O círculo da paz - AMB
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Na gestão de Faoro (1977-1979), o Conselho Federal <strong>da</strong> OAB ain<strong>da</strong> se pronunciaria,<br />
através de parecer do conselheiro Sepúlve<strong>da</strong> Pertence, sobre o projeto de lei <strong>da</strong> anistia,<br />
concluindo que a proposta do Governo era um mero indulto coletivo e que, enquanto subsistissem<br />
a Lei de Segurança Nacional e a comuni<strong>da</strong>de de informações (representa<strong>da</strong> pelo<br />
temido SNI), não haveria espaço para o regime democrático pleno. A anistia só foi aprova<strong>da</strong><br />
pelo presidente Figueiredo, em agosto de 1979, depois <strong>da</strong> forte pressão <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />
Numa época em que os partidos políticos tinham participação limita<strong>da</strong> nas grandes<br />
decisões nacionais, o advogado Faoro lutava na oposição e transformou a OAB num instrumento<br />
real de diálogo, que atuava sem submissão aos militares.<br />
“Seu êxito à frente <strong>da</strong> OAB deve-se não ao fato de ele ter sido um grande jurista, mas<br />
sim porque, como um cientista político, ele soube, num momento difícil para o país, conduzir<br />
negociações com figuras <strong>da</strong> ditadura sem jamais perder a digni<strong>da</strong>de”, lembra o advogado<br />
Hélio Saboya, ex-presidente <strong>da</strong> OAB-RJ e colega de Faoro na Procuradoria do Estado do<br />
Rio de Janeiro.<br />
Através de Petrônio Portela, um hábil negociador, Faoro foi recebido pelo presidente<br />
Geisel. Uma história conta<strong>da</strong> na época ganhou tons de ver<strong>da</strong>de ao longo dos anos.<br />
Segundo ela, Geisel teria perguntado ao presidente <strong>da</strong> OAB o que poderia fazer pela<br />
abertura política e sinalizar para a socie<strong>da</strong>de civil essa disposição. “Restabeleça o habeas<br />
corpus”, disse-lhe Faoro.<br />
Geisel duvidou que aquilo pudesse ter reflexo na vi<strong>da</strong> política do país e no dia-a-dia<br />
do ci<strong>da</strong>dão brasileiro. Mas, antes de entregar o cargo a seu sucessor, o general João Baptista<br />
Figueiredo, enviou ao Congresso emen<strong>da</strong> abolindo o AI-5 e restabelecendo o habeas corpus.<br />
Faoro conseguira convencer o general presidente <strong>da</strong> importância <strong>da</strong>quele instrumento<br />
jurídico que, restabelecido, permitiu aos advogados localizar presos e acabar com a tortura<br />
nos cárceres políticos.<br />
“Não sei como ele e o Portella se aproximaram, mas os dois passaram a agir juntos,<br />
sem submissão. A OAB era um canal de diálogo, já que os partidos políticos não existiam<br />
na prática. E Faoro sozinho valia por to<strong>da</strong> a oposição”, conta Saboya.<br />
Nascido em 27 de abril de 1925, em Vacaria (RS), filho de agricultores, Raymundo<br />
Faoro mudou-se em 1930 com a família para Caçador (SC), onde fez o curso secundário<br />
no Colégio Aurora. Formou-se em Direito pela Universi<strong>da</strong>de Federal do Rio Grande<br />
do Sul e, em 1951, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a advogar. Em 1963,<br />
passou no difícil concurso para a Procuradoria do então Estado <strong>da</strong> Guanabara. Casouse<br />
com Pompéia, com quem teve três filhos, Angela, Antônio e André, que lhe deram<br />
sete netos.<br />
Desde muito jovem colaborou com a imprensa. Em 1947, ajudou a fun<strong>da</strong>r no<br />
Rio Grande do Sul a revista “Quixote”. Colaborou com diversos jornais e revistas do<br />
Sul, Rio e São Paulo. Seus últimos artigos foram para a revista “Carta Capital”, do amigo<br />
Mino Carta. Apesar do permanente contato com a imprensa, Faoro não procurava<br />
agra<strong>da</strong>r a ninguém.<br />
“Ele conquistava as pessoas, como conquistou o respeito <strong>da</strong> imprensa”, diz Saboya.<br />
O advogado carioca conta que, só uma vez, a relação dos dois quase ficou estremeci<strong>da</strong>.<br />
Foi quando Saboya deu um parecer na Procuradoria de Serviços Públicos com o qual<br />
Faoro não concordou.<br />
“Soube que ele ficou furioso. Fui até ele e disse: “não vai ficar zangado comigo só por<br />
causa de uma frase infeliz”. Saboya temia perder o amigo de mesa de papo e uísque nos<br />
fins de tarde depois do expediente na Procuradoria. “Lá, ele relaxava e contava casos do<br />
Rio Grande do Sul. Faoro era bravo com todo mundo, mas morria de medo <strong>da</strong> Pompéia,<br />
mulher dele”, relembra Saboya.<br />
O amigo conta ain<strong>da</strong> que Faoro sempre resistiu à idéia de entrar para a Academia Brasileira<br />
de Letras, apesar <strong>da</strong> consagração de “Os Donos do Poder”, livro que mereceu uma<br />
segun<strong>da</strong> edição em 1975, revista e amplia<strong>da</strong> de 271 para 766 páginas pelo próprio autor, e<br />
sucessivas reedições.<br />
Como imortal, Faoro só foi duas vezes à Academia: uma, no dia <strong>da</strong> eleição, outra,<br />
no dia <strong>da</strong> posse. Mas, desde sua eleição, por unanimi<strong>da</strong>de, em novembro de 2001, para<br />
a cadeira 6, antes ocupa<strong>da</strong> por Barbosa Lima Sobrinho, ele resolveu aparecer em algumas<br />
<strong>da</strong>s reuniões <strong>da</strong>s terças-feiras quando contava histórias saborosas e reafirmava suas posições<br />
sempre duras, segundo o então presidente <strong>da</strong> ABL, Alberto Costa e Silva.<br />
“Ele não gostava de se gabar <strong>da</strong>s lutas políticas. Sua grande importância foi como intérprete<br />
dos processos de formação do Brasil e do comportamento de nossas elites nesses<br />
processos”, disse Costa e Silva no velório de Faoro, no salão nobre <strong>da</strong> Academia.<br />
“Ele não se valorizou indo para a Academia, a ABL é que se valorizou com sua entra<strong>da</strong>”,<br />
analisa Saboya.<br />
Em 1989, Raymundo Faoro foi convi<strong>da</strong>do pelo PT para ser o candi<strong>da</strong>to a vice-presidente<br />
na chapa de Luiz Inácio Lula <strong>da</strong> Silva. Recusou, mas durante to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> apoiou<br />
o ex-operário e líder sindical, ao lado de quem subiu nos palanques no ABC paulista nas<br />
greves dos metalúrgicos e campanhas pela anistia e eleições diretas. Admirador do PT e<br />
eleitor confesso do atual presidente <strong>da</strong> República nas quatro últimas eleições para a presidência,<br />
Faoro, no entanto, nunca se filiou a nenhum partido. Justificou-se, numa entrevista<br />
ao jornal O Globo, a última à imprensa, uma semana antes de sua posse na ABL:<br />
“Os intelectuais não podem ter limitações partidárias ou de classe. Há de haver na<br />
socie<strong>da</strong>de um grupo de pessoas que se reserva o direito <strong>da</strong> crítica, seja quem for o governante,<br />
amigo ou inimigo”.<br />
Em 1992, assinou a pedido do presidente <strong>da</strong> Associação Brasileira de Imprensa, a<br />
petição de impeachment do então presidente Fernando Collor.<br />
Fez oposição a algumas idéias políticas e, principalmente, à política econômica do<br />
governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. “Foram oito anos de estagnação, de<br />
injustiça social, de concentração de ren<strong>da</strong>, de aumento <strong>da</strong> violência”, disse ele em 2002,<br />
quando defendeu a participação do Estado na economia e atacou as elites: “O melhor<br />
governo não é o mais ausente, é aquele que protege os interesses nacionais, abre o mercado<br />
interno. O Estado tem de ser ca<strong>paz</strong> de proteger todos os ci<strong>da</strong>dãos e não só aqueles<br />
sujeitos que o servem”.<br />
Ele via a eleição de Lula como um teste para a República que, na sua opinião, nunca<br />
deu oportuni<strong>da</strong>de a quem veio de baixo, o que aconteceu no Império.<br />
“No Império, que era aristocrático, muitos homens do povo chegaram alto, como<br />
Machado de Assis, que tinha menos instrução do que Lula. Mas a República não teve lugar<br />
para seus intelectuais, seus homens do povo e seus artistas”.<br />
Para o amigo Saboya, Faoro era um democrata e um liberal no que dizia respeito à<br />
defesa <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des, mas, do ponto de vista político e econômico, era de esquer<strong>da</strong>.<br />
“Ele era contra a implosão do Estado. Achava que a máquina do Estado era importante<br />
e não podia ficar sujeita aos interesses privados, muito menos aos interesses externos”,<br />
explicou Saboya.<br />
Mesmo entre os amigos mais próximos, Faoro era econômico nas palavras. Dava<br />
opiniões firmes, consistentes, nunca palpites sobre todos os assuntos.<br />
“Para mim, a palavra que melhor define o Faoro é paradoxal. Seu conceito e sua fama<br />
não compatibilizavam com o tipo de ação dele”, diz Saboya.<br />
Faoro gostava de Direito e de Política. Tinha rara erudição e deu à presidência <strong>da</strong> OAB<br />
uma importância que a enti<strong>da</strong>de não tinha, volta<strong>da</strong> que era para os advogados e as lides jurídicas.<br />
Mas teve coragem de defender o habeas corpus, um recurso poderoso para os advogados,<br />
quando nem todos viam a importância desse instrumento. Atribui-se a ele a criação, nos<br />
anos 70, <strong>da</strong> expressão “socie<strong>da</strong>de civil”, para diferenciar o povo dos militares então no poder.<br />
Nacionalista, lembrou em seu discurso de posse na ABL a luta de seu antecessor.<br />
“Reconstruído teoricamente por Barbosa Lima Sobrinho, o mais autêntico nacionalismo<br />
brasileiro enxotou a xenofobia, o chauvinismo e a patriota<strong>da</strong>. Não há exemplo de país que<br />
tenha se desenvolvido sem domínio de sua economia interna e sem nacionalismo. Essa<br />
tese era cara a Barbosa Lima”. E, sempre profético, previa: “Vai se retomar no mundo essa<br />
discussão do nacionalismo”.<br />
Personali<strong>da</strong>de única, um teórico do Direito, Faoro morreu no dia 15 de maio de<br />
2003 num hospital de Copacabana, na Zona Sul do Rio de Janeiro. No enterro, o ministro<br />
<strong>da</strong> Justiça, Márcio Thomaz Bastos foi emblemático ao classifica-lo. “Era um profeta”.<br />
Mas ele sempre disse que preferia ser lembrado como o chamava sua emprega<strong>da</strong>: “Seu<br />
Raymundo.”<br />
JORNAL DO MAGISTRADO<br />
MARÇO A ABRIL DE 2004<br />
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