descarregar PDF - Revista Atlântica
descarregar PDF - Revista Atlântica
descarregar PDF - Revista Atlântica
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
TRAVESSIAS 24<br />
N.5 OUTONO INVERNO 2006 2007<br />
Já não estão<br />
os meus pais<br />
Nem o fogo<br />
que acenderam<br />
Carlos Liscano<br />
25<br />
Eu tinha uma casa, marido,<br />
filho, pais, um pequeno<br />
jardim de ervas aromáticas,<br />
algumas árvores que davam os<br />
seus frutos, um parreiral para<br />
as tardes estivais, uma rua,<br />
uma vereda até ao sul, uma<br />
cidade dentro de um país. Um<br />
país que um dia amanheceu<br />
sombrio e hostil.<br />
Suponho que começou ali a<br />
minha viagem, apesar de o ignorar<br />
naqueles primeiros tempos<br />
de horror. Eram os anos setenta e<br />
começava o êxodo.<br />
Muitos procuraram embaixadas,<br />
consulados, a Nunciatura<br />
da Igreja Católica, vias clandestinas<br />
entre os caminhos das cordilheiras<br />
para partir rumo à Argentina,<br />
ou pelo norte até ao Peru e<br />
à Bolívia, ludibriando os guardas<br />
fronteiriços. Procuravam uma<br />
via rápida de fuga desesperada<br />
para fugir dos institucionalizados<br />
e recém-estreados métodos<br />
de tortura, desaparecimento e<br />
morte quase certa. Nessa tentativa,<br />
grande parte deles ficaram<br />
pelo caminho: as mãos negras da<br />
ditadura chegavam até às entreabertas<br />
portas salvadoras para<br />
alcançar as presas. Assim, a ditadura<br />
aplicava o terrorismo de<br />
Estado em nome da Doutrina da<br />
Segurança Nacional, combatendo<br />
as ideias e o pensamento livre<br />
dos agora depostos opositores ao<br />
seu regime militar.<br />
Sergio Leiva Molina, militante<br />
socialista, tinha 34 anos,<br />
mulher e uma filha. Uns dias<br />
depois do golpe do 11 de Setembro<br />
de 1973, começou a ser<br />
perseguido e fugiu. Algumas<br />
semanas mais tarde, emergiu da<br />
sua clandestinidade; com uma<br />
escada feita de cânhamo e paus<br />
de bambu sobressaindo da sua<br />
mochila, disse-nos adeus e<br />
pediu-nos que cuidássemos da<br />
sua mulher e da sua filha Aleida.<br />
Nesse dia tentaria ludibriar a<br />
vigilância dos carabineiros que<br />
estavam de guarda à embaixada<br />
argentina; utilizaria a escada<br />
para saltar o muro das traseiras<br />
da embaixada, num sítio descampado<br />
e escuro. Não sei<br />
como o fez, mas conseguiu.<br />
Pensávamos que o nosso<br />
amado companheiro se encontrava<br />
a salvo, já a pedir asilo como<br />
refugiado, mas o seu espírito<br />
intrépido e solidário levou-o a<br />
contactar com outros que, como<br />
ele, tentavam dar o salto: assim,<br />
a sua improvisada e engenhosa<br />
escada aparecia e desaparecia do<br />
muro. Sergio assomava de vez<br />
em quando do outro lado para<br />
ver se algum fugitivo necessitava<br />
de ajuda; nesse caso, assobiava e<br />
voltava a lançar imediatamente a<br />
escada flexível.<br />
Salvou muitos, mas no dia 4<br />
de Janeiro de 1974, atraído por<br />
um ruído, assomou-se cautelosamente.<br />
Caiu destroçado pela<br />
bala assassina que o esperava,<br />
espreitando-o, incessantemente.<br />
A televisão, já nas mãos das hordas<br />
fascistas, emitiu a notícia<br />
entre comunicados militares<br />
sobre o recolher obrigatório,<br />
falseando-a com o característico<br />
tom distorcido que costumava<br />
imprimir à explicação dos assassinatos<br />
de Estado.<br />
Não sabíamos que o dia em<br />
que Sergio nos abraçou seria a<br />
última vez que o veríamos.<br />
Agora e depois de muitos anos,<br />
o seu nome é mais um dos que<br />
estão presentes no Memorial em<br />
honra das vítimas daqueles 17<br />
anos de ditadura, no Cemitério<br />
Geral de Santiago do Chile, mais<br />
um na categoria dos fuzilados.<br />
Creio que ali começou a esboçar-se<br />
a minha viagem, ainda<br />
sem regresso.<br />
Aos que conseguimos continuar<br />
em pé, despertava-nos a