas; as músicas<br />

mais recentes do novo CD são <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> fase de Tom Jobim, Wave e Lígia, esta com a letra<br />

alternativa que praticamente só João Gilberto canta, por achar que as palavras cabem melhor<br />

na canção do que a original. Na<strong>da</strong> é gratuito na música do baiano; nem as eventuais bati<strong>da</strong>s<br />

do sapato no chão do teatro, muito menos o sotaque que é alterado para reforçar as sílabas<br />

que melhor se encaixam na canção.<br />

As surpresas <strong>da</strong> música de João Gilberto já não são tão evidentes. As improvisações<br />

não têm o impacto do rompimento, as variações <strong>da</strong> entonação são sutis, as alterações no<br />

compasso são dita<strong>da</strong>s pelas bati<strong>da</strong>s do coração. Difícil ficar impassível diante <strong>da</strong> reconstrução<br />

de Meditação e Este Seu Olhar, canções que ele já tinha gravado, mas que mostram como<br />

o cantor se aperfeiçoa.<br />

O perfeccionismo de João Gilberto rende histórias desde que ele começou a gravar<br />

discos. No registro de Chega de Sau<strong>da</strong>de e Bim Bom, para o primeiro 78 rpm – disco de<br />

10 polega<strong>da</strong>s com apenas uma canção em ca<strong>da</strong> lado –, ele quase enlouqueceu o arranjador<br />

Tom Jobim, primeiro ao arrumar uma briga com to<strong>da</strong> a orquestra por causa de imperfeições<br />

que só ele ouvia, depois por desavenças com os técnicos, revoltados com as exigências do<br />

estreante.<br />

Na única vez que não se envolveu inteiramente com a produção de um disco, o<br />

anterior João Gilberto Voz e Violão, produzido por Caetano Veloso, o resultado ficou<br />

aquém do esperado. As novas versões de canções como Desafinado ou Chega de Sau<strong>da</strong>de<br />

são inferiores às originais, sem o brilho que o cantor costuma emprestar a tudo<br />

o que faz.<br />

Quem espera uma nova revolução de João Gilberto deve tirar o cavalinho <strong>da</strong> chuva.<br />

A sacudi<strong>da</strong> que ele deu na música popular a partir <strong>da</strong> bati<strong>da</strong> que criou no final dos anos 50<br />

valeu por um <strong>da</strong>queles terremotos arrasadores. Nem o mundo agüenta muitas sacudi<strong>da</strong>s<br />

dessas, nem o cantor está mais aí para isso, até porque ele se interessa mais pelas canções<br />

que ouvia na infância, na praça de Juazeiro, onde funcionava um serviço de alto-falantes, do<br />

que por novi<strong>da</strong>des. Não deve ser à toa que o cantor exigiu um barbeador modelo 1954 no<br />

camarim de um show recente.<br />

Há poucos meses, João Gilberto dispensou um convite que poderia ser o<br />

sonho <strong>da</strong> grande maioria dos músicos do planeta: tocar com o deus <strong>da</strong> guitarra, Eric<br />

Clapton. Na<strong>da</strong> que acrescente alguma coisa à voz e ao violão parece emocionar o<br />

baiano; ele sabe que eles se bastam. E tem razão. Se a bossa ain<strong>da</strong> é nova, devemos<br />

tudo a João Gilberto.<br />

JORNAL DO MAGISTRADO<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004<br />

25


26<br />

A r t i g o<br />

A quem realmente interessa o desmonte do Judiciário?<br />

Já se disse que o Poder Judiciário é o termômetro <strong>da</strong> democracia em qualquer país. A<br />

frase está coberta de razão. Afinal, quanto maior for a independência <strong>da</strong>s decisões proferi<strong>da</strong>s,<br />

mais forte será a democracia vigente na nação.<br />

Lembre-se, sem esforço, de nosso próprio país em pretérito tempo, quando as decisões<br />

judiciais na<strong>da</strong> valiam, diante <strong>da</strong> virulência <strong>da</strong> ditadura.<br />

A independência do Judiciário foi consegui<strong>da</strong> a duras penas, através de lutas seculares.<br />

A famosa tripartição de poderes, prevista, originariamente, por Montesquieu, visa, basicamente,<br />

<strong>da</strong>r ao ci<strong>da</strong>dão a garantia de ter seus direitos respeitados, inclusive pelo próprio<br />

Estado. O Judiciário, assim, serve como freio às ambições desmedi<strong>da</strong>s, inclusive as advin<strong>da</strong>s<br />

do próprio Estado. Não é absurdo dizer, assim, que o Judiciário é o derradeiro baluarte contra<br />

as injustiças. Sejam estas advin<strong>da</strong>s do poder econômico,<br />

social ou, pior, do próprio Estado, tão descumpridor <strong>da</strong>s<br />

ordens judiciais.<br />

Assiste-se hoje, no Brasil, a um assustador retrocesso,<br />

qual seja, o “desmonte” do Judiciário. E o que é pior: tudo<br />

objetivando a satisfazer o capital internacional, irresignado<br />

com o fato de que as decisões proferi<strong>da</strong>s por nosso poder<br />

serem “imprevisíveis”. Mais impressionante ain<strong>da</strong> é que tal<br />

posição tem encontrado um apoio praticamente irrestrito<br />

junto à mídia e à classe política que, com prazer, estão aju<strong>da</strong>ndo<br />

a dilacerar o Poder Judiciário.<br />

É evidente que há muitas mazelas. Há corrupção,<br />

ineficiência e dificul<strong>da</strong>des na prestação jurisdicional. O Judiciário<br />

não é, nem de longe, o que desejamos. E isto inclui<br />

os desejos dos próprios Juízes que nele trabalham. Mas é<br />

preciso dizer que muitas <strong>da</strong>s mazelas a nós atribuí<strong>da</strong>s não<br />

nos cabem.<br />

O número de Juízes é, em muito, inferior ao necessário.<br />

Não é humanamente possível gerir uma Vara com mais<br />

de dois mil processos. Mas esta é uma reali<strong>da</strong>de extremamente<br />

comum em inúmeras varas neste país. Falta-nos, por<br />

igual, funcionários e estrutura para <strong>da</strong>r vazão a tal número<br />

de feitos que sobrevêm sempre em número superior. Em<br />

alguns lugares, mesmo o mais trivial, como papel e, até<br />

mesmo, luz elétrica, às vezes faltam.<br />

O aumento sempre crescente no número de feitos é,<br />

no entanto, ain<strong>da</strong> que paradoxalmente, prova de confiança<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Prova que o Judiciário ain<strong>da</strong> é o derradeiro<br />

baluarte contra as injustiças.<br />

Ninguém mais que os juízes se atormenta com a lentidão<br />

dos feitos. Porque, como já se disse, justiça tardia é sinônimo<br />

de injustiça. Mas é preciso que se dêem condições<br />

para que possamos realizar nosso trabalho. Os tão famosos<br />

“privilégios” hoje alardeados – e demonizados – pela mídia<br />

constituem-se, em ver<strong>da</strong>de, em garantias instituí<strong>da</strong>s não em<br />

prol <strong>da</strong> figura do juiz, mas <strong>da</strong> própria socie<strong>da</strong>de.<br />

E com elas também vem as restrições, que não são<br />

poucas: aos juízes é defeso exercer qualquer outra ativi<strong>da</strong>de remunera<strong>da</strong>, com exceção de<br />

somente um único cargo de magistério superior. Também não podemos nos filiar a partidos<br />

políticos, muito menos sermos membros de socie<strong>da</strong>de mercantil, ain<strong>da</strong> que como cotista,<br />

dentre outras.<br />

Em outras palavras: aos Juízes é defeso perceber quaisquer valores que não os pagos<br />

pela própria profissão. E isto nos faz diferentes de quaisquer outras categorias profissionais,<br />

tais como médicos, engenheiros e, principalmente, políticos.<br />

MARÇO A ABRIL DE 2004 JORNAL DO MAGISTRADO<br />

O número de Juízes é, em<br />

muito, inferior ao necessário.<br />

Não é humanamente possível<br />

gerir uma Vara com mais de<br />

dois mil processos. Mas esta é<br />

uma reali<strong>da</strong>de extremamente<br />

comum em inúmeras varas<br />

neste país. Falta-nos, por igual,<br />

funcionários e estrutura para<br />

<strong>da</strong>r vazão a tal número de<br />

feitos que sobrevêm sempre em<br />

número superior. Em alguns<br />

lugares, mesmo o mais trivial,<br />

como papel e, até mesmo, luz<br />

elétrica, às vezes faltam.<br />

Josias Menescal*<br />

Afinal, é <strong>da</strong> própria essência <strong>da</strong> democracia que nas Casas Legislativas haja representantes<br />

dos trabalhadores, mas também grandes industriais e banqueiros. Contudo, ao juiz tudo<br />

isto é impedido.<br />

To<strong>da</strong>s estas ve<strong>da</strong>ções e garantias foram instituí<strong>da</strong>s exatamente para permitir que o magistrado<br />

possa proferir suas decisões de modo mais imparcial possível, sem temer represálias<br />

ou repercussões de quem quer que seja. Nossa Constituição Ci<strong>da</strong>dã de 1988 insculpiu três<br />

garantias, quais sejam, a vitalicie<strong>da</strong>de, a irredutibili<strong>da</strong>de de vencimentos e a inamovibili<strong>da</strong>de.<br />

A primeira garante que a carreira de juiz é vitalícia, significando isto dizer que “dura<br />

a vi<strong>da</strong> inteira”, conforme leciona o Aurélio. Ou, em outras palavras, que o cargo de juiz<br />

permanece, mesmo após a aposentadoria, sendo dispensa<strong>da</strong>, a partir deste momento, tão<br />

somente a exigência de presença na vara ou tribunal em<br />

que o aposentado exercia suas funções.<br />

A irredutibili<strong>da</strong>de garante que o cargo de juiz não<br />

pode ter reduzidos seus vencimentos, enquanto a inamovibili<strong>da</strong>de<br />

garante que o magistrado não poderá ser transferido<br />

de vara em virtude de suas decisões.<br />

Tais garantias podem ser, à primeira vista, desnecessárias,<br />

mas tal visão é ledo engano. Imagine-se um juiz que<br />

profira uma decisão contra os interesses de um determinado<br />

prefeito no interior. Sem a garantia <strong>da</strong> inamovibili<strong>da</strong>de,<br />

este poderia, assim, queixar-se ao governador que poderia<br />

exigir a saí<strong>da</strong> do juiz <strong>da</strong>quela comarca, transferindo-o para<br />

outra, extremamente distante.<br />

Não se imagine que tal situação é, nem de longe,<br />

absur<strong>da</strong>.<br />

Absolutamente.<br />

Diariamente, o judiciário profere decisões que em<br />

muito desagra<strong>da</strong>m aos interesses escusos. A justiça de<br />

primeira instância, principalmente, é célebre em proferir<br />

decisões em favor <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, contra os interesses, mais<br />

<strong>da</strong>s vezes, do próprio Estado. Sem estas garantias, será que<br />

os magistrados poderiam exercer suas funções com tal imparciali<strong>da</strong>de<br />

?<br />

A resposta é absolutamente negativa.<br />

A quem interessa, assim, o desmonte que está sendo<br />

levado a cabo ?<br />

A resposta é simples. A socie<strong>da</strong>de está sendo engana<strong>da</strong>,<br />

leva<strong>da</strong> a odiar o Judiciário, tudo em nome de interesses<br />

escusos, nacionais e estrangeiros. Só que, quando<br />

a mesma finalmente começar a enxergar a ver<strong>da</strong>de, será<br />

tarde demais.<br />

Um Judiciário amor<strong>da</strong>çado, submisso e posto de<br />

quatro fará a festa dos grandes interesses econômicos e,<br />

paradoxalmente, do próprio Estado, que tantas vezes viu<br />

sua sede em devorar a socie<strong>da</strong>de impedi<strong>da</strong> pelas decisões<br />

judiciais.<br />

Urge alertar a socie<strong>da</strong>de para os nefastos perigos e<br />

terríveis conseqüências que certamente ocorrerão após tal fato.<br />

Exigir maior eficiência e celeri<strong>da</strong>de nas decisões é um direito <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Mas esta<br />

deve, por igual, exigir que o Judiciário tenha condições dignas de fazê-lo.<br />

Deixar que tal situação se concretize será tarde demais.<br />

E o que cairá depois ?<br />

A própria democracia ?<br />

*Josias Menescal é juiz de direito


ANÚNCIO 4ª CAPA

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