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Livro de uma Sogra, de Aluísio de Azevedo Fonte ... - Universia Brasil

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eu sentia-me feliz por vê-la feliz; mas ninguém po<strong>de</strong>rá calcular a dose <strong>de</strong> energia e a constância <strong>de</strong> caráter que tive <strong>de</strong><br />

pôr em ação, para impedir que o noivo interferisse e se intrometesse nestes arranjos domésticos, e não estivesse sempre<br />

encarapichado às nossas saias. O pobre rapaz queria também, como é do costume no <strong>Brasil</strong>, vir todas as noites visitar a<br />

noive e pespegar-se ao lado <strong>de</strong>la durante o serão até o momento <strong>de</strong> servir-se o chá. Não faltava mais nada! <strong>de</strong>salojei-o<br />

logo <strong>de</strong>ssa pretensão, <strong>de</strong>clarando que a ninguém recebíamos senão às quartas-feiras; mas, o <strong>de</strong>mônio insistiu,<br />

recorrendo para vencer-me a todos os carinhosos recursos da adulação; e afinal, reforçando suas súplicas com as <strong>de</strong><br />

Palmira, conseguiram os dois apanhar-me mais um dia na semana, que ficou sendo o Domingo.<br />

Só nas vésperas do casamento permiti que se vissem todos os dias.<br />

* * *<br />

Por essa ocasião realizamos os três, e mais o meu velho amigo César, um belo passeio à Floresta da Tijuca.<br />

Ao <strong>de</strong>spontar <strong>de</strong> sol estávamos já à raiz da serra. Levávamos farnel e um criado para tomar conta <strong>de</strong>le.<br />

Deixamos na cocheira daquele ponto o carro que nos conduziu até aí, e tomamos, para subir a formosa cordilheira, <strong>uma</strong><br />

vitória <strong>de</strong> dois lugares, on<strong>de</strong> eu iria com César, e em cuja boléia o criado se arranjaria com o farnel. Palmira e Leandro<br />

tinham, prontos à sua espera, dois cavalos escolhidos.<br />

Era outubro, e a manhã saíra-nos encantadora. Foi <strong>de</strong>liciosa a subida até o alto da serra, por entre as vegetações<br />

e os penhascos da estrada, ao primeiro transbordamento do dia. A quaresma e a sucupira abriam já, na sombra azul das<br />

matas, flores roxas e amarelas. Inebriava o espírito <strong>de</strong>slizar suavemente naquele vasto rescen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> aromas resinosos, ao<br />

hino matinal dos campos, que se iam, ainda mal acordados dos seus sonhos <strong>de</strong> opala, preguiçosamente <strong>de</strong>snevoando à<br />

dourada fulguração da luz nascente.<br />

Não nos quisemos <strong>de</strong>ter na cascatinha, e continuamos a subir para a Floresta.<br />

A Floresta! Ah! quantas recordações não tinha eu <strong>de</strong>sses lugares, on<strong>de</strong> tantas vezes passeei pelo braço <strong>de</strong><br />

Virgílio, antes do nosso casamento, antes da nossa <strong>de</strong>silusão, quando eu ainda o amava com amor <strong>de</strong> mulher! César ao<br />

meu lado, no carro, parecia também esquecido nas suas sauda<strong>de</strong>s, porque ia abstrato e mudo, olhando fixamente o<br />

misterioso horizonte <strong>de</strong> verdura, com as mãos sobpostas ao queixo e firmadas no castão da sua bengala.<br />

Palmira e Leandro seguiam adiante cavalgando emparelhados, a rir e a conversar, gárrulos e donairosos. Ah!<br />

esses não ficavam quietos e calados um só instante, porque iam vivendo do presente e do futuro. Avançavam a galope,<br />

resplen<strong>de</strong>ntes e soberbos no orgulho do seu amor e da sua mocida<strong>de</strong>, sem volver para trás os olhos enamorados; alheios<br />

a tudo, encarando com <strong>de</strong>sdém o resto do mundo, como do alto da montaria olhavam no caminho as pobres<br />

cambaxilras, que esvoaçavam escorraçadas fugindo e gralheando à sua vitoriosa passagem.<br />

Penetramos no coração da Floresta. Minha alma, <strong>de</strong> comovida, abriu-se <strong>de</strong> par em par, num êxtase contrito,<br />

num doce e profundo enlevo religioso. Tive vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ajoelhar-me à sombra das velhas árvores e chorar.<br />

Como eu te amava ainda, casto paraíso das minhas sauda<strong>de</strong>s! ó minha querida floresta! Não tinhas, como eu,<br />

envelhecido, odorante e sombrio templo <strong>de</strong> verdura! encontrei-te moça e garrida como te <strong>de</strong>ixara, e como a mim tinhas<br />

visto, dantes, muito dantes, à flor da minha juventu<strong>de</strong>; o que agora te não achei foi tão minha amiga, tão minha<br />

confi<strong>de</strong>nte e tão comunicativa como dantes. Eras alegre, paraíso! achei-te triste!<br />

Não! já não eras para mim o mesmo é<strong>de</strong>n carinhoso e sorri<strong>de</strong>nte, que com todas as tuas vozes me falavas <strong>de</strong><br />

amor e <strong>de</strong> vida! Reconheci as tuas místicas estradas murmurantes; os teus brancos caminhos serpeados entre montanhas<br />

<strong>de</strong> veludo ver<strong>de</strong>; as tuas árvores patriarcais, <strong>de</strong> longas barbas venerandas, em que se engrimpam e <strong>de</strong>penduram<br />

orquí<strong>de</strong>as e parasitas; o teu lago quieto e melancólico, em que as taquaras e samambaias se miram furtivamente, por<br />

entre a esparsa e mergulhada cabeleira das algas e nenúfares; reconheci a música plangente das tuas águas rebatidas, <strong>de</strong><br />

cascata em cascata, a sombra amorável e doce das tuas grutas escondidas; reconheci tudo isso, todas essas paragens<br />

encantadas; mas já não eras a mesma para mim, Floresta, que me embalaste os sonhos <strong>de</strong> esperança!<br />

Oh! como Palmira nesse mesmo instante <strong>de</strong>via achar-te alegre, triste Floresta! Triste e morto paraíso <strong>de</strong><br />

sauda<strong>de</strong>s!<br />

— Em que cisma, minha amiga?... perguntou-me César, tomando-me <strong>uma</strong> das mãos.<br />

— No mesmo em que você pensava ainda há pouco — no passado... Cismas <strong>de</strong> velho!...<br />

E suspiramos ambos, <strong>de</strong>sconsoladamente.<br />

* * *<br />

Voltei <strong>de</strong>sse longo passeio, <strong>de</strong> um dia inteiro, com <strong>uma</strong> fria impressão <strong>de</strong> tristeza, que se não dissolveu em<br />

lágrimas, mas que enlutou <strong>de</strong> sombras dolorosas o meu velho coração <strong>de</strong> mulher.<br />

E comigo foi sempre assim, muito antes mesmo da velhice. A contemplação <strong>de</strong> belas paisagens como a da<br />

Floresta, as gran<strong>de</strong>s obras <strong>de</strong> arte, a música principalmente, <strong>de</strong>ixavam-me na alma um amargo ressaibo <strong>de</strong> melancolia<br />

insolúvel. Atribuía isso, então, ao fato <strong>de</strong> nunca ter sido, em nenhum tempo <strong>de</strong> minha vida, completamente feliz. Essa<br />

tristeza era como que, não a sauda<strong>de</strong>, mas a <strong>de</strong>sconsolação <strong>de</strong> quem entreviu, compreen<strong>de</strong>u e sentiu a ventura natural do

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