Gênero, Memória e Narrativas – ST 41 Alessandra Rosa Carrijo ...
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<strong>Gênero</strong>, <strong>Memória</strong> e <strong>Narrativas</strong> <strong>–</strong> <strong>ST</strong> <strong>41</strong><br />
<strong>Alessandra</strong> <strong>Rosa</strong> <strong>Carrijo</strong><br />
Taka Oguisso (Orientadora)<br />
Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo <strong>–</strong> ENO/EEUSP<br />
Palavras-chave: História da Enfermagem <strong>–</strong> <strong>Gênero</strong> <strong>–</strong> Identidade Profissional<br />
Mulheres que Cuidam: Depoimentos Orais das Ex-alunas da Escola de Enfermagem<br />
Lauriston Job Lane i<br />
A enfermagem é caracterizada como profissão a partir de Florence Nightingale, precursora<br />
da enfermagem moderna que, após a Guerra da Criméia (1854-1856), fundou a Escola de<br />
Enfermagem do Hospital Saint Thomas, em Londres, no ano de 1860, transformando a ação do<br />
cuidado pautado no modelo religioso, puramente vocacional, ainda que implicasse no aprendizado<br />
técnico-científico.<br />
De acordo com Sobral, Florence Nightingale enfrentou os poderes vigentes a época<br />
vitoriana, redimensionando o papel da mulher na sociedade inglesa e daí para o mundo. Aprendeu a<br />
mandar e a ser obedecida, fez inimigos entre os que resistiam à sua atuação pela condição de<br />
mulher, conseguiu apoio da opinião pública e do poder instituído e reduziu os índices de<br />
mortalidade, cujo exemplo maior foi sua atuação junto aos feridos da Guerra da Criméia. Para a<br />
autora:<br />
Florence deixou de ser percebida socialmente apenas como mulher para<br />
ser aceita também como mulher-empreendedora, mulher que manda,<br />
mulher que cuida, mulher-enfermeira, mulher que cria, que inova. Era<br />
preciso adjetivá-la, tornar socialmente aceitável a performance de uma<br />
mulher com movimentação própria na vida pública, mesmo que para<br />
isso fosse preciso masculinizá-la (1995, p.27).<br />
Iniciada a profissionalização da enfermagem, a precursora instituiu o Boletim Moral como<br />
instrumento para selecionar possíveis candidatas a alunas de sua Escola. O objetivo era imprimir<br />
um novo comportamento à ação do cuidado, anteriormente avaliado de forma pejorativa,<br />
estabelecendo, assim, a imagem da enfermeira como anjo-branco, abnegada, submissa, intocável.<br />
Cabe ressaltar que as alunas deveriam ser solteiras - sinonímia de virgens à época - e sagrada-cristã,<br />
além de ler e escrever bem. (SILVEIRA; GUALDA; SOBRAL, 2003).<br />
A forma de seleção, definida de acordo com a classe social da candidata, denominava as<br />
alunas burguesas de ladie nurses, estas pagavam o estudo e realizavam o trabalho intelectual,<br />
administrativo e de supervisão. Já as alunas pobres foram denominadas nurses e não pagavam os<br />
estudos fazendo o trabalho manual direto e primário (ALCÂNTARA, 1963; SILVA, 1989). Desta
forma, ocorreu a divisão social e técnica do trabalho da enfermagem, reflexo da divisão do trabalho<br />
nas sociedades capitalistas que, comportando um referencial de poder masculino, resultou em<br />
desigualdades intragênero, afastando os homens que se interessavam pela prática do cuidar, o que<br />
responsabiliza o modelo proposto e aceito como padrão a divisão sexual do trabalho na enfermagem<br />
(COELHO, 2001). De acordo com LOPES (1996), a partir de então, muitas escolas passaram a<br />
instituir o sexo feminino como obrigatório para inserção na enfermagem, como revela um dos<br />
depoimentos: O curso era de três anos e ainda não havia homens. (E.D.)<br />
O fato de Florence ter fundado sua Escola dentro de um hospital e com exigências de perfil<br />
das alunas para nele estudarem gerou um sistema conhecido como Modelo Nightingaleano de<br />
ensino. Este sistema se espalhou em muitos países até chegar no Brasil em 1894, com a criação do<br />
Hospital Samaritano em São Paulo.<br />
Até o final do século XIX e início do XX, a enfermagem tradicional no Brasil era exercida<br />
por pessoas leigas e religiosas, não preparadas especificamente para o cuidado aos doentes, e se<br />
caracterizava como uma ação caritativa. Oficialmente, a enfermagem profissional no Brasil, foi<br />
instituída no Rio de Janeiro em 1890, com a criação da Escola Profissional de Enfermeiros e<br />
Enfermeiras ii , adotando o modelo francês de ensino, tendo como objetivo, formar enfermeiras para<br />
hospícios e hospitais civis e militares. Entretanto, alguns autores citam que a Escola de Enfermeiras<br />
Anna Nery, criada em 1923, representa o marco da Enfermagem Moderna no país (ALCÂNTARA,<br />
1963).<br />
Com a profissionalização de enfermagem no Brasil, dois modelos de enfermagem se<br />
destacaram: o Modelo Nightingaleano, caracterizado pelo ensino da enfermagem vinculado ao<br />
âmbito hospitalar e que valorizava a experiência prática e o Modelo Francês, caracterizado pelo<br />
ensino que preconizava um cuidado de enfermagem baseado em manuais elaborados por médicos<br />
que eram professores dos cursos de enfermagem da época.<br />
De acordo com Mott (2000), o curso de enfermagem criado no Hospital Samaritano em<br />
1896 sob o regime de internato foi considerado o primeiro a adotar o sistema de ensino<br />
nightingaleano no Brasil pois, enfermeiras inglesas, ao trabalharem no hospital, ensinavam o ofício<br />
para outras mulheres, em sua grande maioria também inglesas ou filhas de ingleses residentes no<br />
Brasil. Posteriormente chamada de Escola de Enfermagem Lauriston Job Lane (1959), eram<br />
médicos os que ministravam as aulas.<br />
Originalmente, o Hospital Samaritano contratou enfermeiras inglesas formadas pela Escola<br />
de Florence Nightingale as quais disseminaram seus conhecimentos junto às internas, mulheres<br />
abnegadas ao ofício, chamadas de nurses ou matrons quando assumiam posições mais elevadas ou<br />
cuja vivência hospitalar fosse considerada relevante. Apesar do provável pioneirismo quanto à<br />
implantação do modelo nIghtingaleano, essa antiga instituição de ensino da enfermagem não
conseguiu notoriedade no Brasil, resultando uma omissão de sua história até praticamente os dias de<br />
hoje. Clássicos da literatura, entretanto, afirmam que a primeira escola de enfermagem a adaptar o<br />
modelo nightingaleano no Brasil foi a Escola de Enfermagem Ana Néri, em 1923.<br />
A Escola de Enfermagem do Hospital Samaritano, em seu anonimato, permaneceu à<br />
margem da historiografia oficial da enfermagem brasileira, fator explicado, talvez, pelo fato de<br />
tratar-se de uma escola criada em hospital privado, com orientação não católica e fora da capital da<br />
República da época, vale dizer, o Rio de Janeiro, fato histórico ignorado por muitos pesquisadores<br />
da Enfermagem (OGUISSO, 2005). Isto posto, a reflexão acerca da temática da enfermagem em seu<br />
aspecto histórico ainda exige desmistificações. Alguns desses aspectos podem ser avaliados nos<br />
depoimentos das alunas da Escola Lauriston Job Lane. Desses, a compleição física é um tema que<br />
desperta interesse, como permite entrever a fala de uma das depoentes quando esta afirma que: ...o<br />
grupo de estágio da ortopedia, três alunas, era muito pequeno nós éramos divididos pelo porte<br />
físico. Os maiores, mais corpulentos e fortes, ficavam na enfermaria masculina com pacientes mais<br />
pesados, e os menores na feminina (I.L.). Ou quando relata: Quando nós chegamos no hospital<br />
havia um padrão de enfermagem, como tipo físico, tinha que ter no mínimo um metro e setenta de<br />
altura, ser de cor branca e não se admitia homens. (M.G.B.)<br />
Florence Nightingale inaugura a Enfermagem Moderna com seu livro Notas Sobre a<br />
Enfermagem, escrito em 1859, traduzido posteriormente em diversas línguas, inclusive em<br />
português por Amália Correa de Carvalho, uma das ex-diretoras da Escola de Enfermagem<br />
Lauriston Job Lane. Entre diversos aspectos abordados em relação ao cuidado aos doentes, a autora<br />
destaca a questão do vestuário, relacionando-o como uma das causas de rejeição da enfermeira por<br />
parte do enfermo, sobretudo as que utilizavam peças ruidosas, já que roupa e mulher deveriam ser<br />
silenciosas e ocultar a sensualidade. Alguns tecidos, então, eram inadequados pelo barulho que<br />
provocavam e pela imagem que eram representados: “uma senhora idosa e respeitável vestida com<br />
crinolina expõe ao paciente, em seu leito, quase o mesmo espetáculo que uma dançarina de ópera<br />
apresenta no palco” (NIGHTINGALE, 1859). Esta fala permite supor que a escolha do uniforme,<br />
escolhido por Florence, seguia normas rígidas e formais de comportamento: “capa cinza de lã<br />
grossa, casaco de lã, também escuro, capas, um lenço marrom na cabeça com a legenda em<br />
vermelho escrito Scuttari” (MIRANDA, 1996, p.142).<br />
A questão do uniforme, ainda que originalmente tenha contribuído significativamente para<br />
uma revisão da moda feminina, aparece nos depoimentos coletados junto às alunas da Escola do<br />
Hospital Samaritano, como segue: ...nós tínhamos que ter uma postura para não sermos<br />
confundidas com qualquer outra coisa, mesmo usando aquele uniforme horroroso, éramos<br />
mulheres cuidando de homens. (I.L.), ou seja, não se podia suscitar nenhum desejo ou despertar a<br />
libido, trazendo o tema para as relações de gênero.
Em outro depoimento a dimensão do feminino permite observar que nem sempre a questão<br />
do uniforme foi um ponto negativo. O fragmento que segue amplia o debate quando relata: “Era<br />
muito formal, a postura também era exigida, você não podia encostar em nada... Hoje está tudo<br />
muito mudado! Eu acho que depois que a enfermeira tirou a touca, cada um se veste e se comporta<br />
como quer. Eu ainda sou daquela época bonita. Pode ser que eu seja antiga”. (F.L.)<br />
O trabalho com História Oral permite entender os processos pelos quais práticas,<br />
comportamentos e valores, formalizaram identidades e sociabilidades. Pensar a questão no âmbito<br />
da história da enfermagem, tão pouco estudada no Brasil, implica no refazer constante da prática<br />
assistencial, como sugere a orientação profissional pautada no olhar holístico e humanizado do<br />
cuidado.<br />
Referências<br />
ALCÂNTARA, G. A enfermagem moderna como categoria profissional: obstáculos à sua expansão<br />
na sociedade brasileira. Ribeirão Preto, 1963. 125 f. Tese (Concurso à Cátedra) <strong>–</strong> Escola de<br />
Enfermagem de ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.<br />
COELHO, E. A. C. Enfermeiras que cuidam de mulheres: conhecendo a prática sob o olhar do<br />
gênero. São Paulo, 2001. 147 f. Tese (Doutorado). Escola de Enfermagem <strong>–</strong> Universidade de São<br />
Paulo.<br />
LOPES, M.J.M. O sexo no hospital. In: LOPES, M.J.M; MEYER, D.E.; WALDOW, V.R. (org.)<br />
<strong>Gênero</strong> e Saúde. Porto Alegre, Artes Médicas, 1996. p. 76-105.<br />
MIRANDA, C.M.L. O risco e o bordado - um estudo sobre a formação da identidade profissional.<br />
Rio de Janeiro, Escola de Enfermagem Anna Nery/UFRJ, 1996.<br />
MOREIRA, A. Profissionalização da Enfermagem Brasileira: O pioneirismo da Escola de<br />
Enfermagem Alfredo Pinto (1890-1920). São Paulo, 2003. Tese (Doutorado) Escola de<br />
Enfermagem - Universidade de São Paulo.<br />
MOTT, M. L. ; TSUNECHIRO M. História da Enfermagem: novas fontes, novas perspectivas.<br />
Colóquio Latino-Americano de História da Enfermagem, 1. 2000. Anais Rio de Janeiro, ago. 2000.<br />
NIGHTINGALE, F. Notas sobre enfermagem: o que é e o que não é. Tradução: Amália Correa de<br />
Carvalho. São Paulo: Cortez, 1989.<br />
OGUISSO, T. (org.) Trajetória Histórica e Legal da Enfermagem. São Paulo: Manole, 2005.<br />
SILVEIRA, M.F.A; GUALDA D.M.R; SOBRAL, V.R.S. Body and nursing: a delicate<br />
relationshipOnline Brazilian Journal of Nursing (OBJN <strong>–</strong> ISSN 1676-4285) v.2, n3, December<br />
2003. Available at: www.uff.br/nepae/objn203silveiragualdasobral.htm.<br />
SOBRAL, V.R.S. A purgação do desejo: memórias de enfermeiras. Rio de Janeiro, 1995. 114 p.<br />
Tese (Doutorado) <strong>–</strong> Universidade Federal Fluminense.
i Este texto é parte da dissertação de mestrado, em andamento, intitulada Histórico das Anotações de Enfermagem: A<br />
<strong>Memória</strong> dos Registros, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação da EEUSP.<br />
ii Almerinda Moreira (2003), ao pesquisar a origem da profissionalização da enfermagem no Brasil, concluiu que a<br />
Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras <strong>–</strong> EPEE, inaugurada em 1890 junto ao Hospital Nacional de<br />
Alienados na cidade do Rio de Janeiro foi, de fato, a primeira escola brasileira de enfermagem.