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Livro de uma Sogra, de Aluísio de Azevedo Fonte ... - Universia Brasil

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que <strong>de</strong>viam ambos conservar, eternamente intactas e perfeitas, as boas impressões, que um do outro tivessem<br />

porventura recebido no período em que se <strong>de</strong>sejaram pela primeira vez.<br />

A tarefa, como se vê, era mais que penosa, <strong>de</strong>licada, e <strong>de</strong> muito difícil execução; eu, porém, estava disposta a<br />

todos os sacrifícios por amor <strong>de</strong> minha filha, e haveria <strong>de</strong> triunfar! De resto, com que melhor po<strong>de</strong>ria eu encher a vida?<br />

A idéia <strong>de</strong> escrever estas memórias só mais tar<strong>de</strong> começou a preocupar-me o espírito.<br />

* * *<br />

Mas prossigamos. Vamos ver agora como cheguei à realização dos meus i<strong>de</strong>ais.<br />

Na escolha mental que fiz <strong>de</strong> um noivo para minha filha, pareceu-me fosse preferível um oficial <strong>de</strong> marinha em<br />

serviço ativo, porquanto o marinheiro leva no casamento duas vantagens sobre os homens <strong>de</strong> outras profissões. A<br />

primeira porque o serviço <strong>de</strong> bordo ou em alg<strong>uma</strong> fortaleza o obriga a afastar-se periodicamente da esposa, cumprindo<br />

ele assim, por <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> ofício, com o higiênico preceito da Bíblia; a segunda porque os perigos da sua vida aventurosa,<br />

a honra militar e a estética da farda, lhe dão certo brilho especial <strong>de</strong> antiburguesismo e um fascinante prestígio <strong>de</strong><br />

altivez e <strong>de</strong>nodo que muito pesam nos interesses do amor.<br />

Nós mulheres gostamos <strong>de</strong> ver no homem amado tudo aquilo que não possuímos nem po<strong>de</strong>mos aspirar. Quanto<br />

mais varonil e másculo for ele, tanto mais nos impressiona e atrai. A força física, a bravura, a energia <strong>de</strong> ação, e a<br />

singela bonda<strong>de</strong> do homem forte, são os dotes masculinos que mais diretamente seduzem <strong>uma</strong> mulher bem equilibrada.<br />

Eu, que amei tanto meu marido, nunca lhe perdoei todavia, no íntimo do meu julgamento feminil, que ele fosse <strong>de</strong><br />

compleição pouco mais <strong>de</strong>senvolvido em músculos do que eu. E não era fraco.<br />

As mulheres ordinárias, que não <strong>de</strong>sgostam <strong>de</strong> ser batidas pelo seu homem, têm a sua absolvição na mesma<br />

natureza inferior da mulher. Dar-lhes pancada é prova <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> respeito e é brutalida<strong>de</strong>, mas não é prova <strong>de</strong> falta <strong>de</strong><br />

amor; antes pelo contrário é essa <strong>uma</strong> das mais naturais expansões do domínio e do ciúme; e quer sempre dizer<br />

superiorida<strong>de</strong> física. Ora, o que a mulher vulgar exige do seu homem não é respeito, mas só amor; logo prefere a<br />

pancada a qualquer outra manifestação menos grosseira, porém mais <strong>de</strong>primente dos seus interesses sexuais.<br />

Devia, por conseguinte, o noivo <strong>de</strong> minha filha ser um oficial <strong>de</strong> marinha em serviço ativo, e homem forte.<br />

Mas, como a força física não basta para conquistar um amor complexo, e para manter no mesmo grau <strong>de</strong> entusiasmo o<br />

enlevo poético <strong>de</strong> <strong>uma</strong> mulher <strong>de</strong> certa or<strong>de</strong>m, era preciso que o meu oficial <strong>de</strong> marinha, além <strong>de</strong> são e possante, fosse<br />

inteligente, honesto, simpático e carinhoso.<br />

E encontraria eu um sujeito nestas circunstâncias, capaz <strong>de</strong> amar minha filha?...<br />

Por que não? Palmira tinha <strong>de</strong>zoito anos, era bonita e perfeita, bem educada, inteligentezinha, e com um dote<br />

animador. Seria possível que não houvesse por aí um rapaz pobre, naquelas condições, que se apaixonasse por ela,<br />

encaminhando eu as coisas com certo jeito?<br />

Pus mãos à obra: comecei a procurar o meu homem. Em breve, porém, convenci-me <strong>de</strong> que sozinha não daria<br />

conta do recado, e lembrei-me <strong>de</strong> pedir auxílio ao meu amigo, o Dr. César Veloso, <strong>de</strong> quem já prometi falar.<br />

Cumpra-se esta promessa antes <strong>de</strong> mais nada; César Veloso era então um belo velho <strong>de</strong> cinqüenta a sessenta<br />

anos, médico, abastado, viúvo, já sem nenhum <strong>de</strong> seus filhos, e vivendo em companhia <strong>de</strong> <strong>uma</strong> irmã, D. Etelvina, único<br />

parente que lhe restava e a quem ele estremecia profundamente. Foi o melhor coração e o melhor caráter que encontrei<br />

até hoje no meu caminho. Conheci-o, como disse, pouco <strong>de</strong>pois do nascimento <strong>de</strong> Palmira, e já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esse tempo o<br />

estimava mais do que a meu próprio esposo, <strong>de</strong> quem ele, só por minha causa, foi bom, leal e verda<strong>de</strong>iro amigo.<br />

Deu-se na minha vida e no meu coração <strong>uma</strong> coisa muito singular a respeito <strong>de</strong>sse homem: Sem nunca<br />

formular sobre ele a mais ligeira hipótese <strong>de</strong> amor sensual, achava-me todavia tão sua amiga, amava-o tanto, que era um<br />

verda<strong>de</strong>iro prazer, para minha alma, senti-lo perto <strong>de</strong> mim. Quando as <strong>de</strong>silusões do meu casamento me prostraram os<br />

sentidos e me enegreceram a existência, foi ele o único com quem abri o coração. Falei-lhe com toda a franqueza,<br />

queixei-me do meu <strong>de</strong>stino; disse-lhe tudo quanto eu sofria, e até, ainda hoje me parece extraordinário! chorei em sua<br />

presença, o que, juro pela felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Palmira, seria impossível suce<strong>de</strong>r com outro, mesmo com meu marido.<br />

Des<strong>de</strong> esse momento capital da minha vida, compreendi que era também amada por ele como a irmã eleita por<br />

sua alma e por sua inteligência. E fizemo-nos amigos para sempre, unificamo-nos em espírito, tornamo-nos moralmente<br />

inseparáveis por um tácito consórcio <strong>de</strong> absoluta confiança um pelo outro; consórcio <strong>de</strong> imperturbável harmonia <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ais, <strong>de</strong> alta poesia e <strong>de</strong> amor imaculado e superior a todas as misérias da carne. E esse amor essencial e puro, que<br />

nunca fora nem <strong>de</strong> leve perturbado pelo sobressalto dos sentidos, era um canto tranqüilo e doce, em que meu pobre<br />

espírito repousava da infernal campanha doméstica e dos enojos do outro amor.<br />

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