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OUTRAS INQUIRIÇÕES 130<br />

N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />

131<br />

fortemente, a criação do outro relato, o ficcional,<br />

aquele que Carlos Fuentes designa por<br />

«criação de uma segunda história que cega e<br />

diminui a dos historiadores de arquivo», baseada<br />

apenas na memória e nos projectos pessoais.<br />

A propósito da Literatura portuguesa recente, é<br />

corrente referir-se essa coincidência.<br />

Mas aí também, como em tudo o mais,<br />

sempre se pertence às conjunturas históricas<br />

por círculos concêntricos, de intensidade diferente<br />

e de vária natureza. Nesse domínio, mais<br />

do que ao meu país de há vinte cinco anos<br />

atrás, pertenço à determinação e ao acontecimento<br />

que lhe mudou o rumo. Pertenço à<br />

matéria palpável da alegria que aconteceu na<br />

sequência duma revolução que pôs termo à<br />

ditadura de meio século que se havia abatido<br />

sobre a sociedade portuguesa desde os longínquos<br />

anos vinte, até aos anos setenta, ditadura<br />

sustentada por elites sem qualquer noção de<br />

partilha e por um povo iletrado e supersticioso<br />

destituído, na sua generalidade, de qualquer<br />

noção de revolta. Pertenço ao dia em que essa<br />

cadeia de equilíbrio recíproco se quebrou, em<br />

que fui testemunha de como é possível inverter<br />

a marcha do que parece inevitável, pela<br />

força da coragem pessoal de um grupo. Pertenço<br />

a esse momento como a um ponto de<br />

encontro entre a justiça e a inversão do destino,<br />

em forma de gente, milhares de fotografias<br />

a preto e branco, com flores vermelhas. E porque<br />

essa certeza foi adquirida quando a juventude<br />

ainda se assemelhava à adolescência, ela<br />

incorporou-se no sangue, ou no genoma, ou<br />

seja onde for, e transformou-se numa espécie<br />

de segurança que me sustenta o ser. Ou<br />

melhor, esse momento habita comigo como<br />

um ente querido, tem corpo e ocupa espaço e<br />

reivindica gestos, como uma pessoa de família.<br />

Pertenço a esse momento como se pertence a<br />

uma geração, e penso mesmo que a minha<br />

geração, se existe enquanto consciência, está<br />

concentrada em torno desse acontecimento.<br />

Assim como pertenço à sociedade que daí saiu,<br />

a braços com a redefinição dos seus vizinhos,<br />

seus aliados, seus novos valores e duros percursos,<br />

suas metas demasiado altas para serem<br />

atingidas demasiado rápido. Uma sociedade na<br />

generalidade constituída por gente muito pobre<br />

que rapidamente deseja ser muito rica. Mais do<br />

que ser democrática ou estimar os valores da<br />

partilha, do saber e do discorrer livre. Porque<br />

uma parte dela, muito mais do que era suposto<br />

imaginar, continua a desejar prolongar<br />

estruturas mentais que faziam o mundo antigo.<br />

Nesse domínio, pertenço-lhe por repulsa e por<br />

mágoa. Pertenço-lhe por inevitabilidade de lhe<br />

pertencer. Por isso, mais do que à sociedade<br />

dentro da qual sou número e tenho um nome<br />

civil, pertenço ao mundo dos meios que a<br />

reproduzem por palavras, a lêem em termos<br />

críticos ou mais propriamente a alteram e a<br />

transfiguram. Pertenço-lhe com a mesma contradição<br />

com que pertenço ao tempo contemporâneo.<br />

8.<br />

Pertenças várias e inúmeras que funcionam<br />

como laços mas também como destinos e condenações,<br />

ou como matérias-primas, no caso<br />

de se encontrar o veículo que as transporta para<br />

o lugar do não-destino. Por exemplo, a Literatura,<br />

que em si mesma é um espaço de corte e<br />

liberdade. E que dizer sobre isso?<br />

Que pertenço à Literatura, campo das palavras<br />

libertas do real, e dentro dela à ficção, o<br />

terreno da transfiguração dos factos em actos<br />

simulados. Na verdade, a sua natureza e função<br />

consistem em escolher, inverter, desfigurar o<br />

que está dentro da matéria das pertenças, de<br />

modo a produzir-se uma nova realidade verdadeira,<br />

que não se opõe à realidade falsa, e nesse<br />

salto de qualidade e espécie consiste a criação,<br />

isto é, o acrescento de alguma coisa ao mundo<br />

que antes lá não estava. Naturalmente que se<br />

pertence à Literatura e à ficção sem a noção<br />

dessa importância. Começa-se por se pertencer<br />

porque sim, porque acontece, porque se tem a<br />

ideia, como leitor, de que se pode sonhar.<br />

Depois é que se entende que se pertence a uma<br />

matéria que se desprende da prisão do real,<br />

para dizer que ele não é suficiente, impondo-<br />

-lhe uma nova lógica, ou tornando-o visível nas<br />

suas partes vivas, lá onde havia um limbo amalgamado.<br />

E na participação dessa acção de liberdade<br />

consiste nascer o criador que é o leitor e é<br />

o escritor, diferentes, mas irmãos. Nascer e<br />

crescer no espaço de liberdade que permite<br />

abrir uma nova possibilidade entre as outras e,<br />

desse modo, à reprodução de qualquer dilúvio

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