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Introdução ao Pentateuco, da aula em PowerPoint to PDF.

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PENTATEUCO<br />

Sumário<br />

I. INTRODUÇÃO GERAL AO PENTATEUCO .................................................................................. 2<br />

1. A FORMAÇÃO DO PENTATEUCO .............................................................................................. 2<br />

2. A “NOVA” HIPÓTESE DOCUMENTÁRIA DO PENTATEUCO ...................................................... 3<br />

3. AS CARACTERISTICAS DO PENTATEUCO ............................................................................... 3<br />

4. AS TRADIÇÕES DO PENTATEUCO ............................................................................................ 4<br />

4.1 Tradição Javista ...................................................................................................................... 5<br />

4.2 Tradição Eloista....................................................................................................................... 5<br />

4.3 TRADIÇÃO DEUTERONOMISTA ........................................................................................... 6<br />

a) O Código Deuteronômio ........................................................................................................ 7<br />

b) O Livro <strong>da</strong> Aliança ................................................................................................................. 7<br />

c) As grande linhas teológicas do Deuteronômio ....................................................................... 9<br />

4.4 A Tradição Sacerdotal ............................................................................................................. 9<br />

a) Características <strong>da</strong> Tradição Sacerdotal ............................................................................... 10<br />

b) A Teologia <strong>da</strong> Tradição Sacerdotal ...................................................................................... 10<br />

c) A Lei de Santi<strong>da</strong>de .............................................................................................................. 11<br />

d) As Leis supl<strong>em</strong>entares ........................................................................................................ 12<br />

4.5 Síntese <strong>da</strong>s Tradições do <strong>Pentateuco</strong> ................................................................................... 12<br />

5. A MENSAGEM DO PENTATEUCO ............................................................................................ 13<br />

1


I. INTRODUÇÃO GERAL AO PENTATEUCO<br />

A tradição ju<strong>da</strong>ica s<strong>em</strong>pre viu <strong>em</strong> Moisés o au<strong>to</strong>r do <strong>Pentateuco</strong>. Esta tradição levou naturalmente<br />

à designação do <strong>Pentateuco</strong> como “os cinco livros de Moisés”. Conseqüent<strong>em</strong>ente, os rabinos<br />

fizeram de Moisés, o au<strong>to</strong>r não só <strong>da</strong> Torá escrita (Lei), mas também <strong>da</strong> “Torá oral“. O Antigo<br />

Testamen<strong>to</strong> só atribui a Moisés o “código <strong>da</strong> aliança” (Ex 24,4), o “decálogo cultual” (Ex 34,27), o<br />

grande discurso histórico e legislativo do Deuteronômio (Dt 1,1.5; 4,45; 31,9.24; etc.), assim como<br />

algumas perícopes menores (Ex 17,14; Nm 33,2; Dt 31,30; etc.). Portan<strong>to</strong>, antes de tudo, a Lei<br />

estava associa<strong>da</strong> à pessoa de Moisés (também Ml 3,22; Esd 3,2; 7,6; 2Cr 25,4; 35,12; etc.), mas<br />

só a partir do período pós-bíblico o <strong>Pentateuco</strong> como um <strong>to</strong>do lhe foi atribuído, concepção que<br />

predominou até o século XVIII.<br />

Contudo, muitas contradições pod<strong>em</strong> ser observa<strong>da</strong>s no tex<strong>to</strong> e revelam sua complexa orig<strong>em</strong>,<br />

proveniente de fontes diversas: quan<strong>to</strong>s pares de animais de ca<strong>da</strong> espécie Noé levou <strong>em</strong> sua<br />

arca? Um (Gn 7,15) ou sete (7,2)? Quan<strong>to</strong>s dias durou o dilúvio? Quarenta (Gn 8,6) ou cen<strong>to</strong> e<br />

cinqüenta (8,3)? Por que Jacó foi para a Mesopotânia? Para escapar <strong>da</strong> vingança de Esaú (Gn<br />

27,41-45) ou para encontrar uma mulher de sua própria raça (27,46-28,5)? José foi levado <strong>ao</strong> Egi<strong>to</strong><br />

por uma caravana de ismaelitas (Gn 37,27) ou de madianitas (37,28)? O <strong>Pentateuco</strong> compreende<br />

também dois rela<strong>to</strong>s <strong>da</strong> criação (Gn 1,1-2,4a e 2,4b-25), dois rela<strong>to</strong>s <strong>da</strong> aliança com Abraão (Gn 15<br />

e 17), dois rela<strong>to</strong>s <strong>da</strong> expulsão de Agar (Gn 16 e 21,9-21), dois rela<strong>to</strong>s <strong>da</strong> vocação de Moisés (Ex<br />

3,1-4,17 e 6,2-7,7), duas menções do Decálogo (Ex 20,2-17 e Dt 5,6-21), três rela<strong>to</strong>s de Sara<br />

entregue <strong>ao</strong> harém de um rei estrangeiro (Gn 12, 10-20 e 20 e 26,6-14), etc.<br />

Entretan<strong>to</strong>, não foram somente esses anacronismos que despertaram a desconfiança a respei<strong>to</strong> <strong>da</strong><br />

atribuição tradicional do <strong>Pentateuco</strong> a Moisés. Foram, s<strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong>, as observações que depend<strong>em</strong><br />

<strong>da</strong> lógica literária que levaram os exegetas a levantar a questão <strong>da</strong>s “fontes”. Uma maneira<br />

bastante óbvia de tentar resolver o probl<strong>em</strong>a <strong>da</strong>s “contradições, dos dobletes” (mais de uma versão<br />

para o mesmo fa<strong>to</strong>) e <strong>da</strong>s diferenças de estilo foi atribuir as passagens <strong>em</strong> confli<strong>to</strong> a fontes,<br />

documen<strong>to</strong>s ou cama<strong>da</strong>s re<strong>da</strong>cionais diferentes. No próximo número aprofun<strong>da</strong>r<strong>em</strong>os mais esta<br />

questão.<br />

1. A FORMAÇÃO DO PENTATEUCO<br />

No <strong>Pentateuco</strong>, é gritante o recurso variável dos narradores a “Javé” e a “Eloim” para falar de Deus.<br />

O aparecimen<strong>to</strong> de dois nomes diferentes <strong>da</strong>dos a Deus levou H. B. Witter (1711) a sugerir duas<br />

fontes distintas, transmiti<strong>da</strong>s a Moisés pela tradição oral. To<strong>da</strong>via, o critério dos dois nomes divinos<br />

somente foi plenamente explorado por Astruc e por Eichhorn, por volta de 1760. Eles propuseram<br />

que deve-se distinguir dois documen<strong>to</strong>s, um dos quais <strong>em</strong>prega o nome divino de “Iahweh”<br />

(“Documen<strong>to</strong> Javista”) e o outro, o nome de “Eloim” (“Documen<strong>to</strong> Eloísta”). Tais documen<strong>to</strong>s seriam<br />

oriundos de fontes preexistentes, compilados por Moisés.<br />

A partir <strong>da</strong>í, muitas questões se impuseram: “como, precisamente, teria sido feita essa<br />

transmissão, sob que forma dev<strong>em</strong> ser imaginados os documen<strong>to</strong>s transmitidos, e o que continham<br />

precisamente esses documen<strong>to</strong>s, e como foram reunidos no conjun<strong>to</strong> chamado <strong>Pentateuco</strong>?” (De<br />

Pury/T. Römer). Para tentar responder a essas questões e explicar a presença de fragmen<strong>to</strong>s<br />

literários de proveniências diversas num único rela<strong>to</strong>, nos séculos seguintes, surgiram três<br />

hipóteses: a “documentária”, a dos “fragmen<strong>to</strong>s” e a “dos compl<strong>em</strong>en<strong>to</strong>s”.<br />

A teoria documentária afirmava haver na base do <strong>Pentateuco</strong> duas, três e até quatro tramas<br />

narrativas contínuas (“fontes” ou “documen<strong>to</strong>s”) que, redigi<strong>da</strong>s <strong>em</strong> épocas diferentes e <strong>em</strong> meios<br />

diferentes, teriam sido justapostas umas às outras por sucessivos re<strong>da</strong><strong>to</strong>res. A questão foi<br />

coloca<strong>da</strong>, mas a solução proposta quan<strong>to</strong> à formação do <strong>Pentateuco</strong> continuou ain<strong>da</strong> mui<strong>to</strong> vaga.<br />

Posteriormente, essa teoria será reformula<strong>da</strong> por Graf e Wellhausen, como se verá no próximo<br />

artigo.<br />

A teoria dos “fragmen<strong>to</strong>s” asseverava que originalmente existia um número indeterminado de<br />

rela<strong>to</strong>s esparsos e de tex<strong>to</strong>s isolados (s<strong>em</strong> continui<strong>da</strong>de narrativa). Estes teriam sido reunidos<br />

ulteriormente por um ou vários re<strong>da</strong><strong>to</strong>res-compiladores. Portan<strong>to</strong>, o <strong>Pentateuco</strong> não seria fru<strong>to</strong> de<br />

uma compilação de “documen<strong>to</strong>s”, mas de fragmen<strong>to</strong>s de fontes escritas. “Essa teoria expressa um<br />

dos dois extr<strong>em</strong>os entre os quais se move a crítica do <strong>Pentateuco</strong>; um dos extr<strong>em</strong>os é a uni<strong>da</strong>de<br />

óbvia de suas fontes, <strong>ao</strong> passo que o outro é a igualmente óbvia diversi<strong>da</strong>de, que <strong>to</strong>rna a uni<strong>da</strong>de<br />

imperfeita” (J. L. McKenzie).<br />

2


A teoria dos compl<strong>em</strong>en<strong>to</strong>s admite inicialmente a existência de uma única trama narrativa contínua<br />

(Eloísta). Ao longo dos séculos, teria recebido inúmeros acréscimos e compl<strong>em</strong>en<strong>to</strong>s, até chegar<br />

<strong>ao</strong> <strong>Pentateuco</strong> atual. No próximo artigo, ver<strong>em</strong>os a continuação dos estudos do <strong>Pentateuco</strong> <strong>ao</strong><br />

longo <strong>da</strong> História até os nossos dias.<br />

2. A “NOVA” HIPÓTESE DOCUMENTÁRIA DO PENTATEUCO<br />

Já vimos que, com o início <strong>da</strong> época Moderna (1700), o probl<strong>em</strong>a literário do Antigo Testamen<strong>to</strong> se<br />

impôs a propósi<strong>to</strong> do <strong>Pentateuco</strong>. A dificul<strong>da</strong>de se originou dos <strong>da</strong>dos espaciais e cronológicos não<br />

conformes com os lugares e o t<strong>em</strong>po <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Moisés; descobriu-se que a narração não é dele,<br />

mas sobre ele. Constataram-se “duplicatas” e também várias re<strong>da</strong>ções de um mesmo tex<strong>to</strong> <strong>da</strong> Lei;<br />

falta de uni<strong>da</strong>de no desenrolar <strong>da</strong> exposição, interrupções, cortes, desigual<strong>da</strong>des e contradições<br />

dentro de um mesmo contex<strong>to</strong>. Tudo isso levou à conclusão de que mui<strong>to</strong>s au<strong>to</strong>res trabalharam na<br />

composição do <strong>Pentateuco</strong>. Esta conclusão foi também confirma<strong>da</strong> pela constatação de<br />

diversi<strong>da</strong>des lingüísticas, léxicas e de estrutura, mui<strong>to</strong> evidentes e claras, principalmente nos casos<br />

dos “dobletes”, ou seja, aqueles episódios ou narrativas com mais de uma versão.<br />

Apoiados nessas observações, os exegetas procuraram individualizar as diversas cama<strong>da</strong>s<br />

literárias mais ou menos delinea<strong>da</strong>s no <strong>Pentateuco</strong>. No artigo anterior, abor<strong>da</strong>mos as hipóteses<br />

“Documentária”, “Fragmentária” e “Compl<strong>em</strong>entária”, que foram os primeiros passos <strong>da</strong>dos pela<br />

pesquisa científica visando a uma compreensão mais acura<strong>da</strong> <strong>da</strong> orig<strong>em</strong> dos livros<br />

tradicionalmente atribuídos a Moisés.<br />

A Julio Wellhausen (1844-1918) coube o méri<strong>to</strong> de reelaborar a antiga hipótese Documentária.<br />

Essa nova hipótese vigorou inquestionável até há pouco t<strong>em</strong>po. O <strong>Pentateuco</strong>, nessa nova<br />

sist<strong>em</strong>atização, é concebido como uma obra re<strong>da</strong>cional, para cuja formação concorr<strong>em</strong> os<br />

seguintes extra<strong>to</strong>s literários: O “Javista” (J), tex<strong>to</strong>s compos<strong>to</strong>s na época <strong>da</strong> Monarquia (950 a.C.); o<br />

“Eloísta” (E), tex<strong>to</strong>s posteriores <strong>ao</strong> ano 750 a.C.; o “Deuteronomista” (D), tex<strong>to</strong>s dos anos 600 a.C.<br />

aproxima<strong>da</strong>mente; e o Sacerdotal (P), escri<strong>to</strong>s no exílio babilônico, por volta do ano 500 a.C. As<br />

<strong>da</strong>tas indicam a época aproxima<strong>da</strong> de sua composição. Oportunamente, tratar<strong>em</strong>os as principais<br />

características desses “documen<strong>to</strong>s”.<br />

Julio Wellhausen compreendeu que o sist<strong>em</strong>a <strong>da</strong>s fontes se coadunava perfeitamente com uma<br />

nova concepção <strong>da</strong> história de Israel e com a evolução <strong>da</strong> religião de Israel. O que mais lhe<br />

interessava era a evolução histórica <strong>da</strong>s instituições cultuais, como se refletia nas diversas fontes.<br />

Assim, com sua crítica literária, Wellhausen procurou abranger <strong>to</strong>do o material do <strong>Pentateuco</strong>,<br />

“classificando-o segundo o t<strong>em</strong>po e procedência, reestruturando-o nas suas uni<strong>da</strong>des<br />

originalmente autônomas. O seu trabalho visa a descobrir e a destacar as fontes, a reconhecer e a<br />

separar as elaborações, a classificar os extra<strong>to</strong>s pela sua antigui<strong>da</strong>de e sucessão. Ela visa ain<strong>da</strong> a<br />

compreender o modo e os motivos de seu entrelaçamen<strong>to</strong> com a obra literária <strong>em</strong> questão;<br />

procura, finalmente, determinar, no decurso <strong>da</strong> história cultual do Antigo Testamen<strong>to</strong>, o lugar cer<strong>to</strong><br />

de ca<strong>da</strong> trecho e <strong>da</strong>s suas colocações” (J.Schreiner).<br />

Certamente, tal inten<strong>to</strong> não pode ser realizado <strong>em</strong> <strong>to</strong>dos os detalhes de um tex<strong>to</strong>, <strong>da</strong><strong>da</strong> a existência<br />

de perícopes que resist<strong>em</strong> à atribuição a uma fonte determina<strong>da</strong>, pois os livros bíblicos não são<br />

simples coletâneas de fontes literárias, mas foram formados na corrente viva <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> Tradição.<br />

3. AS CARACTERISTICAS DO PENTATEUCO<br />

Já vimos que os escri<strong>to</strong>s de Julius Wellhausen contribuíram sobr<strong>em</strong>aneira para difundir a “nova<br />

teoria documentária”, tan<strong>to</strong> jun<strong>to</strong> <strong>ao</strong> público, como jun<strong>to</strong> <strong>ao</strong>s estudiosos, a pon<strong>to</strong> de ser identifica<strong>da</strong><br />

com ele. Sab<strong>em</strong>os, entretan<strong>to</strong>, que tal teoria fora recebi<strong>da</strong> substancialmente completa por outros<br />

exegetas que o precederam (Wette, Ilgen, Vater, Hupfeld, Graf, Künen…). Contudo, J. Wellhausen<br />

a consolidou pelo argumen<strong>to</strong> e a discussão. Sua principal contribuição foi a união <strong>da</strong> teoria dos<br />

“documen<strong>to</strong>s” com a <strong>da</strong> “evolução religiosa e cultual de Israel”.<br />

Porém, a impossibili<strong>da</strong>de de distinguir entre a “hipótese literária” e a “hipótese histórica” resul<strong>to</strong>u na<br />

rejeição de <strong>to</strong><strong>da</strong> a teoria, considerando-a como ofensiva à religião divinamente revela<strong>da</strong>. A<br />

princípio, mui<strong>to</strong>s estudiosos católicos reagiram positivamente <strong>em</strong> relação à teoria de Wellhausen,<br />

3


mas, na atmosfera do Modernismo do começo do século XX, foi difícil julgar a teoria objetivamente,<br />

e a Pontifícia Comissão Bíblica, <strong>em</strong> 1906, rejei<strong>to</strong>u a aplicação tan<strong>to</strong> <strong>da</strong>s teorias literárias quan<strong>to</strong> <strong>da</strong><br />

evolução <strong>ao</strong> estudo <strong>da</strong> Bíblia. Isso interrompeu os estudos dos exegetas católicos até a publicação<br />

<strong>da</strong> encíclica Divino Afflante Spiritu, <strong>em</strong> 1943. Desde então, t<strong>em</strong> sido possível fazer as devi<strong>da</strong>s<br />

distinções entre os probl<strong>em</strong>as literários, os probl<strong>em</strong>as históricos e a evolução cultural de Israel.<br />

A “hipótese documentária” de Wellhausen dominou a crítica bíblica depois de 1900. A maioria <strong>da</strong>s<br />

obras produzi<strong>da</strong>s depois desta <strong>da</strong>ta dedicou-se a análises posteriores <strong>da</strong>s fontes e <strong>ao</strong> isolamen<strong>to</strong><br />

de outras fontes especiais, além dos “quatro documen<strong>to</strong>s” de Wellhausen. A análise <strong>da</strong>s fontes <strong>em</strong><br />

extra<strong>to</strong>s supl<strong>em</strong>entares se desenvolveu a pon<strong>to</strong> de uma reedição <strong>da</strong> “teoria dos fragmen<strong>to</strong>s” ser<br />

novamente sugeri<strong>da</strong>. Mas, tal teoria foi elabora<strong>da</strong> justamente no início <strong>da</strong>s grandes descobertas <strong>da</strong><br />

literatura e <strong>da</strong> cultura do antigo Oriente Médio, que lançaram nova luz sobre a história e a cultura<br />

de Israel e ofereceram paralelos primitivos a mui<strong>to</strong>s tex<strong>to</strong>s bíblicos. Essas descobertas mostram<br />

que a teoria de Wellhausen era insustentável e provaram ser impossível uma construção <strong>da</strong><br />

História de Israel s<strong>em</strong> referência <strong>ao</strong> material do antigo Oriente Médio. De fa<strong>to</strong>, a teoria literária de<br />

Wellhausen fora concebi<strong>da</strong> de maneira teórica d<strong>em</strong>ais; os “documen<strong>to</strong>s” eram descri<strong>to</strong>s à maneira<br />

de documen<strong>to</strong>s de uma cultura diferente e posterior. Por isso, mui<strong>to</strong>s exegetas já não falam mais<br />

de “documen<strong>to</strong>s” do <strong>Pentateuco</strong>. Alguns falam <strong>em</strong> “escolas”, outros prefer<strong>em</strong> falar <strong>em</strong> “tradições”,<br />

termo que parece mais apropriado.<br />

Essas considerações têm levado os estudiosos a pensar que a complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s origens literárias<br />

do <strong>Pentateuco</strong> é tão grande, que jamais poderá ser inteiramente soluciona<strong>da</strong>, e que “a investigação<br />

estará mais segura de seus resultados, se prosseguir por linhas mais gerais; a identificação de<br />

ca<strong>da</strong> frase e mesmo de ca<strong>da</strong> palavra, como foi feita no passado, é insegura. Os estudos recentes<br />

enfatizam a forma literária e a tradição oral” (J. L. Mckenzie).<br />

4. AS TRADIÇÕES DO PENTATEUCO<br />

Quan<strong>to</strong> à formação do <strong>Pentateuco</strong>, vimos que mui<strong>to</strong>s exegetas modernos – críticos de J.<br />

Wellhausen – já não falam mais de “Documen<strong>to</strong>s”, mas de “Tradições”. To<strong>da</strong>via, <strong>ao</strong> longo <strong>da</strong><br />

história, mesmo depois de sua composição literária, essas tradições receberam numerosas<br />

modificações. Assim sendo, deve-se considerar alguns dos “escri<strong>to</strong>res <strong>da</strong> Bíblia” mais como<br />

au<strong>to</strong>res do que meros compiladores dessas tradições. Esses au<strong>to</strong>res deixaram traços de caráter<br />

complexo <strong>da</strong>s tradições pré-literárias <strong>em</strong> sua obra. Por isso, alguns estudiosos falam <strong>em</strong> “escolas”,<br />

mais do que “documen<strong>to</strong>s” e “escri<strong>to</strong>res”; outros, como Roland de Vaux, prefer<strong>em</strong> chamá-las<br />

simplesmente de “tradições”, s<strong>em</strong> afirmar sua orig<strong>em</strong> oral ou literária. Embora não haja consenso<br />

entre os estudiosos sobre os “documen<strong>to</strong>s” (a hipótese de Wellhausen é ca<strong>da</strong> vez mais<br />

questiona<strong>da</strong>) ou as “tradições” que deram orig<strong>em</strong> <strong>ao</strong> <strong>Pentateuco</strong>, faz-se mister um aprofun<strong>da</strong>men<strong>to</strong><br />

de suas características, uma vez que a terminologia <strong>em</strong>prega<strong>da</strong> por Wellhausen ain<strong>da</strong> vigora.<br />

Assim, o <strong>Pentateuco</strong> seria a compilação de quatro “tradições” ou “documen<strong>to</strong>s” – a tradição<br />

“Javista” (J), a “Eloísta” (E), a “Deuteronomista” (D) e a “Sacerdotal” (P) – diferentes quan<strong>to</strong> à i<strong>da</strong>de<br />

e <strong>ao</strong> ambiente de orig<strong>em</strong>, mas <strong>to</strong><strong>da</strong>s elas mui<strong>to</strong> posteriores a Moisés.<br />

4


4.1 Tradição Javista<br />

A mais antiga seria a “tradição Javista” (J) – segundo Wellhausen-Graf, “Documen<strong>to</strong> Javista” –<br />

assim denomina<strong>da</strong> por designar a Deus, desde o rela<strong>to</strong> <strong>da</strong> criação, com o nome “Javé”. Sab<strong>em</strong>os<br />

que, após a morte de Salomão, filho de Davi, a “Terra Santa” foi dividi<strong>da</strong> <strong>em</strong> dois reinos distin<strong>to</strong>s e<br />

rivais entre si: Israel e Judá. O “Javista” teria sido redigido <strong>em</strong> Judá, no reino do Sul, por volta do<br />

século IX. Entretan<strong>to</strong>, críticos modernos estão inclinados a <strong>da</strong>tá-la no reinado de Salomão ou<br />

mesmo de Davi, portan<strong>to</strong>, antes do cisma Norte-Sul.<br />

Segundo os estudiosos, a tradição Javista contém a história do Paraíso e do pecado original; o<br />

rela<strong>to</strong> sobre os “filhos de Deus e as filhas dos homens”; o dilúvio, Noé e a vinha; parte <strong>da</strong> lista <strong>da</strong>s<br />

nações; a <strong>to</strong>rre de Babel; a vocação de Abraão e sua viag<strong>em</strong> a Hebron; a promessa <strong>da</strong> terra e de<br />

uma numerosa posteri<strong>da</strong>de; Agar e Ismael; os hóspedes de Abraão; a destruição de Sodoma e<br />

Gomorra; Ló e suas filhas; o nascimen<strong>to</strong> de Isaac; a corte de Rebeca; a história de Isaac; Esaú e<br />

Jacó; o nascimen<strong>to</strong> dos filhos de Jacó; Jacó e Labão; Jacó <strong>em</strong> Siquém; a genealogia edomita; José<br />

e seus irmãos; José no Egi<strong>to</strong>; a bênção de Jacó; a opressão de Israel no Egi<strong>to</strong>; o nascimen<strong>to</strong> e a<br />

vocação de Moisés; provavelmente, sete <strong>da</strong>s dez pragas; a passag<strong>em</strong> pelo mar; a viag<strong>em</strong> do mar<br />

<strong>ao</strong> Sinai; as codornizes e o maná; uma breve notícia <strong>da</strong> teofania do Sinai; o bezerro de ouro; os<br />

man<strong>da</strong>men<strong>to</strong>s (Ex 34); a parti<strong>da</strong> do Sinai; o envio dos exploradores à terra de Canaã; a rebelião de<br />

Datã e Abiram; a viag<strong>em</strong> de Cades a Moab; os oráculos de Balaão; a adoração de Baal Peor; a luta<br />

entre as tribos orientais e ocidentais; a morte de Moisés.<br />

A “tradição Javista” foi chama<strong>da</strong> “a épica nacional israelita e é a expressão <strong>da</strong> consciência nacional<br />

de Israel que se originou <strong>da</strong>s vitórias de Davi e <strong>da</strong> prosperi<strong>da</strong>de que seu reino iniciou” (J. L.<br />

McKenzie). O Javista é considerado um dos maiores narradores do Antigo Testamen<strong>to</strong>. Tan<strong>to</strong> que<br />

suas histórias figuram entre as mais conheci<strong>da</strong>s e aprecia<strong>da</strong>s de <strong>to</strong><strong>da</strong> a Bíblia.<br />

4.2 Tradição Eloista<br />

Nos últimos c<strong>em</strong> anos, a história <strong>da</strong> exegese muitas vezes pôs <strong>em</strong> dúvi<strong>da</strong> a existência <strong>da</strong> “tradição<br />

Eloísta”. Ora, a presença de duplicações que não pertenc<strong>em</strong> n<strong>em</strong> à tradição Javista n<strong>em</strong> às outras<br />

tradições (Deuteronomista e Sacerdo<strong>da</strong>l), foi o argumen<strong>to</strong> utilizado para se propor sua existência,<br />

mas n<strong>em</strong> <strong>to</strong>dos os pesquisadores concor<strong>da</strong>m que isso signifique a existência de outra tradição. De<br />

fa<strong>to</strong>, <strong>to</strong>rna-se difícil estabelecer a prova decisiva de sua existência. Entretan<strong>to</strong>, não se deve insistir<br />

d<strong>em</strong>ais nas dificul<strong>da</strong>des, porque a leitura atenta dos tex<strong>to</strong>s di<strong>to</strong>s eloístas permite chegar a uma<br />

conclusão razoável. Atrás dos trechos que possuímos, delineia-se uma obra b<strong>em</strong> organiza<strong>da</strong>, que<br />

transmitiu uma interpretação <strong>da</strong> tradição antiga de Israel.<br />

Sua composição se deu no Reino do Norte. Sab<strong>em</strong>os que, com a morte de Davi, <strong>em</strong> 933, o reino<br />

unido de Davi e Salomão se divide <strong>em</strong> Reino do Sul (Judá) e Reino do Norte (Israel). O Reino de<br />

Israel foi marcado pela instabili<strong>da</strong>de: as rivali<strong>da</strong>des entre as tribos e a importância do exérci<strong>to</strong> e de<br />

seus chefes não permitiram uma estabili<strong>da</strong>de dinástica s<strong>em</strong>elhante à do Reino de Judá. As<br />

freqüentes mu<strong>da</strong>nças de dinastia não impediram, contudo, fases de grande prosperi<strong>da</strong>de<br />

econômica. O Reino de Israel estava <strong>em</strong> situação mais vantajosa do que o de Judá. Seu território<br />

era mais vas<strong>to</strong> e mais rico. Suas forças militares eram inegavelmente superiores. No campo<br />

religioso, conservam-se as grandes tradições do passado. Porém, desde o começo do reinado de<br />

Jeroboão I (933-911), Israel se vê obrigado a conviver com os cananeus, profun<strong>da</strong>mente apegados<br />

<strong>ao</strong>s seus costumes e às suas idéias. Pela sua posição geográfica, Israel estava expos<strong>to</strong> às<br />

influências externas e sofreu, <strong>ao</strong> longo de <strong>to</strong><strong>da</strong> a sua história, pressões mui<strong>to</strong> fortes de seus<br />

vizinhos do norte: fenícios, arameus e assírios.<br />

No século IX, principalmente no t<strong>em</strong>po de Acab (875-853), o Reino de Israel conheceu grande<br />

prosperi<strong>da</strong>de econômica. Mas com grande injustiça social. As forças de resistência vieram dos<br />

círculos proféticos, dominados pelas figuras de Elias e Eliseu. Havia, pois, forte oposição à realeza,<br />

com raízes no espíri<strong>to</strong> tribal; graças à atuação dos profetas, herdeiros de Moisés, era anima<strong>da</strong> de<br />

grande coerência religiosa: “os profetas eram, de fa<strong>to</strong>, os juízes <strong>da</strong> monarquia, na medi<strong>da</strong> <strong>em</strong> que<br />

permaneciam fiéis a Deus e à herança mosaica (cf. 1Rs 19)” (J. Briend). Com tais informações,<br />

pod<strong>em</strong>os compreender o contex<strong>to</strong> histórico <strong>da</strong> tradição Eloísta.<br />

5


São atribuídos à tradição Eloísta as seguintes passagens: aliança de Abraão; nascimen<strong>to</strong> de Isaac,<br />

o repúdio de Agar; o sacrifício de Isaac; a corte de Rebeca; Esaú e Jacó; Jacó <strong>em</strong> Betel; o<br />

casamen<strong>to</strong> de Jacó; o nascimen<strong>to</strong> dos filhos de Jacó; Jacó e Labão; José e seus irmãos; José no<br />

Egi<strong>to</strong>; a morte de Jacó; a opressão no Egi<strong>to</strong>; nascimen<strong>to</strong> e vocação de Moisés; provavelmente<br />

cinco <strong>da</strong>s dez pragas; a passag<strong>em</strong> pelo mar; a viag<strong>em</strong> <strong>ao</strong> Sinai; a esta<strong>da</strong> no Sinai; o bezerro de<br />

ouro; a parti<strong>da</strong> do Sinai; as codornizes e o maná; os exploradores; a rebelião de Datã e Abiram; a<br />

viag<strong>em</strong> de Cades a Moab; a adoração de Baal; luta entre as tribos orientais e ocidentais;<br />

nomeação de Josué à sucessão de Moisés; o cântico de Moisés; a bênção e a morte de Moisés.<br />

É assaz difícil definir os limites <strong>da</strong> tradição Eloísta. Entretan<strong>to</strong>, pode-se afirmar que ela não traz<br />

na<strong>da</strong> sobre a história <strong>da</strong>s origens, vis<strong>to</strong> que nela não se encontra nenhum vestígio de rela<strong>to</strong>s<br />

cosmogônicos. De fa<strong>to</strong>, a tradição eloísta, sendo menos universalista, não se interessa, como a<br />

javista, pelos outros povos, se b<strong>em</strong> que não se deva exagerar essa diferença. Ela preocupa-se, <strong>em</strong><br />

primeiro lugar, com Israel, e, secun<strong>da</strong>riamente, pelas relações entre Israel e os povos vizinhos.<br />

Para os estudiosos, a tradição Eloísta começa com o “ciclo de Abraão”. Embora se reconheçam<br />

fragmen<strong>to</strong>s dela <strong>em</strong> Gn 15, há um consenso entre a maioria dos exegetas de que o primeiro trecho<br />

seguido <strong>da</strong> eloísta é Gn 20.<br />

O fim <strong>da</strong> eloísta também não é fácil de ser determinado. Fragmen<strong>to</strong>s seus, pod<strong>em</strong> ser encontrados<br />

<strong>em</strong> Nm 25 e 32, mas, provavelmente, não constitu<strong>em</strong> o fim primitivo dessa tradição. Há qu<strong>em</strong><br />

afirme a presença de tex<strong>to</strong>s eloístas no Deuteronômio: “É uma possibili<strong>da</strong>de que t<strong>em</strong> a seu favor<br />

bons argumen<strong>to</strong>s, mas que não permite precisar a extensão do documen<strong>to</strong> <strong>em</strong> sua orig<strong>em</strong>” (J.<br />

Briend).<br />

A situação histórica <strong>da</strong> purpleação eloísta, pelo menos aproximativamente, é mais fácil de se<br />

conhecer. Ela se formou no reino do Norte, b<strong>em</strong> depois, portan<strong>to</strong>, <strong>da</strong> divisão dos reinos de Judá e<br />

Israel. Nela, a monarquia e o sacerdócio não são reconhecidos como instituições de salvação.<br />

Somente nos “homens de Deus” ou profetas pode-se constatar a presença de Deus no meio de<br />

seu povo. O maior deles é Moisés. Sinal de que essa concepção era b<strong>em</strong> conheci<strong>da</strong> no reino do<br />

Norte, é o fa<strong>to</strong> de o profeta Oséias, s<strong>em</strong> citar o nome de Moisés, designá-lo “um profeta” (Os<br />

12,14). Além disso, consta<strong>to</strong>u-se que exist<strong>em</strong> s<strong>em</strong>elhanças entre os tex<strong>to</strong>s eloístas e as narrações<br />

que evocam a ação dos profetas Elias e Eliseu. Pode-se comparar a função des<strong>em</strong>penha<strong>da</strong> pelo<br />

bastão do profeta Eliseu (2Rs 4,29-31) com Ex 4,1-4 (cf. Ex 4,6 e 2Rs 5,27). O zelo de Moisés por<br />

Deus <strong>em</strong> Nm 25,5, pode comparar-se <strong>ao</strong> de Elias <strong>em</strong> 1Rs 18,40 ou <strong>ao</strong> de Jeú <strong>em</strong> 2Rs 9-10.<br />

Daí que se dev<strong>em</strong> procurar as raízes <strong>da</strong> tradição eloísta no movimen<strong>to</strong> profético do reino do Norte,<br />

s<strong>em</strong> menosprezar a influência <strong>da</strong> corrente sapiencial. Realmente, pode-se notar nela uma viva<br />

preocupação pelas questões morais, um sentido mui<strong>to</strong> profundo de obediência a Deus, um real<br />

interesse pelo ver<strong>da</strong>deiro cul<strong>to</strong>, mui<strong>to</strong> cui<strong>da</strong>do <strong>em</strong> deixar claro que Deus é <strong>to</strong>talmente diferente do<br />

hom<strong>em</strong>, e, portan<strong>to</strong>, fugirá drasticamente de <strong>to</strong>do antropomorfismo, quando a Ele se referir.<br />

Certamente, a tradição eloísta foi purpleigi<strong>da</strong> quando o movimen<strong>to</strong> profético, inaugurado por Elias,<br />

já tinha adquirido certa força política e moral <strong>em</strong> Israel. Ela revela afini<strong>da</strong>des com esse movimen<strong>to</strong><br />

e com sua atitude perante a socie<strong>da</strong>de. Por isso, os estudiosos situam, com relativa segurança,<br />

sua purpleação na primeira metade do século VIII a.C.<br />

4.3 TRADIÇÃO DEUTERONOMISTA<br />

O livro Deuteronômio não foi elaborado de uma só vez. Ele é fru<strong>to</strong> <strong>da</strong> tradição Deuteronômica ou<br />

Deuteronomista. Para se compreender o seu alcance e significado, é necessário, <strong>em</strong> primeiro<br />

lugar, situá-lo no seu contex<strong>to</strong> histórico. A partir do ano 628, quando o império Assírio começou a<br />

ruir, o rei Josias (640-609) iniciou uma reforma política e religiosa no reino do Sul. De fa<strong>to</strong>, Josias<br />

logrou libertar-se do jugo assírio, reconquis<strong>to</strong>u grande parte do território de Israel, e realizou uma<br />

reforma religiosa sobre a qual a Bíblia longamente se detém (2Rs 22-23). Ele decidiu man<strong>da</strong>r fazer<br />

restaurações no t<strong>em</strong>plo de Jerusalém, onde o sacerdote Helcias descobriu um livro, “o livro <strong>da</strong> Lei”<br />

(2Rs 22,3-10). Ora, <strong>ao</strong> constatar que não se tinha obedecido às palavras desse livro (2Rs 22,13),<br />

Josias decidiu man<strong>da</strong>r lê-lo diante de <strong>to</strong>do o povo (2Rs 23,2).<br />

Que é, afinal, esse “livro <strong>da</strong> Lei” ou “livro <strong>da</strong> Aliança”? Reconhece-se nele uma “primeira edição” do<br />

Deuteronômio que t<strong>em</strong>os hoje. Refletindo as tradições do reino do Norte, foi compos<strong>to</strong><br />

6


provavelmente <strong>em</strong> Jerusalém, no reino do Sul, após a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> Samaria <strong>em</strong> 722. De fa<strong>to</strong>,<br />

numerosos são os sólidos indícios que permit<strong>em</strong> concluir que o núcleo do Deuteronômio esteja<br />

mesmo ligado <strong>ao</strong> do reino do Norte: nota-se a intenção delibera<strong>da</strong> de fazer a Lei <strong>em</strong>anar <strong>da</strong><br />

au<strong>to</strong>ri<strong>da</strong>de de Moisés e de Deus; admite-se Moisés falando nos discursos dos capítulos 1-11.<br />

Neste sentido, o Deuteronômio segue a linha <strong>da</strong> tradição Eloísta e dos profetas do Norte, como<br />

Elias e Oséias; a revelação fun<strong>da</strong>mental de Deus, a Lei ou Decálogo, situa-se no Horeb e não no<br />

Sinai, como na Javista. Há, de um lado, uma versão do Decálogo (Dt 5,6-21) liga<strong>da</strong> <strong>ao</strong> Horeb (5,2);<br />

ora, o Decálogo moral provém do Norte, como o mostra o tex<strong>to</strong> de Ex 20,1-17. De outro lado, o<br />

centro do livro é ocupado pelo código deuteronômico (Dt 12-26).<br />

A “primeira edição” do Deuteronômio deve ter sido deposita<strong>da</strong> no t<strong>em</strong>plo durante o reinado de<br />

Ezequias (715-687). Não nos esqueçamos que habitantes do reino do Norte tinham procurado<br />

refúgio <strong>em</strong> Jerusalém, trazendo consigo suas tradições. Não nos esqueçamos também que,<br />

durante o reinado de Ezequias, desenvolveu-se intensa ativi<strong>da</strong>de literária: fusão <strong>da</strong>s tradições<br />

Javista e Eloísta; re<strong>da</strong>ção de coleções de Provérbios (Pv 25,1), de Salmos e de di<strong>to</strong>s de Oséias<br />

etc. Apoiando-se nas palavras desse livro, é que, certamente, Josias <strong>to</strong>mou algumas medi<strong>da</strong>s tais<br />

como a centralização do cul<strong>to</strong> <strong>em</strong> Jerusalém (Dt 12.13s) e a destruição dos altares e do “lugares<br />

al<strong>to</strong>s” (Dt 12,2-3; 2Rs 23,4-14). Assim, a partir de 622, a influência do Deuteronômio primitivo não<br />

deixou de crescer, no decorrer do t<strong>em</strong>po, o que explica as numerosas fases que ele conheceu até<br />

chegar à sua re<strong>da</strong>ção final. “As descobertas de manuscri<strong>to</strong>s bíblicos, <strong>em</strong> Qumran, mostram que<br />

esse livro era mui<strong>to</strong> lido e recopiado, quase como o rolo de Isaías” (J. Briend).<br />

a) O Código Deuteronômio<br />

O “código deuteronômico” reúne, s<strong>em</strong> ord<strong>em</strong> clara, diversas coleções de leis de diferentes origens,<br />

algumas oriun<strong>da</strong>s do reino do Norte e introduzi<strong>da</strong>s no Sul, após a que<strong>da</strong> de Samaria (722). Este<br />

conjun<strong>to</strong> considera a evolução social e religiosa de Israel que deve substituir o antigo código <strong>da</strong><br />

Aliança. Ele começa e termina com normas e diretrizes <strong>em</strong> relação <strong>ao</strong> cul<strong>to</strong> a Javé (12,1-16,17 e<br />

26,1-15). Ora, é típico <strong>da</strong> legislação israelita, situar um complexo de leis <strong>em</strong> um quadro cultual.<br />

Esse código sublinha, desde o início, o lugar onde se deve prestar cul<strong>to</strong> a Deus e proíbe a prática<br />

de ri<strong>to</strong>s pagãos (12,1-31). De fa<strong>to</strong>, esta lei pretende, no mesmo espíri<strong>to</strong> dos profetas, defender o<br />

cul<strong>to</strong> a Javé de qualquer contaminação dos cul<strong>to</strong>s cananeus, mediante a destruição dos “lugares<br />

al<strong>to</strong>s” destes cul<strong>to</strong>s e pela imposição de um só lugar para o cul<strong>to</strong> javista. Daí a fórmula “lugar que<br />

Deus escolheu para aí colocar o Seu nome“, “para aí habitar o Seu nome” ou “para aí l<strong>em</strong>brar o<br />

Seu nome“. A lei que abre o código deuteronômico se assenta na uni<strong>da</strong>de de santuário. O israelita<br />

deve prestar cul<strong>to</strong> a Deus “no lugar que o Senhor escolher” (12,5), expressão assaz vaga que não<br />

se refere necessariamente <strong>ao</strong> t<strong>em</strong>plo de Jerusalém. Sab<strong>em</strong>os, entretan<strong>to</strong>, que, no momen<strong>to</strong> <strong>da</strong><br />

re<strong>da</strong>ção do código, provavelmente depois <strong>da</strong> que<strong>da</strong> de Samaria, o único t<strong>em</strong>plo existente para os<br />

refugiados do Norte é o de Jerusalém, e que essa ci<strong>da</strong>de se <strong>to</strong>rnou, de fa<strong>to</strong>, “o santuário no qual<br />

Deus faz residir o seu nome” (12,5).<br />

Pod<strong>em</strong>os afirmar que este código é uma compilação de leis já existentes, mesmo que sua estrutura<br />

reflita a do Decálogo. De fa<strong>to</strong>, uma análise do tex<strong>to</strong> leva a reconhecer “coleções de leis” que têm,<br />

provavelmente, orig<strong>em</strong> independente. Mas o código não pode ser separado de seu contex<strong>to</strong>, pois<br />

ele faz parte de uma estrutura mais vasta que é a <strong>da</strong> aliança.<br />

Nota-se no código uma mistura de gêneros, tan<strong>to</strong> no plano literário quan<strong>to</strong> no do conteúdo. O<br />

Deuteronômio, <strong>em</strong> seu conjun<strong>to</strong>, é uma reflexão sobre a infideli<strong>da</strong>de de Israel, infideli<strong>da</strong>de que<br />

levou <strong>ao</strong> desaparecimen<strong>to</strong> do reino do Norte. Percebe-se, atrás do código, uma reflexão teológica<br />

sobre aquilo que Israel deveria ter fei<strong>to</strong> para corresponder à vontade de Deus. “Pela leitura do<br />

código deuteronômico descobre-se que o que a legislação queria era suscitar uma comuni<strong>da</strong>de<br />

fraterna, o que explica o uso do termo “irmão”, que se encontra 25 vezes no Deuteronômio” (J.<br />

Briend).<br />

b) O Livro <strong>da</strong> Aliança<br />

O termo “Aliança” (berit, <strong>em</strong> hebraico) ocorre 27 vezes no Deuteronômio. Em numerosas<br />

passagens, o Deuteronômio designa o acontecimen<strong>to</strong> do Sinai como uma “Aliança”. Contudo, <strong>em</strong><br />

5,2-3 acrescenta-se algo novo: “Iahweh, nosso Deus, concluiu conosco uma Aliança no Horeb.<br />

Iahweh não concluiu esta Aliança com nossos pais, mas conosco, conosco que estamos hoje aqui,<br />

<strong>to</strong>dos vivos“. Note-se a expressão “conosco“, que mostra que, seja qual for o papel de Moisés, a<br />

Aliança foi feita entre Deus e o povo.<br />

7


O Deuteronômio insiste que Iahweh é Aquele que guar<strong>da</strong> a Aliança e a misericórdia para com os<br />

que o amam (7,9.12); Ele é o Deus fiel, que faz conhecer sua Aliança (4,13) ou ain<strong>da</strong> que<br />

estabelece sua Aliança (8,18). Contudo, não obstante a fideli<strong>da</strong>de de Deus, infelizmente paira <strong>em</strong><br />

<strong>to</strong>do o livro grande inquietação: Israel pode transgredir a Aliança (17,2), romper a Aliança<br />

(31,16.20), abandonar a Aliança (29,24), esquecer a Aliança (4,31). O livro põe assim <strong>em</strong> relevo a<br />

liber<strong>da</strong>de de escolha do povo perante Iahweh e a fragili<strong>da</strong>de de sua adesão <strong>ao</strong> proje<strong>to</strong> de Deus.<br />

Essa inquietação nasce <strong>da</strong> experiência real <strong>da</strong> constante infideli<strong>da</strong>de do povo. Daí que a exortação<br />

à obediência à Lei confirma uma situação de desobediência generaliza<strong>da</strong>. Essa é a questão que<br />

está no cerne do Deuteronômio.<br />

O Deuteronômio é o Livro <strong>da</strong> Aliança. Mas, de algum t<strong>em</strong>po para cá, se começou a pensar que na<br />

sua estrutura ele se aproximava dos tratados de vassalag<strong>em</strong> então <strong>em</strong> uso. Já se sabia pelos<br />

próprios tex<strong>to</strong>s bíblicos que a aliança na linguag<strong>em</strong> dos homens do Oriente antigo designava uma<br />

reali<strong>da</strong>de político-religiosa: “O estudo <strong>da</strong> aliança como reali<strong>da</strong>de político-religiosa se enriqueceu no<br />

decorrer dos anos, com o conhecimen<strong>to</strong> dos tratados de aliança celebrados entre soberanos do<br />

Oriente antigo nos séculos XIV-XIII, dos tratados aramaicos (séc. VIII), dos tratados assírios (séc.<br />

VII). Esses tex<strong>to</strong>s pod<strong>em</strong> dividir-se <strong>em</strong> dois grupos: os tratados entre iguais e os tratados de<br />

vassalag<strong>em</strong> constituindo estes últimos o grupo mais importante” (J. Briend).<br />

De fa<strong>to</strong>, encontra-se no Oriente antigo, apesar <strong>da</strong>s variações, a mesma estrutura dos tratados de<br />

vassalag<strong>em</strong>: pode-se falar do gênero literário “formulário de Aliança” que seria comum a <strong>to</strong><strong>da</strong>s as<br />

cortes reais. Entretan<strong>to</strong>, esse “formulário”, tal como é conhecido, não se aplica diretamente <strong>ao</strong><br />

Deuteronômio. Compreende-se isso s<strong>em</strong> dificul<strong>da</strong>de admitindo-se que se pode passar de uma<br />

linguag<strong>em</strong> política e religiosa para uma linguag<strong>em</strong> propriamente teológica. Essa passag<strong>em</strong> não se<br />

faz s<strong>em</strong> rupturas, <strong>da</strong>s quais uma <strong>da</strong>s mais claras é que Deus não pode ser test<strong>em</strong>unha n<strong>em</strong><br />

mediador, como <strong>em</strong> Oséias 2,20; na Aliança, Ele é parceiro.<br />

Em que consiste afinal a Aliança? Não se trata de um acordo bilateral entre iguais, como nos<br />

“tratados de vassalag<strong>em</strong>”, que abor<strong>da</strong>mos no artigo anterior. Ora, no Deuteronômio, é evidente a<br />

distância entre as partes: Iahweh e Israel. O povo de Deus s<strong>em</strong>pre teve consciência <strong>da</strong><br />

transcendência de Iahweh. Ele sabe que é Deus qu<strong>em</strong> <strong>to</strong>ma a iniciativa, mas deixa Seu povo livre<br />

para decidir se aceita ou não essa escolha (Dt 30,15-20). Por que o Deuteronômio desenvolveu<br />

uma teologia <strong>da</strong> Aliança e utilizou o “formulário <strong>da</strong> Aliança”? Aceitando ser esse livro obra do Reino<br />

do Norte, encontramos duas respostas que se completam mutuamente: os últimos anos do reino<br />

do Norte mostraram que as alianças políticas só levaram <strong>ao</strong> desastre.<br />

Oséias condenou essas alianças (Os 10,4;12,2) e disso o Deuteronômio era conhecedor; por isso,<br />

repete uma antiga condenação <strong>da</strong>s alianças referente à época <strong>da</strong> conquista (Dt 7,2; Ex 23,32;<br />

34,12.15; Jz 2,2). Israel é cônscio de que foi sua infideli<strong>da</strong>de a Iahweh que levou à que<strong>da</strong> o Reino<br />

do Norte. A segun<strong>da</strong> resposta é uma conseqüência <strong>da</strong> primeira: o Reino do Norte tinha conservado<br />

a tradição de uma Aliança entre as tribos <strong>em</strong> Siquém (Js 24). Oséias conheceu uma Aliança<br />

s<strong>em</strong>elhante, de uma dimensão religiosa inegável (Os 6,7). O livro do Deuteronômio herdou alguns<br />

materiais provenientes desse modelo de Aliança, de uma Aliança entre tribos; reconhecendo<br />

lahweh como Deus de Israel, passa-se para uma Aliança entre lahweh e Israel. Essa linguag<strong>em</strong><br />

teológica teve um len<strong>to</strong> amadurecimen<strong>to</strong>, mas podia apoiar-se na existência de uma relação com<br />

Deus, estabeleci<strong>da</strong> há mui<strong>to</strong> t<strong>em</strong>po; uma tradição de Aliança que esperava apenas ser<br />

reinterpreta<strong>da</strong> <strong>em</strong> função dos acontecimen<strong>to</strong>s de uma época mais recente.<br />

O livro do Deuteronômio insiste que, na Aliança, Deus é o parceiro de Israel. Essa diferença<br />

fun<strong>da</strong>mental, <strong>em</strong> relação <strong>ao</strong>s “tratados de vassalag<strong>em</strong>”, acarreta outras igualmente substanciais, e<br />

que diz<strong>em</strong> respei<strong>to</strong> de modo particular à natureza <strong>da</strong> relação entre Iahweh e Seu povo. Ora, de um<br />

lado, Iahweh foi qu<strong>em</strong> <strong>to</strong>mou a iniciativa <strong>da</strong> Aliança <strong>em</strong> relação às tribos que viriam a constituir o<br />

povo elei<strong>to</strong>. Por isso, no Deuteronômio, são abun<strong>da</strong>ntes os adjetivos possessivos para expressar<br />

essa reali<strong>da</strong>de: nos lábios de Iahweh enfatiza-se a “Minha Aliança“; <strong>ao</strong> passo que o povo s<strong>em</strong>pre<br />

r<strong>em</strong>eterá a Aliança a Iahweh pelo <strong>em</strong>prego de “Tua Aliança” ou “Sua Aliança (a Aliança Dele)”. Por<br />

outro lado, trata-se de um relacionamen<strong>to</strong>; o que exige a existência de dois parceiros. De fa<strong>to</strong>, <strong>da</strong><br />

Aliança decorr<strong>em</strong> obrigações para Israel. Tais obrigações pod<strong>em</strong> se resumir <strong>em</strong> “ouvir a voz do<br />

Senhor seu Deus e praticar os Seus man<strong>da</strong>men<strong>to</strong>s“. Esse foi o grande desafio para Israel <strong>ao</strong> longo<br />

de <strong>to</strong><strong>da</strong> a sua história. E o livro do Deuteronômio quer ser, pois, uma reflexão madura e realista<br />

sobre o por quê dessa infideli<strong>da</strong>de, e lançar uma luz para que se re<strong>to</strong>me o radicalismo de se viver a<br />

Aliança qual única alternativa de sua subsistência como “povo de Deus e nação santa”.<br />

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c) As grande linhas teológicas do Deuteronômio<br />

O livro reflete a experiência original de Deus e de sua Palavra transmiti<strong>da</strong> por Moisés. O Deus do<br />

Horeb é o Deus de Israel. Deus escolheu ser o Deus de Israel. Contudo, essa eleição não é um<br />

privilégio. Ela implica uma missão. Procede unicamente do amor fiel de Deus (7,8), e espera uma<br />

resposta: o amor a Deus. Amor que se explicita na forma de um man<strong>da</strong>men<strong>to</strong> <strong>da</strong>do por Deus a<br />

ca<strong>da</strong> um e a <strong>to</strong>dos, à s<strong>em</strong>elhança do próprio amor divino: “Amarás <strong>ao</strong> Senhor, teu Deus, com <strong>to</strong>do<br />

o teu coração, com <strong>to</strong><strong>da</strong> a tua alma e com <strong>to</strong><strong>da</strong>s as tuas forças” (6,5). “Aqui está um dos aspec<strong>to</strong>s<br />

fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong> religião de Israel que acompanhou <strong>to</strong><strong>da</strong> a Revelação do Antigo Testamen<strong>to</strong>”<br />

(Wiener).<br />

Esse povo escolhido é uma comuni<strong>da</strong>de estrutura<strong>da</strong> que vive <strong>em</strong> uma terra. Ca<strong>da</strong> geração deve<br />

reconhecer que essa terra é um dom de Deus, o sinal concre<strong>to</strong> de Seu amor por Israel (7,13-15). A<br />

Lei é o principio de vi<strong>da</strong> desta comuni<strong>da</strong>de. Israel é chamado a ter “a Torá no coração, o nome de<br />

Iahweh nos lábios e um só santuário nacional. Eis o ideal que o Deuteronômio propõe” (Cazelles).<br />

Para <strong>to</strong>car o coração dos ouvintes, a Tradição Deuteronomista apela à “recor<strong>da</strong>ção”. No<br />

Deuteronômio, essa expressão ocorre 15 vezes, s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> passagens no singular. Ora, o que o<br />

povo deve s<strong>em</strong>pre recor<strong>da</strong>r é “o que Deus fez <strong>ao</strong> faraó e a <strong>to</strong>do o Egi<strong>to</strong>” (7,18) ou durante a esta<strong>da</strong><br />

no Deser<strong>to</strong> (8,2; 9,7) ou ain<strong>da</strong> na Conquista (8,18).<br />

Sab<strong>em</strong>os, entretan<strong>to</strong>, que a recor<strong>da</strong>ção a que se refere não diz respei<strong>to</strong> <strong>ao</strong> passado enquan<strong>to</strong><br />

passado, mas a um passado que continua presente enquan<strong>to</strong> fun<strong>da</strong>do no poder de Deus.<br />

Constitui-se, portan<strong>to</strong>, numa atitude de fé e de esperança. Por isso, está associa<strong>da</strong> à liturgia,<br />

especialmente à <strong>da</strong> Páscoa. Está também no centro <strong>da</strong> ética e dos man<strong>da</strong>men<strong>to</strong>s, pois ela diz<br />

respei<strong>to</strong>, antes de tudo, à ação de Deus que almeja, no dia de hoje, uma ação do hom<strong>em</strong>.<br />

De fa<strong>to</strong>, o termo “hoje” é abun<strong>da</strong>nte no Deuteronômio, ocorre mais de 70 vezes. “A insistência<br />

nesse termo mostra que uma mesma concepção <strong>da</strong> t<strong>em</strong>porali<strong>da</strong>de atravessa o Deuteronômio.<br />

Ca<strong>da</strong> geração israelita é chama<strong>da</strong> a ser test<strong>em</strong>unha <strong>da</strong> ação de Deus e de sua Palavra. Colocado<br />

diante <strong>da</strong> Palavra de Deus, ca<strong>da</strong> um é chamado a obedecer e a pôr <strong>em</strong> prática essa Palavra,<br />

guar<strong>da</strong>ndo-a <strong>em</strong> seu coração, para que ela lhe sirva de guia para a felici<strong>da</strong>de” (Briend).<br />

4.4 A Tradição Sacerdotal<br />

Com a Tradição Sacerdotal, indica<strong>da</strong> pela letra “P“, do al<strong>em</strong>ão Priester-kodex, “código sacerdotal”,<br />

o <strong>Pentateuco</strong>, tal como o conhec<strong>em</strong>os hoje, estará praticamente concluído. Sab<strong>em</strong>os que esse<br />

conjun<strong>to</strong> de livros se formou <strong>ao</strong> longo <strong>da</strong> caminha<strong>da</strong> do povo de Israel. É fru<strong>to</strong>, pois, de tradições<br />

orais que r<strong>em</strong>ontam a Moisés, mas que foram redigi<strong>da</strong>s mui<strong>to</strong>s anos mais tarde, <strong>em</strong> lugares<br />

diferentes e por au<strong>to</strong>res (re<strong>da</strong><strong>to</strong>res) também diversos.<br />

Vimos que o início <strong>da</strong> formação do <strong>Pentateuco</strong> se deu mediante a re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Tradição Javista (J)<br />

e <strong>da</strong> Eloísta (E). Mais tarde, com a que<strong>da</strong> do Reino do Norte, <strong>em</strong> 722, houve, no Sul, a fusão<br />

dessas duas Tradições (J-E). Em segui<strong>da</strong>, apareceu a primeira re<strong>da</strong>ção do Deuteronômio (D), no<br />

t<strong>em</strong>po de Ezequias (716-687). Então, <strong>ao</strong> núcleo constituído pela fusão J-E, v<strong>em</strong> se juntar P, per<strong>to</strong><br />

do fim do Exílio, <strong>em</strong> 538.<br />

A história sacerdotal só se compreende <strong>em</strong> relação com o choque produzido pela que<strong>da</strong> de<br />

Jerusalém e pelo Exílio. Ora, <strong>em</strong> 587 o rei de Babilônia, Nabucodonosor, <strong>to</strong>ma Jerusalém e deporta<br />

seus habitantes. Os exilados se viram atirados numa situação nova: seu rei estava preso, o t<strong>em</strong>plo<br />

destruído e a terra, dom de Deus, ficara para trás. Como manter a fé e a esperança no Deus de<br />

Israel, diante dos vencedores babilônios? Entre os exilados, houve qu<strong>em</strong> se desencorajasse e<br />

aderisse à religião babilônica. Houve, porém, aqueles que se mantiveram firmes <strong>em</strong> sua fé e<br />

tentaram encontrar no passado de Israel motivações para uma esperança capaz de fortalecê-los.<br />

Foi o que fizeram os sacerdotes de Jerusalém exilados <strong>em</strong> Babilônia, entre os quais Ezequiel.<br />

Assim, antes do fim do Exílio (538) foi elabora<strong>da</strong> a história sacerdotal.<br />

A Tradição Sacerdotal se <strong>em</strong>penha, pois, <strong>em</strong> procurar na herança do passado uma resposta para a<br />

seguinte pergunta: <strong>em</strong> que se apoiar para continuar a viver no meio de uma nação estrangeira s<strong>em</strong><br />

se contaminar com sua religião e com seus ídolos? Daí, a insistência na idéia de pertença a um<br />

povo, o que explica a importância <strong>da</strong>s genealogias na história Sacerdotal: trata-se de manter, por<br />

9


meio delas, a identi<strong>da</strong>de de Israel na terra <strong>da</strong> Babilônia, a fim de evitar a dissolução do povo e<br />

permitir a Deus a realização de suas promessas.<br />

A Tradição Sacerdotal procura interpretar o desígnio de Deus, que permite a seu povo uma<br />

situação tão adversa. Para tan<strong>to</strong>, integra a história de Israel à história <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. A releitura<br />

<strong>da</strong> história passa<strong>da</strong> do povo e a meditação nas promessas divinas permitiam pensar que, apesar<br />

<strong>da</strong> catástrofe de 587, a promessa de Iahweh não tinha cessado. O apelo à história patriarcal<br />

mostrava que o que se vivia no Exílio não era algo <strong>to</strong>talmente inédi<strong>to</strong>: Abraão fora estrangeiro <strong>em</strong><br />

Canaã (Gn 23). Jacó tinha apenas um pe<strong>da</strong>ço de campo (Gn 33,18-22). O próprio cativeiro não é<br />

uma situação nova. No passado, os israelitas também foram cativos no Egi<strong>to</strong> (Ex 1,1-5.7.13-14).<br />

Enfim, o início <strong>da</strong> história de Israel foi modes<strong>to</strong>, mas a promessa de Deus se realizou. Assim, esses<br />

poucos ex<strong>em</strong>plos, extraídos <strong>da</strong>s mais antigas tradições do povo, visavam iluminar a vi<strong>da</strong> dos<br />

exilados do século VI.<br />

a) Características <strong>da</strong> Tradição Sacerdotal<br />

De fa<strong>to</strong>, uma <strong>da</strong>s características <strong>da</strong> história sacerdotal é a imbricação <strong>da</strong>s leis nas narrações. As<br />

leis e as instituições são liga<strong>da</strong>s a acontecimen<strong>to</strong>s que realçam seu valor religioso, classificando<br />

essa obra como “histórico-legal” (A. Lods). Alguns ex<strong>em</strong>plos: <strong>em</strong> Gn 1,1-2,4a, são inseri<strong>da</strong>s na<br />

narração duas leis: a <strong>da</strong> fecundi<strong>da</strong>de e dominação (1,28) e a do sábado (2,3); <strong>em</strong> Gn 9, no final <strong>da</strong><br />

narração do dilúvio, volta-se à lei <strong>da</strong> fecundi<strong>da</strong>de (9,1) e à do respei<strong>to</strong> <strong>ao</strong> sangue; <strong>em</strong> Gn 17, está<br />

inseri<strong>da</strong> a lei sobre a circuncisão (17,9-14); <strong>em</strong> Ex 12,1-13, a legislação sobre a páscoa está liga<strong>da</strong><br />

à décima praga. E numerosos outros ex<strong>em</strong>plos também pod<strong>em</strong> ser encontrados nos livros do<br />

Êxodo e dos Números. O material legislativo é assim repartido dentro do quadro histórico <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

do povo.<br />

A Tradição Sacerdotal (“P“) recorre freqüent<strong>em</strong>ente <strong>ao</strong> <strong>em</strong>prego <strong>da</strong> cronologia. Os tex<strong>to</strong>s “P” se<br />

caracterizam pelo uso de <strong>da</strong>tas tira<strong>da</strong>s de um calendário sacerdotal que não é n<strong>em</strong> o calendário<br />

usado na monarquia, n<strong>em</strong> o calendário babilônico. Os meses não são designados por nomes, mas<br />

por números (Gn 7,11; 8,13; Ex 16,1; Nm 1,1).<br />

O vocabulário é preciso e, muitas vezes, técnico. Alguns termos técnicos são próprios de “P“, e o<br />

estilo se reconhece com relativa facili<strong>da</strong>de por ser desprovido de pi<strong>to</strong>resco. É frio e seco. O apreço<br />

pelo uso abun<strong>da</strong>nte de números, de enumerações, de listas, surpreende, mas está a serviço de<br />

uma teologia perfeitamente articula<strong>da</strong>.<br />

A importância que a Tradição Sacerdotal confere às genealogias se explica pelo desejo de<br />

estabelecer continui<strong>da</strong>de entre a criação e a história, visando apresentar as raízes do povo.<br />

Preocupação legítima e b<strong>em</strong> compreensível num contex<strong>to</strong> de exílio como esse. Também o<br />

interesse pelo casamen<strong>to</strong> dos patriarcas t<strong>em</strong> a mesma explicação: o casamen<strong>to</strong> com estrangeiras,<br />

na Babilônia, punha <strong>em</strong> perigo o futuro de Israel.<br />

A obra que os au<strong>to</strong>res sacerdotais criaram não é fru<strong>to</strong> de pura imaginação, mas <strong>da</strong> reflexão sobre a<br />

tradição do passado. Assim, a sua narração do dilúvio re<strong>to</strong>ma a narração javista e a amplia <strong>em</strong><br />

função de sua perspectiva teológica própria. Na Tradição Sacerdotal, encontram-se mui<strong>to</strong>s<br />

ex<strong>em</strong>plos disso, inclusive quando se trata de tex<strong>to</strong>s legislativos e cultuais.<br />

Finalmente, uma grande parte <strong>da</strong>s leis e prescrições é consagra<strong>da</strong> à organização do cul<strong>to</strong>. Isso se<br />

constata facilmente lendo os capítulos do Êxodo que tratam <strong>da</strong> construção do santuário e <strong>da</strong>s<br />

normas relativas <strong>ao</strong> sacerdócio (Ex 25-31 e 35-40). “Outro indício dessa importância é o lugar de<br />

Aarão <strong>ao</strong> lado de Moisés; descobre-se que a instituição principal para a existência do povo é o<br />

sacerdócio. A leitura do Êxodo e de Números mostra-o claramente” (J. Briend).<br />

b) A Teologia <strong>da</strong> Tradição Sacerdotal<br />

A orig<strong>em</strong> do material <strong>da</strong> Tradição Sacer<strong>to</strong>tal (“P”) é mui<strong>to</strong> varia<strong>da</strong>. É possível distinguir nela<br />

el<strong>em</strong>en<strong>to</strong>s legislativos ou baseados <strong>em</strong> costumes do povo. Afirma-se que a compreensão <strong>da</strong><br />

mensag<strong>em</strong> de “P” se encontra na fórmula <strong>da</strong> seguinte bênção: Deus os abençoou, dizendo-lhes:<br />

Reproduzi-vos e multiplicai-vos e povoai a terra, submetei-a e dominai sobre os peixes do mar<br />

e sobre as aves do céu e sobre os animais que se mov<strong>em</strong> sobre a terra (Gn 1,28).<br />

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Para a Tradição Sacerdotal, os cinco verbos dessa bênção constitu<strong>em</strong> a base de sua fé. Tal<br />

bênção é uma afirmação ousa<strong>da</strong> e <strong>to</strong>do-poderosa pela qual Deus manifesta claramente Sua<br />

intenção <strong>em</strong> relação à humani<strong>da</strong>de.<br />

A forma imperativa dos verbos (reproduzi-vos, multiplicai-vos, povoai, submetei e dominai) não<br />

significa que sejam mais ordens do que au<strong>to</strong>rizações que habilitam os povos a crer e a agir <strong>em</strong><br />

vista do futuro. Deus reivindica, com essa bênção, Sua soberania sobre <strong>to</strong><strong>da</strong> a criação, que<br />

acabara de tirar do c<strong>ao</strong>s. Compreende-se melhor ain<strong>da</strong> o sentido dessa bênção divina vendo-se<br />

nela como que uma refutação <strong>da</strong> situação concreta, de ver<strong>da</strong>deiro c<strong>ao</strong>s, que o povo está<br />

vivenciando no Exílio. De fa<strong>to</strong>, essa proclamação positiva se aplica de modo impressionante a um<br />

povo exilado, que se vê s<strong>em</strong> raízes, longe de sua terra e <strong>em</strong> vias de perder a fé <strong>em</strong> Deus.<br />

Encontramos essa fórmula também nas narrações do dilúvio: primeiro, para os pássaros e animais<br />

(Gn 8,17= 1,22); mas principalmente para Noé e seus filhos (9,1) e para o hom<strong>em</strong> fei<strong>to</strong> à imag<strong>em</strong><br />

de Deus (9,7). Os exilados podiam vislumbrar aí, uma alusão <strong>ao</strong> re<strong>to</strong>rno <strong>ao</strong> seu país. Outro tex<strong>to</strong>,<br />

que reforça a mesma idéia, diz respei<strong>to</strong> às palavras de Deus a propósi<strong>to</strong> de Ismael (17,20) que<br />

confirmam o que Deus quer fazer por meio de Isaac, segundo a promessa feita a Abraão (17,2-4).<br />

A mesma fórmula reaparece quando se narra o casamen<strong>to</strong> de Jacó (28,1-4), que serve também<br />

para fun<strong>da</strong>mentar a esperança na posse <strong>da</strong> terra (28,4). A mesma promessa se repete <strong>em</strong> 35,11ss,<br />

onde os exilados pod<strong>em</strong> ver que a Palavra de Deus continua váli<strong>da</strong> também para eles.<br />

Assim, constata-se que a fórmula <strong>da</strong> bênção perpassa <strong>to</strong><strong>da</strong> a história sacerdotal. De fa<strong>to</strong>, para os<br />

exilados <strong>em</strong> Babilônia, a meditação sobre as suas origens oferecia sólido fun<strong>da</strong>men<strong>to</strong> para sua fé.<br />

Entretan<strong>to</strong>, “a expressão mais completa <strong>da</strong> fórmula <strong>da</strong> bênção se encontra <strong>em</strong> Gn 1,1- 2,4a, e dela<br />

derivam <strong>to</strong>dos os seus <strong>em</strong>pregos subseqüentes (…). Com isso se compreende que a principal<br />

preocupação do escri<strong>to</strong> sacerdotal se orienta para o futuro, is<strong>to</strong> é, para o t<strong>em</strong>po no qual a terra<br />

será, então, reativa<strong>da</strong>” (J. Briend).<br />

Dessa forma, o <strong>to</strong>do desses rela<strong>to</strong>s está ligado por uma vigorosa teologia <strong>da</strong> esperança. A história<br />

sacerdotal está, pois, <strong>em</strong> tensão entre a tradição do passado e a situação do presente. Por isso,<br />

colhe subsídios <strong>em</strong> uma profissão de fé <strong>em</strong> <strong>to</strong>rno <strong>da</strong> qual foi compos<strong>to</strong> o <strong>Pentateuco</strong>.<br />

c) A Lei de Santi<strong>da</strong>de<br />

A “Lei de Santi<strong>da</strong>de” (Lv 17-26) forma um conjun<strong>to</strong> que inicialmente era separado do <strong>Pentateuco</strong>.<br />

Esse conjun<strong>to</strong> reúne el<strong>em</strong>en<strong>to</strong>s diversos, alguns dos quais, provavelmente, r<strong>em</strong>ontam à época<br />

nômade, como o cap. 18, por ex<strong>em</strong>plo. Outros são ain<strong>da</strong> do período pré-exílico, e outros, mais<br />

recentes. Uma primeira coleção dessas leis ter-se-ia formado <strong>em</strong> Jerusalém, pouco antes do Exílio.<br />

O profeta Ezequiel a pôde ter conhecido. Contudo, sua edição se deu somente no decurso do<br />

Exílio, antes de ser inseri<strong>da</strong> no <strong>Pentateuco</strong> pelos re<strong>da</strong><strong>to</strong>res sacerdotais, que a a<strong>da</strong>ptaram <strong>ao</strong> res<strong>to</strong><br />

do material que reuniram.<br />

Pode-se afirmar que a estrutura <strong>da</strong> Lei de Santi<strong>da</strong>de mui<strong>to</strong> se aproxima <strong>da</strong> do “código<br />

deuteronômico” (Dt 11,1-26,15). “Como o código deuteronômico, a Lei de Santi<strong>da</strong>de se abre e se<br />

encerra com prescrições cultuais (Lv 17,1-16 e 26,1-2); apresenta-se como um discurso de Moisés<br />

<strong>ao</strong> povo (17,1-2) e é segui<strong>da</strong> de bênçãos e maldições (26,3-45). Por isso, a Lei de Santi<strong>da</strong>de, como<br />

o código deuteronômico, é uma compilação: as repetições que nele se encontram denotam a<br />

existência de pequenas coleções primitivamente independentes” (J. Briend). To<strong>da</strong>via, enquan<strong>to</strong> o<br />

Deuteronômio enfatiza a eleição do povo de Israel por parte de Iahweh, a Lei de Santi<strong>da</strong>de se<br />

refere com insistência à santi<strong>da</strong>de de Deus e à sua transcendência. Como Deus é san<strong>to</strong>, o povo de<br />

Deus deve ser san<strong>to</strong> (19,2). Trata-se <strong>da</strong> fórmula-chave dessa coleção. Ora, a santi<strong>da</strong>de de Deus é<br />

uma santi<strong>da</strong>de moral e se impõe <strong>ao</strong> povo, que recebe o qualificativo de “san<strong>to</strong>”.<br />

Para se determinar a <strong>da</strong>ta <strong>em</strong> que foi realiza<strong>da</strong> essa compilação, pode ser <strong>to</strong>mado como pon<strong>to</strong> de<br />

comparação o ministério do profeta Ezequiel, exilado <strong>em</strong> Babilônia <strong>em</strong> 597. Ele se refere à Lei de<br />

Santi<strong>da</strong>de (compare-se, por ex<strong>em</strong>plo, Ez 18,6 e Lv 18,19 e também Ez 22,11 e Lv 20,12). Ora,<br />

Ezequiel não pode ser o criador dessa Lei, porque <strong>em</strong> alguns pon<strong>to</strong>s importantes ele se distancia<br />

dela: o profeta combate, por ex<strong>em</strong>plo, a retribuição coletiva (Lv 20,5; 26,39), enfatizando a<br />

responsabili<strong>da</strong>de individual.<br />

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Mui<strong>to</strong>s são os indícios que suger<strong>em</strong> que a Lei de Santi<strong>da</strong>de foi compila<strong>da</strong> paralelamente <strong>ao</strong><br />

Deuteronômio. A supracita<strong>da</strong> s<strong>em</strong>elhança entre as estruturas de ambos os códigos t<strong>em</strong> se<br />

constituído num argumen<strong>to</strong> de grande peso a favorecer essa hipótese. Mui<strong>to</strong>s afirmam que a<br />

reforma de Josias levou os sacerdotes a propor<strong>em</strong> um conjun<strong>to</strong> de leis que viesse contrapor-se <strong>ao</strong><br />

código deuteronômico. Mas a Lei de Santi<strong>da</strong>de não t<strong>em</strong> os desenvolvimen<strong>to</strong>s do Deuteronômio.<br />

Não se sente o peso <strong>da</strong> tradição mosaica, tão sensível nas tradições do norte. Como no<br />

Deuteronômio, a Lei é a condição para se conseguir a bênção. Com a Lei de Santi<strong>da</strong>de o povo de<br />

Israel se acha, portan<strong>to</strong>, <strong>em</strong> fase anterior à esperança de uma Nova Aliança (Jr 31,31-34), na qual<br />

a Lei ia ser um dom de Deus: Eis que dias virão <strong>em</strong> que concluirei com a casa de Israel (e com a<br />

casa de Judá) uma aliança nova. (…) Porei minha lei no fundo de seu ser e a escreverei no seu<br />

coração…<br />

d) As Leis supl<strong>em</strong>entares<br />

Ao lado do importante conjun<strong>to</strong> de leis elaborado pela Tradição Sacerdotal, que já vimos <strong>em</strong> artigos<br />

anteriores, deve-se mencionar ain<strong>da</strong> a compilação de <strong>to</strong><strong>da</strong> uma série de leis, mais ou menos<br />

independentes de seus contex<strong>to</strong>s, b<strong>em</strong> como “re<strong>to</strong>ques” fei<strong>to</strong>s <strong>em</strong> leis mais antigas, fort<strong>em</strong>ente<br />

influencia<strong>da</strong>s por Ne<strong>em</strong>ias e Esdras. Todo esse material foi introduzido no <strong>Pentateuco</strong>, por ocasião<br />

de sua composição final. De fa<strong>to</strong>, com essas “leis supl<strong>em</strong>entares”, de inspiração sacerdotal, t<strong>em</strong>os<br />

a última etapa <strong>da</strong>quilo que os judeus designam como a “Torah” (5 primeiros livros <strong>da</strong> Bíblia), e que<br />

era o tex<strong>to</strong> reconhecido por judeus e samaritanos como divinamente inspirado. Entre os tex<strong>to</strong>s<br />

legislativos posteriores à Tradição Sacerdotal pod<strong>em</strong> ser citados os seguintes, mesmo que<br />

re<strong>to</strong>m<strong>em</strong> tradições antigas: “a lei dos sacrifícios” (Lv 1- 7), “a lei <strong>da</strong> pureza” (Lv 11-16) e as<br />

prescrições sobre as festas (Nm 28-29).<br />

Ora, no ano 538 a.C, possibilitado pelo edi<strong>to</strong> de Ciro, deu-se o re<strong>to</strong>rno do povo de Deus do Exílio<br />

<strong>da</strong> Babilônia. Com a restauração do t<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong> 515, a comuni<strong>da</strong>de ju<strong>da</strong>ica encontra, <strong>ao</strong>s poucos,<br />

a uni<strong>da</strong>de <strong>em</strong> sua terra. “Essa época nos é obscura porque, para o período que vai de 515 a 450,<br />

os documen<strong>to</strong>s históricos são raros. Depois, aparec<strong>em</strong> dois personagens: Ne<strong>em</strong>ias e Esdras” (J.<br />

Briend).<br />

Ne<strong>em</strong>ias (“Iahweh consola”) foi um dos organizadores mais enérgicos <strong>da</strong> restauração pós-exílica.<br />

Pode ter exercido seu ministério no reinado de Artaxerxes I (445 a.C.). Fora a Jerusalém, com<br />

au<strong>to</strong>rização <strong>da</strong> corte persa, para reconstruir os muros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Apesar <strong>da</strong> hostili<strong>da</strong>de dos<br />

samaritanos sob Sanbalat e de outros inimigos, conseguiu restaurar as muralhas <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po<br />

(Ne 2-4). Como governador persa distinguiu-se pelo seu trabalho desinteressado (Ne 5,14-19);<br />

defendeu os pobres contra a agiotag<strong>em</strong> dos latifundiários (Ne 5,1-13). Em 433, vol<strong>to</strong>u para a corte<br />

persa (13,6); na sua segun<strong>da</strong> visita à Judéia <strong>to</strong>mou medi<strong>da</strong>s contra a profanação do sábado e<br />

contra os matrimônios de mui<strong>to</strong>s israelitas com mulheres estrangeiras (13,15-31).<br />

Esdras (“[Deus é] auxílio”), sacerdote e “escriba <strong>da</strong> Lei do Deus dos céus” (Esd 7,1-5), foi um dos<br />

judeus deportados para a Babilônia. Conselheiro do governo persa para negócios ju<strong>da</strong>icos, foi<br />

enviado <strong>da</strong> Pérsia para Jerusalém, com a incumbência de reorganizar a comuni<strong>da</strong>de pós-exílica.<br />

Não é cer<strong>to</strong> a qual Artaxerxes se refere. Noth, Rowley e Rudolph <strong>da</strong>tam-no nos últimos anos de<br />

Artaxerxes I, considerando a <strong>da</strong>ta de Esd 7,7 como inexata. Esdras teria viajado para Jerusalém na<br />

companhia de uns 1500 patrícios, <strong>ao</strong>s quais se ajuntaram ain<strong>da</strong> 238 levitas e servidores do t<strong>em</strong>plo,<br />

provindos de Cásfia (Esd 7-8). Encarregado pelo governo persa, <strong>em</strong> 398, de elaborar uma<br />

constituição, Esdras não se conten<strong>to</strong>u com a síntese <strong>da</strong>s grandes tradições já existente, mas<br />

comple<strong>to</strong>u essa obra com a inserção de <strong>to</strong><strong>da</strong> uma legislação cultual posta <strong>em</strong> prática no t<strong>em</strong>plo<br />

reconstruído. A perspectiva <strong>da</strong> história sacerdotal é manti<strong>da</strong>, mas, <strong>em</strong> alguns pon<strong>to</strong>s, há não<br />

pequena evolução. No próximo número: Síntese <strong>da</strong>s ”tradições” e “Mensag<strong>em</strong> do <strong>Pentateuco</strong>”.<br />

Padre Lucas<br />

4.5 Síntese <strong>da</strong>s Tradições do <strong>Pentateuco</strong><br />

A questão <strong>da</strong>s origens do <strong>Pentateuco</strong> interessa a <strong>to</strong>dos que almejam um conhecimen<strong>to</strong> mais<br />

acurado <strong>da</strong> Bíblia. Até o século XVII, as tradições ju<strong>da</strong>ica e cristã s<strong>em</strong>pre reconheceram ser Moisés<br />

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o seu único au<strong>to</strong>r. Contudo, a partir do início do século XIX, a crítica literária começa a observar<br />

cer<strong>to</strong>s traços do <strong>Pentateuco</strong> que suger<strong>em</strong> a existência de mais de um escri<strong>to</strong>r.<br />

Para tentar responder às questões quan<strong>to</strong> às diferenças estilísticas e a presença de fragmen<strong>to</strong>s<br />

literários de proveniências diversas num único rela<strong>to</strong>, surgiram três hipóteses: “a documentária”, a<br />

“dos fragmen<strong>to</strong>s” e a “dos compl<strong>em</strong>en<strong>to</strong>s”. Foram os primeiros passos <strong>da</strong> exegese visando a uma<br />

compreensão mais acura<strong>da</strong> quan<strong>to</strong> à orig<strong>em</strong> do <strong>Pentateuco</strong>.<br />

J. Wellhausen (1844-1918) foi qu<strong>em</strong> reelaborou a antiga “hipótese documentária”, que concebe o<br />

<strong>Pentateuco</strong> como uma obra re<strong>da</strong>cional, para cuja formação concorr<strong>em</strong> os seguintes extra<strong>to</strong>s<br />

literários: o “Javista” (J); o “Eloísta” (E); o “Deuteronomista” (D) e o “Sacerdotal” (P). Sua hipótese<br />

dominou a crítica bíblica depois de 1900. Mas sua teoria fora concebi<strong>da</strong> de maneira teórica d<strong>em</strong>ais.<br />

Por isso, mui<strong>to</strong>s exegetas preferiram adotar outra terminologia e falar <strong>em</strong> “escolas” ou <strong>em</strong><br />

“tradições” no lugar de “documen<strong>to</strong>s”.<br />

Embora não haja consenso entre os estudiosos sobre os “documen<strong>to</strong>s” ou as “tradições” que<br />

deram orig<strong>em</strong> <strong>ao</strong> <strong>Pentateuco</strong>, vimos a necessi<strong>da</strong>de de aprofun<strong>da</strong>r as suas características, uma vez<br />

que a terminologia <strong>em</strong>prega<strong>da</strong> por Wellhausen ain<strong>da</strong> vigora: o <strong>Pentateuco</strong> seria a amálgama dos<br />

quatro supracitados “documen<strong>to</strong>s” ou “tradições”.<br />

A mais antiga é a “Javista”, assim denomina<strong>da</strong> por designar com o nome de “Javé” a Deus.<br />

Redigi<strong>da</strong> <strong>em</strong> Judá, Reino do Sul, por volta do século IX. Alguns exegetas a <strong>da</strong>tam antes do cisma<br />

Norte-Sul.<br />

A “Eloísta”, que designa Deus com o nome “Eloim”, é oriun<strong>da</strong> do Reino do Norte, e t<strong>em</strong> sido <strong>da</strong>ta<strong>da</strong><br />

na primeira metade do século VIII. T<strong>em</strong> suas raízes no movimen<strong>to</strong> profético do Norte e na corrente<br />

sapiencial. Com a que<strong>da</strong> <strong>da</strong> Samaria, <strong>em</strong> 722, foi trazi<strong>da</strong> para o Sul, onde se uniu à “J”.<br />

A “Deuteronomista” é a que deu orig<strong>em</strong> <strong>ao</strong> livro do Deuteronômio. Reconhece-se no livro<br />

encontrado no t<strong>em</strong>plo, quando <strong>da</strong> reforma de Josias (640-609), sua primeira edição. A partir de<br />

622, sua influência não deixou de crescer, o que explica as numerosas fases que conheceu até<br />

chegar à sua forma atual. Refletindo tradições do Norte, foi composta no Sul, após 722. Segue a<br />

linha de “E” e dos profetas do Norte. Diante do risco de desagregação e per<strong>da</strong> de identi<strong>da</strong>de do<br />

povo, os au<strong>to</strong>res de “D” se esforçam por manter Israel no essencial de sua fé.<br />

Com a “Sacerdotal”, o <strong>Pentateuco</strong> estará praticamente concluído. T<strong>em</strong> sido <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> antes do fim do<br />

Exílio (538). “P” <strong>em</strong>penha-se <strong>em</strong> procurar na herança do passado uma resposta às seguintes<br />

perguntas: <strong>em</strong> que se apoiar para continuar a viver <strong>em</strong> meio a uma nação estrangeira s<strong>em</strong><br />

apostatar <strong>da</strong> própria fé? Por que Deus permite a seu povo uma situação tão adversa? Para tan<strong>to</strong>,<br />

faz uma releitura <strong>da</strong> sua história e <strong>da</strong>s promessas divinas, visando iluminar a fé dos exilados do<br />

século VI<br />

5. A MENSAGEM DO PENTATEUCO<br />

A hipótese <strong>da</strong>s tradições (J, E, D e P) – amalgama<strong>da</strong>s p<strong>aula</strong>tinamente, até formar<strong>em</strong> o tex<strong>to</strong> do<br />

<strong>Pentateuco</strong> que t<strong>em</strong>os hoje <strong>em</strong> nossas Bíblias -, mesmo não sendo ain<strong>da</strong> definitiva, d<strong>em</strong>onstra que<br />

“os tex<strong>to</strong>s, de inertes que eram, se animam <strong>ao</strong>s poucos e se revelam portadores de uma tradição<br />

viva” (J. Briend). Is<strong>to</strong> equivale a afirmar que o processo de composição do <strong>Pentateuco</strong> exigiu<br />

mui<strong>to</strong>s séculos e se desenvolveu <strong>em</strong> distin<strong>to</strong>s contex<strong>to</strong>s históricos. Diante de desafios concre<strong>to</strong>s<br />

para se viver a Aliança, <strong>ao</strong> longo de sua história, alguns grupos propuseram a <strong>to</strong>do o povo de Deus<br />

uma meditação sobre o passado com o objetivo de iluminar o presente e o futuro de Israel. Ora, o<br />

povo não só acolheu tais contribuições como delas se apropriou, o que assegurou sua transmissão<br />

até os nossos dias, por meio do <strong>Pentateuco</strong>.<br />

Como vimos anteriormente, a estruturação do <strong>Pentateuco</strong> se deu <strong>ao</strong>s poucos. Depois <strong>da</strong> que<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

Samaria (722) e de Jerusalém (587), surgiu, <strong>em</strong> Israel, a necessi<strong>da</strong>de de se recor<strong>da</strong>r sua<br />

experiência fun<strong>da</strong>nte como povo de Deus, a saber, a saí<strong>da</strong> do Egi<strong>to</strong> e a aliança do Sinai/Horeb,<br />

como meio de manter viva sua fé <strong>em</strong> Deus. Principalmente durante a ocupação <strong>da</strong> “Terra Santa”,<br />

para fortalecer a fé de um povo humilhado, alguns sentiram a necessi<strong>da</strong>de de recor<strong>da</strong>r as gestas<br />

decisivas de Iahweh, quando <strong>da</strong> conquista <strong>da</strong> mesma terra.<br />

Sab<strong>em</strong>os que o Exílio significou destruição, devastação, deportação e morte. Ignora-se <strong>to</strong>talmente<br />

quan<strong>to</strong>s morreram nessa época. Entretan<strong>to</strong>, o cerco à Terra Santa fez numerosas vítimas pela<br />

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fome e outras tantas pela resistência. Realmente, a deportação acarre<strong>to</strong>u-lhe grandes probl<strong>em</strong>as<br />

físicos, psicológicos e socioeconômicos. O grupo de exilados foi numeroso o suficiente para <strong>da</strong>r<br />

início permanente à presença de judeus na Babilônia. To<strong>da</strong>via, substancial número de judeus<br />

continuou a viver na Palestina <strong>em</strong> condições de absoluta indigência (Ackroyd). Enfim, Israel era<br />

nação derrota<strong>da</strong>: perdera sua independência, sua terra, sua monarquia e seu t<strong>em</strong>plo. Houve<br />

grandes sofrimen<strong>to</strong>s e mui<strong>to</strong>s mor<strong>to</strong>s, num estado de coisas que se <strong>to</strong>rnara <strong>to</strong>talmente caótico.<br />

Porém, o que mais abalou o povo, sobretudo os piedosos, foram os desafios e probl<strong>em</strong>as de<br />

ord<strong>em</strong> teológica que <strong>da</strong>í se originaram.<br />

Como manter a fé <strong>em</strong> Deus, vendo o t<strong>em</strong>plo destruído? O t<strong>em</strong>plo era considerado o “lugar <strong>da</strong><br />

mora<strong>da</strong> de Deus” (1Rs 8,18); “o lugar de Seu repouso” (Sl 132,14); o “estrado de Seus pés” (Lm<br />

2,1); “o lugar onde se podia ver a face de Deus” (Is 1,12). Era, pois, o símbolo sensível <strong>da</strong> eleição<br />

de Israel por parte de Deus. Por isso, a destruição do t<strong>em</strong>plo colocara o povo <strong>em</strong> profun<strong>da</strong> crise de<br />

fé: Deus havia abandonado o “Seu povo” e o “Seu lugar”? Será que existiriam outros deuses mais<br />

poderosos ou superiores a Iahweh?<br />

Daí que o <strong>Pentateuco</strong> “debate-se com os probl<strong>em</strong>as do Exílio <strong>ao</strong> recontar a história primeva e a<br />

história de Israel antes <strong>da</strong> conquista. Este enfoque no passado não é mera técnica literária (…)<br />

propõe que Deus estará presente no meio de seu povo, atualizando, assim, suas antigas<br />

promessas a Noé e <strong>ao</strong>s patriarcas, nas condições intermedia<strong>da</strong>s por Moisés à comuni<strong>da</strong>de cultual<br />

durante a peregrinação no deser<strong>to</strong>” (R. W. Klein).<br />

Vimos anteriormente os graves probl<strong>em</strong>as trazidos pelo Exílio e que se reflet<strong>em</strong> na re<strong>da</strong>ção final<br />

dos cinco primeiros livros <strong>da</strong> Bíblia. Probl<strong>em</strong>as históricos, físicos e socioeconômicos. Entretan<strong>to</strong>,<br />

vimos que confli<strong>to</strong>s teológicos <strong>to</strong>caram profun<strong>da</strong>mente a alma do povo e pod<strong>em</strong> ser considerados<br />

determinantes no processo de composição do <strong>Pentateuco</strong>. O primeiro probl<strong>em</strong>a foi a destruição do<br />

t<strong>em</strong>plo de Jerusalém, acarretando grave crise de fé: haveria outros deuses mais poderosos que<br />

Iahweh? Teria Iahweh rejeitado o Seu povo e o Seu “san<strong>to</strong> lugar” para s<strong>em</strong>pre?<br />

Outro desafio teológico era o fim <strong>da</strong> dinastia <strong>da</strong>vídica. Ora, Iahweh havia prometido dinastia eterna<br />

a Davi (2Sm 7). No passado, apesar de <strong>to</strong><strong>da</strong>s as dificul<strong>da</strong>des, mui<strong>to</strong>s reis tinham desaparecido,<br />

mas a realeza e o Estado haviam resistido. Agora, Sedecias tinha sido preso, seus dois filhos<br />

assassinados. Joaquin, seu sobrinho, que reinara por apenas três meses <strong>em</strong> 597, era prisioneiro<br />

<strong>em</strong> Babilônia: o que significava tudo isso diante <strong>da</strong> promessa divina feita a Davi? Isso só podia ter<br />

acontecido porque Ele tinha julgado e rejeitado a realeza tal como fora pratica<strong>da</strong>.<br />

Crise igualmente agu<strong>da</strong> deu-se mediante a deportação dos hebreus e a ocupação <strong>da</strong> Terra por<br />

parte de estrangeiros. Sab<strong>em</strong>os que os itens essenciais <strong>da</strong> tradição patriarcal eram a promessa de<br />

uma terra e de uma descendência. Deus era o Senhor <strong>da</strong> terra e a doação desta a Israel fora,<br />

desde sua orig<strong>em</strong> como povo, exaustivamente aclama<strong>da</strong>. Mas, a Terra, herança de Israel, estava<br />

agora <strong>em</strong> mãos de estrangeiros. Por que Iahweh se esquecera de Sua promessa? Teria se <strong>to</strong>rnado<br />

fraco d<strong>em</strong>ais ou estava aborrecido com o seu povo? A Aliança do Sinai oferecia a escolha entre<br />

vi<strong>da</strong> e bênção ou morte e maldição. Entretan<strong>to</strong>, <strong>em</strong> 597 e 587 as maldições <strong>da</strong> Aliança pareciam<br />

ter caído efetivamente sobre Israel. A aliança havia sido rompi<strong>da</strong> por Israel. Que tipo de esperança<br />

o povo poderia ter para o futuro? Seria suficiente apoiar-se no poder de Iahweh d<strong>em</strong>onstrado no<br />

Êxodo, <strong>em</strong> Sua proteção na conquista e durante mais de seis séculos <strong>em</strong> que Israel esteve na<br />

terra, ou agora tudo isso se <strong>to</strong>rnara irrelevante, passado? Tudo isso podia ser usado como<br />

acusação <strong>da</strong> infideli<strong>da</strong>de de Israel?<br />

Em síntese, “quase <strong>to</strong>dos os antigos sist<strong>em</strong>as de símbolos se haviam <strong>to</strong>rnado inúteis. Quase <strong>to</strong><strong>da</strong>s<br />

as antigas instituições não funcionavam mais. Que tipo de futuro era possível para um povo que<br />

atribuía a sua escolha exclusiva a um Deus que acabara de perder uma guerra para outras<br />

divin<strong>da</strong>des? Que tipo de futuro podia esperar um povo que de tal modo havia abandonado o seu<br />

Deus, que Sua resposta necessária era uma rejeição categórica?” (R. W. Klein).<br />

Diante desse quadro desolador, mui<strong>to</strong>s culparam diretamente a Deus. Ele usava Suas armas de<br />

guerra contra o seu próprio povo! Outros protestavam inocência. Alegavam sofrer as<br />

conseqüências dos pecados dos antepassados. Porém, n<strong>em</strong> <strong>to</strong><strong>da</strong>s as respostas foram negativas.<br />

To<strong>da</strong>via, até as respostas positivas refletiam a agudez do probl<strong>em</strong>a teológico e a incerteza quan<strong>to</strong><br />

<strong>ao</strong> caminho para o futuro.<br />

A compilação definitiva do <strong>Pentateuco</strong> foi profun<strong>da</strong>mente marca<strong>da</strong> pela experiência do Exílio.<br />

Vimos que esse fa<strong>to</strong>, além de prejuízos históricos e sociais, colocou várias questões de ord<strong>em</strong><br />

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teológica. O povo se encontrava numa situação delica<strong>da</strong>: longe <strong>da</strong> Terra Santa, “lugar de Deus”,<br />

s<strong>em</strong> T<strong>em</strong>plo e s<strong>em</strong> reis, apesar <strong>da</strong> promessa divina feita a Davi de uma dinastia eterna. Vimos,<br />

entretan<strong>to</strong>, que, quando tudo parecia estar perdido, alguns teólogos puderam apelar para a volta às<br />

promessas mais antigas e <strong>ao</strong> ideal mosaico ou falar de a<strong>to</strong>s salvíficos <strong>to</strong>talmente novos.<br />

Daí que, nos tex<strong>to</strong>s exílicos e pós-exílicos, a ênfase na circuncisão e o renovado interesse pelo<br />

sábado pod<strong>em</strong> ser facilmente entendidos como esforços para manter a identi<strong>da</strong>de do povo elei<strong>to</strong><br />

<strong>em</strong> meio à cultura estrangeira, uma vez que a mera assimilação dos costumes dos dominantes<br />

parecia oferecer mais possibili<strong>da</strong>de de sucesso.<br />

Para os teólogos exílicos, era t<strong>em</strong>po de confessar a culpa, reconhecer a completa justificação <strong>da</strong>s<br />

ações de Iahweh e voltar a Iahweh. Anunciavam com renova<strong>da</strong> ênfase a disposição de Deus para<br />

o perdão. Ain<strong>da</strong> que alguns judeus reagiss<strong>em</strong> com tristeza quase incontrolável, para mui<strong>to</strong>s a<br />

articulação <strong>da</strong> aflição por probl<strong>em</strong>as físicos e teológicos trouxe a catarse. “Para outros as<br />

profun<strong>da</strong>s expressões de tristeza eram o meio de levar Iahweh a agir. Ou será que o sofrimen<strong>to</strong> por<br />

si mesmo poderia ser reden<strong>to</strong>r? Suportar silenciosamente os reveses <strong>da</strong> história como servo de<br />

Iahweh, confiando somente nele – não seria este um meio de fazer as nações ver<strong>em</strong> a grandeza<br />

de Iahweh até na punição?” (R. W. Klein).<br />

O Exílio moldou <strong>to</strong><strong>da</strong> a mensag<strong>em</strong> e <strong>to</strong><strong>da</strong> a perspectiva desses escri<strong>to</strong>res. Em relação a ca<strong>da</strong><br />

“livro” do <strong>Pentateuco</strong> se propõ<strong>em</strong> as seguintes questões: De que forma esse livro é resposta <strong>ao</strong><br />

Exílio ou análise dele? Que idéias novas são invoca<strong>da</strong>s por determinado au<strong>to</strong>r? Sobre quais<br />

tradições antigas se apóia? Qual é o pon<strong>to</strong> central <strong>em</strong> <strong>to</strong>rno do qual gira sua resposta <strong>ao</strong> Exílio?<br />

Qual era o caminho para sair do Exílio ou superá-lo?<br />

Vimos que as tribulações do Exílio foram ocasião para algumas <strong>da</strong>s idéias mais profun<strong>da</strong>s de <strong>to</strong>do<br />

o Antigo Testamen<strong>to</strong>. Ora, os teólogos desse período discut<strong>em</strong> o Exílio à luz <strong>da</strong> fé. Por isso,<br />

fornec<strong>em</strong> respostas au<strong>to</strong>riza<strong>da</strong>s e significativas de Deus. Isso ocorre não só porque as “respostas”<br />

são fortes, mas também porque as questões levanta<strong>da</strong>s pela época exílica são mui<strong>to</strong> agu<strong>da</strong>s:<br />

questões de identi<strong>da</strong>de e razões para esperança; questões sobre qu<strong>em</strong> ou o que é a causa do mal<br />

de Israel; questões sobre a continuação <strong>da</strong> vali<strong>da</strong>de dos símbolos: Terra, t<strong>em</strong>plo, monarquia;<br />

questões para e <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po de mu<strong>da</strong>nça radical, questões para os que perderam suas raízes e cujo<br />

futuro parecia estéril e carregado de confli<strong>to</strong>s…<br />

Esses teólogos logram tirar o máximo provei<strong>to</strong> <strong>da</strong> grande catástrofe. Levantaram questões que<br />

ain<strong>da</strong> hoje desafiam teólogos, clero e fiéis. Por isso, pod<strong>em</strong>os ler o <strong>Pentateuco</strong> <strong>em</strong> vista de tirar o<br />

máximo provei<strong>to</strong> dos nossos “desastres”. Somos intimados, por meio dele, a usar seus recursos<br />

para também responder criativamente e com fé <strong>ao</strong>s desafios “exílicos” de hoje.<br />

Durante o Exílio, alguns teólogos judeus concentraram sua reflexão na ação decisiva de Deus por<br />

meio de Moisés, antes <strong>da</strong> conquista <strong>da</strong> terra. Movidos por uma certeza: Deus, que agiu no<br />

passado, ain<strong>da</strong> pode agir novamente <strong>em</strong> favor de seu povo! Se eles perderam a posse <strong>da</strong> terra,<br />

mesmo assim essa continua sendo obje<strong>to</strong> de esperança e, por isso, após o Exílio, continua-se a<br />

esperar um futuro melhor!<br />

O <strong>Pentateuco</strong> nos manifesta a expressão <strong>da</strong> fé do povo, e se apresenta como uma história coletiva.<br />

Entretan<strong>to</strong>, essa meditação sobre o passado não se realizou de uma só vez; sab<strong>em</strong>os que, no<br />

<strong>Pentateuco</strong>, encontram-se pon<strong>to</strong>s de vista que se explicam tan<strong>to</strong> pelas circunstâncias históricas<br />

como pelas diferentes influências que se exerceram sobre grupos particulares e se cristalizaram<br />

<strong>em</strong> diversas “tradições”. Dessa forma, a expressão <strong>da</strong> fé se acha liga<strong>da</strong> a essas varia<strong>da</strong>s<br />

experiências coletivas.<br />

A imag<strong>em</strong> de Deus apresenta<strong>da</strong> pelo <strong>Pentateuco</strong> não é uniforme; a amálgama <strong>da</strong>s diversas<br />

tradições (J, E, D, P) é para nós motivo de reflexão: ela nos convi<strong>da</strong> a lançarmos um novo olhar<br />

sobre a diversi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> expressão <strong>da</strong> fé hoje. Para tan<strong>to</strong>, faz-se mister superar uma leitura ingênua<br />

dos tex<strong>to</strong>s, que não permitiria ver a ver<strong>da</strong>deira intenção do que é narrado. Não pod<strong>em</strong>os deixarnos<br />

confundir pelo modo de narrar dos antigos; as narrações têm um papel singular no<br />

aprofun<strong>da</strong>men<strong>to</strong> <strong>da</strong> relação de Israel com Deus. A diversi<strong>da</strong>de dos gêneros literários não é aqui<br />

na<strong>da</strong> mais do que a riqueza de vi<strong>da</strong> que anima as pessoas.<br />

A serie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s questões postas e <strong>da</strong>s respostas é impressionante; ca<strong>da</strong> lei<strong>to</strong>r é interpelado mais<br />

diretamente por uma ou outra, <strong>em</strong> função de sua própria experiência. “A leitura do <strong>Pentateuco</strong>, que<br />

não se pode separar <strong>da</strong> dos profetas, mostra a serie<strong>da</strong>de que a fé exige do hom<strong>em</strong> no seu tra<strong>to</strong><br />

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com Deus, o cui<strong>da</strong>do <strong>em</strong> distinguir o que pode ser a vontade de Deus, a dificul<strong>da</strong>de de ouvir a<br />

Deus <strong>em</strong> <strong>to</strong><strong>da</strong>s as dimensões <strong>da</strong> existência, o que faz surgir a questão dolorosa <strong>da</strong> infideli<strong>da</strong>de, a<br />

necessi<strong>da</strong>de do perdão para se continuar a avançar no caminho <strong>da</strong> fé” (J. Briend).<br />

Assim, o <strong>Pentateuco</strong>, como <strong>to</strong>do o Antigo Testamen<strong>to</strong>, está aber<strong>to</strong> a uma leitura cristã. Ao seguir<br />

as idéias determinantes de ca<strong>da</strong> tradição, constata-se que elas converg<strong>em</strong> para Jesus de Nazaré.<br />

De fa<strong>to</strong>, Jesus não veio coroar a esperança na vin<strong>da</strong> de um rei segundo o coração de Deus, na<br />

perspectiva <strong>da</strong> tradição Javista (J)? Não pod<strong>em</strong>os ver a provação e o sofrimen<strong>to</strong> como caminho de<br />

salvação, descri<strong>to</strong>s pela Eloísta (E), como que uma prefiguração <strong>da</strong>s perseguições e sofrimen<strong>to</strong>s<br />

de Jesus? A Deuteronomista (D) se orienta <strong>em</strong> vista <strong>da</strong> organização de uma ass<strong>em</strong>bléia unânime<br />

no serviço de Deus: não deveríamos ver nisso um apelo a um dom do Espíri<strong>to</strong> trabalhando no<br />

coração humano para <strong>to</strong>rná-lo m<strong>em</strong>bro <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de fraterna nasci<strong>da</strong> no Pentecostes? A<br />

tradição Sacerdotal (P), justamente preocupa<strong>da</strong> com a reconciliação com Deus, não encontra sua<br />

resposta final na teologia neotestamentária?<br />

Finalmente, a leitura do <strong>Pentateuco</strong> nos l<strong>em</strong>bra que ain<strong>da</strong> estamos <strong>em</strong> marcha para Deus e que<br />

nossa lentidão é, não raras vezes, mui<strong>to</strong> s<strong>em</strong>elhante à do povo de Israel!<br />

A experiência e a reação de Israel <strong>ao</strong> Exílio lança preciosa luz sobre nossa situação atual no<br />

âmbi<strong>to</strong> <strong>da</strong> fé e <strong>da</strong> cultura. Vimos que confli<strong>to</strong>s teológicos dele derivados <strong>to</strong>caram profun<strong>da</strong>mente a<br />

alma do povo e pod<strong>em</strong> ser considerados determinantes no processo de compilação do <strong>Pentateuco</strong>.<br />

Daí que a força desses escri<strong>to</strong>s se radica, antes de tudo, no fa<strong>to</strong> de ter<strong>em</strong> aju<strong>da</strong>do Israel a<br />

conservar a fé durante sua maior provação e confiar na promessa de Iahweh, mantendo a<br />

comuni<strong>da</strong>de uni<strong>da</strong>, quando tudo parecia perdido.<br />

Ora, “não t<strong>em</strong>os aqui ci<strong>da</strong>de permanente, mas procuramos a que há de vir”, nos l<strong>em</strong>bra a Carta<br />

<strong>ao</strong>s Hebreus (13,14). A Igreja s<strong>em</strong>pre se considerou como “peregrina” neste mundo. Viv<strong>em</strong>os no<br />

Exílio, pois “a Igreja só será consuma<strong>da</strong> na glória celeste…” (Lumen Gentium, 48). Por isso, a<br />

leitura do <strong>Pentateuco</strong> mui<strong>to</strong> aju<strong>da</strong> e anima a reafirmar a fé e o compromisso com o Reino, denuncia<br />

a idolatria, alimenta a esperança nas promessas de Deus e suscita o desejo de continuar a prática<br />

do b<strong>em</strong>, mesmo <strong>em</strong> condições adversas.<br />

A mensag<strong>em</strong> do <strong>Pentateuco</strong> é, pois, de grande atuali<strong>da</strong>de. Como outrora, constatamos que muitas<br />

bases aparentes <strong>da</strong> fé ruíram. “Tentativas de provar a existência de Deus através de milagres ou<br />

de fun<strong>da</strong>mentar a fé numa visão pré-crítica <strong>da</strong> Escritura apenas mostram quão persuasivo se<br />

<strong>to</strong>rnou o silêncio de Deus. Ninguém escapa do Exílio!” (R.W. Klein).<br />

A ciência e a tecnologia tampouco trouxeram mais paz <strong>ao</strong> mundo: “o gênero humano nunca dispôs<br />

de tantas riquezas, possibili<strong>da</strong>des e poder econômico. No entan<strong>to</strong>, ain<strong>da</strong> uma parte considerável<br />

<strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de padece fome e miséria e analfabetismo (…). Assim, o mundo moderno se<br />

apresenta <strong>ao</strong> mesmo t<strong>em</strong>po poderoso e débil, capaz de realizar o ótimo e o péssimo, porquan<strong>to</strong> se<br />

lhe abre o caminho <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de ou <strong>da</strong> escravidão, do progresso ou do regresso, <strong>da</strong> fraterni<strong>da</strong>de ou<br />

do ódio. Além disso, o hom<strong>em</strong> se <strong>to</strong>rna consciente de que depende dele dirigir retamente as forças<br />

por ele desperta<strong>da</strong>s e que o pod<strong>em</strong> oprimir ou lhe servir” (Gaudium et Spes, 208 e 229).<br />

O <strong>Pentateuco</strong> insiste que o Exílio foi o resultado de vários séculos de busca de “outros deuses”.<br />

Por isso, nos auxilia imensamente no combate <strong>ao</strong>s três ídolos que, freqüent<strong>em</strong>ente, tentam nos<br />

seduzir e dominar: o TER, o PODER e o PRAZER (Puebla, 491-500). De fa<strong>to</strong>, o Exílio está aqui<br />

entre nós! E dentro de nós!<br />

No século VI a.C., o povo percebeu a necessi<strong>da</strong>de de manter sua identi<strong>da</strong>de. Também precisamos<br />

reafirmar a nossa: o amor, a soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de e a defesa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>!<br />

Contudo, o Exílio é t<strong>em</strong>po de esperança. Israel transformou seus probl<strong>em</strong>as <strong>em</strong> oportuni<strong>da</strong>des<br />

teológicas. Também o nosso Exílio pode ser o t<strong>em</strong>po oportuno para au<strong>da</strong>ciosas afirmações de fé.<br />

No <strong>Pentateuco</strong>, a certeza <strong>da</strong> presença de Deus <strong>to</strong>rnou-se realmente a boa nova para os exilados.<br />

Também t<strong>em</strong>os a mesma garantia: “Eu estarei convosco <strong>to</strong>dos os dias…” (Mt 28,20).<br />

O Exílio para os cristãos é t<strong>em</strong>po de “vigiar e orar”. Enfim, é o t<strong>em</strong>po de examinar a nós mesmos,<br />

nossa comuni<strong>da</strong>de, nosso país e nossa Igreja, t<strong>em</strong>po de ver seu estado atual como julgamen<strong>to</strong>. É<br />

t<strong>em</strong>po, pois, de “voltar a Deus” e de amá-lo “de <strong>to</strong>do o coração, com <strong>to</strong><strong>da</strong> a mente e com <strong>to</strong><strong>da</strong> a<br />

alma” (Dt 6,5). Pe. Lucas - Diocese de Jundiaí - SP<br />

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