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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - Facom - Universidade ...

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1<br />

<strong>UNIVERSI<strong>DA</strong>DE</strong> <strong>FEDERAL</strong> <strong>DA</strong> <strong>BAHIA</strong><br />

FACUL<strong>DA</strong>DE DE COMUNICAÇÃO<br />

Memórias da Resistência<br />

Perfil biográfico dos desaparecidos políticos baianos<br />

na Guerrilha do Araguaia<br />

Salvador, 20 de Fevereiro de 2001.


<strong>UNIVERSI<strong>DA</strong>DE</strong> <strong>FEDERAL</strong> <strong>DA</strong> <strong>BAHIA</strong><br />

FACUL<strong>DA</strong>DE DE COMUNICAÇÃO<br />

Memórias da Resistência<br />

Perfil biográfico dos desaparecidos políticos baianos<br />

na Guerrilha do Araguaia<br />

Projeto Experimental de conclusão do curso de<br />

graduação em Comunicação Social - Jornalismo,<br />

apresentado no dia 14 de fevereiro de 2001,<br />

2<br />

na Faculdade de Comunicação.<br />

Autora<br />

Andréa Cristiana Santos<br />

Orientador<br />

prof o Emiliano José


Sumário<br />

Apresentação ........................................................................................ 6<br />

Resumo.............................................................................................................. 17<br />

Reconhecimento.................................................................................................18<br />

Capítulo I<br />

Os primeiros passos da militância ....................................................................................... 21<br />

Os primeiros militantes ........................................................................................................ 25<br />

Capítulo II<br />

Rosalindo Souza, liderança na Faculdade de Direito ....................................................... 29<br />

A opção pelo Araguaia ......................................................................................................... 31<br />

Capítulo III<br />

Antônio Carlos Monteiro Teixeira e Dinalva Oliveira ...................................................... 34<br />

Lembranças de uma mãe .................................................................................................... 40<br />

Amores no Araguaia ............................................................................................................ 44<br />

Capítulo IV<br />

“ Eles não me prendem mais. Foi a primeira e a última vez” ........................................... 46<br />

José, militância discreta ....................................................................................................... 51<br />

Piauhy e a reorganização da ABES .................................................................................... 53<br />

3


Capítulo V<br />

Estudantes são presos ......................................................................................................... 56<br />

Dermeval Pereira no Comitê Regional ............................................................................ 61<br />

“Se é pra morrer por qualquer coisa, morra por algo que transforme, mude a história<br />

do país” ................................................................................................................................. 64<br />

Capítulo VI<br />

Combater é preciso, viver não é preciso ............................................................................ 67<br />

Luta pela reestruturação da UEB ....................................................................................... 70<br />

Os estudantes em ação ........................................................................................................ 73<br />

A opção política pela guerrilha do Araguaia ..................................................................... 78<br />

Capítulo VII<br />

Encontro, paixão em Salvador ........................................................................................... 82<br />

O centralismo democrático em xeque .............................................................................. 86<br />

Dinaelza e Vandick saem de Salvador ............................................................................... 89<br />

Capítulo VIII<br />

Prisão na base secundarista .............................................................................................. 95<br />

Estopim da prisão ................................................................................................................. 96<br />

“Você é o grande líder” ...................................................................................................... 98<br />

Meses antes, Uirassu decide sair de Salvador .................................................................. 102<br />

4


Epílogo<br />

Luzia Ribeiro chega ao Araguaia .................................................................................... 107<br />

Ser a terra, a lua, a mata ................................................................................................... 112<br />

A guerrilha descoberta .................................................................................................... 116<br />

A ordem é matar os guerrilheiros .................................................................................... 122<br />

Cronologia ...................................................................................................... 128<br />

Referência Bibliográfica ............................................................................... 133<br />

Periódicos Consultados ................................................................................. 135<br />

Entrevistas-Depoimentos .............................................................................. 136<br />

Entrevistas Complementares .............. ....................................................... 137<br />

Depoimentos Consultados ............................................................................. 138<br />

Fotos ................................................................................................................ 139<br />

5


APRESENTAÇÃO<br />

A Título de Memória Descritiva e Analítica sobre a natureza<br />

do Projeto Experimental à Banca Examinadora<br />

Passei anos da minha vida sem saber se tinha ainda um pai ou não. Lembro-me até<br />

que, um dia, já morando em Santos, pensei ter ouvido minha irmã gritar “papai”.<br />

Saí correndo feito um louco, rodei pela casa toda, fui pra rua,<br />

procurei por todos os cantos, mas não o achei.<br />

Ainda com uma tremedeira no corpo fui perguntar pra minha irmã.<br />

Era engano meu. Ninguém tinha gritado. Sonhei centenas de vezes<br />

com meu pai chegando um dia. Mas foram sonhos 1 .<br />

O relato acima pertence às memórias de um garoto que, ainda adolescente, descobriu-se<br />

órfão de um desaparecido político. Aos 11 anos, Marcelo Rubens Paiva teve que aprender a<br />

conviver com a incerteza de não saber onde estava o seu pai. Vivo ou morto, onde estaria? No<br />

dia 20 de janeiro de 1971, Rubens Beirodt Paiva, deputado federal cassado pelo Ato<br />

Institucional nº 1 em 1964, teve a sua residência, um apartamento de classe média em<br />

Ipanema, invadida e vasculhada por um grupo de seis homens, e ele levado, em seu próprio<br />

carro, para o Quartel da 3ª Zona Aérea no Rio de Janeiro. Depois seria conduzido para o<br />

Destacamento de Operações de Informações-Comando Operacional de Defesa Interna (DOI-<br />

Codi/RJ). Trinta anos depois, a família já sabe que sua morte ocorreu nas dependências do<br />

1 PAIVA, Marcelo Rubens. In: Feliz Ano Velho. 44 a . São Paulo: Brasiliense.1985, p.64<br />

6


Pelotão de Investigações Criminais do Rio de Janeiro, porém seu corpo nunca foi encontrado.<br />

É um dos 136 desaparecidos políticos, que nunca mais foram vistos com vida nem mortos. A<br />

eles, não foi dado o direito a um enterro e a cerimônia simbólica com seus familiares e entes<br />

queridos como recomenda a tradição cristã, num ritual de despedida não só do corpo físico<br />

mas de aceitação e confirmação da morte.<br />

Ao ler o romance autobiográfico Feliz Ano Velho, do escritor Marcelo Rubens Paiva,<br />

surgiu a idéia de conhecer a história de vida dos desaparecidos políticos durante a ditadura<br />

militar. O livro não fala da repressão política durante o regime militar, é apenas uma<br />

passagem efêmera, uma citação de um filho que teve a sua vida modificada com o<br />

desaparecimento do pai. Mas foi suficiente para despertar na minha mente de adolescente de<br />

11 anos a curiosidade sobre a história do país. Desde aquela época, sempre me suscitou<br />

inquietações a falta de informação sobre as pessoas que pertenceram às organizações de<br />

esquerda, possuíam ideais políticos contrários à ordem hegemônica do regime militar, e que<br />

por isso foram mortas, assassinadas e/ou desaparecidas. Quem são essas pessoas:<br />

revolucionárias, visionárias, idealistas, guerrilheiros, terrorristas? Ou simplesmente, o pai do<br />

Marcelo, do Pedro, do José? Ou seja, um cidadão comum que tinha uma opinião política.<br />

Qual o porque da morte, da tortura e do desaparecimento de militantes políticos que ousaram,<br />

na visão deles, combater a ditadura militar?<br />

Simbolicamente, o desaparecido é alguém que pode estar morto ou então a vagar sem<br />

destino certo. A família não tem certeza de sua morte física e o relato da sua história de vida<br />

não possui um desfecho final: como ocorreu a sua morte, onde está seu corpo? O termo<br />

desaparecido político é definido pelo projeto Brasil Nunca Mais, trabalho idealizado pela<br />

Arquidiocese de São Paulo, como o estágio maior de repressão política em um dado país.<br />

“Isso porque impede, desde logo, a aplicação dos dispositivos legais estabelecidos em defesa<br />

da liberdade pessoal, da integridade física, da dignidade e da própria vida humana 2 ”. O<br />

desaparecido, apesar de preso e assassinado, não tem a sua morte assumida pelo Estado. Os<br />

familiares não podem requerer atestado de óbito porque o corpo do pai, do filho, do irmão,<br />

nunca foi encontrado e nenhuma autoridade governamental se responsabiliza pelo seu<br />

desaparecimento.<br />

Em 4 de dezembro de 1995, através da lei 9.140, o Estado brasileiro finalmente assumiu<br />

a morte de 136 desaparecidos políticos durante o regime militar, instaurado em 31 de abril de<br />

2 ARNS, D. Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. São Paulo: Vozes, 1985.P.260<br />

7


1964 e que perdurou até 1985. Entre os desaparecidos, 58 são guerrilheiros do Araguaia,<br />

movimento de luta armada ocorrido entre 1972 e 1974, organizado pelo Partido Comunista do<br />

Brasil (PC do B), numa faixa de terra às margens do rio Araguaia ao sul do Pará, hoje<br />

pertencente à região norte do estado de Tocantins.<br />

O PC do B surgiu como uma dissidência do Partido Comunista Brasileiro, com os<br />

dirigentes comunistas Maurício Grabois, Pedro Pomar e João Amazonas oficializando o<br />

primeiro processo de cisão no, até então, único partido comunista, na Conferência Nacional<br />

Extraordinária, em 1962. O PC do B afirma que a Conferência resultou na “reorganização” do<br />

Partido Comunista criado na década de 20 e se proclama única organização marxista-<br />

leninista. A questão é que, no início da década de 60, passam a coexistir dois partidos<br />

comunistas. O Partido Comunista Brasileiro (PCB), sob a liderança do comunista histórico<br />

Luís Carlos Prestes, continuava hegemônico e em franca ascenção. O PC do B possuía<br />

pequeno número de militantes. Progressivamente, militantes serão atraídos pela proposta de<br />

luta armada defendida pelo PC do B em contraposição ao caminho pacífico defendido pelo<br />

PCB 3 . O Golpe de Estado de 1964 acentua as diferenças entre as duas organizações<br />

comunistas quanto ao caráter da concepção da revolução brasileira e a resistência à ditadura<br />

militar. O PC do B defende a via do caminho armado para derrubar o regime militar, o PCB<br />

concebe uma tática de recuo político e incentiva a participação dos seus militantes no<br />

Movimento Democrático Brasileiro (MDB). A partir de 1967, o PC do B vai enviar<br />

militantes à região do Araguaia para estudo da área e progressiva implantação das bases<br />

guerrilheiras. Em abril de 1972, o Exército chega à região. São realizadas três campanhas de<br />

repressão aos militantes guerrilheiros no Araguaia. A última, desenvolvida entre outubro e<br />

dezembro 1973, vai significar a morte e o aniquilamento da Guerrilha do Araguaia. Sobre as<br />

circunstâncias da 58 mortes no Araguaia, o Exército não revela informações precisas.<br />

É interessante observar que os militantes desaparecidos na Guerrilha do Araguaia,<br />

assim como tantos outras vítimas da ditadura, não têm memória individual nem coletiva<br />

escrita sobre eles. Embora tenham sido publicados livros relevantes como a Guerra de<br />

Guerrilha, do jornalista Fernando Portela; a revista Guerrilha do Araguaia, organizado por<br />

João Amazonas, no qual consta um pequeno perfil biográfico; Araguaia: O partido e a<br />

guerrilha, de Vladimir Pomar, que traz considerações importantes para compreender a<br />

3 Ver GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: a esquerda brasileira, das ilusões perdidas à luta armada. São<br />

Paulo: Ática, 1987, p. 34.<br />

8


concepção política da guerrilha; Guerrilha do Araguaia: a esquerda em armas, do historiador<br />

goiano Romualdo Campos Filho, com informações sobre a repressão aos moradores da região<br />

do conflito; bem como matérias de jornais e revistas. Mais recentemente, em abril de 1998, o<br />

jornal O Globo publicou uma série de reportagem baseada em documentos de posse do<br />

general Antônio Bandeira, responsável pela 1ª e 2 as campanhas do Exército de combate à<br />

Guerrilha do Araguaia. É o primeiro documento extra-oficial público sobre a repressão aos<br />

guerrilheiros com dados sobre lugar e data da morte de alguns militantes. Contradiz,<br />

inclusive, documentos oficiais dos Ministérios da Marinha, Aeronaútica, Exército,<br />

encaminhados à Comissão Externa de Busca de Desaparecidos Políticos da Câmara Federal,<br />

em 1993, sob o carimbo de confidencial, que dizem desconhecer as circunstâncias da morte<br />

bem como da existência do movimento guerrilheiro.<br />

Todo esse repertório de informação contribui para compreender de maneira geral o que<br />

foi publicado sobre a guerrilha do Araguaia, porém existe uma verdadeira lacuna a ser<br />

preenchida com dados sobre a vida pessoal dos militantes; a atuação política na cidade antes<br />

de serem deslocados para a área de guerrilha; a própria vida no Araguaia; a possível<br />

circunstância da morte. São informações, caso coletadas, que contribuiriam para uma melhor<br />

compreensão do regime militar no país, da opção pela luta armada e do imaginário político da<br />

época.<br />

Este trabalho visa a narrar a história de vida dos militantes baianos, que participaram da<br />

Guerrilha do Araguaia. O objetivo é lhes dar uma memória pública, no sentido, de trazer um<br />

depoimento, um testemunho sobre a sua existência. Para isso, procura realizar um perfil<br />

biográfico da vida pessoal e a militância política na cidade de Salvador no período de 1968 a<br />

1971. Pretende responder a algumas perguntas: quem são os militantes? Como começaram a<br />

militância? Por que decidiram ir ao Araguaia? Em que circunstâncias deixaram a cidade de<br />

Salvador?<br />

São desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia, os militantes baianos Antônio<br />

Carlos Monteiro Teixeira, Dinalva Oliveira Teixeira, Dinaelza Santana Coqueiro, Demerval<br />

Pereira, José Lima Piauhy Dourado, Nelson Lima Piauhy Dourado, Rosalindo Souza,<br />

Vandick Reidner Coqueiro, Uirassu Batista. Exceto Nelson Lima, ex-empregado da Refinaria<br />

Landulfo Alves, em Mataripe, todos os ativistas possuíam em comum o fato de serem<br />

estudantes e terem participado do movimento estudantil. O que unia a todos era a crença de<br />

9


que o caminho para a derrubada da ditadura militar se daria pela via da luta armada e a opção<br />

pelo trabalho revolucionário na região de campo.<br />

A guerrilha do Araguaia também contaria com a participação de outros baianos.<br />

Maurício Grabois, deputado federal na Constituição de 1946, pertencia à Comissão Militar.<br />

Seria um dos responsáveis pela orientação militar e política. O líder dirigente Maurício<br />

Grabois nasceu em 1912, tem seu registro de naturalidade como baiano, porém é natural de<br />

São Paulo. Os pais judeus Agostim Grabois e Dora Grabois, que fugiram da Ucrânia em 1905,<br />

fizeram novo registro de identidade em Salvador quando chegaram a cidade em 1920.<br />

Maurício passaria toda a adolescência em Salvador e estudou no Colégio Central. Apesar da<br />

riqueza de sua vida – ele foi um dirigente importante no PCB -, este trabalho não traz o seu<br />

perfil. A intenção foi falar dos militantes baianos que começaram a militar no final da década<br />

de 1960, no contexto específico da resistência à ditadura militar na cidade de Salvador.<br />

Uma outra estudante baiana também sairia de Salvador. Luzia Ribeiro chegou ao<br />

Araguia em janeiro de 1972, e foi presa na primeira campanha do Exército em maio de 1972.<br />

Eduardo Monteiro Teixeira, irmão de Antônio Carlos, também seria um dos guerrilheiros. Foi<br />

preso no momento em que chegava à região, vindo de São Paulo, pelas tropas do Exército que<br />

ocupavam a área, em 12 de abril de 1972.<br />

Algumas perguntas nortearam o horizonte do livro-reortagem. A começar: existe um<br />

discurso genérico exemplificado no livro, Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a<br />

partir de 1964, que faz referência aos militantes como líderes estudantis que sofriam<br />

perseguição política na cidade e foram para o Araguaia. Ao traçar o perfil biográfico dos<br />

militantes, essa pergunta fez parte do roteiro de entrevista. A intenção era descobrir se isso<br />

efetivamente ocorreu, e como aconteceu. Ou se fazia, como é mais abrangente e mais<br />

condizente a realidade histórica da época, parte de uma proposta partidária de combate à<br />

ditadura militrar pela via da luta armada. Não se trata de contestar e/ou aceitar,<br />

antecipadamente, premissas prévias, mas de investigar jornalisticamente e trazer dados novos<br />

à discussão. O trabalho procurou compreender de que forma a proposta do trabalho<br />

revolucionário se apresentava para o militante.<br />

A pesquisa se restringiu à militância na cidade de Salvador, pela impossibilidade de um<br />

trabalho in loco na própria região do Araguaia, que demandaria maior tempo de pesquisa e<br />

condições financeiras compatíveis para tal projeto. E exigiria também um outro formato e<br />

proposta de trabalho mais aprofundada, até mesmo sobre a natureza do movimento armado, as<br />

10


suas inter-relações com as massas, o desenvolvimento da guerrilha e a vida dos militantes na<br />

região. É claro que essas informações são imprescindíveis para uma biografia completa sobre<br />

os militantes. Faço, porém, uma breve referência ao trabalho político na região do Araguaia,<br />

através do depoimento de Luzia Ribeiro. Ela viveu na região do conflito de janeiro a maio de<br />

1972, qundo foi presa no período da primeira campanha de repressão. É a única militante<br />

baiana sobrevivente da guerrilha. Trata-se de um depoimento inédito. É a primeira declaração<br />

pública a um jornalista sobre a sua experiência, a sua adaptação à região e a chegada do<br />

Exército, em 12 de abril de 1972.<br />

Considerações sobre o produto: horizonte metodológico<br />

Captar o outro onde ele se encontra,<br />

não macular sua dimensão histórica pessoal.<br />

(Elen Geraldes, jornalista,<br />

ex-bolsista do Projeto São Paulo de Perfil).<br />

Como retratar a vida pessoal do militante? Que procedimentos metodológicos seriam<br />

necessários para poder captar a sua essência; os motivos que o levaram a atuar como ativista<br />

político?<br />

A metodologia para a realização do livro-reportagem sobre os militantes baianos levou-<br />

me ao encontro do Projeto São Paulo de Perfil. O projeto foi idealizado por Cremilda Medina,<br />

professora da Escola de Comunicação e Arte, da <strong>Universidade</strong> Federal de São Paulo, em<br />

1987, e consiste numa série de livro-reportagens sobre a diversidade cultural da cidade de São<br />

Paulo, escritos e editados por estudantes de jornalismo. São retratadas as faces múltiplas de<br />

uma cidade que enfrenta problema habitacional 4 ; a imigração judaica no início do século XX 5 ,<br />

entre outros temas.<br />

4 MEDINA, Cremilda. Casa imaginária In: São Paulo de Perfil 6. Escola de Comunicação e Arte/USP. 1990<br />

5 _________________. Paulicéia Prometida. In: São Paulo de Perfil 7. Escola de Comunicação e Arte/USP.<br />

1990. P.29<br />

11


Antes que passemos para detalhar mais sobre a metodologia do projeto, é preciso fazer<br />

uma referência ao conceito de livro-reportagem, formato escolhido para a realização do<br />

trabalho. O jornalista e pesquisador Edvaldo Pereira Lima tem definido o termo como o<br />

espaço ideal da reportagem por sua abordagem extensiva em detalhes e no aprofundamento<br />

das questões em discussão, em busca de suas raízes, suas implicações, seus desdobramentos<br />

possíveis 6 . É o espaço, por excelência, da reportagem preocupada com o relato humanizado,<br />

sem perder a dimensão da objetividade do fato relatado, no sentido da veracidade da<br />

informação, e principalmente pelo tratamento narrativo dos acontecimentos quase sempre<br />

marcado pelo relato impressionista. A opção pelo livro-reportagem perfil, uma das<br />

classificações do formato livro-reportagem proposta pelo Edvaldo Pereira Lima, deve-se a<br />

intenção de escrever uma narrativa jornalística concentrada no relato da história de vida<br />

pessoal, aspectos da infância e da vida adulta.<br />

Agora, passemos ao projeto São Paulo de Perfil, a principal influência para este<br />

trabalho. A preocupação essencial é com o sujeito, o ator histórico, com a sua subjetividade,<br />

seu imaginário. É uma proposta de relato humanizado, consciente da complexidade de fatores<br />

que atuam sobre determinado fato jornalístico. A experiência resultou no conceito da<br />

linguagem dialógica, ou o signo da relação, na qual persiste um diálogo entre entrevistador e<br />

entrevistado. Um dos níveis da entrevista jornalística consiste em buscar uma interação social,<br />

na qual “tanto entrevistado quanto entrevistador são duas pessoas, simplesmente duas pessoas<br />

que se auto-elucidam a respeito de coisas da vida, conceitos específicos, juízos de valor, ao<br />

mesmo tempo que se modificam entre si ” 7 .<br />

Estabelecida essa relação dialógica, a reportagem compromete-se a abranger uma maior<br />

decifração do real, tomado como categoria bem mais geral do que a notícia e seu estrito<br />

sentido técnico, ou seja, no sentido de tornar público um fato. Mas, é preciso obedecer a<br />

critérios específicos, caso se deseje trabalhar com este tipo de reportagem. Cremilda Medina<br />

recomenda três procedimentos para a especulação de determinado tema, configurado nos<br />

conteúdos de uma matéria jornalística que possa ser considerada “grande reportagem”, ou um<br />

livro-reportagem. O primeiro passo é enfrentar o real. Segundo Medina, a tarefa exige uma<br />

concepção de verdade que não pode desaguar na clássica objetividade, imparcialidade e mito<br />

do jornalista eficiente. “Trata-se da arte de tecer o presente e não a garantia científica de<br />

6 LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas - o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura. 2ª<br />

ed. Campinas: Editora da <strong>Universidade</strong> Estadual de Campinas, 1995.<br />

7 MEDINA, Cremilda. Entrevista: o diálogo possível. 44 a ed. São Paulo: Ática, 1986, p.31.<br />

12


atingir a verdade absoluta”. O repórter deve-se lançar ao ato de decifração do real possível<br />

perante a complexa rede de forças que atua sobre o fato jornalístico.<br />

Neste trabalho, por exemplo, a história pessoal dos militantes é construída sobre a visão<br />

de quem os conhecera: a família que tem uma lembrança presente do irmão, do filho, na<br />

convivência familiar diária; e a do companheiro de militância que o conheceu em uma<br />

situação de semi-clandestinidade e acompanhou a sua atividade política, mesmo que de forma<br />

fragmentada. O relato final é uma versão acerca do personagem-militante, nem sempre a mais<br />

exata, conclusiva, mas a mais próxima possível do real e da veracidade das informações<br />

obtidas. Trata-se de compor um perfil biográfico, tecer histórias de vida.<br />

O segundo passo é obedecer a cuidados técnicos na apuração dos fatos, ou seja, conferir<br />

rigorosamente as informações obtidas. O presente trabalho procurou comprovar cada fato<br />

relatado, porém privilegiou o relato oral dos entrevistados. Embora esses relatos sofram com<br />

o decorrer dos anos, fragmentando-se com o tempo, pois nem tudo ficou gravado na memória.<br />

As lembranças que ficaram fazem parte de momentos instantâneos, pequenos flashes de<br />

conversas que sobreviveram ao tempo. Por isso, o trabalho exigia que cada informação fosse<br />

complementada por uma outra fonte que podia ter uma maior lembrança sobre cada episódio,<br />

uma tentativa de trazer para o presente pedaços do passado.<br />

O terceiro procedimento seria a comprovação das informações com fontes<br />

especializadas. A consulta a fontes especializadas ficou restrita a leituras de documentos<br />

políticos e livros sobre o tema da luta armada no país, como Combate nas Trevas, das ilusões<br />

perdidas à luta armada, de Jacob Gorender; Araguaia: O partido e a guerrilha, de Vladimir<br />

Pomar, entre outros citados na referência bibliográfica. Talvez, o trabalho tivesse uma<br />

dimensão maior, mais enriquecedora, se pudesse ter tido a contribuição de uma visão<br />

historiográfica sobre o tema. Até mesmo, entrevistas com historiadores. Porém, foi feita uma<br />

escolha por trabalhar com os depoimentos de militantes, amigos e familiares. A maioria das<br />

entrevistas com militantes foi realizada com antigos companheiros do PC do B.<br />

A recuperação da memória<br />

13


Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva. Nossos<br />

deslocamentos alteram esse ponto de vista: pertencer a novos grupos nos faz<br />

evocar lembranças significativas para este presente e sob a luz explicativa que<br />

convém à ação atual. O que nos parece unidade é múltiplo. Para localizar<br />

uma lembrança não basta um fio de Ariadne; é preciso desenrolar fios<br />

de meadas diversas, pois ela é um ponto de encontro de vários caminhos,<br />

é um ponto complexo de convergência dos muitos planos do nosso passado 8 .<br />

Esse projeto acadêmico começou a ser pensado em novembro de 1999, as entrevistas<br />

foram realizadas no primeiro semestre de 2000, e a intenção era apresentá-lo no início de<br />

setembro passado. A sua realização efetiva e a sua apresentação ficou para este segundo<br />

semestre, visando entrevistar algumas fontes que não puderam ser ouvidas no primeiro<br />

semestre e complementar algumas entrevistas. Também se pretendia produzir um texto com<br />

mais rigor técnico.<br />

O projeto experimental começou com a realização de uma pauta prévia com uma<br />

pequena lista de pessoas que possuíam militância comum e também familiares. No decorrer<br />

do trabalho, comprovou-se certa resistência a falar sobre o assunto, não somente de militantes<br />

como também familiares. Por exemplo: a família de Demerval Pereira recusa,<br />

terminantemente, a falar sobre a sua vida pessoal e política. Foram feitos três contatos, em<br />

tempo e espaço diferentes. Todos recusados. Noélia Oliveira, irmã de Dinalva Oliveira<br />

Teixeira, também não se predispõe a falar sobre o assunto. Os outros familiares residem no<br />

Rio de Janeiro, e ficaram de responder a um questionário enviado. Ainda não foram enviadas<br />

as respostas, apenas informações rápidas via contato telefônico. A família de Nelson e José<br />

Lima Piauhy Dourado fala sobre o assunto, porém o nível de informação restringe-se à vida<br />

familiar e não há conhecimento específico sobre a militância. Alguns militantes procurados<br />

para falar sobre a convivência e o trabalho político não se predispuseram a falar, seja por<br />

questões emocionais ou por julgarem que não têm muito a contribuir.<br />

Uma outra constatação do trabalho é a de que a lembrança é muito fluida para alguns<br />

militantes. Pessoas ouvidas para comentar como conheceram os militantes desaparecidos e<br />

8 BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. Editora T.A Queiroz, São Paulo,1983, p.335.<br />

14


passagens da militância política revelaram uma lembrança muito fugidia e inconsistente. É<br />

como se a convivência tivesse sido tão passageira que não ficou registrada na memória, não<br />

deixou vestígios, marcas do passado. Mas, talvez seja exigir demais da memória individual,<br />

pois as condições de clandestinidade vividas na época também impedem a reconstrução do<br />

passado, o resgate da memória. Os militantes que pertenciam ao partido na época, entre os<br />

anos de 1968-71, muitos deles estão desvinculados da vida político-partidária, e para<br />

encontrá-los somente através de depoimentos de militantes predispostos a identificá-los, a<br />

prestar informações. Então, corre-se para lista telefônica, numa tentativa desesperada de<br />

encontrá-los e poder ouvir, finalmente, detalhes mais precisos.<br />

Essa exposição de motivos serve, apenas, para explicar de que forma foi possível<br />

construir o perfil dos militantes mortos no Araguaia. Ele foi realizado através de um mosaico<br />

de 34 entrevista-depoimentos, sendo que houve a contribuição de outras fontes secundárias,<br />

necessárias para confirmar algumas passagens referenciadas em depoimentos. Todas elas<br />

serão citadas no final desta memória, a título de agradecimento pela imprescindível<br />

contribuição e referência para estudos posteriores. No total, foram ouvidas cerca de 45<br />

pessoas.<br />

As entrevista-depoimentos são, sobremaneira, importantes para compor o perfil dos<br />

militantes desaparecidos. Através da lembrança do militante é que foi possível recuperar parte<br />

da história política, principalmente porque os familiares não acompanharam o dia-a-dia da<br />

militância e desconhecem a atividade partidária. Embora não sejam contemplados<br />

explicitamente, a vivência política desses entrevistados é relevante não só para tentar compor<br />

um perfil da resistência ao regime militar, mas também pela riqueza de suas histórias de vida.<br />

O processo de construção do texto obedeceu a realização do perfil dos militantes<br />

desaparecidos permeado a reconstituição de acontecimentos considerados importantes na<br />

época e que tiveram um impacto na militância. O trabalho foi dividido em capítulos e os<br />

perfis individuais estão distribuídos ao longo do texto. Tentou-se dar uma unidade a cada<br />

relato e unificar algumas experiências comuns. Não havia intenção explícita de falar sobre a<br />

guerrilha do Araguaia, porém será publicada uma entrevista com Luzia Ribeiro, sobrevivente<br />

do Araguaia, por ser um depoimento inédito.<br />

Este projeto experimental não pretende ser um relato e/ou um perfil completo sobre os<br />

militantes. Com certeza existem lacunas, que poderiam ser melhor exploradas. A falta de uma<br />

contextualização histórica, motivada, quiçá, pela falta de talento da autora em compreender a<br />

15


História, talvez tenha limitado o poder criativo do texto e uma melhor compreensão da<br />

militância política dos militantes.<br />

Ecléa Bosi, no seu livro Memória e Sociedade - lembranças de velhos, afirma que<br />

lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as<br />

experiências do passado. Que as histórias de vida aqui relatadas sejam capazes de trazer<br />

vestígios do passado. E que as pessoas que resistiram à ditadura militar não sejam relegadas<br />

ao esquecimento.<br />

A educação e a boa tradição nos obrigam a agradecer cada depoimento, cada conversa<br />

ao telefone, cada palavra de incentivo na execução do projeto. De pronto, esclareço que<br />

nenhuma das pessoas ouvidas tem qualquer responsabilidade pela apropriação dos<br />

depoimentos e o resultado do texto. A esses guardiões da memória, os devidos<br />

agradecimentos:<br />

Antônio Ubirajara Dantas Batista, Ana Guedes, Amálio Couto de Araújo, Carlos<br />

Augusto Pinheiro, Carlos Eduardo Carvalho, Celso Cotrim, Criméia Almeida, Denilson<br />

Vasconcelos, Diva Santana, Dinorah Santana, Dilma Santana, Eduardo Monteiro Teixeira,<br />

Epaminondas Dourado, Elia Maria Correia Souza, Fábio Nóvoa, Fernando Aranha, Gabriel<br />

Kraychete Sobrinho, Hildebrando Dias, Itajacir Figueredo, João Ribeiro Souza Dantas, Joao<br />

Almeida, Joaquina Lacerda, José Caldas de Almeida, José Sérgio Gabrielli, Jorge Almeida,<br />

Juraçi Novato, Juca Ferreira, Jusselina Correia Souza, Luzia Reis Ribeiro, Luiz Nova, Maria<br />

Luiza Monteiro Teixeira, Manoel Neto, Maurício Barreto, Osvaldo Barreto, Osvaldo Gouveia<br />

Ribeiro, Paulo Henrique Costa, Paulo Caires de Brito, Paulo Pontes, Paulo Cunha, Pedro<br />

Milton de Brito, Rui Hermann Medeiros, Raimundo Batista da Luz, Sérgio Santana, Tânia<br />

Coqueiro, Teodora Rocha, Vítor Hugo Soares, Ubirajara Coqueiro.<br />

16


Resumo<br />

Memórias da Resistência – perfil biográfico dos desaparecidos políticos baianos na<br />

Guerrilha do Araguaia é um livro-reportagem sobre a vida pessoal e a ação política de<br />

militantes do Partido Comunista do Brasil, na cidade de Salvador no período entre 1968 e<br />

1971. O trabalho procura compreender a ação política que os levou a participar da Guerrilha<br />

do Araguaia, movimento de luta armada ocorrido entre 1972 e 1974. O livro-reportagem<br />

procura responder às seguintes perguntas: quem são essas pessoas?, como começaram a<br />

militância? Por que decidiram participar da Guerrilha do Araguaia? Em que circunstâncias<br />

deixaram Salvador?<br />

Palavras-chave: militância política, ditadura militar, livro-reportagem.<br />

17


de vida.<br />

Reconhecimento<br />

A todos os militantes políticos, pelo exemplo de resistência.<br />

Às minhas fontes que, pacientemente, doaram-me seu tempo, lembranças e trajetórias<br />

A Diva Santana, presidente do grupo Tortura Nunca Mais, no Estado da Bahia, por ser<br />

uma fiel guardiã da memória dos desaparecidos políticos e pela luta constante contra a<br />

injustiça social e toda forma de tortura.<br />

Aos jornalistas e professores Júlio Lobo e Rosângela Vieira, pela crença no jornalismo e<br />

pelas horas compartilhadas no breve período em que convivemos na Faculdade de<br />

Comunicação.<br />

Ao professor Antônio Albino Canelas Rubim, pela dedicação ao conhecimento e pela<br />

generosidade no convívio acadêmico.<br />

Aos professores Linda Rubim e Maurício Tavares, pela amizade e carinho.<br />

Um reconhecimento especial a minha mãe Josefa Santana, às minhas irmãs Isabel e Ana<br />

Cláudia Santos, e a minha amiga Mônica Cabral por compartilharem de cada momento do<br />

projeto. A vocês, meu imenso carinho.<br />

18


Memórias da Resistência<br />

Perfil biográfico dos desaparecidos políticos baianos na<br />

Guerrilha do Araguaia<br />

19


“Uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de convivência familiares,<br />

escolares, profissionais. Ela entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica,<br />

diferencia, corrige e passa a limpo. Vivendo no interior de um grupo, sofre as vicissitudes da<br />

evolução de seus membros e depende de sua interação. Quando sentimos necessidade de<br />

guardar os traços de um amigo desaparecido, recolhemos seus vestígios a partir do que<br />

guardamos dele e dos depoimentos dos que o conheceram. O grupo de colegas mal pode<br />

constituir um apoio para a sua lembrança, pois se dispersou e cada um se integrou num meio<br />

diverso daquele que o conheceu. Como salvar sua lembrança senão escrevendo sobre ele,<br />

fixando assim seus traços cada vez mais fugidios?<br />

Fui colega de Iara Iavelberg, cuja vida e morte precoce e trágica impressionaram nossa<br />

geração. Ela estudou e formou-se conosco, dividimos o pão no recreio, discutimos idéias nas<br />

aulas. Muitos se lembrarão de sua figura magra, de um louro queimado, sua voz combativa. É<br />

um trabalho árduo esse, de recomposição, porque muitos traços de sua fisionomia requerem,<br />

para se completar, que se revivam a nossa época de estudo, nossos ideais, nossos mestres,<br />

nossas leituras. Cada um de nós guardou dela uma conversa, um gesto, uma pequena<br />

lembrança preciosa. Procurei seu vestígio em caminhos que iam dar no sertão, em escarpas<br />

que ela subiu a pé; e que alegria senti numa venda à beira de estrada ao ouvir suas palavras<br />

repetidas por uma mulher que nunca a esqueceu!”<br />

Ecléa Bosi, in Memória e Sociedade: lembranças de velhos.<br />

20<br />

T.A Queiroz , São Paulo,1983, p 333.


Capítulo I<br />

Os primeiros passos da militância<br />

A Faculdade de Direito, situada na rua da Paz, bairro de classe média da Graça, era uma das<br />

escolas de maior prestígio da <strong>Universidade</strong> Federal da Bahia. O controle do Centro Acadêmico<br />

Rui Barbosa (CARB) era o troféu almejado pelos estudantes vinculados às organizações político-<br />

partidárias. Centro de idéias políticas e culturais, o CARB tinha poder de influência no<br />

movimento estudantil. Nos primeiros meses do ano de 68, o reduto da elite baiana e dos<br />

militantes do Partido Comunista Brasileiro assistiriam à posse do militante do PC do B,<br />

Rosalindo Souza, negro, nascido no sertão de Caldeirão Grande, na presidência do CARB.<br />

A presidência se revelou uma grande conquista. Com pouca expressividade no movimento<br />

estudantil baiano, o número de militantes era pequeno em comparação à militância hegemônica<br />

do PCB e da Ação Popular, o CARB sob o controle dos militantes do PC do B poderia<br />

influenciar a eleição de outros centros acadêmicos. Havia também um outro significado mais sutil<br />

e, até mesmo, mais valoroso. Fora dentro da Faculdade de Direito que se criara a primeira base<br />

estudantil do PC do B, na Bahia, a partir do ano de 65. Era formada pelos estudantes Amálio<br />

Couto de Araújo, Abel Gottardo da Silva, Demerval da Silva Pereira, Genebaldo Queiroz, João<br />

Ribeiro Souza Dantas, Rosalindo Souza, Rui Hermann Medeiros de Araújo, Sara Silva, Vítor<br />

Hugo Soares.<br />

Um ano depois do golpe de Estado de 31 de março de 1964, que depôs o presidente João<br />

Goulart e instituiu a ditadura militar no país, o PC do B praticamente não existia na Bahia. No<br />

final do ano de 65, o Comitê Central (CC) enviou o militante Rafael, cuja identidade ainda hoje é<br />

desconhecida, para organizar o partido na Bahia. Alto, branco, louro e com uma aparência<br />

21


efinada, Rafael seria responsável por articular a organização partidária até o ano de 70.<br />

Militantes baianos havia o líder operário Washington Souza, ex-presidente do Sindicado dos<br />

Oficiais Eletricistas e Mobiliário da Bahia, vinculado à construção civil; Nelson Lima Piauhy<br />

Dourado, empregado da Refinaria Landulfo Alves, em Mataripe, demitido da empresa assim que<br />

ocorreu o golpe de 64. Raimundo Batista da Luz, estudante secundarista e trabalhador na<br />

Secretaria de Educação, e o estudante secundarista Paulo Caires de Brito. Foi esse o partido<br />

apresentado ao advogado Amálio Couto Araújo, na época estudante do primeiro ano do curso de<br />

direito, em 65. Amálio será responsável por articular o trabalho na área estudantil e a compor<br />

efetivamente a primeira base baiana do PC do B.<br />

Se havia poucos militantes baianos, a situação não era muito diferente no restante do país.<br />

A Conferência Nacional Extraordinária do Partido Comunista do Brasil, ocorrida em fevereiro de<br />

1962, oficializou o primeiro processo de cisão no, até então, único partido comunista brasileiro.<br />

A dissidência começara com os líderes João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar. O<br />

estopim seria a publicação no semanário Novos Rumos do Programa e os Estatutos do Partido<br />

Comunista Brasileiro (PCB), em 11 de agosto de 1961. Acompanhava a publicação uma<br />

entrevista de Luís Carlos Prestes, que anunciava a decisão de encaminhar a documentação do<br />

partido para requisitar a sua legalização ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Com a substituição<br />

da nomenclatura de Partido Comunista do Brasil (PC do Brasil) pelo PCB, os líderes comunistas<br />

Grabois, Amazonas e Pomar articulam um protesto subscrito por militantes, no qual afirmavam<br />

que o Comitê Central incorrera em infração de princípios, pois o programa e o Estatuto<br />

publicados se afastavam do marxismo. O protesto afirmava que a publicação dos documentos<br />

oficializava um novo partido revisionista, termo pejorativo entre os marxistas, e renegava o<br />

partido comunista criado oficialmente em 1922.<br />

As lideranças reunidas na Conferência Nacional Extraordinária se proclamaram militantes<br />

do mesmo partido comunista fundado na década de 20 e “reorganizado” em 1962. Sobre a<br />

estratégia adotada para consolidar a cisão e a coexistência de dois partidos comunistas, o<br />

historiador Jacob Gorender, no livro Combate nas Trevas: a esquerda brasileira, das ilusões<br />

perdidas à luta armada, denuncia a manobra: “o PC do B eleva esta duvidosa versão<br />

historiográfica a questão de princípio, pois se trata de afastar toda dúvida acerca de qual é o<br />

22


partido do proletariado brasileiro. De acordo, com o dogma stalinista, o proletariado não pode ter<br />

mais de um autêntico partido revolucionário” 9 . A dissidência também teve “pequena dimensão e<br />

não afetou o PCB, então em vigoroso ascenso político e orgânico”, relata Gorender.<br />

A cisão só possui um significado mais amplo e real se se compreender o que estava em<br />

jogo: o entendimento sobre a realidade brasileira e a perspectiva de ascensão ao poder. O XX<br />

Congresso do Partido Comunista da União Soviética, realizado em Moscou, em fevereiro de<br />

1956, colocou novas questões no horizonte da experiência comunista. O secretário geral Nikita<br />

Kruschev apresentou um relatório secreto no qual denunciou os crimes cometidos por Josef<br />

Stalin, falecido em 1953, no périodo em que conduzia os destinos do primeiro país socialista. O<br />

informe causou um grande impacto nos partidos comunistas em todo mundo. É válido relembrar<br />

o que diz trecho do relatório: “Stalin usou de métodos extremos de repressão numa época em que<br />

a revolução já estava vitoriosa, quando o Estado Soviético estava fortalecido, quando as classes<br />

exploradoras já estavam liquidadas e quando as relações socialistas estavam solidamente<br />

enraizadas em todas as fases da economia nacional, quando nosso partido estava politicamente<br />

consolidado e se tinha fortalecido, numérica e ideologicamente. É claro que aqui Stalin revelou,<br />

numa série de casos, sua intolerância, brutalidade e abuso do poder 10 ”. A publicação do informe<br />

causou um verdadeiro impacto nos partidos comunistas de todo o mundo. O culto à personalidade<br />

de Stalin não condizia com a imagem de um homem que usou a violência, inclusive, contra os<br />

próprios comunistas, para se perpetuar no poder.<br />

A conseqüência maior do XX Congresso foi apontar para uma nova interpretação do<br />

processo de ascensão ao poder: a convivência amistosa entre pólos antagônicos e a tese da<br />

transição pacífica para se alcançar o socialismo. Dentro do partido comunista brasileiro, a linha<br />

política do V Congresso, realizado em 1960, adota a concepção da revolução brasileira em duas<br />

etapas. Uma revolução nacional e democrática, de conteúdo antiimperialista e antifeudal. A outra,<br />

a revolução socialista. E a revolução se daria, preferencialmente, pelo do caminho pacífico. O<br />

Congresso também exclui do seu quadro dirigente, os militantes Grabois e Amazonas,<br />

identificados com a formação teórica stalinista.<br />

9 GORENDER, Jacob. Combate nas trevas: a esquerda brasileira, das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo:<br />

Ática, 1987, p. 34.<br />

10 apud FALCÃO, João. O partido comunista que eu conheci: 20 anos de clandestinidade. Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira. 1988, p. 449.<br />

23


O PC do B “reorganizado” refuta a tese da revolução pacífica, mas vai manter a mesma<br />

concepção do processo revolucionário dividido em duas etapas. Na Conferência Extraordinária<br />

de 1962 aprova um Manifesto-Programa que retomou a tese da conquista de um governo popular<br />

revolucionário. A instauração de um novo regime - antiimperialista; antilatifundiário e<br />

antimonopolista – só seria possível pelo caminho da violência revolucionária. Ideolgicamente, o<br />

PC do B, paulatinamente, vai alinhar-se com o Partido Comunista Chinês, embora o Manifesto-<br />

Programa ainda afirmasse que a União Soviética caminhava para o comunismo.<br />

Com o golpe de 64 vitorioso e a destituição do governo democrático de João Goulart, as<br />

forças políticas de esquerda se vêem diante de uma tomada de poder sem resistência alguma por<br />

parte dos comunistas e da sociedade brasileira. A proposta da luta armada surgirá,<br />

progressivamente, como o caminho possível para a resistência ao regime militar implantado no<br />

país, com exceção do PCB que continuará a defesa do caminho pacífico. Somente depois de<br />

1964, o PC do B vai incorporar a sua estrutura partidária militantes de bases comunistas<br />

descontentes com a linha política pacífica do PCB, beneficiado, inclusive, pela defesa da luta<br />

armada antes mesmo do golpe de Estado. O ponto chave para o fortalecimento do partido será a<br />

resolução política, União dos Brasileiros para livrar o País da Crise, da Ditadura e da Ameaça<br />

Neocolonialista, aprovada na Sexta Conferência Nacional realizada em junho de 1966. De modo<br />

geral, defende a retomada das lutas de massa, o combate à ditadura militar e a viabilidade da luta<br />

armada.<br />

A divulgação em 1969 do documento Guerra Popular - caminho da luta armada no<br />

Brasil, com a defesa da luta armada e a opção pelo campo como ponto estratégico para a guerra<br />

de guerrilhas, marcará a conduta dos militantes do PC do B no caminho da revolução no país. E é<br />

para o campo, especificamente para a região do rio Araguaia, à época sul do Pará, hoje estado do<br />

Tocantins, que se deslocarão estudantes e lideranças operárias para formar o núcleo de<br />

combatentes da guerrilha do Araguaia, movimento armado ocorrido entre 1972 e 1974,<br />

organizado pelo Partido Comunista do Brasil. Entre os guerrilheiros, estão nove baianos<br />

desaparecidos Antônio Carlos Monteiro Teixeira, Dinalva Oliveira Teixeira, Dinaelza Santana<br />

Coqueiro, Demerval Pereira, José Lima Piauhy Dourado, Nelson Lima Piauhy Dourado,<br />

24


Rosalindo Souza, Vandick Reidner Coqueiro e Uirassu Batista. A única baiana sobrevivente, é<br />

Luzia Ribeiro, presa em maio de 1972, quando começava a primeira campanha do Exército.<br />

Os primeiros militantes<br />

Março de 1967. José Caldas de Almeida, estudante de medicina, e o acadêmico de direito<br />

Amálio Couto de Araújo, comparecem a uma reunião clandestina com os dirigentes Pedro Pomar<br />

e Maurício Grabois, em São Paulo. A reunião pretendia traçar uma estratégia nacional para<br />

consolidar a base do partido dentro da universidade. Caldas lembra que os dirigentes falaram<br />

sobre a necessidade da luta de massa no movimento estudantil, bem como a tática adequada para<br />

ganhar os diretórios acadêmicos e a luta contra o acordo MEC-Usaid. Considerado a expressão<br />

máxima do imperialismo, o MEC-Usaid consistia em um acordo de cooperação técnica entre a<br />

agência de desenvolvimento norte-americana e o Ministério da Educação para fazer uma<br />

reformulação no ensino brasileiro. Na época, os estudantes consideravam que o acordo resultaria<br />

na privatização do ensino público e gratuito.<br />

Essa tinha sido a sua primeira reunião clandestina com dirigentes do Comitê Central.<br />

Caldas retornou a Salvador com uma forte impressão pessoal sobre os dirigentes comunistas.<br />

Pomar, considerou um homem por inteiro, íntegro, com grande conhecimento da realidade do<br />

país. Grabois, homem culto e com uma simplicidade admirável. Também retornava disposto a<br />

seguir as diretrizes traçadas na reunião: ampliar a base partidária e estimular a discussão no meio<br />

universitário.<br />

Caldas começou a se engajar politicamente em meados de 1966. Foi apresentado pelo poeta<br />

Fernando Batinga, que tinha acabado de sair do Partido Comunista Brasileiro, à base de Direito<br />

do PC do B. Os estudantes de direito, recrutados por Amálio Couto, começavam a militância. E o<br />

que os uniam era a crítica predominante à posição assumida pelo PCB, considerada reformista, e<br />

o combate à ditadura militar pela via da luta armada. Mas tudo era muito fluido. Ainda estavam<br />

na fase de estudos dos documentos políticos.<br />

25


Em 1967, um pequeno sinal de consistência. A base da Faculdade de Direito viabiliza uma<br />

chapa de massa sem que houvesse vinculação da questão partidária. O estudante Pedro Milton de<br />

Brito é candidato à presidência do Centro Acadêmico Rui Barbosa. Pedro Milton, faleceu<br />

recentemente no mês de dezembro de 2000, não era militante do PC do B, porém exerceu<br />

influência intelectual dentro da base de direito. Era considerado uma pessoa independente, ou<br />

seja, sem vínculos com o PCB e Ação Popular, mas um simpatizante de idéias de esquerda. Tinha<br />

sido líder secundarista no Ginásio da Bahia, o Colégio Central, e possuía experiência de luta de<br />

massa. Com a repressão pós-golpe, em 2 de abril de 1964, foi preso. Apesar de uma chapa ampla,<br />

agregando vários estudantes, Pedro Milton perde a eleição por poucos votos para Aloísio Franca<br />

Rocha, do PCB. “O grupo político considerado independente quase sempre se alinhava ao PCB.<br />

Depois, veio o PC do B, que cresceu bastante na faculdade de direito, e apoiou a minha chapa.<br />

Nós perdemos porque a turma do 1º semestre, que estava comprometida a votar, no último<br />

minuto, recusou o apoio, liderados por Marcelo Cordeiro, do PCB”, afirmou Pedro Milton, em<br />

entrevista no dia 30 de outubro de 2000. Ficava o alerta, porém, de que a hegemonia do PCB<br />

dentro da faculdade poderia ser ameaçada.<br />

Ainda em meados de 1967, aconteceriam manifestações de rua contra a aprovação da Lei<br />

Orgânica do Ensino, que transitava pela Assembléia Legislativa. A luta iniciada pelos estudantes<br />

secundaristas protestava contra o inciso 1 do artigo 9 da lei, que estabelecia que as escolas de<br />

ensino médio mantidas por fundações poderiam cobrar anuidade. Os estudantes entenderam que o<br />

artigo poderia acabar com o ensino público gratuito. Seria a expressão do MEC-Usaid no ensino<br />

secundário. Os protestos começam na tarde de segunda-feira do dia 21 de agosto, com cerca de 2<br />

mil estudantes, professores e populares nas ruas. Só terminariam cinco dias depois, após uma<br />

intensa movimentação social.<br />

A repercussão do movimento levou o governador Luís Viana Filho, três dias após o início<br />

dos protestos, a fazer um pronunciamento público televisivo, no qual declarava que não havia<br />

nenhuma intenção de implantar a cobrança de anuidades no ensino médio em todo o Estado.<br />

Confessava também seu “estranhamento” quanto ao caráter das manifestações estudantis. E<br />

concluía: “as manifestações ocorridas neste momento interessam a propósitos subversivos” 11 . O<br />

11 Jornal A Tarde, 24. 8. 1967.<br />

26


Governo do Estado não seria mais condescendente com as manifestações. E mais, a polícia<br />

militar trataria de conter os ânimos dos estudantes.<br />

Os estudantes ignoram o pronunciamento do governador e a ameaça de aumento da<br />

repressão dos policiais. Declararam-se em estado de greve e convocam os universitários a<br />

participar da mesma luta. O Diretório Central dos Estudantes (DCE) e a União dos Estudantes da<br />

Bahia (UEB) participam efetivamente das manifestações e declaram greve geral na <strong>Universidade</strong><br />

Federal da Bahia. Na noite do dia 24 de julho, os estudantes saem novamente às ruas. Os policiais<br />

militares colocam barricadas próximo a Rua Chile até a Praça da Sé. O confronto foi inevitável.<br />

Pedaços de pau e pedras enfrentavam as bombas de gás lacrimogêneo da tropa de choque da<br />

Polícia Militar. Com o poderio de fogo muito menor, os estudantes decidem fazer a manifestação<br />

na Reitoria da <strong>Universidade</strong> Federal da Bahia. Durante todo o percurso da Praça Castro Alves até<br />

a Reitoria, no Canela, eles procuram driblar o aparato policial que obedecia a ordem de acabar<br />

com a manifestação a qualquer custo. Abrigados na Reitoria, os estudantes ficam impedidos de<br />

sair sob a ameaça de sofrer repressão. Foi necessário a intervenção do Reitor Roberto Santos que<br />

solicitou à polícia militar a saída pacífica dos estudantes.<br />

Não obstante toda a manifestação contrária, a Lei Orgânica do Ensino é aprovada. As<br />

escolas mantidas por fundações cobrariam anuidades de seus alunos. No dia 26 de agosto, Luís<br />

Viana Filho assinava, simultaneamente a sanção da Lei Orgânica, decreto 20315, no qual se<br />

comprometia a manter a gratuidade do ensino médio a “preferência da matrícula nos colégios<br />

oficiais, aos alunos economicamente desfavorecidos 12 ”. Os estudantes decidem voltar às aulas.<br />

O balanço final das manifestações foi a constatação de que uma geração de estudantes<br />

estava disposta a ocupar as ruas. O jornalista Vítor Hugo Soares, à época estudante de direito,<br />

lembra que foi uma luta de massa intensa. E ressalta: “as entidades UEB e DCE sob comando do<br />

PCB perderam a direção e o controle do movimento. Houve um momento em que quiseram<br />

recuar. Então, as bases estudantis reassumiram o controle do movimento. Foram atividades<br />

intensas. Parecia uma rebelião na cidade”. Juca Ferreira, atualmente vereador/PV, confirma<br />

também a amplitude do movimento de massa, com a participação de pais e professores. E<br />

acrescenta: “havia um sentimento contra a ditadura militar muito presente”. Os protestos contra a<br />

12 Jornal da Bahia, 27-28. 8.1967.<br />

27


lei orgânica antecipariam as manifestações de rua de 68, e impulsionaram o surgimento de<br />

lideranças estudantis.<br />

Na eleição da UEB, realizada em novembro de 67, ficou visível a disputa ideológica dos<br />

diversos grupos políticos existentes na condução do movimento estudantil. Antônio Carlos<br />

Monteiro Teixeira, estudante de geologia, é indicado como candidato a chapa da União Baiana<br />

dos Estudantes (UEB), em novembro. A estratégia foi de Paulo Caires de Brito, estudante de<br />

economia da UFBa. Líder estudantil na cidade de Vitória da Conquista, foi preso dias depois do<br />

golpe de 64, acusado de fazer pichações na cidade e de participação em movimento estudantil. À<br />

época, Paulo tinha simpatia ideológica pelo Grupo de Onze, organização de teor nacionalista<br />

estimulada por Leonel Brizola, ex-governador do Rio Grande do Sul. Para ganhar a UEB, Caires<br />

defendeu uma chapa de massa, bem ampla e sem vinculação partidária. A escolha por Antônio<br />

Carlos, além de militante do PC do B, devia-se a sua atuação na Faculdade de Geologia. Também<br />

contribuía a participação de Dinalva Oliveira, na residência universitária feminina. Mais<br />

preponderante, no entanto, foi a personalidade de Antônio Carlos, temperamento tranqüilo,<br />

sensato nas suas considerações e avesso a uma postura sectária. Qualidades estas necessárias,<br />

porque a proposta era atrair o maior número de estudantes que estavam predispostos ao<br />

engajamento político, mas não possuíam vinculação partidária. A chapa Renovação não ganhou a<br />

eleição, ficou em terceiro lugar com votação muito próxima a AP e o PCB. Sérgio Dias<br />

Passarinho, à época estudante de arquitetura e militante do PCB, ganhou a eleição. A experiência<br />

dos militantes do PC do B só será capitalizada no ano seguinte, em 68, em meio às discussões do<br />

movimento estudantil e a conquista do Centro Acadêmico Rui Barbosa, da Faculdade de Direito.<br />

28


Capítulo II<br />

Rosalindo Souza, liderança na Faculdade de Direito<br />

Rosalindo Souza não tinha usufruído da mesma formação intelectual da classe média alta<br />

representada pelos militantes do PCB na Faculdade de Direito. Mas, possuía uma liderança<br />

natural na faculdade, considerado um bom aluno, inteligente e de raciocínio rápido. Era também<br />

um estudante com capacidade de trabalho e de aglutinar pessoas.<br />

Rosalindo nasceu em 2 de janeiro de 1940, no sertão de Caldeirão Grande, próximo a<br />

Jacobina. Aos cinco anos, os pais Rosalvo Cipriano Souza e Lindaura Correia resolveram morar<br />

em Itapetinga. Rosalvo incentivou, desde muito cedo, os sete filhos Rosalindo, Joselina, Afrânia,<br />

Olindina, Elia, Hortis e José Antônio a estudarem. Dizia com a convicção de que o destino se<br />

cumpriria: “meus filhos vão estudar, ter um trabalho digno”. Rosalvo era um trabalhador braçal,<br />

encanador e pedreiro, um homem que ressaltava o valor do trabalho. Em 1948, foi um dos<br />

fundadores da Sociedade Beneficente de Artífices e Operários de Itapetinga. Entre os associados<br />

estavam pedreiros, alfaiates, encanadores, gráficos e comerciários. Não era uma entidade de<br />

organização política, tinha por finalidade a formação de mão-de-obra e oferecia cursos de<br />

alfabetização e corte e costura. Possuía prestígio e expressividade social junto aos trabalhadores<br />

da cidade. Logo após o golpe de 64, em maio, Rosalvo ficaria 50 dias preso no 19 Batalhão dos<br />

Caçadores (19 BC), no bairro do Cabula, em Salvador. Rosalvo não possuía militância político-<br />

ideológica, considerava-se um nacionalista e apoiava as reformas de base de João Goulart. Na<br />

repressão pós-golpe, o trabalho social e assistencialista realizado na Sociedade Beneficente seria<br />

visto como ameaça ao movimento armado de 31 de março de 64. Toda a família, inclusive,<br />

Rosalindo, sentiria o golpe de 64 sob o impacto da prisão considerada arbitrária e injusta.<br />

29


Mas é a Faculdade de Direito, o movimento estudantil as principais influências para o seu<br />

engajamento político. Rosalindo passou no curso de direito em 1965. Estudava no período<br />

noturno e trabalhava durante o dia como escriturário no Instituto de Aposentadoria e Pensão dos<br />

Comerciários. Quando chegou à faculdade, encontrou um ambiente acadêmico propício à<br />

discussão política. Sobretudo, por haver uma disputa ideológica entre militantes da Ação Popular<br />

(AP) e o PCB para o controle do Centro Acadêmico Rui Barbosa. No ano de 1968, a disputa<br />

interna se transformaria numa luta ampla de combate à ditadura e pela redemocratização do país.<br />

Inevitavelmente, os estudantes que entravam na faculdade eram atraídos pela política estudantil.<br />

Havia a crença de que o estudante era quem promoveria mudanças transformadoras no país.<br />

Rosalindo vai ser uma referência entre os estudantes de direito pelo seu desempenho à<br />

frente do CARB. Era considerado uma pessoa de muita coragem, tido como líder. Vítor Hugo<br />

Soares destaca o fato de Rosalindo ser negro e pobre, dentro de uma escola de alta sociedade da<br />

Bahia com estudantes na sua maioria brancos e com padrão socioeconômico elevado. A<br />

conquista do centro foi considerado um espanto e terá uma repercussão considerável dentro da<br />

faculdade, afirma. Já identificados como militantes “radicais” e de confronto à linha política do<br />

PCB, que julgavam ser conciliadora com a ditadura, eles defendiam uma postura mais ofensiva<br />

no movimento estudantil. No clima de confronto pela disputa do CARB, a militância do PCB<br />

teve que aceitar a derrota para um pequeno grupo de estudantes que, até então, não havia<br />

conquistado nenhum diretório acadêmico.<br />

O advogado Juraci Novato, à época um dos diretores do centro, afirma que a “esquerda<br />

festiva”, como se refere ao PCB, não sofreu apenas uma derrota no campo político, mas perdeu<br />

espaço de atuação dentro da faculdade. Os militantes do PC do B promoveram mudanças<br />

administrativas significativas no centro acadêmico, como a criação de cursinhos para pessoas de<br />

baixa renda e a reprodução de apostilas para baratear os custos dos universitários.<br />

Nas assembléias do ano de 68, Rosalindo vai se destacar ao defender uma postura crítica e<br />

de combate ao regime militar. Em entrevista ao jornal A Tarde de 12 de junho de 1968,<br />

questionado sobre como deveria ser desenvolvida a greve geral da UFBa., afirma: “os estudantes<br />

precisam traçar um programa de passeatas, comícios-relâmpago, trabalho junto à população e a<br />

depender das condições nos sindicatos”. A posição demonstra claramente a crescente<br />

30


adicalização do discurso em prol de lutas de massa mais ampla e que não ficassem restritas às<br />

reivindicações estudantis. Assumia, cada vez mais, uma identidade de militante comunista.<br />

Simbologias e imaginários não faltam para entender o caldo cultural que permitiu que<br />

estudantes se construíssem como ativistas políticos. A Revolução Cultural Chinesa terá uma<br />

influência muito grande sobre os militantes do PC do B. A indagação “de onde vêm as idéias<br />

justas”, presente no Pequeno Livro Vermelho de Mao-Tsé-Tung, fazia uma apologia a uma longa<br />

marcha. Teve destaque também mural colocado no restaurante universitário chamado Mural da<br />

Liberdade, sob inspiração chinesa, onde estavam presentes textos sobre a realidade social e<br />

econômica brasileira, as passeatas do maio Francês e a luta da Frente de Libertação Nacional no<br />

Vietnã.<br />

O pensamento político de Mao Tsé-Tung também terá uma referência no caminho da luta<br />

armada. O advogado João Ribeiro Souza Dantas, à época estudante de direito e militante até<br />

meados de 71, afirma que já havia uma discussão interna sobre a conquista do poder: ”nós<br />

considerávamos que a luta armada deveria ser um movimento armado prolongado. Deveríamos<br />

preparar os camponeses. O grande equívoco foi acreditar que era possível um movimento armado<br />

naquela conjuntura”.<br />

A opção pelo Araguaia<br />

13 de maio de 1971 - João Dantas, Rosalindo Souza e Antônio Carlos Monteiro Teixeira<br />

seriam julgados na 6ª Circunscrição da Auditoria Militar, por envolvimento com movimento<br />

estudantil. A acusação era a de cometer atentado à lei e à ordem e promover distúrbios nas<br />

manifestação estudantins em 1968. O processo judicial contra os estudantes foi oficializado pelo<br />

procurador Antônio Brandão de Andrade em 30 de dezembro de 1969 13 . Dezoito estudantes<br />

respondem ao processo, entre eles Sérgio Dias Passarinho, presidente da União dos Estudantes da<br />

Bahia; João Almeida, presidente do Diretório Central dos Estudantes, em 68. Rosalindo e<br />

13 O processo judicial não está disponível ao público, encontra-se no Superior Tribunal Militar, em Brasília. A<br />

sentença do processo, datado da data de julgamento, 13 de maio de 1971, pode ser lida na 6ª Circunscrição da<br />

Auditoria Militar, prédio localizada na Paralela, em Salvador. O processo consta com a numeração 28/69 e 36/69.<br />

31


Antônio Carlos foram julgados à revelia, condenados a 2 anos e 4 meses, e a 1 ano e 6 meses<br />

respectivamente. João Dantas, condenado a 1 ano e dois meses, cumpriu a pena na Penitenciária<br />

Lemos Brito.<br />

Dias antes do julgamento, Rosalindo ainda se encontrou com João Dantas. Eram amigos<br />

desde o período da faculdade de direito e tinham discutido a questão da luta armada. Ou melhor,<br />

a ação política que desencadearia a luta armada. Mas, nesse começo de 1971, João Dantas já não<br />

acredita que o caminho armado é a alternativa para acabar com a ditadura militar. Rosalindo,<br />

porém, demonstra crença no trabalho revolucionário. Afirma que tem certeza de que será<br />

condenado e que a recomendação do partido é a de sair da cidade. Dantas respondeu:<br />

- Eu não vou.<br />

- João, não tenha ilusões, você vai ser condenado, disse–lhe Rosalindo.<br />

- Não tem problema. Eu posso passar 1 ou 2 anos preso, depois saio e recomeço a vida.<br />

João Dantas recorda-se que o amigo ainda disse: “você tem dúvida da firmeza da proposta<br />

do partido. Você está recuando!”. João Dantas apenas afirmou que não havia como enfrentar a<br />

ditadura através da luta armada, todos as grandes lideranças estavam mortas, como Joaquim<br />

Câmara Ferreira, assassinado em outubro de 1970; Carlos Marighella, em 1969. Não chegaram a<br />

discutir profundamente a viabilidade do projeto da luta armada, despediram-se e cada um seguiu<br />

seu caminho.<br />

Rosalindo Souza advogava em Itapetinga, desde o ano de 1970. Quando teve a sua<br />

matrícula cassada na UFBa, em 1969, conseguiu matricular-se no curso de direito da Faculdade<br />

Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. Rosalindo retornou a sua cidade de origem e começou a<br />

advogar. Atividades políticas já não exercia de forma explícita, mas participava da Sociedade<br />

Beneficente de Artífices e Operários de Itapetinga. Ensinava no curso de alfabetização e<br />

procurava passar o seu conhecimento da história do país. O jornalista Luís Nova, à época<br />

estudante secundarista, lembra que ele conversava bastante com os estudantes. “É claro que era<br />

uma conversa desigual. Eu era um adolescente, ele um militante comunista. Mas era uma<br />

32


conversa que visava estimular o germe contestador que ele percebia em mim”, afirma. Luís Nova<br />

continua militante do PC do B.<br />

Rosalindo deixou Itapetinga no dia 22 de abril de 1971, após comunicar a família que não<br />

iria apresentar-se à audiência de 13 de maio. Á época, começava um processo de retirada de<br />

quadros militantes da cidade de Salvador para a região do Araguaia. Carlos Augusto Pinheiro<br />

confirma que a recomendação do PC do B era a de que militantes mais experimentados na luta<br />

política não poderiam continuar na cidade e deveriam ser deslocado para uma área de trabalho<br />

político no campo, onde se desencadearia o movimento de guerrilha rural.<br />

Rosalindo pertenceu ao destacamento C, no ponto de apoio de Pau Preto, da guerrilha do<br />

Araguaia. Teria sido morto em setembro de 1972. Sobre a sua morte permanece um mistério.<br />

Mas isso, caro leitor, não será revelado agora. Outros militantes comunistas pedem passagem<br />

para que a sua história de vida também seja contada.<br />

33


Capítulo III<br />

Antônio Carlos Monteiro Teixeira e Dinalva Oliveira<br />

Final de Agosto de 1969. O general Arthur da Costa e Silva, o presidente-ditador que<br />

oficializou o Ato Institucional nº 5, sofreu uma trombose cerebral. O vice-presidente civil Pedro<br />

Aleixo deveria sucedê-lo, de acordo com a Constituição de 1967, criada pelos próprios militares.<br />

Assume no seu lugar, porém, a junta constituída pelos três ministros militares, Lyra Tavares, da<br />

Guerra, Augusto Rademaker, da Marinha, e Márcio de Souza e Mello, da Aeronáutica. Era um<br />

sinal de que o regime se tornaria um Estado militarizado.<br />

Paulo Henrique Costa e sua esposa Cila estão chegando ao Rio de Janeiro vindos de<br />

Salvador. De malas prontas, vinham checar os últimos detalhes da viagem aos Estados Unidos,<br />

onde ficariam três anos. Paulo, como bolsista mestrando na <strong>Universidade</strong> da Filadélfia. Ainda no<br />

táxi, que os levaria ao apartamento dos amigos Antônio Carlos Monteiro Teixeira e Dinalva<br />

Oliveira Teixeira, que os hospedariam, o geólogo Paulo Henrique fica sabendo da notícia da<br />

doença de Costa e Silva. Ainda comenta com a esposa: “poxa, Cila. Se a gente não providenciar<br />

logo o passaporte, é possível que nós não viajemos”. Paulo Henrique tinha um bom motivo para<br />

querer apressar a sua saída do Brasil, e viajar o quanto antes. Respondia a processo judicial por<br />

participação em passeata estudantil.<br />

Quando estão no apartamento dos amigos, Cila logo percebeu que a situação deles era a<br />

mais instável possível. O apartamento não possuía nenhum móvel. Havia apenas um colchão,<br />

dois pratos, dois copos, o mínimo possível. Evitaram fazer perguntas pessoais, mas pelo estado<br />

de despojamento em que viviam, sem nenhum conforto, perceberam que a estada era provisória.<br />

Cila, julgando-se mais perspicaz, entendeu que a vida despojada já era um sinal do enganjamento<br />

maior na militância. “Dina e Monteiro estavam bastante envolvidos já no tempo de estudante.<br />

34


Quando eles foram morar no Rio de Janeiro, nós pensamos que a tendência, agora formados, era<br />

esquecer os ideais de esquerda. Quando nos reencontramos, nós percebemos que eles<br />

continuavam autênticos. A coragem deles foi muito grande, a fidelidade deles aos princípios é<br />

uma coisa heróica. Dina e Monteiro não perderam os ideais que tinham quando estudavam. As<br />

idéias eram autênticas, bem embasadas. Não abandonaram as convicções, e foram adiante.<br />

Colocando até a própria vida”, respondeu Paulo Henrique ao ser indagado se os colegas<br />

demonstravam o comprometimento com a militância. Entrevistei-o na manhã de 15 de novembro<br />

de 2000, foram quatro horas de conversa agradável. Paulo Henrique e sua esposa Cila têm uma<br />

memória privilegiada, conseguem falar com exatidão de episódios ocorridos há trinta anos, e<br />

possuem uma lembrança muito viva sobre a personalidade dos colegas.<br />

Antônio Carlos Monteiro Teixeira e Dinalva Oliveira começaram a militância na Faculdade<br />

de Geologia, onde hoje é a Escola de Artes Plásticas, na rua Araújo Pinto, no bairro do Canela. O<br />

ambiente da escola era marcado por um forte nacionalismo. Contribuía para isso o próprio curso,<br />

que tinha uma preocupação com a descoberta e o melhor aproveitamento dos recursos minerais.<br />

Havia a crença de que o desenvolvimento mineral era incipiente, estava tolhido, e que havia<br />

poucos geólogos atuando no país. Os estudantes formados trabalhavam em empresas nacionais<br />

como a Petrobrás e o Departamento Nacional de Produção Mineral. A faculdade também possuía<br />

particularidades que a distinguia das demais - o curso era integral. Os alunos passavam a maior<br />

parte do tempo dentro da sala de aula. Isso fazia com que os alunos criassem laços de amizade e<br />

união, os problemas eram discutidos quotidianamente e as discussões políticas surgiam nesse<br />

contexto. A escola atraía um número grande de pessoas provenientes de outros Estados e também<br />

pessoas do interior.<br />

Dinalva entrou na faculdade no ano de 1964. Dina, como era chamada, nasceu no sertão<br />

baiano de Argoim, povoado de Castro Alves, em 26 de maio de 1945, filha de Viriato Augusto<br />

Oliveira e Elza Conceição Bastos. Alta, quadris largos, tez morena, impressionava pela beleza, o<br />

olhar meigo e a ternura no trato com os amigos. Demonstrava as raízes sertanejas na postura<br />

compenetrada, séria, pela simplicidade e por valorizar a amizade.<br />

35


A geóloga Teodora Costa afirma que a amiga tinha um compromisso pessoal de não aceitar<br />

as coisas passivamente, de reclamar, de indignar-se. Dinalva constumava dizer: “o meu problema<br />

é que não sei ficar calada”. Possuía uma personalidade marcante, forte. Paulo Henrique lembra<br />

que ela comentava com os colegas da faculdade que, quando a mãe Elza Bastos tinha que<br />

resolver problemas particulares, a prostituta do lugarejo era a responsável por assistir os irmãos.<br />

“Por que o preconceito com prostitutas? No meu lugar, Argoim, a pessoa de maior confiança na<br />

minha vizinhança, mais íntegra, é prostituta”, argumentava.<br />

Antônio Carlos, uma pessoa tranqüila, calma, serena contrastava com a personalidade forte<br />

de Dina. Praticava judô e karatê, e lia bastante filosofia oriental. Antônio Carlos passou no curso<br />

de geologia, em 1965. E apenas por uma circunstância muito particular, tornaram-se colegas de<br />

turma. No primeiro semestre do ano anterior, Dinalva, assim como 15 alunos, foram reprovados<br />

em uma matéria. De acordo com norma interna da faculdade, teriam que esperar a inclusão de<br />

nova turma para ser reintegrados à vida acadêmica.<br />

A militância político-partidária começa no ano de 1967, quando Monteiro concorre à<br />

presidência da União dos Estudantes da Bahia (UEB). Nessa época, ambos já participavam do<br />

grupo de estudo com a base do PC do B da Faculdade de Direito. Até então, na escola de<br />

geologia, privilegiavam a atuação como líderes de classe, estimulando atividades culturais e<br />

debates. Dinalva possuía uma liderança natural na residência universitária feminina, onde<br />

morava. A liderança se construiu mais pelo modo de tratar as pessoas sempre tão fraterno do que<br />

pela atuação política. A professora Joaquina Lacerda, à época estudante de Engenharia Civil, não<br />

foi militante de organização de esquerda. Quando chegou à residência feminina no ano de 1968,<br />

vinda da cidade baiana de Tremendal, considerava-se uma “caipira, uma menina boba e sem<br />

experiência alguma”. Era Dinalva quem procurava ajudá-la, e as outras estudantes interioranas, a<br />

se adaptar ao ambiente da residência.<br />

É no ano de 68, com o combate à ditadura sendo travado nas passeatas de rua, que a<br />

identidade de militantes comunistas de Antônio Carlos e Dinalva se consolida. Começam também<br />

a demonstrar a convicção pelo caminho da luta armada e a necessidade de um trabalho político<br />

integrado à população camponesa. Havia, inclusive, todo um entusiasmo pessoal com a<br />

Revolução Cultural Chinesa e a idéia de politização do cotidiano. É tempo de leitura de Salve a<br />

36


vitória da guerra popular!, de Lin-Pião, que prevê a estratégia revolucionária do cerco das<br />

metrópoles imperialistas industriais pelos países camponeses do terceiro mundo.<br />

Um exemplo de como isso aconteceu, vejamos. O estágio de campo, tarefa obrigatória para<br />

concluir o curso de geologia, foi realizado na cidade de Rio de Contas, em setembro de 1968. O<br />

estágio de um mês era tão-somente uma atividade acadêmica. A turma de 40 alunos chegava na<br />

área para fazer o mapeamento geológico, recolhia as informações e voltava para a cidade de<br />

Salvador, onde fariam um relatório técnico a ser entregue à Faculdade de Geologia. Não havia<br />

integração com a vida local.<br />

Teodora Rocha, à época professora-assistente do estágio, lembra que Dinalva, assim que<br />

chegaram na cidade de Rio de Contas, propôs que fossem realizadas palestras nas escolas. O<br />

primeiro objetivo era informar aos alunos a natureza do trabalho de campo no estágio, o que era a<br />

Geologia. Depois das explicações, começava a conversar com os estudantes sobre movimento<br />

estudantil.<br />

- Vocês precisam se organizar. Como está o grêmio? Vocês não sabem que a ditadura<br />

matou até um estudante!, dizia Dinalva, referindo-se ao assassinato de Edson Luís de Lima<br />

Souto.<br />

No dia 28 de março de 68, tropa de choque da Polícia Militar invadiu o restaurante do<br />

Calabouço, no Rio de Janeiro, que servia refeições aos estudantes, alegando-se que ali se<br />

preparava uma passeata para destruir a Embaixada dos Estados Unidos. Os policiais usaram<br />

aramas de fogo contra os jovens desarmados. O resultado foi a morte de Edson Luís, estudante<br />

secundarista, de 18 anos de idade. Quase se torna um mártir. Sessenta mil pessoas, entre<br />

estudantes e populares, acompanharam o corpo pelas ruas da cidade carioca. A notícia do<br />

assassinato provocou manifestações nas principais cidades do país. Na Bahia, os estudantes saem<br />

às ruas na manhã de sábado do dia 30 em protesto. Em silêncio, percorrem a praça Castro Alves,<br />

Pelourinho, Baixa do Sapateriro e concentram-se na estação de ônibus da Barroquinha, onde<br />

fazem comício e hasteiam uma bandeira do Brasil coberta com uma tarja preta 14 .<br />

Ao falar com os estudantes sobre a organização do grêmio, Teodora lembra que Dinalva falava<br />

com entusiasmo e com indignação. “Ela achava que os estudantes deviam preocupar-se com o<br />

14 Jornal A Tarde, 1. 4. 1968.<br />

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que ocorria no resto do país”. Dinalva também demonstrava uma preocupação em conhecer os<br />

problemas da população local. Como o trabalho necessitava de andar por serras, encostas, era<br />

preciso um guia para orientar dentro da mata. O guia que os auxiliou foi Francisco Dantas, mais<br />

conhecido como Chiquinho Dantas. Dinalva ficava grande parte do tempo a perguntar sobre a<br />

vida da região, se a plantação do ano tinha rendido bons frutos, se a colheita havia sido farta ou se<br />

tinha tido prejuízos. Também prestava informações sobre como os moradores deveriam fazer<br />

para melhorar a colheita. Quando retornava do trabalho de campo, ainda comentava com<br />

Teodora: “eu devo dar muito trabalho a você, né? Eu gosto da geologia, mas eu gosto muito do<br />

povo, de conversar, de saber de sua situação, seus problemas”.<br />

O estágio de campo também era uma pequena experiência de como sobreviver dentro da<br />

mata. Os estudantes passavam o dia percorrendo escarpas e serras, até encontrar o local dos<br />

acidentes geológicos que precisavam ser demarcados. Saíam de manhã, com o bornal, saco de<br />

pano onde colocavam vasilhame com água e o lanche, geralmente um sanduíche para ser comido<br />

no almoço. Só retornavam no final da tarde.<br />

Paulo Henrique e Antônio Carlos tiveram que pernoitar uma noite no mato, mais<br />

exatamente, em cima da serra. Havia escurecido muito rápido, e a descida poderia causar algum<br />

acidente. Sem comida, no bornal havia apenas mapas geológicos, a sobra do lanche do almoço, a<br />

noite prometia ser difícil. Estavam apenas com fósforo e facão. Antônio Carlos acendeu uma<br />

fogueira para se proteger do frio, e ficaram conversando até chegar a hora de dormir. De<br />

madrugada, acordam ensopados. A fogueira nem havia mais, apagou-se com os pingos da chuva.<br />

Tiveram que ficar sentados juntos, as costas de um unidas as do outro, tiritando de frio.<br />

- Que dureza, Monteiro! Que azar o nosso! Nós bem que podíamos estar em casa, disse<br />

Paulo Henrique.<br />

- Dureza seria se a serra estivesse cercada pelo Exército. Atrás de guerrilheiros! Imagine,<br />

Henrique! Aí sim, você veria como seria difícil!, respondeu Antônio Carlos.<br />

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Paulo Henrique era ativista estudantil, defendia o fim da ditadura, combatia as injustiças<br />

sociais, mas não acreditava na luta armada, não acreditava que a violência revolucionária pudesse<br />

ser um agente de tranformação do país. A violência podia até ser usada como autodefesa, mas<br />

nunca como um agente de mudanças. Naquele momento, não pensou nem se imaginou como um<br />

guerrilheiro. Diferentemente, de Antônio Carlos. Na sua mente já estava cristalizado a imagem de<br />

um grupo de combatentes. “A força do pensamento leva o homem a extremos”, disse-me Paulo<br />

Henrique ao relatar o episódio.<br />

Antônio Carlos se formaria geológo no final de 1968. Na formatura do curso, dias depois<br />

de 13 de dezembro, data da promulgação do Ato Institucional n o 5, o golpe dentro do golpe como<br />

ficaria conhecido, não houve cerimônia pública na Reitoria da <strong>Universidade</strong> Federal da Bahia.<br />

Estavam proibidos discursos dos oradores do curso. Dinalva e Antônio Carlos pegaram apenas o<br />

diploma em uma cerimônia improvisada na Faculdade de Geologia. Depois, seguiriam para o Rio<br />

de Janeiro. Paulo Henrique viajaria para os Estados Unidos. Retornou em 1972 e não encontrou<br />

os amigos. Ninguém sabia onde, exatamente, eles estavam.<br />

Bem distante dali, Antônio Carlos estaria sendo capturado nas matas próximo ao rio<br />

Araguaia, à época sul do Pará, pelo Exército, em 21 de setembro de 1972. Foi a última vez que<br />

foi visto com vida. Possuía um bornal, semelhante ao usado nas encostas da cidade baiana de Rio<br />

de Contas, mas não continha alimentos e água. Nele, estavam os mapas geológicos com o<br />

mapeamento de toda a área da guerrilha do Araguaia. E nas suas mãos, Antônio Carlos trazia um<br />

fuzil.<br />

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Lembranças de uma mãe<br />

Maria Luiza Monteiro Teixeira nasceu em 13 de outubro de 1920, dois anos antes da<br />

oficialização do Partido Comunista no Brasil. Nunca pensara em pertencer ao quadro de uma<br />

organização marxista. Mas quando os três filhos Antônio Carlos, Eduardo e Emília Teixeira<br />

começaram a participar do movimento estudantil e se declararam comunistas, ela não somente<br />

aceitou a militância como também foi considerada uma comunista.<br />

Você é uma comunista também!– dizia o ex-marido Gerson da Silva Teixeira, como a<br />

responsabilizar a mulher pelo desvio comportamental dos filhos.<br />

A observação tinha, em parte, razão de existir. A educação dos quatro filhos Antônio,<br />

Eduardo, Carlos Alberto e Emília fora tão-somente responsabilidade sua, desde que decidira<br />

pedir o divórcio ao marido no ano de 1962, após 18 anos de casamento. Desde então, a mãe tivera<br />

uma forte influência na vida familiar dos filhos adolescentes, embora o pai sempre os visitasse.<br />

Didi, desde criança ninguém a chama pelo prenome Maria Luiza, nunca interferiu na vida dos<br />

filhos. O apartamento da família no Edf. Santo Antônio de Pádua, no bairro do Canela, era o<br />

refúgio para os amigos militantes que chegavam com livros e enfurnavam-se nos quartos. “Era<br />

um tempo bom aquele. O estudante possuía ideais, saía as ruas em passeatas. Não tinha medo da<br />

polícia, não. Era pau, pedra, tudo contra os policiais”, diz.<br />

É fácil imaginá-la acompanhando as peripécias daquela juventude. Hoje, aos 80 anos de<br />

idade, Didi é uma senhora jovial, ativa, vivaz e de riso fácil. A vitalidade é herança dos<br />

antepassados alemães que chegaram à Bahia no início do século XIX. Passados os anos, o clã<br />

Schaun se dedicaria à produção de cacau na região de Ilhéus, e tinha por hábito acordar , às<br />

5horas da manhã para fazer ginástica. A mãe, Helena Schaun, criou a filha nos moldes<br />

tradicionais com educação em pensionato e aulas de piano. O pai, Antônio Monteiro de Souza,<br />

era fazendeiro de cacau e simpatizante de idéias de esquerda. Não era um comunista, é bom que<br />

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se diga. O comunismo, no entanto, sempre foi um assunto discutido nas conversas de família. O<br />

primo Raimundo Schaun chegou a ser militantes do PCB na década de 40 e participou da luta<br />

contra o Estado Novo. Nelson Schaun, também primo, tinha pertencido ao Partido Liberal e<br />

impressionava a família pela inteligência. Autodidata, era professor de português no Colégio Nª<br />

Srª da Piedade, em Ilhéus, expressava-se muito bem e tinha conhecimento sobre a realidade<br />

brasileira. Os filhos Antônio Carlos, Eduardo e Emília sempre que visitavam os avôs, ouviam as<br />

histórias dos primos comunistas.<br />

No ano de 1969, o elo familiar se rompe, após o casamento de Antônio Carlos com<br />

Dinalva. Os dois iriam morar no Rio de Janeiro. A mãe de Monteiro lembra que a convivência<br />

com a nora sempre fora boa, mas de uma formalidade extrema. Dinalva lhe parecia séria demais.<br />

- Dina está com algum problema? Eu fiz algo de errado?, perguntava.<br />

- Minha mãe, não se preocupe. Dina é assim mesmo, tranquilizava Antônio Carlos.<br />

Em junho de 1970, Antônio Carlos visitou a mãe e avisou que viajaria para a região norte<br />

do país. Sobre a opção do filho de ir para uma área de preparação de guerrilha do PC do B, Didi<br />

lamenta: “oh, erro de Antônio Carlos! Era melhor que ele fosse preso. Hoje, estaria vivo”. Em 30<br />

de dezembro de 1969, Antônio Carlos foi indiciado em processo por participar do movimento<br />

estudantil e promover greves e passeatas. O julgamento do processo (nº 28/69 e 36/69) aconteceu<br />

em 13 de maio de 1971. Seria julgado à revelia e condenado a 1 ano e 4 meses de detenção.<br />

Seu outro filho, Eduardo Teixeira, poderia estar na lista dos desaparecidos políticos, se não<br />

fosse preso ao chegar à região do Araguaia, quando começava o conflito em 12 de abril de 1972.<br />

Ficou cerca de um ano na III Brigada de infantaria, em Brasília. Emília Teixeira, a outra filha<br />

comunista, viveu na clandestinidade – sem entrar em contato com a mãe - fazendo trabalho<br />

político-partidário no Rio de Janeiro, no período de 1971 a 1974. “Sempre aparecia notícias de<br />

pessoas sendo presas ou mortas. Com três filhos envolvidos neste negócio, só me restava esperar<br />

por qualquer notícia. Então, dizia a mim mesma: não vou enlouquecer”, conta.<br />

Em agosto de 1972, a nora Fátima Monteiro escreve uma carta avisando que tinha acabado<br />

de sair da prisão em Brasilia. E que Eduardo Monteiro, estava preso sob acusação de ser<br />

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guerrilheiro. A primeira atitude de Didi foi procurar o senador baiano Heitor Dias, anticomunista<br />

ferrenho mas amigo da família, para que ele pudesse ver qual era a situação do filho. O senador<br />

prometeu verificar. Sem saber quando o filho seria colocado em liberdade, resolveu ela mesma<br />

visitá-lo. Em 8 de dezembro de 1972, sozinha e sem ser acompanhada por nenhum advogado,<br />

chegava a III Brigada de Infantaria do Exército em Brasília. É Didi quem relata:<br />

“Resolvi eu mesma visitá-lo, as pessoas pensavam que eu estava maluca. Mas já que<br />

ninguém me dizia quando Eduardo iria sair, pelo menos vou poder vê-lo. Cheguei a Brasília e<br />

peguei um táxi para a III Brigada de infantaria. Chegando lá, tinha que ter autorização para entrar<br />

na área militar. Fiquei 8 dias, sem que eles me autorizassem a entrar. Estou sentada na recepção e<br />

um homem chamado major Isaac, me perguntou o que estava fazendo:<br />

- Eu quero visitar meu filho que está preso aqui. E não querem me dar a autorização.<br />

- Tudo bem, hoje a Srª vai ver, disse o major.<br />

Não sei com quem esse homem falou, mas depois dessa conversa, três soldados com<br />

metralhadoras em punho me levaram para ver Eduardo. Lembro-me que o local onde ele estava<br />

preso, era bastante longe. Nós passamos por muitos corredores. Então, me deixaram em uma sala.<br />

Depois, ouvi portas abrindo e apareceu Eduardo. Ele vinha com a cabeça coberta por um capuz<br />

verde. Tiraram e notei que ele não tinha cabelo nenhum. Não me deixaram chegar perto dele. Nós<br />

ficamos conversando de longe. Eu deixei uma sacola com escova de dente, creme, desodorante e<br />

roupa. Tinha levado também doces, chocolates, queijo, mas isso eles mandaram tirar da sacola.<br />

Depois disso, fui embora. Pelo menos, pude ver que ele estava vivo”.<br />

A história parece surreal até mesmo inverossímil. Mas era assim que as Forças Armadas<br />

atuavam quando se tratava do combate à Guerrilha do Araguaia. Nunca foram reconhecidos,<br />

oficialmente, prisioneiros da guerrilha do Araguaia. José Genoíno Neto e Dower Cavalcante,<br />

foram os únicos sobreviventes a denunciarem publicamente na Auditoria Militar a existência de<br />

um movimento armado no Araguaia, e as torturas sofridas. Luzia Ribeiro, presa em maio de<br />

1972, esteve presa cerca de seis meses em Brasília, mas nunca respondeu a inquérito militar.<br />

Eduardo Monteiro também não. Oficialmente, eles nunca estiveram presos.<br />

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Eduardo Monteiro foi preso pelas tropas do Exército quando chegavam à região, em 12 de<br />

abril de 1972. Ainda estava dentro do ônibus na Transamazônica, acompanhado da militante<br />

comunista Elza Monerat, quando soldados entraram no ônibus. Elza Monerat passou pela revista<br />

policial e se articularia à estrutura partidária, em São Paulo. Eduardo foi levado preso. Com a<br />

carteira de identidade no seu nome verdadeiro, foi logo identificado em Xambioá como estudante<br />

da Faculdade de Direito, que esteve preso em 1969. Enviado ao Forte de Belém, depois Brasília.<br />

Identificado como militante comunista e irmão de Antônio Carlos Monteiro, que eles já sabiam<br />

estar na região do Araguaia, Eduardo foi interrogado e torturado para falar sobre contatos feitos<br />

com militantes nas cidades do Rio de Janeiro e Pernambuco, locais onde estivera nos últimos dois<br />

anos, fazendo trabalho político. A esposa Fátima Monteiro foi feita prisioneira também. À época,<br />

o General Antônio Bandeira era o comandante da 3 a Brigada de infantaria do Comando Militar do<br />

Planalto. Ele comandava a tortura que incluía sessões de choque elétrico e afogamentos. Foi o<br />

próprio general quem o avisou que o irmão Antônio Carlos estava morto em setembro de 1972,<br />

inclusive apresentou uma foto. Um ano após a prisão, levaram-no para a Rodoviária de Brasília e<br />

compraram uma passagem de ônibus para Salvador. A Eduardo, disseram: entre no ônibus e<br />

volte para sua casa.<br />

Do período em que foi um prisioneiro, Eduardo prefere não lembrar. O fato mais vivo na<br />

memória, até pelo teor pitoresco que faz questão de ressaltar, é a viagem de volta para casa. É ele<br />

quem relata: “eu saí atordoado. Eu olhava assim as coisas, estava retardado, abobalhado. O<br />

ônibus que peguei para chegar a Salvador era via Barreiras. A estrada, horrível. Em Barreiras,<br />

entraram um homem e uma moça que ficaram próximos à minha poltrona, uma das últimas. Eu<br />

estava pensando na vida: o que vou fazer, só tenho 24 anos? De repente, um opala aparece na<br />

estrada e pede para o ônibus parar. Um homem entrou com uma arma. Pensei: eles vieram me<br />

matar. Não sei como, mas me joguei pela janela do ônibus. Quase me arrebento, fiquei todo<br />

ferido, cortado de vidro, o corpo quebrado. Quando vejo, o cara da arma queria era matar o rapaz<br />

que tinha fugido com a filha dele. Foi um sufoco. Quando cheguei na casa da minha mãe, ela<br />

abriu a porta, olhou para mim todo ferido e desmaiou”.<br />

43


Amores no Araguaia<br />

O que é o amor? Quem compreende os desatinos do coração? “Se tudo cura o tempo, tudo<br />

faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore,<br />

quanto mais a corações de cera! O mesmo amar é causa de não amar e ter amado muito, de amar<br />

a menos”, afirma o padre Antônio Vieira, sábia e barrocamente, no sermão Amor Menino.<br />

Antônio Carlos foi o primeiro namorado de Dinalva. O jornalista Vítor Hugo, colega de<br />

militância dos dois, afirma que o relacionamento afetivo era um exemplo de carinho e afeto<br />

extremados. Eles conseguiam a façanha de estarem o tempo todo juntos de mãos dadas e<br />

demonstravam publicamente o quanto se gostavam. O deputado federal pelo PSDB, João<br />

Almeida, à época militante do PCB e colega, tem a lembrança dos dois sempre juntos. “Nós<br />

brincavámos com os dois, porque eles não ficavam separados um minuto sequer. Eles almoçavam<br />

juntos no restaurante universitário e iam de mãos dadas o percurso todo, do bairro do Canela à<br />

Vitória”.<br />

À amiga confidente Teodora Rocha, Dinalva comentou que considerava interessante só<br />

possuir um namorado. “Eu tenho uma mente tão aberta às coisas, e só namorei com Antônio<br />

Carlos”, dizia, em comparação a outras garotas que começavam a romper com as normas de<br />

namorada fiel e questionar o comportamento social e as questões afetivas. No ano de 1969,<br />

quando são aceitos para trabalhar no Departamento Nacional de Produção Mineral, no Rio de<br />

Janeiro, resolvem casar. Foi uma cerimônia civil no cartório do Fórum Ruy Barbosa. Não houve<br />

festas, e os amigos não estranharam o fato. No ano de 1968, os amigos Paulo Henrique e Cila,<br />

levados pela contestação juvenil, já tinham renuciado o convencionalismo de cerimônias e<br />

casamento tradicional.<br />

Ao seguir o rumo das águas do Araguaia, Dinalva descobre um novo amor. Terá um<br />

relacionamento afetivo com Gilberto Olímpio, também guerrilheiro, casado oficialmente com<br />

Vitória Grabois. Gilberto pertencia à Comissão Militar. Luzia Ribeiro conviveu com Dinalva na<br />

região de Caiano, pertencente ao Destacamento C. Num dia de muita chuva, quando enfrentavam<br />

a primeira campanha do Exército, em abril de 72, a rede de Dinalva ficou molhada. À noite, ela<br />

pediu a Luzia para ficar na mesma rede, postada a cem metros do solo entre as árvores da<br />

44


floresta. Antes de dormirem conversaram sobre as dificuldades que a guerrilha iria enfrentar.<br />

Luzia falando da sua pouca experiência, Dinalva a lhe contar como descobrira o amor quando se<br />

preparava para viver como camponesa no Araguia e fazer o trabalho revolucionário. Falou de sua<br />

paixão por Gilberto, e o fim do casamento com Antônio Carlos. Dinalva também lhe dizia que,<br />

quando o destacamento se encontrasse com a Comissão Militar, ela pediria para que os dois<br />

pudessem ficar juntos. Até então, estavam separados.<br />

Mas, e Antônio? O amor de mulher se transformara em um amor fraternal. Para a<br />

população local, Antônio Carlos e Dinalva eram marido e mulher. O povo da região, inclusive, se<br />

referia a ele, como Antônio, da Dina. Luzia conta que ambos continuavam muitos ligados<br />

afetivamente e estavam sempre juntos. Dina a envolver as pernas de Antônio Carlos com pedaços<br />

de panos e gaze, numa tentativa de evitar o inchaço depois das longas caminhadas; a carregá-lo<br />

nas costas, quando teve problema no rim; a velar a sua saúde; a cuidar das feridas de<br />

leishmaniose, doença que acometeu muito dos guerrilheiros; a protegê-lo das picadas dos insetos,<br />

das frieiras provocadas pelo contato da água da chuva. Dina a lamentar a sua morte, quando foi<br />

preso. Antônio Carlos foi visto com vida em 21 de setembro de 1972. Após a prisão, foi<br />

conduzido para São Geraldo do Araguaia e morto sob tortura. Relatório da Marinha, entregue à<br />

Comissão Externa de Busca de Desaparecidos Políticos da Câmara Federal, não faz referência à<br />

sua morte, mas afirma que “em dezembro de 1972, foi identificado, por fotografia, como sendo o<br />

professor Antônio, que lecionara no período de junho a dezembro, de 1971, na Escola dos padres<br />

de São Félix, em Terra Nova.<br />

Gilberto Olímpio e Dinalva só se reencontraram no começo do ano de 1973, pois com o<br />

início da guerrilha o destacamento C não teve contato com a Comissão Militar. Puderam, então,<br />

viver juntos. Gilberto passou a ser comandante do destacamento C, Dina sub-comandante. Foram<br />

vistos com vida em 25 de dezembro de 1973. Sobre Dina, depoimento de Pedro Cabral, coronel<br />

da Aeronáutica, refere-se a ela como a guerrilheira grávida que teria sido morta.<br />

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Capítulo IV<br />

“Eles não me prendem mais.<br />

Foi a primeira e a última vez”<br />

Nelson Lima Piauhy Dourado deixou Salvador em 65, um ano após o golpe militar, para<br />

morar no Rio de Janeiro. Despediu-se dos familiares e avisou: se algo acontecer comigo, vocês<br />

receberão notícias. Em 1976, um amigo da família, que trabalhava no Serviço Nacional de<br />

Informação, informa que Nelson está morto, seu irmão José também. Epaminondas Dourado, à<br />

época trabalhando no Banco de Desenvolvimento da Bahia, perguntou, a esperança a assaltá-lo,<br />

se tinha certeza de que os irmãos estivessem mortos.<br />

Vinha-lhe a mente um esdrúxulo recado que recebeu de Nelson, logo após a morte de Che<br />

Guevarra, em 27 de outubro de 1967. Nelson enviou uma ordem de pagamento no valor<br />

simbólico para a família. Epaminondas a se perguntar: que coisa mais estranha enviar dinheiro<br />

sem sequer dizer para quê? Ainda mais, este valor irrelevante! Por isso, naquele momento, surgia<br />

a dúvida. A resposta segura do amigo lhe desfez a esperança: “não há dúvidas. Eles estão<br />

mortos”.<br />

Epaminondas prefere não revelar a identidade da pessoa que lhe deu a notícia. O silêncio dá<br />

origem a uma outra pergunta como a família reagiu a morte. “Às vezes, sinto que as pessoas<br />

pensam que nós somos muito frios ou que não sentimos a dor da perda. Quando nos reuníamos,<br />

sempre evitamos falar sobre o que aconteceu aos nossos irmãos. Lembro que meu pai chorava e<br />

procurava esconder as lágrimas quando a gente falava do que tinha acontecido com os dois. Meu<br />

pai nunca aprovou o envolvimento deles, mas também nunca condenou a opção de serem<br />

comunistas”.<br />

A partir desse dia, a família, de certo modo, aprendeu a conviver com a notícia do seu<br />

desaparecimento. Falar sobre o assunto, no entanto, parece evocar uma dor imensa. Tanto assim<br />

que os irmãos Epaminondas, Sabino e Maria do Socorro evitam declarações públicas à imprensa.<br />

46


Encontrei-o no final de tarde de março, no seu apartamento em Brotas. Perguntou-me o que eu<br />

queria saber. Disse-lhe que gostaria que falasse um pouco sobre a vida de Nelson e de José, a<br />

infância, a militância. Respondeu-me que não havia muito o que dizer. A militância dos irmãos é<br />

um verdadeiro mistério. Epaminondas é um senhor de 52 anos de idade, possui uma fala pausada,<br />

muitas vezes, chega a se tornar quase inaudível, a tensão a consumi-lo. Começamos a conversar,<br />

minutos depois ele pede para desligar o gravador. Prefere que alguns nomes não sejam<br />

identificados. Entre eles, o da pessoa que confirmou a morte de Nelson e de José.<br />

Nelson nasceu em 3 de abril de 1941, em Jacobina, filho de Pedro Piauhy Dourado e Anita<br />

Lima Piauhy Dourado. Em 42, a família Piauhy Dourado se mudou para Barreiras com o objetivo<br />

de melhorar de condição de vida. Comerciante, o pai seria proprietário da única mercearia da<br />

cidade. Pedro teve cinco filhos, Epaminondas, Nelson, Maria do Socorro, Sabino e José. A<br />

família nunca teve muitas posses, mas para os padrões de uma cidade pequena não lhes faltavam<br />

condições financeiras. Nelson tinha temperamento alegre, brincalhão, risonho. Ainda<br />

adolescente, vai participar do movimento estudantil no colégio Padre Vieira, quando estudava o<br />

primeiro grau. Procurava incentivar a realização de festas entre os colegas. A participação mais<br />

marcante foi na campanha para a meia-entrada no cinema da cidade. Epaminondas diz que o<br />

irmão tinha temperamento contestador. Colocou pela cidade faixas com os dizeres: “Barreiras<br />

pode ser o ânus de judas, mas tem que ter meia-entrada”. O pai escandalizado, perguntou ao<br />

filho se ele tinha ficado maluco. A única justificativa possível para colocar uma faixa com aquele<br />

vocabulário. Com ar de zombaria, Nelson disse: Ué, qual o problema? Estudante tem que pagar<br />

meia-entrada para entrar no cinema. Sim, senhor! O pai não aceitou a justificativa e, severo,<br />

mostrou-se contrariado com as atitudes do filho. “Nelson era uma pessoa que fazia coisas<br />

inimagináveis. Se acontecia alguma novidade na cidade, com certeza a idéia tinha sido dele.<br />

Traquinagens, tudo. Estava sempre alegre, os moradores gostavam muito dele”.<br />

Poucas são as referências sobre a militância de Nelson na cidade de Salvador. Quando<br />

deixou a cidade de Barreiras em 1961, começou o curso científico no Colégio Bahia. Meses<br />

depois, transferiu-se para o curso noturno do Colégio Ipiranga, pois começara a trabalhar na<br />

Refinaria Landulfo Alves, em Mataripe, no Laboratório de Análise de Petróleo. Para exercer a<br />

função, fazia-se necessário um curso de três meses oferecido pela própria empresa. Companheiro<br />

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de trabalho e chefe do setor, Nilo Calazans, confessa que não sabia que Nelson pertencia a uma<br />

organização de esquerda, pelo menos não havia demonstração explícita. Admite, porém, que o<br />

ambiente na refinaria era marcado por um forte nacionalismo e pela politização dos petroleiros. A<br />

maioria dos trabalhadores sindicalizados ao Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de<br />

Destilação e Refinação no Estado da Bahia (SINDIPRETO/Ba) ou Sindicato da Extração eram<br />

influenciados pela linha política do Partido Comunista Brasileiro (PCB). As entidades sindicais<br />

exerciam uma militância aguerrida dentro da Refinaria. Sobre Nelson, Calazans lembra muito<br />

pouco. “Ele era uma pessoa que gostava muito de conversar, mas não me recordo de sua<br />

participação política dentro da refinaria . Do nosso convívio, ficou a lembrança de uma pessoa<br />

muito risonha e falante ao extremo, além das brincadeiras com os companheiros”. Calazans<br />

atuava como líder sindical e pertencia ao conselho fiscal do SINDIPRETO.<br />

Nelson foi preso em abril de 1964, na repressão aos trabalhadores da refinaria Landulfo<br />

Alves. O historiador Franklin de Oliveira, no seu livro A Usina dos Sonhos: sindicalismo<br />

petroleiro na Bahia: 1954-1964, revela a participação dos trabalhadores na tentativa de<br />

resistência ao golpe e como a repressão atuou contra os petroleiros na Bahia. Os trabalhadores<br />

petroleiros só foram reagir ao golpe no dia 1º de abril, quando vem a público o anúncio das<br />

movimentações de tropas do general Olympio Mourão, de Minas Gerais para o Rio de Janeiro.<br />

Os petroleiros crentes no dispositivo militar de João Goular declaram-se em greve, atendendo à<br />

recomendação do Comando Geral dos Trabalhadores. Porém, os dias seguintes ao golpe vão<br />

demonstrar o quão passiva e desarticulada foi a tentativa de resistência. Dia 1º, alguns petroleiros,<br />

militantes e simpatizantes do Partido Comunista Brasileiro reúnem-se no Sanatório Santa Mônica<br />

para os preparativos de um Plano de Resistência. A cidade baiana de Feira de Santana seria<br />

julgada o quartel-general da resistência, pois o prefeito Francisco Pinto era considerado um<br />

aliado estratégico pela sua posição nacionalista. As conversas permaneceram até o dia 3, apesar<br />

do golpe já estar consolidado e tomadas as medidas para coibir qualquer manifestação contrária.<br />

Na manhã do dia 2 de abril, a sede do SINDIPETRO, onde hoje funciona o Shopping Center<br />

Lapa, próximo à praça da Piedade, foi invadida quando ocorria uma reunião. Havia 463 pessoas<br />

presentes. Tiveram que enfrentar a tropa da Polícia Militar sob o comando do Capitão Etienne<br />

Falcão, que os expulsou à toque de cassetetes e revólveres, fuzis e reboques. A partir daí, as<br />

48


lideranças sindicais como Mário Lima, à época dirigente do SINDIPETRO, começariam a ser<br />

presas. Ao saber da invasão do sindicato, Mário Lima se dirige ao Palácio de Ondina para uma<br />

conversa marcada com o governador Lomanto Júnior. É preso pelo secretário de Segurança<br />

Pública, Francisco Luís Cabral. Depoimentos revelam que o líder sindical teria dito que “fatos<br />

graves poderiam acontecer na refinaria caso ele não retornasse 15 ”. Ainda na noite do dia 2, a<br />

refinaria é ocupada pelas tropas policiais com a alegação de que os petroleiros iriam explodir a<br />

empresa. Terminava a resistência. Na repressão às principais lideranças, foram indiciados 27<br />

funcionários da Petrobrás 16 . À época, a empresa possuía 35 mil funcionários sendo 526 destes<br />

demitidos com a alegação de ser conveniente à empresa, segundo Informativo da Petrobrás, de<br />

20/10/64. Nelson estará na lista de demissões. A busca de informações com lideranças presas<br />

naquele período, entre elas Mário Lima e Jair de Brito, demonstrou-se infrutífera. Eles não têm<br />

conhecimento da prisão específica de Nelson Lima Piauhy Dourado nem sobre a sua militância.<br />

Epaminondas afirma que o irmão participava de discussões sindicais, mas não tem<br />

informação precisa sobre como ocorreu a sua prisão. Declara apenas que o irmão ficou 20 dias<br />

preso. Não sofreu tortura física, mas as poucas agressões físicas sofridas na prisão, deram-lhe<br />

uma certeza. Ao irmão, Nelson confessou: eles não me prendem mais. Foi a primeira e última<br />

vez. Impossibilitado de retornar à Petrobrás, Nelson passaria a trabalhar como taxista em<br />

Salvador.<br />

Raimundo Batista da Luz conheceu Nelson no ano de 1965. Batista era militante do PCB e<br />

participou da Associação Baiana dos Estudantes Secundarista (ABES) em 1962. Com o golpe de<br />

Estado vitorioso, rejeita a linha pacífica do PCB. Nelson foi quem o recrutou para o PC do B.<br />

Segundo Batista, Nelson era um militante muito dedicado às tarefas partidárias, mas não tinha<br />

formação teórico-marxista aprofundada nem desenvoltura na formulação e construção de idéias.<br />

Porém, era uma pessoa com disposição de trabalho. Faziam reuniões constantes e cuidavam da<br />

reprodução do jornal A Classe Operária. Não era distribuição de massa, ficava restrita a um<br />

pequeno grupo de pessoas e o PC do B não estava estruturado na cidade.<br />

15 OLIVEIRA, Franklin. Nos dias do golpe. In: A usina dos sonhos: sindicalismo petroleiro na Bahia: 1954-1964.<br />

Salvador: EGBA, 1996, p. 181-183.<br />

16 Idem.ibdem, p.197.<br />

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A militância na cidade soteropolitana não perduraria por muito tempo. Meados de 65, vai<br />

morar no bairro carioca da Lapa. A família só saberá que continua vivo com os espassos recados<br />

que receberá, entre eles a ordem de pagamento. Epaminondas não lembra de onde foi enderaçada,<br />

mas naquele ano de 1967 Nelson estaria vivendo em Colinas de Goiás, atualmente Nova Colinas<br />

a uns 100 Km de Araguaína, em Tocantins. À época, Nelson participava da implantação de uma<br />

base rural do PC do B, semelhante a que seria implantada no Araguaia, junto com Vladimir<br />

Pomar, filho do dirigente comunista Pedro Pomar. O relato é de Vladimir: “encontramo-nos em<br />

Goiânia e assumimos uma posse no cerrado, a uns seis km de Colinas. Plantávamos arroz,<br />

criávamos porcos e galinhas e vivíamos dessa atividade. Ao mesmo tempo, conhecíamos os<br />

posseiros, o terreno e as condições econômicas, sociais e políticas da região. Em alguns<br />

momentos tivemos que enfrentar, junto com os posseiros, os grileiros e seus jagunços. Nelson foi<br />

um companheiro firme. E foi o que mais sofreu com a malária. No final de 1969, recebemos<br />

ordem de nos deslocar para o Pará. Eu me neguei por discordar do tipo de trabalho, Nelson<br />

concordou”.<br />

Nelson Lima Piauhy Dourado chegou à região de Metade, sul do Pará, no início de 1971,<br />

segundo Criméia Almeida. Tinha um pequeno comércio local. Casou com Jana Moroni, também<br />

guerrilheira. Sua morte teria ocorrido, segundo relatório da Marinha, em 2 de janeiro de 1974.<br />

Antes de sua morte, Nelson encontraria seu irmão José Lima Piauhy Dourado, depois de<br />

seis anos. José também deixaria Salvador e iria para o Araguaia. Sua história de vida também é<br />

envolta em mistério. Ei-la:<br />

50


José, militância discreta<br />

Para a família, ele é José. Os amigos o tratavam como Piauhy. Poucas pessoas sabem é que<br />

José Lima Piauhy Dourado se chamaria Ivo, um dos combatentes na Guerrilha do Araguaia.<br />

Piauhy era tão introspectivo e tranqüilo que a própria família se surpreendeu quando descobriu<br />

que ele possuía militância política. Epaminondas conta que algumas pessoas, surpresas, ainda<br />

perguntam: “Piauhy, comunista? Não é possível, não acredito”.<br />

A militância, de fato, sempre foi muito preservada e exercida de forma muito discreta na<br />

Escola Técnica de Salvador, onde fazia o curso de Eletrotécnica. Emília Teixeira, porém, foi<br />

responsável por recrutá-lo para o PC do B, em 1968. A Escola Técnica, hoje CEFET, não possuía<br />

grande destaque no movimento estudantil. A politização da escola começou por um<br />

acontecimento inusitado, porém de acordo com o sopro de contestação do ano de 68.<br />

No dia 27 de março de 68, os estudantes declararam-se em estado de greve. O protesto era<br />

contra a suspensão do aluno Denilson Vasconcelos, que fazia o curso Pontes e Estradas. Denilson<br />

colocou no mural um artigo questionando a permanência, à frente do grêmio, do sargento da<br />

Aeronáutica Cláudio Penaldo. Esses acontecimentos causaram uma verdadeira rebelião na<br />

Escola, com os estudantes afirmando que só retornariam às aulas assim que o diretor Walter de<br />

Oliveira Porto revogasse a suspensão.<br />

Morando atualmente em São Paulo, Denilson relembra que o diretor era uma das pessoas<br />

mais arbitrárias e o ambiente na escola era bastante repressor, os estudantes proibidos de fazer<br />

discussão política na sala. Indagado, em entrevista por telefone, sobre a participação de Piauhy no<br />

movimento estudantil, Denuilson revelou que ficou surpreso. Eles se conheciam, conviviam no<br />

mesmo ambiente da escola, porém, causou-lhe espanto descobrir, anos mais tarde logo após a<br />

anistia política em 1979, que o rapaz sério e discreto que conhecia fosse militante do PC do B.<br />

“Nós sempre tivemos uma relação de cordialidade. Achava uma figura simpática. Mas, nunca<br />

imaginei que ele fosse militante do PC do B”. A sua maneira de ser estranhamente reservada,<br />

como define Denilson Vasconcelos, era totalmente contrária a de outros militantes do PC do B.<br />

“Todo mundo se conhecia no movimento estudantil. O que mais me surpreende na postura de<br />

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Piauhy é que ele conseguiu preservar a sua vida de militante. Para mim, isso é surpreendente.<br />

Também tem uma outra coisa: era muito fácil identificar um militante do PC do B. Eles eram<br />

falantes demais”. Após o AI-5, Denilson é expulso da Escola Técnica, e passará a fazer<br />

militância política no Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).<br />

Juca Ferreira, atualmente vereador pelo Partido Verde, também confirma o comportamento<br />

discreto de Piauhy no movimento estudantil. Porém, revela que já era possível perceber pelo seu<br />

posicionamento em algumas discussões estudantis que ele fosse do PC do B, inclusive,<br />

colaborando discretamente em algumas reivindicações. Sobre Piauhy, afirma: “No meio dos<br />

estudantes que estavam afoitos para participar do movimento estudantil, ele se destacava por ser<br />

um jovem discreto e muito criterioso no que falava. Essa é a lembrança mais forte que tenho dele.<br />

Acho que ele já estava pensando na sua própria segurança”.<br />

Juca decidiu estudar na Escola Técnica com o propósito de fazer trabalho político. Iniciou a<br />

militância no PCB, participando de um grupo cultural e organizava palestras, debates. No início<br />

de 1968, começa a divergir do que seria o caminho pacífico da revolução nos moldes do PCB, e<br />

passa a fazer parte do grupo chamado Dissidência Comunista. A questão da luta armada se<br />

apresentava como o meio para acabar com a ditadura e também como instrumento de ascensão ao<br />

poder. Daí em diante a militância se consolidará no MR-8.<br />

Juca Ferreira seria expulso da Escola Técnica ainda no final do ano de 68. Passaria no ano<br />

seguinte no vestibular de História, da <strong>Universidade</strong> Federal da Bahia. Na universidade, deixaria<br />

de ser líder estudantil e passa a ser um quadro dirigente da organização na Bahia. Preso em 71,<br />

Juca começa a desenvolver uma visão crítica do caminho da luta armada no Brasil. Muitos dos<br />

militantes da organização estavam mortos. Escreve o documento Teoria: uma arma se bem<br />

usada, sob o codinome de Candeias. Segundo Juca, o documento era um tanto fraco em termos<br />

de conceito, mas consistia numa proposta, uma tentativa de se rever o ímpeto militarista em prol<br />

da luta armada. Era uma crítica ao livro Revolução na Revolução, do Régis Debray e a teoria de<br />

que poderia se implantar um foco guerrilheiro em terras brasileiras.<br />

52


Piauhy e a reorganização da ABES<br />

Itajacir Figueredo, à época estudante de Química Industrial na Escola Técnica, conheceu<br />

Piauhy como um dos estudantes que tentavam reorganizar o movimento estudantil na Associação<br />

Baiana de Estudantes Secundarista (ABES). “A minha convivência foi maior porque nós<br />

convivíamos juntos na escola e depois no PC do B. Mas nunca soube o verdadeiro<br />

comprometimento de Piauhy com a estrutura partidária. Até por uma questão de segurança, não<br />

havia como saber de todas as atividades nem tampouco sobre a sua vida. Fazendo uma análise<br />

hoje, notava-se que ele tinha uma participação maior dentro do partido. Pelo menos, maior do<br />

que a minha, considerado como um tarefeiro” , revela.<br />

Do período em que conviveram juntos ficou a lembrança de uma pessoa muito séria e<br />

amiga: “Uma vez eu estava fazendo muita “tarefa” para o partido, quase não freqüentava a<br />

escola. Ele chegou e me disse que o PC do B não me queria “tarefeiro”, o que no jargão<br />

significava fazer muitas ações, neste caso panfletagem.<br />

- Você não pode abandonar a Escola. O partido lhe quer estudando, disse-me.<br />

Nunca me esqueço disso, ele era uma pessoa que se mostrava muito amiga. Piauhy<br />

também tinha uma maturidade que nós com 16 ou 17 anos não possuíamos”.<br />

Piauhy nasceu em 24 de março de 1946. Seis anos mais velho do que a média de estudantes<br />

que estavam no meio estudantil secundarista, possuía, de fato, uma maturidade maior. Valdenor<br />

Cardoso que o conheceu e militaram juntos acredita que a maturidade contribuiu para que ele se<br />

mostrasse sempre tão sério em relação ao restante do grupo. Também contribuía o trabalho fixo<br />

como assistente de vídeo na TV Itapuã e como fotógrafo amador.<br />

Piauhy não era uma liderança estudantil de massa. Dedicava-se, porém, à tarefa partidária<br />

de assistência a alguns militantes da base estudantil secundarista. Maurício Barreto, à época<br />

53


estudante do Severino Vieira, confirma que o conheceu como um militante do comitê<br />

secundarista. Piauhy era responsável por repassar documentos partidários e também comparecia a<br />

reuniões de reorganização da ABES.<br />

O irmão Epaminondas conta que nunca havia imaginado que Piauhy fosse militante do PC<br />

do B. “Que o irmão participasse de passeatas estudantis, tudo bem. Afinal, os estudantes se<br />

envolviam”, afirma. Mas possuir um envolvimento maior era inimaginável. Introspectivo e<br />

apaixonado por fotografias, Piauhy vivia uma vida muito pacata dentro de casa. Meados de 1971,<br />

não lembra exatamente o mês, José comunica que vai viajar para fazer um curso de fotografia em<br />

outra cidade.<br />

Depois disso, Epaminondas vai ter notícias do irmão da forma mais imprevisível possível.<br />

Recebe uma intimação para comparecer à Polícia Federal, em final de agosto ou início de<br />

setembro de 1971, não sabe informar com precisão. Após esperar cerca de 30min, dois agentes<br />

lhe perguntaram onde se encontrava o irmão. Diziam que o irmão era comunista e estava<br />

envolvido com o movimento estudantil. Na hora, Epaminondas levou um susto: comunista,<br />

como? O cara mais tranqüilo que eu conheci em toda a minha vida? Nelson sim, sempre soubera<br />

que era um comunista. Mas, José?<br />

- Nós não vamos fazer nada contra ele. Nós só queremos saber onde ele se encontra,<br />

disseram-lhe os agentes da Polícia Federal.<br />

- Eu não sei.<br />

- Você sabe que nós consideramos todo estudante foragido como bandido, não sabe?,<br />

interpelou um dos agentes.<br />

Epaminondas nada respondeu, mas ainda chegou a pensar: se ele é um comunista, imagine<br />

o que ele deve achar de vocês! Os agentes informaram, então, que a acusação era participação<br />

política no PC do B. Naqueles momentos de tensão, Epaminondas lembra de um episódio que o<br />

marcou profundamente. Como nada sabia de José, eles começaram a fazer perguntas sobre o<br />

irmão Nelson Piauhy. “Eles me perguntaram quantos dias Nelson esteve preso no ano de 64.<br />

Quando disse menos de 30 dias, uma pessoa presente na sala, que anotava toda a nossa conversa,<br />

54


alançou a cabeça em negativa e falou: ele não foi processado. Aquilo me deu a certeza de que<br />

Nelson poderia viver tranqüilamente sem precisar ter uma vida clandestina, morando em outra<br />

cidade. Mas aquela era vida que escolheu. Ele era um comunista”. Pergunto a Epaminondas<br />

sobre a sua opinião sobre a luta dos seus dois irmãos na Guerrilha do Araguaia. Ele, apenas,<br />

respondeu: “acho que eles estavam preparados para tudo, para morrer inclusive. Menos para<br />

matar, menos para a guerra”.<br />

José Lima Piauhy Dourado foi morar no Araguaia no segundo semestre de 1971, segundo<br />

Criméia Almeida, militante comunista que participou da guerrilha até a primeira campanha.<br />

Pertenceu ao destacamento de guarda da Comissão Militar e caiu em uma emboscada do Exército<br />

no dia 30 de dezembro de 1973.<br />

55


CAPÍTULO V<br />

Estudantes são presos<br />

A Faculdade de Direito possuía poucos alunos naquela manhã de 15 de março de 1969. O<br />

ano letivo estava começando, e apenas os estudantes do primeiro semestre se faziam presentes à<br />

espera dos professores. Mas ainda não haveria aulas. Circulava o burburinho de que os estudantes<br />

que tiveram a matrícula cassada por participação no movimento estudantil fariam uma<br />

assembléia.<br />

Dias antes, Rosalindo Souza, Rui Medeiros, Vítor Hugo Soares, Amálio Couto, Juraci<br />

Novato, Eduardo Monteiro Teixeira, Demerval Pereira, João Ribeiro Souza Dantas pediram o<br />

requerimento da matrícula do quinto ano do curso de Direito. Souberam, então, que tinha sido<br />

indeferida. Os estudantes solicitaram, por escrito, à Diretoria da Faculdade uma justificativa para<br />

o ato. A resposta foi sucinta: “Indefiro por ordem superior”, assinava professor Orlando Gomes,<br />

diretor da Faculdade de Direito da <strong>Universidade</strong> Federal da Bahia. A ordem superior, a que se<br />

referia, era uma lista enviada pela Auditoria da 6ª Circunscrição Judiciária Militar com os nomes<br />

dos estudantes universitários que estavam proibidos de retornar à vida acadêmica. Entrava em<br />

vigor o Decreto 477 sancionado em 26 de Fevereiro de 1969. Assinado pelo presidente-ditador<br />

Costa e Silva, considerava no seu artigo 1º infração à lei e à ordem o aluno que “alicie, incite a<br />

deflagração de movimento que tenha a finalidade de paralisação da atividade escolar”; que realize<br />

passeatas, desfiles ou comícios. E, principalmente, conduza ou realize, confeccione, imprima,<br />

tenha em depósito, distribua material subversivo de qualquer natureza. A punição prevista seria a<br />

cassação da matrícula por três anos.<br />

Mas, no momento, em que foram requerer a matrícula os alunos não tinham conhecimento<br />

específico da lista. Havia, porém, uma suspeita de que os alunos que tinham participado do<br />

movimento estudantil em 68 poderiam ter as matrículas cassadas. E por julgar que o decreto 477,<br />

56


publicado no ano de 69, não poderia ser aplicado retroativamente decidiram realizar uma<br />

assembléia para falar sobre a cassação da matrícula. O jornalista Vítor Hugo Soares lembra que<br />

não tinha saído nenhum informe, estavam apenas conversando e articulando a reunião, quando o<br />

diretor Orlando Gomes e o secretário da escola Otávio Farias entraram na sala do 1º andar,<br />

acompanhados pelo coronel Luís Arthur de Carvalho, superintendente da Polícia Federal, e<br />

agentes policiais.<br />

Na sala ocupada pelos estudantes, Otávio de Farias entrou com uma lista. À frente da porta<br />

de saída, ficaram o professor Orlando Gomes e os agentes policiais. Vítor Hugo recorda de<br />

Otávio Farias a chamá-los, os amigos dizendo presente e tendo as suas mãos, imediatamente,<br />

algemadas. A sala silenciosa assistiu à sua prisão, de Amálio Couto, Rui Herman Medeiros,<br />

Eduardo Monteiro, Genebaldo Queiroz e João Ribeiro Souza Dantas. Ao passar pela porta,<br />

Amálio se dirigiu ao prof. Orlando Gomes: quem diria, o Sr. começou como comunista e<br />

terminou sendo um dedo duro. O professor Orlando Gomes, um homem considerado democrata,<br />

simpatizante de idéias socialistas, preso na década de 30 em decorrência da repressão do Estado<br />

Novo, ficou emudecido – o relato é de Rui Medeiros, Vítor Hugo e João Dantas.<br />

Trinta e um ano depois do episódio, Vítor Hugo, Rui e João não sabem dizer, com precisão,<br />

como a Polícia Federal teve conhecimento da reunião. Porém, não há dúvidas, assim eles relatam,<br />

quanto à aquiescência da Direção da faculdade em indicar os estudantes que deveriam ser presos.<br />

O relacionamento entre a Direção, leia-se professor Orlando Gomes, e os militantes do PC<br />

do B havia sido bastante conflitante no final do ano de 68. O Centro Acadêmico Rui Barbosa, à<br />

frente militantes do PC do B, tinha defendido a expulsão dos estudantes Átila Brandão de<br />

Oliveira, Francisco José Pitanga e Rodolfo Buonavita da faculdade sob a acusação de serem<br />

agentes policiais infiltrados.<br />

Nos protestos de rua contra a prisão do líder estudantil carioca, Wladimir Palmeira e contra<br />

o aumento da passagem de ônibus ocorridas no início de agosto, Átila Brandão e Francisco<br />

Pitanga, atuando como agentes policiais, participaram da tropa de choque de repressão aos<br />

estudantes. Sobre Rodolfo Buonavita pesava a acusação de ser um informante do Exército<br />

infiltrado no ambiente acadêmico. Em assembléia na faculdade os estudantes, Rosalindo Souza à<br />

frente do Centro Acadêmico Rui Barbosa, resolveram solicitar à expulsão dos estudantes. Para<br />

57


tanto, a Congregação acadêmica deveria criar uma comissão de inquérito para investigar se os<br />

estudantes eram agentes de informação dos órgãos de segurança.<br />

Durante três meses, de agosto a novembro, a Faculdade de Direito enfrentou uma situação<br />

de conflito interno. Os estudantes se recusavam a assistir às aulas com a presença dos policiais,<br />

abandonavam a sala e, muitas vezes, os agrediam verbalmente. A Congregação não atendia à<br />

reivindicação estudantil de verificar as acusações e defendia o fechamento da faculdade se<br />

continuassem as hostilidades contra os estudante-policiais. A noite de 9 de outubro foi o ápice do<br />

confronto. Os alunos do curso noturno, aos gritos de Fora! Fora!, expulsaram Átila Bandrão,<br />

Pitanga e Buonavita.<br />

O diretor Orlando Gomes decretou o fechamento da Faculdade. O Centro Acadêmico<br />

entrou com Mandado de Segurança contra a decisão da Diretoria, alegando que a decisão foi<br />

pessoal e não tinha sido aprovada pela Congregação. A situação chegou a tal grau de<br />

incompatibilidade que houve agressão pessoal ao diretor Orlando Gomes. Um estudante jogou<br />

um ovo na cara do professor Orlando Gomes. Quem jogou? Ninguém assumiu a autoria.<br />

Para solucionar o impasse, a Congregação criou uma comissão de inquérito, formada por<br />

professores, e o resultado saiu no dia 21 de novembro. O estudante Pitanga ficou suspenso das<br />

aulas durante trinta dias. Átila Brandão não teve nenhuma punição, devido à falta de provas<br />

conclusivas. Foi defendida a expulsão de Rodolfo Buonavita, por ter sido comprovado a sua<br />

vinculação com órgãos de segurança.<br />

Sobre a participação dos militantes do PC do B, Juraci Novato, à época um dos diretores do<br />

centro acadêmico, ressalta que apoiavam a criação da comissão de inquérito, mas que essa era a<br />

posição defendida por todos os estudantes. Sobre a decisão de expulsá-los admite: “nós levamos<br />

para a discussão em assembléia, porque não havia condições deles conviveram no ambiente<br />

acadêmico. Afinal, eles estavam a serviço da ditadura”.<br />

O fato é que a Faculdade de Direito ficou exposta à opinião pública, através das matérias<br />

jornalísticas publicadas nos jornais da cidade que publicizavam o confronto direto entre os<br />

estudantes e a posição do professor Orlando Gomes contrária às agressões contra os estudante-<br />

policiais.<br />

58


Esses fatos precederam, então, aquela manhã de 15 de março, quando agentes federais<br />

chegaram à Faculdade de Direito, minutos antes, da realização de uma reunião estudantil, e<br />

levaram presos as lideranças da reunião subversiva, como o episódio seria qualificado pela<br />

Polícia Federal.<br />

Rosalindo Souza e Demerval Pereira não estavam presentes na sala de aula. Nota do<br />

Relatório confidencial da Marinha, no entanto, faz referência a Demerval como estudante<br />

envolvido em atos de subversão na Faculdade de Direito, em março de 1969 17 . Era o Estado,<br />

onipresente, a regular a vida do cidadão.<br />

Da Faculdade de Direito, os estudantes foram levados à Secretaria de Segurança Pública<br />

para prestar depoimento. Eles ficaram presos 30 dias no Quartel do 19 Batalhão dos Caçadores,<br />

no Cabula. Nenhum dos estudantes sofreu torturas físicas. À noite, no entanto, acordavam com<br />

gritos ameaçadores dos soldados. Eles invadiam as celas, jogavam os colchões e cama no chão e<br />

assustavam a todos. O medo invadia a madrugada e ninguém conseguia dormir. A passagem pelo<br />

19BC foi dramática, mas também puderam viver uma situação inusitada. Naqueles dias, fora<br />

preso Nerival Barros Rosa, ex-prefeito de Ilhéus, cassado por corrupção na sua administração.<br />

Com boa situação financeira, a família trazia, todos os dias, sua alimentação. Imagina se o<br />

prefeito iria comer da mesma refeição servida ao preso comum! A comida abundante saciava-lhe<br />

a fome e, provavelmente, a de todos os outros presos. Os estudantes se esbanjaram com a<br />

variedades de pratos que todos os dias chegavam até eles por intermédio da benevolência do ex-<br />

prefeito. Os militantes acostumados a frequentar o restaurante universitário puderam, enfim, ter<br />

uma refeição de príncipes.<br />

Um mês após a prisão, os estudantes são conduzidos à Polícia Federal para prestar<br />

declarações ao coronel Luís Arthur de Carvalho e serem liberados. Todos os seis sentados em<br />

frente à mesa do Coronel tiveram que ouvir:<br />

- A partir de hoje, nem pensem em passar próximo a Faculdade de Direito. Se chegarem,<br />

serão presos. Não se enganem, vocês estão marcados pelo resto da vida. São comunistas!<br />

17 Esse relatório foi entregue à Comissão de Busca dos Desaparecidos da Câmara Federal, em 1993.<br />

59


O sentimento mais forte, porém, que prevaleceu nos estudantes que tiveram a sua matrícula<br />

cassada foi o de injustiça. Afinal, todos eles tinham o direito legítimo de terminar o curso, no<br />

qual faltava apenas um ano para colar grau em Bacharel do Direito. Os estudantes entraram com<br />

um Mandado de Segurança contra a cassação da matrícula, impetrado pelo advogado de presos<br />

políticos, Afrânio Lira. O advogado Amálio Couto lembra que o juiz, uma pessoa simpatizante da<br />

Ditadura Militar, declarou que “era lamentável que esses jovens tivessem sido desviados do bom<br />

caminho e lutassem contra os princípios democráticos da revolução. Mas, os toques dos clarins e<br />

da democracia que estavam em vigor não permitiriam que eles pudessem denegrir o Estado<br />

brasileiro”. O Mandado de Segurança, é claro, foi sumariamente negado. Só terminariam o curso<br />

na Faculdade de Direito da <strong>Universidade</strong> Católica do Salvador, na Estação da Lapa, no ano de 70.<br />

O diretor Manuel Ribeiro, pai do escritor João Ubaldo Ribeiro, aceitou a matrícula. Porém, impôs<br />

uma condição: os estudantes deveriam ficar distantes de discussão política bem como de tentativa<br />

de reorganizar o movimento estudantil.<br />

Rosalindo Souza e Sara Silva não se matricularam. Os dois tinham viajado para o Rio de<br />

Janeiro, e lá foram aceitos na Faculdade Cândido Mendes. Enquanto todos os outros procuravam<br />

meios para retornar a estudar, eles voltaram inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil.<br />

Juraci Novato sintetiza numa frase o que pretendiam e o que acabou ocorrendo: “enquanto<br />

defendíamos a expulsão dos agentes policiais por julgar que eles não eram pessoas honradas para<br />

conviver no ambiente acadêmico, nós é que fomos expulsos. Olha, como são as coisas. Hoje, meu<br />

filho estuda na faculdade de Direito”.<br />

Uma outra consequência da prisão dos estudantes foi a ascensão de Demerval Pereira na<br />

estrutura partidária. De esportista a guerrilheiro.<br />

60


Demerval Pereira no Comitê Regional<br />

Ao ver, diante de si, os seus colegas sendo algemados e levados pela Polícia Federal, Juraci<br />

Novato pensou que era preciso fazer algo. Com a chave do Centro Acadêmico Rui Barbosa em<br />

mãos, correu para a sala onde se imprimia as apostilas do curso e retirou o seu bem mais valioso,<br />

ou melhor, expropriou como se chamava à época, o mimeógrafo. O que fazer? Ainda era algo a<br />

se pensar!<br />

Encontra-se com Demerval Pereira, que propôs fazer, de imediato, um manifesto em<br />

repúdio à prisão arbitrária e, principalmente, à invasão da Faculdade de Direito. “Pode deixar<br />

comigo, eu escrevo”, disse Juraci. Indignado com o que acontecera, começou a escrever o<br />

manifesto, no qual não faltavam palavras ásperas e agressões à Polícia Federal, ditadura militar,<br />

diretor Orlando Gomes. Quando Demerval se depara com o texto, reprova:<br />

- Baixinho, vá com calma! Não é por aí, não. Nós vamos fazer o manifesto, mas é preciso<br />

ter tranqüilidade. Não vamos ganhar nada com esse discurso.<br />

Naquele momento, Demerval se impôs como uma pessoa de liderança e com capacidade<br />

para enfrentar uma situação crítica. Juntos, refizeram o manifesto e distribuíram entre os<br />

estudantes. Juraci Novato também restituíu o mimeógrafo ao centro acadêmico, depois que<br />

Demerval o alertou para o risco de mantê-lo escondido.<br />

Aquela manhã de 15 de março de 1969 foi exatamente o prenúncio do que seria a rotina de<br />

Demerval Pereira nos dois anos seguintes até a sua saída de Salvador, em setembro de 1971, para<br />

a área da guerrilha do Araguaia. Demerval estava, definitivamente, comprometendo-se a assumir<br />

maiores responsabilidades. A capacidade de agir com moderação em situações consideradas<br />

críticas fará com que seja considerado um dos militantes importantes na organização partidária.<br />

61


A sua trajetória de militante começa, no entanto, da forma mais imprevisível possível. No<br />

ano de 1965, passou para a Faculdade de Direito e seria conhecido pelos colegas como um rapaz<br />

que gostava muito de futebol. Chegou, inclusive, a ser o primeiro presidente do Centro Esportivo<br />

de Futebol. Se quiséssemos usar uma linguagem mais adequada ao repertório das organizações de<br />

esquerda, podia ser considerado até mesmo um alienado. O jornalista Vítor Hugo Soares, à época<br />

colega da faculdade, participava de algumas reuniões semi-clandestinas e resolveu recrutar<br />

Demerval para a militância política. O primeiro passo foi passar alguns textos políticos,<br />

documentos e, meses depois, o convidou a participar de algumas reuniões.<br />

Discreto, Demerval nunca expôs, publicamente, a sua militância, preferia atuar na infra-<br />

estrutura partidária à participar do movimento estudantil. O advogado João Souza Ribeiro Dantas<br />

lembra que se surpreendeu com o seu comprometimento político. Relata: “Demerval não possuía<br />

o prestígio de Eduardo Collier (estudante pernambucano e militante da AP, um dos mais<br />

importantes líderes de massa dentro da Faculdade de Direito, e desaparecido político desde<br />

23/02/74). Demerval não fazia declarações públicas nos embates políticos. Mas, ele possuía<br />

capacidade de organizar a base, de preparar novos militantes e garantir a sua assistência. O<br />

esportista, de repente, tinha se tornado um militante aguerrido, um guerrilheiro”.<br />

Se, para alguns, foi difícil conciliar, ou então aceitar, a imagem de esportista com a do<br />

militante do PC do B, o que dizer então de sua preferência por filmes de Glauber Rocha, no qual<br />

o Dragão da Maldade derrotava o Santo Guerreiro; ou então, das sessões imperdíveis assistindo a<br />

filmes de arte no Clube Walter da Silveira. Para Vítor Hugo, esta era uma grande qualidade.<br />

Enquanto havia militantes com uma tendência ao sectarismo e a se fechar em posições<br />

ideológicas, práticas comuns naquele período, Demerval procurava manter uma postura aberta<br />

para ouvir opiniões divergentes e a se dedicar a outras atividades que não as partidárias.<br />

Vítor Hugo relembra que os dois estudavam francês na Casa da França, situado no campus<br />

do Canela, da UFBa. Quando eles não podiam comparecer à uma reunião partidária, os colegas<br />

militantes lhes recriminavam por essa atitude. Consideravam-na desnecessária até mesmo menos<br />

importante para completar a formação revolucionária. Demerval, não. Por maior que fosse seu<br />

envolvimento partidário e o tempo dedicado ao trabalho de bancário, na Caixa Econômica<br />

Federal, na rua da Ajuda, centro de Salvador, desejava ampliar a sua formação cultural.<br />

62


Demerval era considerado uma pessoa agradável e com forte carisma pessoal. Espirituoso<br />

e alegre, era um típico baiano soteropolitano, alto, negro, forte e usava um bigode preto e espesso<br />

sob os lábios. Nascido em Salvador, em 16 de fevereiro de 1945, filho de Carlos Gentil Pereira e<br />

Francisco das Chagas Pereira, ambos já falecidos. A família possuía uma situação<br />

socioeconômica típica de classe média baixa soteropolitana. O ambiente familiar nunca foi<br />

propício às discussões políticas. Essa resistência continua até hoje. Os familiares não aceitam<br />

fazer declarações públicas sobre a militância de Demerval, nem divulgar dados sobre a própria<br />

família. Dos irmãos, têm-se conhecimento público do médico Dilson Pereira, já falecido; Dorival<br />

Pereira, idem. Dorival trabalhava como corretor de imóveis. No início da década de 70, estudava<br />

economia na Faculdade de Ciências Econômicas da UFBa, possuía conhecimentos da militância<br />

partidária do irmão e chegou, eventualmente, a participar como um simpatizante. Permitindo,<br />

inclusive, que um imóvel seu, situado próximo à Rua do Cabeça, fosse utilizado como aparelho,<br />

ou seja, local seguro para reuniões.<br />

A família só terá conhecimento sobre a militância de Demerval com a cassação da sua<br />

matrícula no curso de Direito no ano de 1969. Saberá que aquelas reuniões e bate-papos de<br />

amigos de faculdade possuíam um significado maior. A partir daí, as reuniões estudantis na<br />

residência da família, no bairro de Matatu de Brotas, não foram mais toleráveis. Porém, a<br />

dimensão real da militância partidária só foi percebida quando agentes da Polícia Federal o<br />

procuram em sua residência, nos primeiros dias de setembro de 1971, para interrogá-lo.<br />

Demerval ainda consegue sair de sua casa, sem ser reconhecido pelos agentes. Será a última vez<br />

em que será visto por seus familiares.<br />

63


“Se é pra morrer por qualquer coisa, morra por algo<br />

que transforme, mude a história do país”<br />

Até conseguirem retornar a vida acadêmica, os estudantes se afastaram um pouco da<br />

atividade partidária. Amálio de Almeida Couto, atualmente advogado, à época pertencia ao<br />

Comitê Regional(CR) e responsável pela assistência à base estudantil, decide, ainda no ano de<br />

69, abandonar a militância partidária. Rafael, secretário político do CR desde o ano de 65,<br />

também resolve sair à revelia do PC do B. Seu nome verdadeiro continua, trinta anos depois,<br />

clandestino para quem o conheceu. O CR ficava, então, sem a participação de dois dirigentes<br />

importantes.<br />

A partir daí, Demerval passa a ter um maior envolvimento na organização partidária,<br />

chegando a participar do CR. Rui Hermann Medeiros avalia a participação de Demerval como de<br />

fundamental importância para que o partido se mantivesse estruturado, até a chegada de Sérgio<br />

Miranda, hoje Deputado Federal/PC doB. Enviado pelo Comitê Central, Sérgio passa a cuidar do<br />

trabalho político na cidade e, posteriormente no ano de 1972, em cidades da região sul da Bahia,<br />

como Ilhéus e Itabuna.<br />

Antes de sua chegada, no entanto, quem sustentou a barra do PC do B foi Rui Medeiros e<br />

Demerval. Duas vezes por semana, encontravam-se para analisar a situação. “Era um trabalho<br />

mesmo de sustentar a barra, não deixar que desestruturasse. Demerval possuía muita disciplina e<br />

capacidade de articular pessoas e mantê-las em atividade. Ele entregava documentos para o<br />

estudante de base, ainda em formação, cobrava as leituras e discutia textos. Possuía também<br />

capacidade analítica para detectar problemas. Porém, o traço mais marcante da sua personalidade<br />

era a tranqüilidade que não o abandonava em nenhum momento. A situação poderia ser a mais<br />

comprometedora possível, mas ele permanecia calmo”.<br />

De militante a membro do Comitê Regional, Demerval começa a reforçar a sua segurança<br />

pessoal. Os contatos com novos militantes passaram a ser feitos por ponto, encontro previamente<br />

combinado. Passaria a ser conhecido como Santos. Quando o partido intensifica a campanha em<br />

64


prol da revolução, desde o final de 69, onde conclama que o verdadeiro comunista deveria estar<br />

imbuído da vontade revolucionária, as discussões em torno da luta armada, já presentes no dia-a-<br />

dia da sua militância, intensificam-se. Afinal, estaria preparado para a grande tarefa do<br />

revolucionário comunista?<br />

De onde, vinha, então, essa crença de que a guerrilha rural poderia ser a alternativa para<br />

derrubar a ditadura? Luzia Ribeiro, que participou da guerrilha do Araguaia, relembra de uma<br />

das últimas conversas com Demerval sobre a opção do trabalho revolucionário. A guerra popular<br />

prolongada, como a definia o PC do B para os seus militantes, se apresentava como a alternativa,<br />

o caminho viável, para acabar com a ditadura.<br />

“Luzia, se é pra morrer por qualquer coisa, morra por algo que valha a pena. Morra por algo<br />

que transforme, mude a história do país”, afirmava Demerval em favor da luta armada. Não<br />

falava à toa. A militância partidária já estava umbilicamente ligada a sua vida pessoal, as suas<br />

opções de vida. Isso ficou comprovado, quando na festa de formatura do curso de direito, no final<br />

do ano de 70, renunciou à confraternização de colação de grau de bacharel em Direito. Não<br />

compareceu por julgá-la, e disse explicitamente ao colega Amálio Couto, um exemplo de<br />

conciliação com os rituais da classe média burguesa.<br />

Possuidor de um carisma pessoal, Demerval era noivo de uma estudante de pedagogia<br />

chamada Isa Almeida, mas não foi a única com quem teve um relacionamento afetivo. Ana<br />

Guedes, à época estudante de serviço social e militante da AP, o conheceu em uma reunião de<br />

reestruturação da UEB. Foi paixão fulminante. “Ele chamou a minha atenção, porque falava<br />

muito bem e era muito hábil. Possuía um charme especial”.<br />

O relacionamento afetivo foi um pouco clandestino. Segundo Ana, as duas organizações<br />

não admitiam que houvesse relacionamento pessoal mais afetivo entre os seus militantes. Havia<br />

também um outro drama. “Demerval era noivo!. Naquele momento, era uma barra que eu não<br />

sabia se queria sustentar”, revela. Apesar de todas as restrições, o relacionamento foi breve mas<br />

intenso. Chegou um momento em que resolveram ficar um tempo afastados. Meses depois, Ana<br />

encontra o amigo Vítor Hugo e pergunta sobre Demerval. Vítor diz: “ele saiu da cidade,<br />

desapareceu”.<br />

65


Demerval Pereira deixou Salvador, em setembro de 1971, quando foi procurado pela<br />

Polícia Federal. Seu nome consta no processo judicial 18 sob acusação de tentativa de organização<br />

partidária clandestina.<br />

O julgamento só ocorreu em janeiro de 74, no qual foi julgado à revelia e absolvido.<br />

Demerval Silva Pereira está desaparecido desde 1974, quando foi preso na casa da moradora<br />

Nazaré Rodrigues de Souza, na região do Araguaia.<br />

18 O processo judicial não é disponível ao público. A sentença do processo, datado de 28/01/1974, pode ser lida na 6ª<br />

Circunscrição da Auditoria Militar, em Salvador. O processo consta com a numeração 13/72. Maiores detalhes ver<br />

capítulo VIII, neste livro, p.95.<br />

66


Capítulo VI<br />

Combater é preciso, viver não é preciso<br />

O Ato institucional nº 5 (AI-5) e o Decreto 477 foram instrumentos importantes para que<br />

houvesse o refluxo do movimento estudantil, porém não impediram de modo absoluto a atuação<br />

dos estudantes. É certo que não existiriam passeatas nem grandes manifestações de rua, e nem<br />

poderiam haver caso não quisessem ser punidos pela Lei de Segurança Nacional, que proibia<br />

qualquer manifestação contrária à ordem instituída pelo Estado.<br />

Assim pensavam os estudantes que entraram na <strong>Universidade</strong> naquele ano de 69. Vandick<br />

Reidner Coqueiro iria estudar Economia; Luzia Reis, em Ciências Sociais, na <strong>Universidade</strong><br />

Federal da Bahia. Dinaelza Santana e Emília Teixeira, em Geografia, na <strong>Universidade</strong> Católica<br />

do Salvador. Eles não eram líderes estudantis experientes e destacados, o contato com o<br />

movimento estudantil surgiu sob a influência das manifestações de 68, como integrantes daquela<br />

massa de estudantes anônima que saía às ruas de Salvador para protestar. A militância política só<br />

se consolidará quando entram na <strong>Universidade</strong> e a encontram esvaziada, sem a presença de suas<br />

principais lideranças que ficaram proibidas de se matricular.<br />

Os estudantes do PC do B assumem, de imediato, o compromisso de reorganizar o trabalho<br />

estudantil. Luzia Ribeiro recorda que o PC do B determinou que o estudante-militante deveria<br />

encontrar meios de atuar em entidades legais junto à Congregação. A intenção era manter uma<br />

atuação legal para que pudesse ter acesso às salas de aula, reivindicar propostas específicas e<br />

mobilizar outros estudantes. O objetivo final, no entanto, era ampliar a base partidária e estimular<br />

o surgimento de lutas de massa.<br />

O movimento estudantil, porém, estava totalmente esfacelado. Os militantes ligados ao<br />

PCB que, naquela época possuíam uma grande liderança, se recusam a participar de entidades<br />

67


colocadas na ilegalidade pelo regime militar. O PCB defende uma tática de recuo político para<br />

sobreviver à atuação da repressão e decide participar legalmente da vida política do país,<br />

vinculando-se ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Na Bahia, isso significará um<br />

abandono da luta estudantil nas entidades União Baiana dos Estudantes (UEB) e a Associação<br />

Baiana dos Estudantes Secundaristas (ABES).<br />

As organizações de esquerda que adotam a luta armada a partir da guerrilha urbana também<br />

não terão interesse em atuar nas entidades legais. É o caso, por exemplo, da Dissidência<br />

Comunista, formada por estudantes que saíram do PCB e recusaram a linha política pacífica. No<br />

dia 13 de dezembro de 1968, ocorria eleição para a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas<br />

(UBES), em Salvador. Tudo indicava que a Dissidência ganharia a eleição. Juca Ferreira, à época<br />

estudante da Escola Técnica, possuía uma larga margem de votos. Ele lembra que faltavam<br />

apenas cinco votos quando ouvem pelo rádio o comunicado do Ato Institucional nº 5. As outras<br />

organizações - AP e PC do B - dissolveram a eleição para não consolidarem a minha chapa,<br />

afima. Se não bastasse a jogada de bastidores, Juca é proibido de estudar na Escola Técnica. Vai<br />

cursar História na UFBa, abandona o movimento estudantil e se torna quadro dirigente do MR-8<br />

no Estado. Os novos planos são a luta armada imediata. Não havia, na concepção de Juca e da<br />

organização, condições de atuar no movimento estudantil.<br />

O PC do B, ao contrário, considerava importante a atuação nas entidades estudantis. O que<br />

estava em jogo era uma campanha intensa pela mobilização de setores sociais e, sobretudo,<br />

ampliar a base de militantes. É importante observar que os documentos internos do partido fazem<br />

referência explícita a essa necessidade de ampliar a linha de massa. Em dezembro de 1969, o<br />

Comitê Central divulga o texto Responder ao Banditismo da Ditadura Militar com as lutas de<br />

massa, no qual ressalta a possibilidade de estender a participação do PC do B em amplos setores.<br />

O texto defende de forma clara que todos os que se declaram contra a Ditadura Militar devem<br />

desenvolver várias frentes de luta. É válido ler um trecho: “Quando a ditadura vai num crescendo<br />

de violências e trata de impedir qualquer atividade política de massas, é míster golpear o inimigo<br />

em toda a parte, desenvolver o trabalho de massa tanto aberto como clandestino. Todas as lutas<br />

grandes ou pequenas contribuem para desgastar a ditadura. O Brasil passa por uma situação que<br />

exige o emprego de ações revolucionárias de diversas modalidades. (...) Impõe-se, portanto, às<br />

68


forças conscientes estudar as condições concretas de cada lugar e tomar a iniciativa de ações<br />

revolucionárias que tenham sentido para as massas. (...) A deflagração de tais lutas não depende<br />

só da maior ou menor atividade repressiva do inimigo. Depende, no fundamental, da disposição e<br />

da organização das massas, de sua consciência política, do grau de opressão e exploração a que<br />

estão submetidas. Apesar de momentaneamente contidos, os trabalhadores e os estudantes,<br />

utilizando de formas adequadas à atual conjuntura, podem levar a cabo ações em defesa de seus<br />

interesses econômicos e políticos 19 ”.<br />

De acordo com o texto, a necessidade de intensificar as lutas de massa, portanto, era<br />

premente, fazia-se urgente. Que fossem pequenas ou grandes as ações, o importante era agir. O<br />

militante deveria estar disposto a colocar a sua vida, ou agir como vanguarda - esta não é uma<br />

retórica poética, tratava-se de uma determinação incentivada pelo próprio Partido -, à disposição<br />

da causa comunista e acabar com a ditadura militar. O PC do B vislumbrava a propagação da<br />

guerra popular prolongada que, preferencialmente, seria desenvolvida no campo através de um<br />

processo de conflagração da área, depois transformá-la numa área liberada, e paulatinamente, se<br />

expandiria por todo o país. Acabou desembocando na Guerrilha do Araguaia, desenvolvida entre<br />

os anos de 1972 a 74, no sul do Pará, e resultaria na primeira experiência brasileira de foco<br />

guerrilheiro, já que a luta restringiu-se, apenas, à uma área restrita e sem que a massa tomasse a<br />

luta para si. A ação ficou restrita ao grupo de combatentes no total de 58 guerrilheiros, que lá<br />

morreram e são desaparecidos políticos.<br />

A partir do começo do ano de 1969, a formação de quadros se fazia necessária para área de<br />

campo, já que vários dos combatentes seriam retirados progressivamente do meio urbano, mas<br />

também para manter o PC do B presente na cidade. Como também criar as condições objetivas<br />

para, conforme a máxima maoísta, a fagulha poder transformar-se “numa chama vigorosa que as<br />

forças reacionárias jamais conseguirão apagar 20 ”. As massas, nesse caso, os estudantes<br />

necessitavam ser o agente catalisador dessa fagulha, seriam a classe de vanguarda no processo.<br />

Como mobilizá-los? Este era o desafio que cabia aos estudantes baianos. O primeiro passo foi<br />

reorganizar as entidades estudantis.<br />

19 VENTURA, Maria Isabel Pinto (Ed). In: Política e revolucionarização do partido. Lisboa: Edições Maria da<br />

Fonte, 1977 (Coleção Documentos). Ver página 75-76.<br />

20 Idem.idem.p.75.<br />

69


Luta pela reestruturação da UEB<br />

No setor universitário, militantes do PC do B e os da Ação Popular (AP) intensificam uma<br />

aliança estratégica para reestruturar a União dos Estudantes da Bahia (UEB). Vandick Reidner<br />

Coqueiro, Emília Teixeira e Luzia Ribeiro, militantes do PC do B; José Sérgio Gabrielli,<br />

estudante de economia, e Ana Guedes, estudante de Ciências Sociais, pela AP, fazem parte da<br />

comissão formada em meados de 1969.<br />

A UEB não possuía nenhuma representatividade depois de 1968. A última grande<br />

assembléia ocorrera no dia 10 de novembro de 1968. Em pauta o 29 o Congresso que escolheria o<br />

novo presidente da entidade. A edição do jornal A Tarde do dia 11 informava que a eleição, no<br />

entanto, não havia sido realizada por divergências entre os grupos estudantis com a apresentação<br />

de três chapas. O PC do B se fazia presente com a chapa Unidade na Luta- Ofensiva 68 e o<br />

estudante de Direito Aurélio Miguel, como candidato a presidente. O Congresso se prolongou por<br />

alguns dias e a chapa vencedora foi a do acadêmico de economia Filemon Matos, militante do<br />

PCB. Com o Decreto 477 em vigor, os militantes do PCB se recusam a participar das entidades<br />

colocadas na clandestinidade. Sérgio Santana, na época estudante de economia e militante do<br />

PCB, acreditava que a alternativa era os instrumentos legais de atuação e acatou a decisão<br />

partidária de não se expor ao trabalho com entidades clandestinas.<br />

Os estudantes que faziam parte da comissão procuravam revitalizar a UEB e tentar dar-lhe<br />

uma sobrevida, apesar de operar na clandestinidade. Esse caráter clandestino da entidade havia<br />

desde o ano de 1965, com a Lei Suplicy, mas suas lideranças poderiam falar publicamente e nada<br />

lhes acontecia. Mas é bom lembrar que estávamos em 1969, era tempo de AI-5, e o movimento<br />

estudantil não podia atuar tão livremente. As atividades se baseavam em combinar ações legais<br />

de massa aberta a todos os estudantes sem vinculação partidária com as clandestinas, nas quais<br />

faziam trabalho partidário de panfletagem. Apesar de pequeno, o trabalho da comissão cresceu.<br />

Muitas reuniões abertas da UEB entre os estudantes seriam realizadas no Hospital das Clínicas,<br />

ao lado da Reitoria da UFBA, no bairro do Canela.<br />

70


Ana Guedes, estudante de serviço social, recorda que os estudantes procuravam discutir a<br />

situação do país, a ditadura militar e a atuação do movimento estudantil. “Nós tínhamos a<br />

compreensão de que o estudante era um potencial quadro para a organização. Eu era uma<br />

militante do movimento estudantil, mas com a compreensão de que nós estávamos lutando para<br />

derrubar a ditadura militar”.<br />

Através do trabalho da comissão, Ana Guedes conhece Vandick Reidner Coqueiro. Apesar<br />

do convívio breve foi possível construir um relacionamento fraterno, mas sem grande<br />

envolvimento pessoal. Vandick sempre a lhe causar a impressão de uma pessoa séria e<br />

comprometida com o trabalho político. Criterioso com normas de segurança, as conversas entre<br />

eles se restringiam às discussões políticas sobre o regime militar.<br />

A união estratégica entre as duas organizações no processo de reestruturação do movimento<br />

estudantil não anulava o embate teórico sobre o caráter que a revolução brasileira deveria<br />

assumir. O pensamento de Mao-Tsé-Tung e a forte influência da Revolução Cultual Chinesa os<br />

aproximavam, mas havia divergências.<br />

O professor de economia José Sérgio Gabrielli faz questão de explicitar essas diferenças: “a<br />

AP acreditava que não existia um partido de vanguarda da classe operária. Poderia até haver uma<br />

possibilidade desse partido ser construído a partir da fusão entre as duas organizações. Em<br />

contraposição, o PC do B já se considerava o Partido de vanguarda da classe operária”.<br />

A Ação Popular nasceu no ano de 1962, entre militantes da Juventude Universitária<br />

Católica e de outras agremiações dentro do universo da Igreja Católica, e defendia o humanismo<br />

cristão. A partir de 67, a Direção vai manter relações com lideranças chinesas e adotará a defesa<br />

da guerra popular prolongada. No livro Combate nas Trevas: das ilusões perdidas à luta armada,<br />

o historiador Jacob Gorender afirma que a AP será convencida pela doutrinação chinesa da<br />

necessidade de se fazer a revolução nacional em duas etapas - como defendia o PC do B - a<br />

revolução nacional democrática no presente e a revolução socialista no futuro. Porém a passagem<br />

para o maoismo não foi feito sem traumas, muitos militantes contestavam o movimento de<br />

integração no setor de produção, que propunha a eliminação da distância social entre<br />

profissionais liberais, operários e camponeses. Inclusive, profissionais liberais vão trabalhar<br />

como operários nas fábricas. Em março de 1971, a AP se proclama Ação Popular Marxista-<br />

71


Leninista (AP-LM) e conclama as demais organizações marxista-leninistas a formalizarem um<br />

novo partido proletário. O novo partido não foi criado, entretanto. O que acabou ocorrendo em<br />

1972 foi a incorporação de militantes da AP como Agnaldo e Renato Rabelo, Aldo Arantes, Ana<br />

Guedes e Haroldo Lima na estrutura do PC do B. Gabrielli tinha um pensamento contrário. À<br />

época já defendia a imprescindibilidade de um trabalho de massa no meio urbano,<br />

particularmente no setor industrial e na classe média. No início da década de 80, seria um dos<br />

fundadores do Partido dos Trabalhadores na Bahia.<br />

É certo que as divergências teóricas faziam parte das reuniões da comissão de<br />

reestruturação da UEB. Porém, havia um objetivo imediato: o de tentar desenvolver lutas<br />

estudantis no âmbito da universidade. Foram realizados encontros com representantes de sala de<br />

aula. Trabalhos pequenos, mas que tentavam a todo custo manter o espírito de discussão e de<br />

reflexão na universidade. Os membros da comissão também atuavam com atividades de agitação<br />

e propaganda política como panfletagem e os comício-relâmpagos. Eles não ignoravam o fato de<br />

que o caráter político dado a essas ações, pois elas denunciavam a ditadura militar, os deixava<br />

expostos à repressão. Gabrielli lembra que eram situações de muita tensão, porque havia o risco<br />

de ser preso, porém reconhece que foram dedicadas muitas horas a esse tipo de atividade.<br />

Recorda também que Vandick adotou, aos poucos, um estilo de vida clandestino, diminuiu a<br />

participação dele na comissão e já não freqüentava com assiduidade o curso. Quando pensava<br />

em articular junto com os demais membros da comissão a possibilidade de realizar um trabalho<br />

legal de massa para eleição de um Congresso da UEB, em meados de 1971, Gabrielli percebeu<br />

que ele havia sumido, desaparecido. “Vandick era um quadro com capacidade de trabalho e de<br />

articulação dentro da Faculdade muito grande. Era bastante corajoso também, aguerrido. Na<br />

verdade, nós éramos uns meninos corajosos”.<br />

Um exemplo de como a coragem fora uma atitude predominante naquele período, ou como<br />

se pensava que tudo aquilo era tão-somente coragem e repúdio à ditadura militar, foi a<br />

organização de uma greve geral contra a visita oficial de Nelson Rockfeller ao Brasil, em junho<br />

de 1969. O professor de administração Osvaldo Barreto, à época estudante de economia e<br />

militante do PC do B, lembra que a greve atingiu grande parte da <strong>Universidade</strong>. Na Faculdade de<br />

Economia, localizada na Praça da Piedade, os estudantes abandonaram as salas de aula e ficaram<br />

72


sentados no chão em protesto. Barreto lembra que o coronel Luís Arthur de Carvalho,<br />

superintendente da Polícia Federal, possuía o hábito de fazer visitas regulares na Faculdade para<br />

comprovar se não havia nenhuma atividade subversiva.<br />

Naquele dia, acompanhado por policiais, Luís Arthur de Carvalho passa por entre os<br />

estudantes sentados no pátio e entra no prédio, passeia pelas salas de aula e as encontra vazia. Sai<br />

derrotado por não ter encontrado nada que pudesse comprometer os estudantes. Não assistir à<br />

aula não era, ao menos não havia conhecimento disso, um ato de subversão previsto na Lei de<br />

Segurança Nacional. À sua saída, os estudantes sentados no chão do pátio não resistem a uma<br />

vaia. Eles comprimem os lábios e uhhhhhhhhh!!!!!!! A vaia não foi estrepitosa, era apenas um<br />

murmúrio suficiente para que pudesse ser ouvido. O superintendente não fez nada, de imediato.<br />

Esperou, pacientemente, que um dos estudantes saísse da Faculdade para interrogá-lo. Rui<br />

Monteiro, estudante de economia, foi interrogado para dizer quem liderara a vaia, uma prova de<br />

que o autoritarismo desmedido começava a marcar a atuação das forças de repressão. Se ela<br />

começava a se preocupar com uma vaia, é sinal de que, no futuro próximo, tudo seria feito para<br />

calar qualquer tentativa de resistência.<br />

Os estudantes em ação<br />

O trabalho político legal se entrelaçava com as atividades clandestinas de propaganda e<br />

agitação política. Os estudantes faziam bastantes comícios-relâmpago, bem como panfletagens<br />

durante o dia e a noite numa febre incessante de romper o silêncio e de contestar o regime militar.<br />

Como se fez muitos, então por que não tecer algumas considerações?<br />

A idéia do comício-relâmpago é simples: escolhe-se um local de grande concentração<br />

popular e um orador, eleito por sua experiência e capacidade de falar ao público, expõe a<br />

mensagem. Tudo isso em poucos minutos. No máximo, três. A simplicidade é só aparente. A<br />

execução de um comício-relâmpago é um verdadeiro trabalho de organização e prevenção contra<br />

a ação de policiais.<br />

73


Há necessidade de que seja um local onde exista uma grande aglomeração de pessoas. O<br />

orador deve falar de um ponto alto entre a multidão para que todos o ouçam. O mais importante é<br />

criar uma infra-estrutura que impossibilite a chegada de policiais no local. Para isso, os<br />

estudantes costumavam estudar as vias de acesso e de saída do local. Ninguém se propunha a<br />

enfrentar os policiais: a idéia era descobrir via de saída, a mais rápida possível, para evitar que<br />

fossem presos.<br />

A grande preocupação era com a segurança do orador. Quase todos que participaram dos<br />

comícios confessam que, no último minuto do discurso ou quando percebiam a chegada de<br />

policiais, era pernas-pra-que-te-quero. Um dos comícios mais importantes realizados na capital<br />

ocorreu em meados do ano de 70. A estação de ônibus da Barroquinha, na Baixa de Sapateiros,<br />

estava completamente lotada. Já eram seis horas da tarde, e os trabalhadores ficavam à espera do<br />

seu ônibus para retornar a sua casa. De repente, surge o estudante Osvaldo Gouveia Ribeiro,<br />

estudante do Colégio Central, com o rosto coberto com uma tarja preta no rosto, somente os<br />

olhos à vista, chapéu na cabeça, e começa a falar palavras rápidas sobre a situação do país. Ao<br />

redor dele e por toda a Estação da Barroquinha, pequenos grupos de estudante distribuíam<br />

sofregamente panfleto de propaganda partidária, enquanto gritavam: abaixo a ditadura! Abaixo a<br />

ditadura!<br />

O historiador Manoel Neto, à época militante do PC do B, recorda que era preciso ter<br />

agilidade imensa para distribuí-los. Hora, os panfletos estavam debaixo de camisas ou pacotes<br />

improvisados. Outra, as mãos a redistribuí-los para outras mãos. Algumas afoitas para escondê-<br />

los rapidamente em suas bolsas e, quiçá, seriam lidos na sala de jantar. Às vezes, caiam em mãos<br />

receosas. O medo a deixar o panfleto cair no chão e ser pisado pelos transeuntes. É difícil saber<br />

qual a receptividade àquelas palavras sôfregas do orador a dizer em poucos minutos a causa da<br />

luta deles. De imediato, podia se sentir a aceitação ou não dos panfletos, o que não demonstra<br />

muita coisa. A longo prazo, somente o silêncio.<br />

Ao que se sabe, nenhum militante foi preso por participar de comício-relâmpago. Como<br />

também nunca foi preciso usar nenhum tipo de ação mais enfática, como utilizar coquetel<br />

molotov ou as armas que alguns militantes mais afoitos chegaram a levar em alguns casos. “Foi<br />

74


muito bom porque ninguém tinha treinamento militar e não sabiam sequer como usá-las”, conta<br />

Manoel Neto.<br />

Aqui entra uma questão. Diferentemente de outras organizações de esquerda,<br />

preferencialmente a da guerrilha urbana, os militantes do PC do B nunca fizeram treinamento<br />

militar na cidade de Salvador. O assunto armas, inclusive, não é comentado explicitamente,<br />

julgam envolver, desnecessariamente, pessoas e como conseguiram as armas. Os militantes que<br />

se predispõem a falar em armas confessam a sua quase inutilidade para os seus propósitos<br />

naquele momento, bem como a sua origem: as armas, revólveres apenas, eram expropriadas de<br />

suas próprias residências, de algum tio ou pai que as escondiam no guarda-roupa.<br />

Na prática, os comícios-relâmpago e as panfletagens noturnas foram a tentativa de fazer<br />

luta de massa na cidade, quando o PC do B se fazia presente através das ações desses militantes.<br />

Tudo isso permeado numa confusão de sentimentos em que o divino maravilhoso se misturava<br />

com o perigo. A voz, a época, áspera de Gal Costa, na canção “Divino Maravilhoso”, já alertava:<br />

Atenção menina / ao dobrar a esquina / quantos anos você tem ... Atenção / para o sangue sobre<br />

ao asfalto. Atenção / tudo é perigoso / tudo é divino maravilhoso.<br />

Todos os militantes do PC do B fizeram panfletagem. Ubirajara Dantas Batista lembra que<br />

nestes dias pouco encontrava o irmão Uirassu Batista. Às voltas com a militância partidária,<br />

Uirassu já não assistia às aulas do Colégio Central. Estava, totalmente, envolvido pelas tarefas<br />

partidárias desde à distribuição de panfletos ao recrutamento de outros estudantes.<br />

As panfletagens noturnas eram feitas em áreas mais afastadas do centro da cidade,<br />

primordialmente nos bairros periféricos. O perigo iminente convivia também com o inusitado da<br />

situação. Na época era comum nas casas populares a proteção de cachorros. Alguns militantes<br />

confessam que os latidos dos cães no silêncio da noite eram mais comprometedores do que a ação<br />

de policiais. Juraçi Novato lembra que uma noite às três da madrugada estavam ele e outra<br />

militante, de codinome Silvia, no bairro da Fazenda Grande. Começou a distribuir os panfletos de<br />

propaganda contra a ditadura militar. Os papéis faziam um barulho enorme para passar por<br />

debaixo das frestas da porta, o pensamento vagando se não seria aquele o dia em que algum<br />

morador, acordado pelo barulho, o alvejaria com paus, pedras, ou até mesmo um revólver<br />

pensando tratar-se de um ladrão. Quando a militante que o acompanhava se aproximava da rua<br />

75


onde ele estava, dois cachorros aos latidos fazem um maior barulho. Juraci que começava a<br />

pichar as primeiras palavras Abaixo a .. no muro de uma das casas, só ouve o grito: Aí, não!<br />

Desceram numa correria desembalada. Os sons dos cachorros ao longe a acompanhá-los, o fôlego<br />

a lhes faltar. Olharam um paro o outro e disseram: aqui, nós não vamos fazer nada não.<br />

É possível indagar se, de fato, as atividades de panfletagem e comício-relâmapagos<br />

cumpriam o papel pretendido pelos militantes, que seria o de alertar a população para o que<br />

estava ocorrendo no país.<br />

Pessoalmente, acredito que não - diz Ubirajara Dantas. Na época, porém, não dava para ter<br />

uma percepção clara do que estava ocorrendo realmente no país e das transformações<br />

socioeconômicas que ocorriam. Ubirajara tem a lembrança, no entanto, de que a classe média<br />

começava a se empolgar com o crescimento econômico a 10% ao ano. E o governo Emílio<br />

Garrastazu Médici possuía até mesmo popularidade, apesar de toda a repressão política e morte<br />

nos porões dos órgãos de segurança. Esclarece também que até mesmo as pessoas do seu círculo<br />

de amizade, consideradas mais esclarecidas, começavam a se envolver com a contracultura e a<br />

abandonar a militância, por não acreditar mais na viabilidade da luta armada. No ano de 1972, as<br />

prisões de estudantes que começaram a militância junto com ele servem para lhe abrir os olhos.<br />

O PC do B estava desarticulado, pensava. A despeito de sua vontade pessoal, não conseguia se<br />

rearticular com outros militantes, alguns deles na clandestinidade, e resolveu abandonou a<br />

militância.<br />

É mesmo incompreensível para quem não viveu a efervescência do cotidiano daquela<br />

época, entender porque muitos jovens decidiram arriscar-se ao perigo e a serem presos. A<br />

conclusão a que se pode chegar ouvindo os relatos dos militantes é a de que as panfletagens e os<br />

comícios-relâmpago foram o modo que encontraram para resistir à ditadura. A opção pela luta<br />

armada no Brasil e o combate ao autoritarismo passaram muito por essas ações. Um olhar à<br />

distância pode parecer que foram pequenas demais para tanta doação, diante de um Estado<br />

fortalecido por órgãos de segurança especializados em combater às organizações de esquerda.<br />

Até mesmo ineficientes, diriam os descrentes.<br />

Não se pode negar, no entanto, que alguns estudantes e militantes acreditavam que aquelas<br />

atividades significavam uma reação à ditadura, a falta de liberdade. É claro também que a<br />

76


evolução e a luta armada estavam presentes no cotidiano, eram parte de um discurso político-<br />

ideológico com perspectiva de ação concreta, como seria a Guerrilha do Araguaia.<br />

O economista Gabriel Kraychete Sobrinho, que participou das atividades de reorganização<br />

da ABES e UBES, sintetiza o que levou parte dos estudantes a se tornarem ativistas políticos: “<br />

na verdade, lutava-se por questões mínimas. E você dava a vida por conta disso. Nós estávamos<br />

longe de questionar o poder político. Isso era o discurso. As atividades eram muito localizadas, as<br />

manifestações eram a favor de liberdade, de resgatar o direito das entidades se organizarem”.<br />

O advogado Fábio Nóvoa, à época estudante do Colégio Vieria, diz que os sonhos de<br />

transformação social perseguiam a todos e que daquela forma a resistência democrática ao regime<br />

militar se construía e se intensificará nos anos seguintes com perspectivas de nascimento de<br />

outras forma de luta.<br />

O economista Carlos Eduardo Carvalho, à época também estudante do Vieira, acrescenta<br />

algo importante ao debate: por que não se desenvolveu de forma mais intensa as atividades<br />

legais, por que se deu predomínio demasiado às atividades clandestinas e militantes capacitados<br />

tiveram que abandonar a militância na cidade de Salvador para cumprir outras tarefas em outros<br />

lugares? O questionamento é válido, principalmente quando é feito por alguém que aos 20 anos<br />

de idade deixa a sua cidade natal para a semi-clandestinidade em São Paulo, dedicado<br />

exclusivamente a tarefas internas de infra-estrutura partidária.<br />

Será que era tão imprescindível ao Partido a política em prol da revolucionarização de seus<br />

militantes que os levavam, desde muito cedo, a uma atuação clandestina e a não explorar outras<br />

formas de resistência? Ouvi de alguns militantes essa pergunta, numa tentativa de entender o<br />

porquê de todo aquele sonho de transformação social não ter sido concretizado. Por que só se<br />

vislumbrava a alternativa da luta armada no campo? Pergunta que diz muito sobre o nosso<br />

passado, da consolidação da democracia no país e do caminho seguido pela esquerda armada no<br />

país. As respostas para essa pergunta e tantas outras, estão aí a flutuar na memória dos que<br />

ficaram, na vida que se segue, na coragem de quem as procura.<br />

77


A opção política pela guerrilha do Araguaia<br />

O ano de 1971 será decisivo para os planos da guerrilha rural no país, assim pensava o PC<br />

do B. Em julho de 70, o Comitê Central assinalava a necessidade do militante embrenhar-se do<br />

espírito revolucionário e de colocar em prática ações que criem um ambiente propício à guerra<br />

popular. No texto Mais audácia na luta contra a ditadura, o PC do B afirmava aos seus<br />

militantes que a ditadura militar procurava demonstrar força e se apresentar como poder<br />

inabalável. A ditadura, segundo a análise do Comitê Central do PC do B, mostrava-se<br />

enfraquecida. Veja o que diz o texto:<br />

“Os militares procuram aparentar força, apresentar seu Poder como algo inabalável. Na<br />

realidade, esse Poder é um poder precário, fraco e instável. Está corroído por profundas forças<br />

contraditórias que atingem as próprias Forças Armadas, seu principal sustentáculo. O AI-5 e<br />

outros dispositivos são aplicados de modo crescente contra militares. Ao invés de fortalecer-se, a<br />

ditadura isola-se cada vez mais. O descontentamento popular crescerá inevitavelmente e o<br />

movimento revolucionário cobrará novas energias. Entre as próprias forças que sustentam o<br />

regime militar se aguçarão as divergências. Fatalmente surgirão novas crises políticas. No<br />

entanto, a Ditadura não cairá por si mesma. Terá que ser derrubada pela violência revolucionária<br />

das massas. Para o povo brasileiro continua na ordem-do-dia, com a maior premência a questão<br />

de levar a cabo as ações revolucionárias, de preparar e desencadear a guerra popular. A situação<br />

no Brasil e no mundo se apresenta favorável às forças da revolução e não às da contra-revolução.<br />

Os revolucionários que se atrevem a lutar, e persistem na luta, alcançarão a vitória 21 .”<br />

A Resolução acrescentava ainda que era preciso promover com audácia os novos quadros<br />

que evidenciassem espírito de luta. Chegara o momento em que devia romper com a passividade,<br />

o conformismo, as atitudes contemplativas e os debates estéreis. O militante deveria preocupar-se<br />

permanentemente com a revolução e atrever-se a lutar.<br />

21 VENTURA, Maria Isabel Pinto (Ed). In: Política e revolucionarização do partido. Lisboa: Edições Maria da<br />

Fonte, 1977 (Coleção Documentos). Ver página 97. 78


Contraditoriamente, todas essas posições defendidas pelo PC do B encontravam<br />

consonância com um clima político em que as outras organizações de esquerda que se<br />

propuseram a fazer a revolução no país sofriam revezes, mas demonstravam que o projeto da luta<br />

armada no país estava sendo executado. Carlos Lamarca e a VAR-Palmares haviam rompido o<br />

cerco das tropas militares no Vale da Ribeira, no ano de 1970. Os seqüestros de embaixadores<br />

estrangeiros libertavam presos políticos e criavam uma falsa impressão de que aquelas<br />

organizações conseguiam vitórias contra o regime militar. A Vanguarda Popular Revolucionária<br />

será responsável no ano de 1970 pelos sequestros do diplomatas Nobuo Okuchi, do Japão,<br />

Ehrefried Von Holleben, da Alemanha, Giovanni Enrico Bucher, suíço.<br />

Uma análise a posteriori confirmará que, ao contrário, as organizações de esquerda armada<br />

estavam na mais completa clandestinidade e isoladas socialmente. Sofriam também uma<br />

repressão violenta, com a morte sob tortura de grande parte dos seus militantes. A infra-estrutura<br />

para realizar os seqüestros e manter os seus quadros na clandestinidade por um período longo,<br />

que garantissem a sua segurança, exigia altas somas em dinheiro que as organizações não<br />

dispunham. Imersos no ímpeto das ações armadas, os próprios militantes das organizações<br />

acreditavam estarem fazendo o possível para deflagrar a revolução. A morte de companheiros na<br />

luta também os impulsionava a ir adiante: era preciso honrar a vida de tantos que tombavam na<br />

luta.<br />

Diante dos projetos desenvolvidos por outras organizações de esquerda, faltava ao PC do B<br />

demonstrar que encontrava-se predisposto a organizar a luta de massa no país. A seu favor,<br />

possuía a relativa liberdade que usufruía os seus militantes, pois ainda não estavam sendo<br />

literalmente caçados pelos órgãos de segurança. Destruídas as organizações de guerrilha urbana<br />

no ano de 71, as atenções do aparato militar do Estado, no entanto, se voltarão para o PC do B<br />

com a prisão e morte de seus principais dirigentes, como Carlos Nicolau Danielli, Linconl Oeste,<br />

Luís Guilhardinni, Lincoln Bicalho Roque, assassinados sob tortura pelos órgãos de segurança<br />

entre dezembro de 1972 e abril de 1973.<br />

Antes disso, porém, a linha de frente do PC do B na cidade será desarticulada<br />

gradativamente. Na Bahia, por exemplo, a série de prisões na base secundarista, no ano de 1971,<br />

interrompe um trabalho de ascensão de futuros militantes, que partipavam do trabalho de<br />

79


eorganização estudantil na ABES. Concomitantemente, algumas lideranças estudantis que<br />

começavam a sua formação como militantes saíram de Salvador. Uirassu Batista, em fevereiro.<br />

Vandick Reidner e Dinaelza, em março. Rosalindo Souza, em abril. Demerval Pereira, no início<br />

do mês de setembro, Luzia Ribeiro, em outubro.<br />

A retirada de quadros que estivessem visados ou em vias de serem presos era uma<br />

estratégia do PC do B. Dias antes de 13 de abril de 1971 quando se realizaria o julgamento na 6 a<br />

Circunscrição da Justiça Militar em Salvador, Rosalindo Souza foi procurado pelo dirigente<br />

nacional Carlos Nicolau Danielli e Carlos Augusto Pinheiro, dirigente regional. A posição era<br />

clara: o Partido recomendava que não se apresentasse porque tudo indicava que seria condenado,<br />

sendo, nestas condições, mais seguro o militante se deslocar para uma outra área.<br />

Este era o procedimento básico cumprido por quase todos os militantes que estavam<br />

respondendo a processo judicial. O estudante cearense Custódio Saraiva Neto, um dos<br />

guerrilheiros mortos no Araguaia, viveu clandestino em Salvador, no período de 70/71. Helenira<br />

Rezende, outra guerrilheira, também. Representante da UNE, Helenira participava de reuniões<br />

clandestinas e passava orientações aos estudantes baianos.<br />

A alternativa do trabalho revolucionário no campo não surgiu por acaso para os militantes<br />

baianos que foram para o Araguaia. A discussão sobre a luta armada sempre esteve presente nas<br />

reuniões partidárias e presente nos documentos políticos como Guerra popular - caminho da luta<br />

armada no Brasil. As circunstâncias que levaram alguns militantes e não outros à área da<br />

guerrilha rural podem ser encontrados no grau de comprometimento que assumiam diante da<br />

crença na luta armada assim como, mas não necessariamente, ao grau de suscetibilidade de ser<br />

preso.<br />

Havia uma situação de repressão política na cidade, mas não atingia, exclusivamente, os<br />

militantes do PC do B, que os obrigassem a mudar de cidade e ir para uma região de trabalho de<br />

guerrilha. A opção para entrar na clandestinidade viera para Luzia Ribeiro, uma das guerrilheiras<br />

sobreviventes do Araguaia, como uma solução para escapar à prisão, já que os policias federais a<br />

procuravam na casa dos seus pais em Jequié e na sua residência em Salvador. A clandestinidade,<br />

porém, não levava obrigatoriamente à região do Araguaia, como ela ressalta. Em uma conversa<br />

com o dirigente Carlos Nicolau Danielli, ele colocara três opções: trabalho de campo; ficar<br />

80


clandestino em outra cidade ou sair para o exterior. Luzia confessa que não lhe passou outro<br />

pensamento senão o de continuar com o trabalho revolucionário a que se propunha desde que<br />

começou a sua militância. Ela indaga: “seria justo ser presa porque fazia panfletagem de poesia<br />

de Castro Alves? Que país é esse? Meu desejo era lutar pela liberdade, pela democracia”.<br />

81


Capítulo VII<br />

Encontro, paixão em Salvador<br />

Dinaelza Santana e Vandick Coqueiro se conheceram quando estudavam na cidade de<br />

Salvador, no ano de 1969. Ela, uma estudante de geografia da <strong>Universidade</strong> Católica do Salvador.<br />

Ele, estudante de economia da <strong>Universidade</strong> Federal da Bahia. A amiga comum, Luzia Ribeiro os<br />

apresentou. Luzia a elogiar a amiga de Jequié que estava interessada em participar do grupo de<br />

estudo de documentos políticos. Por ironia do destino, os dois tinham passado a adolescência na<br />

mesma cidade e nunca trocaram uma palavra sequer. Um olhar, alguns convites para festas, os<br />

dois sempre tão próximos. Logo depois, os amigos não tiveram dúvidas que o namoro era sério e<br />

firme. No dia 25 de abril de 1970, Dinaelza e Vandick se casavam na 1 a Vara de Família do<br />

Fórum Ruy Barbosa, em Salvador.<br />

Dinaelza Santana nasceu em Vitória da Conquista, em 22 de março de 1949. Cinco anos<br />

depois do seu nascimento, a família resolveu morar em Jequié, no bairro popular de Joaquim<br />

Romão, atendendo as constantes viagens do chefe da família. O pai, Antônio Pereira Santana,<br />

trabalhava como topógrafo, sendo obrigado a viajar constantemente por força do trabalho de<br />

medição de terra pelo sertão baiano adentro. A mãe, Junília Soares Santana, ficava em casa com a<br />

prole de cinco filhos Dilma, Dinaelza, Dinorá, Dineide e Getúlio, único homem da família. Diva<br />

Santana, a primogênita, estava casada. Para ajudar o orçamento doméstico, Junília trabalhava<br />

como costureira. Apesar da vida simples e com pouco recurso financeiro, os pais Antônio e<br />

Junília, ainda hoje vivos, lembram que sempre incentivaram o estudo dos filhos. Dinorá Santana<br />

recorda-se que a irmã era muito estudiosa. As irmãs possuíam o hábito de acordar às três horas da<br />

madrugada e rever, sob a luz de uma lamparina, as lições passadas pela professora em sala de<br />

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aula. Dilma e Dinorá se dedicariam ao magistério. Dinaelza resolvera seguir um outro caminho.<br />

Quando foi pegar o diploma de professora no final do ano de 68, avisou a família de que iria<br />

prestar vestibular na capital do Estado.<br />

Vandick Reidner chegara antes. Há dois anos, estudava no Colégio Central e teve o<br />

primeiro contato com as passeatas de rua. Os pais Elza Pereira Coqueiro e Arnóbio Santos<br />

Coqueiro continuavam morando em Jequiezinho, um bairro de classe média. O pai trabalhava<br />

como coletor de tributos da Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia. Considerado um homem<br />

inteligente, Arnóbio gostava de ler e escrever poesias. Possuía também um senso de ética<br />

bastante acentuado que influenciou a formação dos cinco filhos Wagner, Vandick, Valter,<br />

Ubirajara e Tânia.<br />

Ubirajara Coqueiro guarda a lembrança de um lar muito franco e fraterno, sem ignorar, é<br />

claro, as pequenas e costumeiras brigas entre os irmãos. Os pais criaram os filhos ressaltando o<br />

valor de ser íntegro e honesto. Arnóbio também fizera com que os filhos assimilassem, desde<br />

muito cedo, o sentimento de indignação contra a desigualdade social. “Quando Wagner e<br />

Vandick se mudam para Salvador, começam a estudar e conhecer a realidade brasileira, que se<br />

mostrava injusta para muitas pessoas, os valores da família vão influenciar o caminho da<br />

militância política”, alerta Ubirajara.<br />

São também esses valores que fizeram com que Vandick, o segundo filho de Arnóbio,<br />

nascido em 9 de dezembro de 1949, possuísse um comportamento muito sério e maduro<br />

demonstrado já na adolescência. O corpo adolescente tomou muito cedo o formato do que seria<br />

quando jovem. Vandick era alto, possuía 1,80m, tez morena e possuía compleição física de uma<br />

pessoa forte e saudável. Costumava participar das reuniões dançantes no clube social e das festas<br />

de São João, porém não bebia e não fumava. Havia as namoradas e paqueras, mas sem nunca ter<br />

passado de um namoro breve e descompromissado. Gostava de jogar futebol, considerado,<br />

inclusive, um bom zaguei<br />

ro. As “peladas” com os amigos se tornaram costumeiras no campo de Jequiezinho.<br />

Tânia Coqueiro, a única filha mulher na família, lembra que ele demonstrava<br />

temperamento de uma pessoa tranqüila e cordata. Na rua onde moravam havia um casal de<br />

idosos, chamados Ruth e Tio Burtinho, de origem pobre e carentes de atenção. Vandick<br />

83


costumava visitá-los e ficavam horas conversando. Ele ouvindo, pacientemente, as histórias do<br />

casal.<br />

Ainda é presente na lembrança de Tânia, o senso desmedido de proteção do irmão. “Eu<br />

nasci em 1954, cinco anos mais nova do que ele. Então, Vandick sempre me defendia das<br />

pequenas brigas entre irmãos. Cuidava muito de mim, levava-me a festas e queria ouvir meus<br />

problemas. Às vezes, protegia demais. Lembro que adorava usar as camisas dele para ir às festas.<br />

Ele dizia: você não pode usar as minhas camisas. Fica com a marca do peito. Tem que usar as<br />

suas roupas de menina”.<br />

Quando Vandick sai de Salvador, envia uma carta de despedida aos pais. Nela menciona a<br />

forma como a irmã Tânia, à época com 16 anos e chamada de nega pequeninha, deveria ser<br />

educada. As palavras dirigidas à irmã, muito mais do que excesso de zelo, revelam traços de sua<br />

personalidade: “mãe, quase ia esquecendo da minha nega pequeninha. Que saudade vou sentir<br />

dela. A burrinha na sua inocência não sabe os problemas que a esperam. Discuta com os manos<br />

a educação dela. Procurem dar, desde cedo, uma noção positiva da vida e das dificuldades que<br />

ela nos impõe. Não utilize o método repressivo na sua educação (bater, gritar, etc.). Também<br />

não lhe denguem. Não confundir carinho com proteção exagerada. Ela deve sentir as<br />

dificuldades das coisas e ser ajudada a compreender as maneiras de resolver por si suas<br />

dificuldades”.<br />

Era esse, então, o filho e o irmão que a família Coqueiro conhecia, uma pessoa muito ligada<br />

a família e extremamente sério no trato com o outro. Quando Vandick comunica que vai se casar<br />

com a namorada Dinaleza Santana, a família não se surpreendeu com a decisão. Apesar da idade<br />

precoce, possuía apenas 20 anos, os pais Arnóbio e Elza confiavam na sua maturidade para tomar<br />

tal atitude.<br />

Se a família de Vandick não se surpreendeu com a notícia do casamento, o mesmo não se<br />

pode dizer da família Santana. Dinaelza enviou uma carta para os pais, dizendo que estava<br />

apaixonada pelo rapaz que namorava há poucos meses e que se casariam em breve. Comunicava<br />

ainda que o casamento seria realizado no cartório civil do Fórum Ruy Barbosa, em Salvador. O<br />

pai, Antônio, fica escandalizado ao ler a carta: “mas, como? Casar, sem me pedir a benção!”.<br />

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Uma jovem de 20 anos, casar sem pedir o consentimento, sem cumprir o ritual do noivado e sem<br />

cerimônia religiosa, parecia-lhe uma afronta aos valores da tradicional família brasileira. À<br />

época, Junília, conciliadora, tentou amenizar a situação: “deve ser alguma brincadeira da<br />

Dinaelza”. Não era, como ficou comprovado dias depois. Dinaelza foi visitar os pais e levou o<br />

noivo para ser apresentado, oficialmente, como futuro marido. Vandick pediu o consentimento<br />

formal da família para oficializar o casamento, mas foram ambos resolutos e determinados na<br />

defesa de que se casariam no cartório civil. Assim se fez.<br />

Foi uma cerimônia alegre e descontraída. Estavam presentes no cartório a turma de militantes<br />

não somente do PC do B, mas amigos e simpatizantes de outras organizações como José Sérgio<br />

Gabrielli, da AP, colega de Vandick na Faculdade de Economia. Nunca se festejou com tanta<br />

intensidade um casamento. A primeira recepção foi um almoço discreto com ambas as famílias<br />

no apartamento no Condomínio Bahia, no IAPI, onde moraria o casal. Raimundo Batista da Luz<br />

realizou uma festa em seu apartamento no Politeama. Antônio Martins Melo, amigo comum do<br />

casal, mas sem vínculos com a militância partidária, organiza uma confraternização na sua casa,<br />

no bairro da Graça, com requintes de uma grande festa típica da classe média alta de Salvador. O<br />

médico Celso Cotrim recorda que a festa foi um sucesso, com fartura de comidas e bebidas.<br />

Quando Dinaelza, com a simplicidade que a caracterizava, encontrava o amigo Antônio não<br />

resistia a um comentário: “o que é que você tem na sua casa hoje?”.<br />

Recém-casados, a situação financeira do casal era difícil. Viviam no apartamento simples,<br />

com poucos móveis, apenas fogão, guarda-roupa e cama de casal. No apartamento morava<br />

também Wagner, à época já militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).<br />

O envolvimento com a militância partidária é, cada vez mais, visível para quem os conhecia.<br />

Ubirajara Coqueiro, três anos mais jovem do que o irmão, presenciou de perto esse envolvimento.<br />

Convicto da necessidade de lutar contra a ditadura militar, Vandick possuía uma capacidade de<br />

convencimento e de entusiasmar as pessoas. Nem os pais escaparam de compartilhar conversas<br />

duradouras sobre o futuro da revolução no país. Os pais não se tornaram militantes ativos, como<br />

esperava o filho, mas contribuíam financeiramente com o PC do B.<br />

Ubirajara é logo recrutrado para a militância. À época estudante secundarista no Instituto<br />

Educacional Régis Pacheco se aventuraria a fazer panfletagem noturna na cidade de Jequié.<br />

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Quando vinha visitá-los em Salvador, ficavam horas discutindo textos políticos até de<br />

madugrada. Não lhe era estranho, no entanto, o clima de tensão que, constantemente, percebia<br />

nos irmãos Wagner, Vandick e em Dinaelza. Vandick sempre a sair com uma pasta preta<br />

pequena, onde escondia, sob o fundo falso, um revólver. Ubirajara não chegara a ficar<br />

preocupado nem amedrontado. Talvez devesse, alerta trinta anos depois. Porém, sempre soube<br />

que o comprometimento político do irmão não era algo passageiro e inconseqüente. Vandick<br />

possuía muita convicção e acreditava que não havia possibilidade de aceitar passivamente a<br />

ditadura militar. Ubirajara também estava envolvido na roda viva de discussões políticas, ler<br />

documentos do Partido e fazer panfletagem. Não tinha como não acreditar, naquele momento,<br />

que o caminho da luta contra a ditadura militar poderia ser outro, senão o da militância política<br />

em uma organização considerada revolucionária. Somente em 1971, com a tentativa de prisão<br />

contra Wagner Coqueiro, é que a militância passa a ocupar um lugar secundário. Era preciso<br />

tentar garantir a vida e a segurança pessoal do irmão. Terminava assim, a sua participação.<br />

O centralismo democrático em xeque<br />

O PC do B sempre esteve presente no casamento do casal, o tempo dividido entre os<br />

estudos e as atividades partidárias. Não havia como dissociá-los. Dinaelza era a esposa de um<br />

revolucionário. Vandick era o marido de uma revolucionária. Sim, aqui não havia concessões.<br />

Para Dinaelza, ambos eram comunistas revolucionários.<br />

À época, o Comitê Regional, tendo à frente Demerval Pereira e o estudante de medicina<br />

José Caldas de Almeida, não concebeu assim. Foi determinado que Vandick ficaria responsável<br />

por realizar tarefas no Comitê Estudantil. Defendiam que ele dedicasse todo o tempo necessário<br />

às tarefas da organização partidária e na comissão de reorganização estudantil da UEB. Dinaelza<br />

continuaria trabalhando na empresa aérea Sadia, atualmente Transbrasil, e ficaria responsável<br />

pela sustentação financeira do casal, ou seja, no trabalho de produção como se denominava<br />

dentro da estrutura partidária.<br />

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Luzia Ribeiro, que acompanhou de perto essa discussão, lembra que Dinaelza não aceitou a<br />

decisão e colocou em xeque o centralismo democrático, princípio previsto no Estatuto do partido<br />

que afirma que o militante deve submeter-se às decisões partidárias. Dinaelza aceitava a<br />

determinação de trabalhar, afinal sempre procurara a sua independência financeira, porém<br />

defendia a necessidade de fazer trabalho estudantil na <strong>Universidade</strong> Católica do Salvador. O que<br />

ela faria com a experiência que adquirida no grêmio do Instituto Educacional Régis Pacheco, em<br />

Jequié?, indagava. Jogaria fora? Não, afirmou categoricamente.<br />

A militância de Dinaelza começou como liderança estudantil no grêmio do colégio. O<br />

diretor Milton Rabelo, atualmente membro do Conselho Estadual de Educação, era uma pessoa<br />

rigorosa e não permitia manifestações estudantis dentro da escola. No ano de 68, as irmãs Dilma,<br />

Dinaelza, Dinorá e amiga Lícia Galvão procuram tornar o grêmio mais ativo e fazem atividades<br />

culturais. Criam um boletim e colocam alguns artigos no mural. Já havia um posicionamento<br />

político, porém disfarçado em recomendações de leitura de livros e de incentivo às reuniões<br />

festivas. É nesse período que encenam uma peça teatral sobre Zumbi, o herói dos quilombos de<br />

Palmares, no teatro da Igreja paroquial, para o grupo de amigos e colegas. Tudo isso era feito<br />

legalmente querendo chamar a atenção dos estudantes para a necessidade de se reunir.<br />

Desde o final do ano de 1966, Dinaelza participava de um grupo de estudo de filosofia e<br />

literatura marxista. A primeira influência foi a do PCB, através de dois estudantes Raimundo<br />

Novais e Antônio Luís Martins Melo, simpatizantes do partido comunista. Eles indicaram<br />

algumas leituras de livros. Primeiros foram os romances realistas, alguns documentos que<br />

falavam do movimento estudantil e só depois documentos políticos. Assim começa a sua<br />

iniciação política. Quando chega a Salvador, Dinaelza não é uma pessoa inexperiente nem<br />

tampouco fora o casamento precoce e rápido com o companheiro que a havia levado a entrar na<br />

militância política.<br />

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Dinaelza possuía personalidade forte e determinada. Luzia afirma: “A Dinaelza foi uma<br />

das únicas pessoas que eu conheci na militância política que abriu essa discussão do trabalho de<br />

produção e desafiou o centralismo democrático. Existiram muitos relacionamentos pessoais que<br />

foram prejudicados por causa da mania que o PC do B tinha de colocar a mulher no trabalho da<br />

produção e o homem na condução do trabalho político. Na realidade, havia um certo machismo.<br />

Não estou tirando o mérito do trabalho de produção, porque quem sustenta um revolucionário,<br />

revolucionário também é. Mas, ao abrir a discussão, Dina demonstrou que possuía uma visão<br />

muito mais avançada do que a do PC do B. Ela acreditava que se não se desenvolvesse<br />

politicamente, a relação pessoal e a formação cultural ficariam prejudicadas. Ela queria que os<br />

dois crescessem politicamente juntos. Quando decidiram ir para o Araguaia, os dois foram de<br />

comum acordo”.<br />

Após algumas reuniões com o Comitê Regional, Dinaelza ganhou a discussão. Vandick<br />

ficaria com o trabalho político no Comitê Estudantil na UFBa, e também trabalharia como<br />

professor de história. Dinaelza faria trabalho político no Comitê Estudantil da UCSal.<br />

Conquistada a emancipação como militante, Dinaelza junto com Raimundo Batista,<br />

estudante de História, e Lícia Galvão, estudante de serviço social, seriam responsáveis pelo<br />

trabalho de reestruturação do Diretório Central dos Estudantes (DCE) na UCSal. Até o ano de<br />

1970, o DCE praticamente não existia. A sua criação era uma luta antiga dos estudantes. Ana<br />

Guedes, estudante de serviço social e presidente do Centro Acadêmico Tomás de Aquino, à<br />

época militante da Ação Popular, lembra que as lideranças estudantis sempre lutaram para<br />

reconstruir o DCE da Católica, mas nunca conseguiram torná-lo uma entidade estudantil oficial,<br />

nem mesmo com a luta de massa que marcou as manifestações estudantis do ano de 1968.<br />

Raimundo Batista, militante do PC do B desde o ano de 1965, recorda-se que passaram a<br />

desenvolver atividades culturais para atrair os estudantes sem que fossem vinculadas à questão<br />

partidária. Emília Teixeira, irmã de Antônio Carlos Teixeira, e Dinaelza Santana são eleitas<br />

diretoras do Centro Acadêmico de Geografia e fazem um trabalho típico de representação<br />

estudantil, ou seja, resolver problemas internos e reinvidicatórios relacionados ao curso.<br />

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Batista ressalta que era um trabalho essencialmente de luta de massa aberto e legal; ocupar<br />

os espaços de atuação e criar um movimento abrangente, com a participação de vários estudantes.<br />

Mas, como era ativista político, havia a perspectiva de atrair futuros militantes para a<br />

organização. Por isso, a ênfase nas atividades clandestinas e partidárias. Tentava-se a todo custo<br />

combater a ditadura militar.<br />

Dinaelza e Vandick saem de Salvador<br />

Nos primeiros meses do ano 1971, Carlos Eduardo Carvalho tem um encontro com<br />

Dinaelza Santana, no bairro da Pituba. Não lembra, exatamente, quando a viu pela primeira vez,<br />

provavelmente, no movimento estudantil contra a anulação do resultado do vestibular da<br />

<strong>Universidade</strong> Católica, no final de janeiro de 1971. Sob a suspeita de que ocorrera irregularidade<br />

no vestibular, o reitor Monsenhor Eugênio Veigas decidiu anulá-lo, de forma arbitrária.<br />

O professor de Economia da Pontifícia <strong>Universidade</strong> Católica de São Paulo, Carlos<br />

Eduardo, à época havia passado para o curso de economia da UCSal e UFBa, lembra que o<br />

problema era muito restrito ao universo acadêmico. Porém, os militantes do PC do B perceberam,<br />

naquele movimento, a oportunidade de torná-lo uma luta de massa, citado até mesmo na Rádio da<br />

Albânia como manifestação do descontentamento estudantil. “Algo assim como o renascimento<br />

do movimento estudantil”, afirma. Os estudantes, ele à frente do movimento, decidiram orientar<br />

os alunos aprovados a contratarem advogados para entrar com Mandado de Segurança e cancelar<br />

o ato proibitório. Fizeram manifestações de rua e ficaram acampados em frente à sede da Reitoria<br />

da <strong>Universidade</strong> Católica, no Campo Grande. Os protestos tiveram repercussão social. E o<br />

Monsenhor Eugênio Veigas teve que voltar atrás, e cancelar a anulação do vestibular.<br />

Quando se encontram nesta manhã de 71, Dinaelza conta que a partir daquele momento, ele<br />

seria responsável pelo Comitê Universitário. Aos 17 anos, Carlos Eduardo, que mal tinha entrado<br />

na universidade, seria agora um militante com poder na hierarquia partidária. Até então, a sua<br />

militância sempre esteve ligada a trabalho cultural. Carlos Eduardo começou a militância política<br />

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na Juventude Católica (JUC), organização nascida sob influência da Igreja Católica. No ano<br />

anterior, era presidente do Conselho de Representação de Sala, do Colégio Antônio Vieira, e<br />

procurava promover reuniões e debates. Foi esse trabalho que o levou a ter contato com os<br />

militantes do PC do B, entre eles Uirassu Batista, e a participar da reorganização da ABES. No<br />

final de novembro de 70, decidiu ser um militante do PC do B. Ser um comunista!<br />

As condições políticas da época, revela Carlos Eduardo, levavam a que uma pequena<br />

liderança possuísse acesso às instâncias máximas do partido e também demonstravam que a<br />

direção do PC do B começava a retirar os seus militantes importantes da cidade de Salvador,<br />

como aconteceria com Vandick e Dinaelza.<br />

O local do encontro com Dinaelza era uma das transversais da Av. Paulo VI. Na época, a<br />

rua era pouco movimentada, muito diferente do que é hoje, havia poucas casas e o Colégio<br />

Militar. Quem os visse, andando pela rua ainda de terra batida, pensaria tratar-se de um casal de<br />

namorados a passear tranqüilos conversando sobre a vida e as pequenas divagações de jovens. A<br />

tranqüilidade era só aparente. Carlos Eduardo ouvia uma Dinaelza, emocionada, contar que a sua<br />

segurança pessoal e a de seu esposo, Vandick Reidner, estavam ameaçadas. O seu cunhado<br />

Wagner Coqueiro estava sendo procurado pela Polícia Federal.<br />

- Talvez, nós não nos encontremos, mas você deve continuar a luta e passará para o Comitê<br />

Universitário. Confio muito em você – dizia Dinaelza.<br />

Despediu-se com um forte abraço e um beijo. Indicou outro estudante que deveria ser o seu<br />

contato na <strong>Universidade</strong> e, depois desse encontro, Carlos Eduardo nunca mais a encontrou.<br />

Naquele momento, Carlos Eduardo não possuía maiores detalhes, mas, de fato, a segurança<br />

pessoal de Vandick e Dinaelza poderia estar ameaçada na cidade de Salvador. Tudo começou<br />

com a prisão de Paulo Pontes da Silva e Teodomiro Romeiro dos Santos, no Dique de Tororó, em<br />

27 de novembro de 1970. Caía um dos membros da cúpula da Direção Estadual do Partido<br />

Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), que tentava reorganizá-lo, após a prisão das<br />

principais lideranças nacionais do partido, entre elas Apolônio de Cavalho e Jacob Gorender.<br />

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Quando Wagner Coqueiro, irmão de Vandick, soube da prisão de Paulo Pontes, anunciada<br />

pelos jornais porque morrera Walder Xavier de Lima, sargento da aeronática, morto com um tiro<br />

da pistola disparada por Teodomiro, começa um corre-corre para tirar todo material partidário e<br />

papéis de alguns aparelhos do PCBR. Um dos quais se localizava na Liberdade. Os militantes,<br />

desesperados, procuram local para se esconderem. O que poucas pessoas sabem é que o PC do B<br />

vai ajudar a garantir a segurança de alguns militantes. Pelo menos, os que eram conhecidos do<br />

círculo de amizades de ambas as organizações.<br />

Rui Medeiros, à época do Comitê Regional e Comitê Municipal, relata que Vandick<br />

Reidner articulou com o PC do B para ajudar alguns militantes do PCBR, principalmente para<br />

garantir a segurança pessoal de Wagner Coqueiro. Como se observará em vários episódios de<br />

quedas das organizações nos meses e anos seguintes, quase todos os militantes se conheciam. Os<br />

laços de parentesco entre os dois irmãos e o fato de estudarem na mesma Faculdade de Economia<br />

tornavam a situação ainda mais complicada e poderiam confundir os órgãos de informação.<br />

“Quem era Wagner? Quem era Vandick? A repressão poderia confundir os dois” - quem alerta<br />

para isso é o professor Osvaldo Barreto, à época militante do PC do B. E acrescenta que os<br />

militantes das duas organizações costumavam fazer ações de panfletagem juntos.<br />

Paulo Pontes, dirigente regional do PCBR, dava assistência a Wagner Coqueiro. Desde o<br />

primeiro contato, Wagner o alertou de que possuía um irmão militante do PC do B. O parentesco,<br />

conta Paulo Pontes, criava uma situação de tensão, porque poderia infringir normas de segurança<br />

de ambas as organizações. A estratégia foi adotar um esquema específico de segurança. O relato é<br />

de Paulo Pontes: “Quando a gente do PCBR ia fazer uma ação mais significativa com a<br />

participação de Wagner, ele alertava Vandick para se precaver. A mesma coisa Vandick fazia,<br />

quando o PC do B planejava fazer algo”.<br />

Wagner Coqueiro não foi preso. Depois de ficar clandestino todo o ano de 71 e<br />

desvinculado da organização, viaja para o Chile. Com a morte de Salvador Allende, em setembro<br />

de 1973, segue para a Suécia, onde mora atualmente. Wagner prefere não comentar o assunto. O<br />

único comentário, dado pessoalmente quando esteve em Salvador, no dia 27 de novembro de<br />

91


2000, é a de que “Vandick possuía uma participação maior que a minha. Inclusive, eu o alertei<br />

para ter cuidado”.<br />

Assim que, ocorre a prisão de Paulo Pontes, Wagner fica escondido clandestinamente na<br />

casa do padre francês Pierre Demouliere, no bairro de São Cristóvão. O padre trabalhava na<br />

empresa de produtos inorgânicos estatal Tilbrás, atualmente empresa norte-americana Millennius<br />

Chemical Inorganic. Era uma pessoa simpatizante da organização e prestava ajuda eventual. O<br />

contato com Pierre Demouliere, à época conhecido como Pedro Paulo, foi feito por Rui<br />

Medeiros, militante do PC do B responsável por fazer trabalho político com intelectuais baianos e<br />

padres progressistas da igreja, principalmente os padres operários franceses que viviam na Bahia<br />

e moravam na paróquia do Pilar, localizada no Comércio.<br />

Prender Wagner Coqueiro era um dos objetivos da Polícia Federal. O antropólogo Roberto<br />

Albegaria, à época militante do PCBR, confirma que o nome de Wagner foi, ostensivamente,<br />

indagado quando esteve preso. Eles queriam saber quem era Wagner. A repressão só saberá com<br />

maiores detalhes, quando Weslei Macedo, estudante secundarista de Jequié e recrutado por<br />

Wagner, é preso acusado de expropriar dois mimeográfos. Policiais sob o comando do Capitão<br />

Evangelista tentam prender Wagner Coqueiro, em Jequié, mas ele consegue escapar. Inicia aí, seu<br />

período de clandestinidade.<br />

Logo após a tentativa de prisão, o pai Arnóbio Coqueiro viaja para a cidade de Salvador. Às<br />

pressas, Dinaelza e Vandick abandonam o apartamento no IAPI. Ainda deixam alguns<br />

documentos do Diretório Central dos Estudantes. Antes de sair de Salvador, entre 10 a 15 de<br />

março, Vandick ficaria morando num quarto de pensão no bairro da Vitória, cedido por um<br />

amigo. “Quase não saía, e para se alimentar, contava com a solidariedade dos amigos e a bandeja<br />

de alimentação do refeitório da Residência Universitária”, quem relata é Osvaldo Barreto.<br />

Dinaelza ficaria na casa do amigo de militância, Raimundo Batista, estudante de História da<br />

UCSal.<br />

Que influência a situação de repressão aos militantes do PCBR, especialmente a Wagner,<br />

teve sobre a decisão de Vandick e Dinaelza de saírem de Salvador, naquele momento? É provável<br />

que o fato tenha, apenas, antecipado a sua decisão pessoal de mudar de cidade e se envolver, cada<br />

92


vez mais, com a luta revolucionária. Não se pode ignorar que havia uma decisão do PC do B em<br />

preparar ideologicamente seus militantes para a guerrilha.<br />

Na carta de despedida enviada ao irmão Ubirajara Coqueiro, Vandick revela os motivos que<br />

o levaram a sair de Salvador, o seu comprometimento com a luta e a convicção de que o novo<br />

trabalho seria vitorioso.<br />

Querido mano<br />

Salvador, 9 de março de 1971.<br />

Quantas saudades hem rapaz. Do futebol, dos “salões” em frente da casa aporrinhando os<br />

“velhos 22 ”, das nossas brigas, dos nossos papos e das nossas pequenas e raras conversas sérias que<br />

tivemos. Só agora sinto o quanto vocês, os manos, são importantes para mim. E quanto os amo.<br />

Bem mano a essa altura você já deve saber do que eu vou tratar aqui. Vou-me embora e<br />

provavelmente não o verei mais, bem como não vou ver os “velhos” e os outros manos. O “velho” já<br />

deve ter discutido isto com você. Ele só não esperava que não fosse revê-los pela última vez. É que estive<br />

discutindo com o “pessoal” aqui e eles acham, nisto tem condições de nos orientar, que é melhor uma<br />

saudade que uma cela de tortura. Ou seja, é melhor não ir vê-los e manter a saudade que perder a<br />

liberdade e além disto ter saudades e dores físicas. Por isto, vou-me embora sem vê-los. E por isto<br />

escrevo.<br />

Soube pelos velhos dos acontecimentos e da reação de vocês frente ao problema. Para mim foi<br />

imensa a alegria em saber da reação positiva, principalmente sua, mano. É ótimo quando a gente confia<br />

nas pessoas e esta confiança é correspondida.<br />

Bem mano, a coisa engrossou e só me resta dar no pé. Este dar no pé vai representar além de tudo<br />

aquilo que eu sempre busquei. Até agora não tenho vacilado e espero não vacilar mais nunca. Mesmo<br />

ante coisas mais sérias.<br />

Vocês, talvez, estejam sentindo pela presença, problemas maiores que os meus: o sofrimento dos<br />

“velhos”, a preocupação (eu e o baixinho 23 ) e sentindo que mais cedo ou mais tarde uma opção do tipo<br />

que estamos fazendo aparecerá para vocês. E em vocês, persistem várias perguntas que em mim já foram<br />

22 Refere-se aos pais Arnóbio e Elza Pereira Coqueiro.<br />

23 Modo carinhoso como se referia a Wagner Coqueiro.<br />

93


espondidas. E a 1ª delas deve ser: vale a pena o que os “manos” estão fazendo? Em vocês talvez não<br />

exista resposta mas em mim é: “os sacrifícios serão maiores mas a causa é justa e a vitoria é certa”. O<br />

que me dá a tranqüilidade para continuar e que em vocês talvez aumente apenas a confusão. E mano, a<br />

coisa mais dura de se manter é uma consciência culpada. E se não fizesse esta opção, eu como homem<br />

viveria eternamente fugindo de minha própria sombra.<br />

Não quero também forçá-los a pensar em optar pelo que fizemos em cima dos problemas<br />

sentimentais que hoje nos afligem, mas sim por uma conclusão dura e séria, consciente da necessidade no<br />

futuro. O futuro pertence à humanidade e não aos exploradores. Estes sentirão o pé da história a<br />

esmagar seus ossos cadavéricos.<br />

Tenho coisas a lhe pedir. Peço-lhe que não esqueça, pois será importante para mim que não os<br />

esqueçam, para vocês e para os “velhos” já tão sofridos pelo desenrolar rápido dos acontecimentos.<br />

- inicialmente, quero que você ajude os manos a manterem a tranqüilidade dos “velhos”. Evitem<br />

dar–lhes preocupações e sofrimentos desnecessários. Isto não quer dizer que vocês devem criar as bases<br />

espirituais para uma não participação futura nos problemas do povo. Digo, preocupação e sofrimentos<br />

na manutenção do respeito que devem ter por eles, observando em 1º lugar o amor que eles nos dedicam,<br />

respeitar os que eles acham certo (religião, etc); ...<br />

Teria motivos para a continuar por muito tempo ainda escrevendo, mas isto só faria aumentar<br />

minha tristeza em ter que deixá-los. Tristeza é o que eu não quero agora. Prefiro a alegria de poder<br />

confiar em vocês, de saber que estamos não apenas pensando em nós, mas também no povo, e também a<br />

alegria de partir em busca do que eu desejava e tenho certeza que é justo.<br />

Bem mano, adeus. Espero encontrá-lo um dia com o sorriso largo, participando da luta do povo.<br />

Se não nos encontrarmos, espero que encontremos o nosso povo sorrindo junto com a vitória consagrada.<br />

Adeus, levo-os na saudade,<br />

do mano.<br />

94


Capítulo VII<br />

Prisão na base secundarista<br />

Naquela manhã de agosto de 1971, o estudante Manoel Neto foi acordado por Antonina, a<br />

garota que trabalhava em sua casa:<br />

- Tem uns caras na porta lhe procurando.<br />

Enquanto vestia a calça jeans, Manoel Neto pensava: deve ser um dos meninos que precisa<br />

de alguma coisa. Os meninos eram os militantes da base estudantil do PC do B, que tentavam<br />

reestruturar a Associação Baiana dos Estudantes Secundaristas. Não era para ninguém saber onde<br />

morava, pelo menos é o que diziam as normas de segurança que adotara desde que começara a<br />

conspirar contra a ditadura militar. Mas, no último 19 de fevereiro, convidou alguns<br />

companheiros de militância para a sua festa de aniversário de 17 anos. Sem a mínima suspeita do<br />

que aconteceria em minutos, Manoel Neto abriu, tranqüilamente, a porta e encontrou dois<br />

homens desconhecidos e uma rural willys estacionada em frente à sua casa, no bairro de<br />

Amaralina.<br />

- Quero falar com você, disse-lhe um dos agentes policiais.<br />

- Não tenho nada para falar, não!<br />

Depois desse rápido diálogo, só percebeu o empurrão violento que tomou. Como havia<br />

estudado no Colégio Militar, era alto, forte e sabia exercícios de autodefesa, Manoel Neto ainda<br />

tentou resistir à prisão. Recebeu pontapés e socos até ser dominado pelo agente policial e levado<br />

para a rural willys.<br />

Quando viu o automóvel e, principalmente, Osvaldo Gouveia Ribeiro sentado no banco de<br />

trás, teve a certeza de que a polícia política chegara a base do PC do B no setor secundarista. Há<br />

poucos dias, soubera que alguns estudantes que tentavam reestruturar a entidade estudantil<br />

95


secundarista tinham sido presos. Fez o que era recomendado, naquelas circunstâncias, pelo PC do<br />

B. Pegou todo material partidário, panfletos e livros colocou dentro de um saco e enterrou no<br />

quintal de sua casa.<br />

Assim que chegou ao Quartel de Amaralina, colocaram-no dentro de uma cela sozinho. No<br />

primeiro dia, não houve ameaças, não houve agressões, somente a mais completa solidão dentro<br />

de uma cela sem saber o que poderia acontecer, sem almoçar, sem jantar. No outro dia, levam-no<br />

para uma sala e oficiais, que ele não sabe identificar o nome, começam a interrogá-lo. A princípio<br />

foram brandos, diziam que ele era jovem, que era normal a juventude se envolver com a<br />

militância estudantil, mas que ele tinha que começar a falar o que sabia sobre o PC do B. Manoel<br />

Neto afirmava que participava apenas do movimento estudantil. Os oficias insistiam, no entanto,<br />

em saber qual era a sua posição dentro do PC do B. Queriam saber o nome das pessoas com<br />

quem ele se encontrava. A cada negativa, recebia tapas, pontapés e socos. Manoel Neto lembra<br />

que tentou administrar o pouco que sabia sobre a estrutura partidária, nos 12 dias que passou<br />

preso no Quartel de Amaralina. O que impressionou a Manoel Neto, no entanto, era o<br />

conhecimento que os oficiais possuíam sobre a estrutura partidária. Havia um organograma<br />

completo do PC do B e a base estudantil nos colégios. Do Manoel Devoto, colégio onde<br />

estudava, eles possuíam conhecimento e o nome de todas as pessoas que participavam como<br />

militantes, simpatizantes e apoio. “Toda a base secudarista caiu como um castelo de cartas”,<br />

resume Manoel Neto.<br />

Estopim da prisão<br />

A prisão não envolveu, apenas, os militantes do PC do B. Ocorreu, simultaneamente, a<br />

prisão de estudantes da Ação Popular (AP). A acusação era participação em organizações<br />

subversivas e tentativa de reorganização das entidades estudantis clandestinas, no caso<br />

Associação Baiana dos Estudantes Secundaristas e União Brasileira dos Estudantes Secundaristas<br />

(UBES).<br />

96


Jorge Almeida, à época estudante de Medicina, recorda-se que a sua prisão ocorreu no<br />

processo interno de queda dentro da organização, após serem presos Antônio Sérgio Melo<br />

Martins, Edval Passos e Eduardo Kruschewsky, também militantes da AP, nos últimos dias de<br />

julho. Quando foi levado ao Quartel de Amaralina, teve seu nome identificado como Jorge, do<br />

Colégio Marista, que participou da reunião do voto nulo. Jorge Almeida estranhou que seu nome<br />

estivesse identificado como estudante secundarista, já que, desde o início do ano, fazia trabalho<br />

político na base universitária. Mas, a informação estava correta, ele, Jorge Almeida, tinha<br />

participado da reunião do voto nulo.<br />

Um mês antes das eleições para a Câmara de Deputados, que ocorreriam em 15 de<br />

novembro de 70, os estudantes decidiram fazer uma reunião ampliada da ABES, no Colégio<br />

Marista, no bairro do Canela, para discutir qual seria a palavra de ordem da entidade na<br />

campanha do voto nulo. A ABES era, naquele momento, um grupo de estudantes, quase todos<br />

com vínculos com a AP ou PC do B. Os estudantes vinculados ao PC do B defendiam que a<br />

posição da entidade seria contra a carestia, o elevado custo de vida do brasileiro, já os da AP<br />

propunham que fosse a melhor qualidade de ensino.<br />

Foi uma reunião muito disputada e marcada por posição bem demarcada, sectarizada, entre<br />

as duas organizações sem chegar a um consenso. Na hora da votação, o resultado foi<br />

surpreendente: a AP ganhou o debate. Jorge Almeida lembra que foi uma surpresa porque julgava<br />

que o PC do B detivesse maior liderança dentro da ABES, mas cinco militantes considerados<br />

independentes, ou seja, estavam em vias de ser cooptados por uma das organizações, decidiram<br />

em prol da AP.<br />

Todos os estudantes presentes à reunião do voto nulo tiveram seus nomes identificados. No<br />

Quartel de Amaralina, havia um quadro negro com o nome de cada estudante e o seu colégio.<br />

Não existem indícios comprobatórios de como a repressão teve conhecimento da reunião, nem<br />

dos nomes sobre os militantes presentes. Porém, a partir dessa lista do quadro negro os estudantes<br />

foram procurados para prestar depoimento, ou então, apresentaram-se à Polícia Federal para<br />

prestar declarações, pois não tinham experiência para viver clandestino.<br />

agosto.<br />

No PC do B, o primeiro militante a ser preso é Osvaldo Gouveia Ribeiro, no dia 3 de<br />

97


“Você é o grande líder”<br />

Osvaldo Gouveia Ribeiro teve o primeiro contato com o movimento estudantil no ano de<br />

1968, no Colégio Central. À época, ele e Gabriel Kraychete Sobrinho eram apenas representantes<br />

de sala. Os protestos de rua, a efervescência cultural no Central e o sentimento de revolta contra a<br />

ditadura militar levaram-no a ter uma postura de uma pessoa de esquerda. Com o AI-5, ocorre a<br />

cassação de matrículas de alguns alunos, Osvaldo pensou: “vou ser expulso. E aí, como é que vou<br />

explicar a situação lá em casa. Não tenho condições financeiras de estudar em colégio particular”.<br />

Quando foi se matricular, teve a grata surpresa de não ter seu nome incluído na lista dos alunos<br />

cassados.<br />

Em 1969, com 17 anos, ele percebia que tinha duas alternativas ou se engajava<br />

politicamente ou se envolvia com a contracultura, o movimento hippie. Decidiu-se pela política<br />

engajada. Começa, então, a participar de um grupo de estudo e leitura de documentos do<br />

movimento estudantil e políticos, que se transformaria na base do PC do B dentro do Central. A<br />

base incluía, principalmente, os estudantes Uirassu Batista, Gabriel Kraychete e Valdenor<br />

Cardoso, atualmente vereador da cidade de Salvador pelo PSDB. Conhece também José Lima<br />

Piauhy Dourado, estudante da Escola Técnica Federal, com quem passa a ter contatos<br />

esporádicos. “Uirassu e Gabriel eram os protótipos do militante, convictos do que estavam<br />

fazendo e muitos rigorosos nos princípios”, lembra Osvaldo. Ao contrário dele, que participava<br />

das atividades estudantis, mas também não deixava a sua vida pessoal se sobrepor a militância.<br />

Mas isso, Osvaldo só vai perceber depois, no final do ano de 70, início de 71.<br />

Ainda no ano de 69, a base do Central organiza uma reunião com militantes da AP.<br />

Procuram traçar planos para reestruturar a ABES e nomeiam a reunião como Congresso. Osvaldo<br />

esclarece que a entidade não possuía representatividade estudantil nenhuma, mesmo assim foi<br />

eleito presidente. Sobre a participação numérica dos estudantes na reestruturação da ABES, não<br />

existe um dado preciso. Mas o número pode chegar a 60 estudantes, segundo Jorge Almeida, à<br />

época militante da AP.<br />

98


Osvaldo Gouveia é preso por agentes policias à paisana, metralhadora em punho, quando<br />

caminhava tranqüilamente na rua próximo a Escola Técnica Federal, atualmente CEFET, no<br />

bairro de Barbalho, no dia 3 de agosto de 71. Levado para o Quartel do Barbalho ficou cinco dias<br />

sozinho dentro de uma cela. Não disseram porque estava preso. Durante estes dias não houve<br />

nenhuma tentativa de agressão, apenas um oficial, que ele não sabe identificar o nome, o<br />

procurava para conversar. Osvaldo ouvia, pasmo, ele lhe contar detalhes sobre a sua vida, a<br />

família, do tio Ângelo Ribeiro, militante do PCB, dos lugares que frequentava, de detalhes da<br />

militância diária.<br />

No quinto dia, levaram-no para o Quartel de Amaralina, onde os oficiais começaram a<br />

interrogá-lo de forma ostensiva e sistemática. Lá a situação mudou drasticamente. “Foi um<br />

verdadeiro inferno”, afirma Osvaldo. Queriam saber os nomes dos estudantes envolvidos com a<br />

militância. Foram apresentados nomes de estudantes universitários que ele conhecia, desde o<br />

período de militância do Colégio Central, mas ele sustentou a versão de que não conhecia<br />

ninguém.<br />

Foi quando apresentaram para ele uma estrutura do movimento secundarista. Osvaldo,<br />

Gabriel Kraychete e Valdenor Cardoso eram apontados como as principais lideranças. Uirassu<br />

Batista e José Lima Piauhy Dourado não apareciam entre os nomes citados. “Você é o grande<br />

líder’, o tempo todo eu era tratado como o grande líder, afirma Osvaldo. A sua prisão foi um<br />

algo surpreendente pois se considerava afastado da militância partidária: “eu comecei a<br />

questionar o que estava fazendo. O meu questionamento não era em relação ao Partido, estava<br />

questionando a minha posição, o meu eu. Possuía um tio, Ângelo Ribeiro, do PCB, que<br />

reclamava da minha postura, dizia que era Dom Quixote, que queria ser herói”. Osvaldo também<br />

contesta a liderança: “nunca fui uma grande liderança. Na época, as pessoas que militavam<br />

comigo não confiavam. A minha ideologia era fraca”.<br />

A “fraqueza” a que se refere Osvaldo dizia respeito às opções pessoais que tomara desde o<br />

inicio do ano de 71. Ele já não se considerava mais um militante do PC do B, fazia curso de<br />

museologia na UFBa e os antigos contatos deles já não estavam na cidade como, por exemplo,<br />

Gabriel Kraychete, enviado para fazer trabalho político pela UBEs, em Fortaleza, e Uirassu<br />

Batista, que saíra de Salvador em fevereiro último para a região do Araguaia.<br />

99


Quando é preso naquele 3 de agosto de 71, Osvaldo não consegue disfarçar a surpresa e<br />

mais ainda por ter de arcar com as conseqüências de ser considerado um grande líder. Sobre as<br />

circunstâncias da sua prisão, relata: “quando fui preso, já havia uma estrutura identificada com o<br />

nome das pessoas. Eles possuíam o nome do estudante e em que colégio ele estudava. Mas, não<br />

havia articulação. Não sei se fiz certo ou errado, mas naquele momento a minha opção foi<br />

trabalhar com os nomes de estudantes que sabia ser menor de idade. Isso depois de 10 dias preso.<br />

A partir daí, eles me colocaram dentro do carro e me levaram para a porta dos colégios, para a<br />

porta da casa e queriam que eu apontasse. Mas, em nenhum momento, eu indiquei as pessoas. E<br />

lembro que foram presos comigo estudantes do Devoto e do Vieira”. Como a política política<br />

chegou até ele e como podia ter tantas informações sobre a base secundarista, Osvaldo assegura<br />

que é um verdadeiro mistério.<br />

É uma tarefa difícil reconstituir, quase trinta anos depois, a prisão da base estudantil. A<br />

dificuldade começa pela inexistência de documentos que comprovem quantas pessoas foram<br />

presas, ou tiveram que prestar depoimentos à Polícia Federal. Alguns estudantes eram menor de<br />

idade, não sendo possível processá-los com base na Lei de Segurança Nacional, mas ficariam sob<br />

liberdade vigiada, devendo apresentar-se, regularmente, à Delegacia de Segurança do Menor,<br />

situada em Pitangueiras, no bairro de Brotas. Além da inexistência de dados oficiais, prevalece<br />

também o receio de falar sobre o assunto. Um militante procurado para falar do seu trabalho<br />

estudantil e de como ocorreu a prisão, recusou categoricamente: “aquilo tudo já passou. Eu já<br />

paguei, fui processado e absolvido”.<br />

As pessoas indiciadas responderam ao processo na Circunscrição da 6ª Região da Auditoria<br />

Militar, em Salvador. O único documento disponível é a sentença, onde consta que foram<br />

absolvidos por insuficiência de provas na acusação de participação em organização subversiva. O<br />

processo de nº 13/72 está arquivado no Superior Tribunal Militar, em Brasília. Os arquivos<br />

militares com depoimentos prestados à Polícia Federal também não foram abertos ao público, e<br />

encontram-se desaparecidos.<br />

Na sentença do processo aparecem os nomes de José de Lima Piauhy Dourado, Demerval<br />

da Silva Pereira e Uirassu de Assis Batista como estudantes foragidos. Uirassu e Piauhy faziam<br />

parte da base secundarista. Demerval era o responsável na estrutura partidária por assistir os<br />

100


estudantes, dando-lhes orientação política e a visão do PC do B. Epaminondas Dourado, irmão de<br />

José, e Aidinalva Dantas Batista, mãe de Uirassu, tiveram que comparecer à Polícia Federal para<br />

informar onde se encontravam. Ambos, já tinham saído da cidade. Início de setembro, Demerval<br />

Pereira teve a sua residência, em Matatu de Brotas, vigiada por agentes policiais.<br />

Nota publicada no Jornal A Tarde, do dia 13 de abril de 72, data da primeira audiência na<br />

Auditoria Militar, revela as pessoas realmente indiciadas. A nota faz menção,<br />

indiscriminadamente, a todos os estudantes como militantes da AP. Na sentença do processo, há<br />

menção correta à participação do PC do B. Na reprodução abaixo, aparece o nome dos militantes<br />

do PC do B com grifo.<br />

Vinte acusados de subversão estão sendo qualificados, hoje, na Auditoria Militar perante o<br />

Conselho de Justiça para a Aeronáutica. São todos acusados pelo procurador de Antônio Brandão de<br />

Andrade, de participarem, nessa capital, de uma célula subversiva, denominada Ação Popular (AP) que<br />

através da União Baiana de Estudantes Secundários e da Associação Baiana dos Estudantes<br />

Secundaristas, entidades ilegais e extintas, tinham por objetivo a politização dos estudantes,<br />

incentivando-os para uma revolução contra o regime vigente no País. Dos vinte acusados, alguns estão<br />

presos preventivamente, outros foragidos e alguns em liberdade vigiada, devendo se apresentar para o<br />

interrogatório e qualificação. Os acusados são:<br />

Bel. Demerval da Silva Pereira (foragido), Antônio Sérgio Melo Martins de Souza (sem profissão);<br />

Antônio Jorge Fonseca Sanches de Almeida (universitário, preso preventivamente); José Eduardo<br />

Fonseca Kruschewsky (estudante, preso preventivamente); Euclides Pirineu Cardoso (estudante, preso<br />

preventivamente); Uirassu de Assis Batista (estudante foragido); Luís Fernando Silva Pedroso (estudante<br />

foragido); José de Lima Piauí Dourado (estudante foragido); Itajacir José dos Santos Figueredo<br />

(estudante, preso preventivamente); Gabriel Kraychete Sobrinho (estudante); Edval Passos Souza<br />

(comerciário); Osvaldo Gouveia Ribeiro (estudante); Valdenor Moreira Cardoso (estudante); Creuza<br />

Ione da Silva Borges (universitária); Josildete Pereira de Oliveira (estudante); Evandro França Pereira<br />

Pio (estudante); José Lourenço Bezerra Neto (estudante); Ricardo José Dias Melo (comerciário); Válter<br />

Simões Ribeiro (comerciário). Francisco Vasconcelos, estudante.<br />

101


Meses antes, Uirassu decide sair de Salvador<br />

Tudo fora planejado nos mínimos detalhes.<br />

Em 5 de fevereiro de 71, Uirassu Batista procurou a mãe Aidinalva Dantas Batista e avisou<br />

que sairia de Salvador e passaria meses, talvez alguns anos, morando em outro estado. Não<br />

saberia dizer o local exatamente, mas que manteria o contato. Uirassu tinha sido aprovado no<br />

curso de medicina, da UFBa, mesmo assim estava decidido a deixar a cidade. Aidinalva não<br />

conseguia entender porque o filho abandonava tudo, inclusive a família:<br />

- Você acaba de passar na faculdade, por que abandonar tudo?, a mãe perguntou.<br />

- Minha mãe, não há outro jeito. Preciso sair de Salvador durante um período. Coisas de<br />

estudante.<br />

O irmão mais velho Ubirajara Dantas Batista, à época estudante da Faculdade de Direito da<br />

<strong>Universidade</strong> Católica do Salvador e militante do PC do B, entendeu exatamente o que o irmão<br />

estava, cautelosamente, ocultando da família. Uirassu iria para uma área de trabalho de campo do<br />

partido. No último ano, o irmão ocupou todos os seus dias com atividades partidárias,<br />

panfletagens e conversando com outros estudantes. Ubirajara alerta para o fato do irmão ter sido<br />

intimado pela Polícia Federal, em janeiro, mas confessa que o orgão policial ainda não tinha<br />

conhecimento do seu verdadeiro comprometimento com a política partidária. Quando ocorrem as<br />

prisões de agosto, seu nome passará a ser reconhecido como um militante do PC do B. Ubirajara<br />

acredita que a decisão de sair de Salvador se apresentaria, independente da repressão policial. É<br />

Ubirajara quem explica: “Uirassu assimilou toda a proposta do partido. As suas últimas palavras<br />

para mim foram: estou indo embora. Volto com a vitória ou não voltarei.<br />

Apesar das palavras proféticas e que evidenciam a vontade e crença no trabalho<br />

revolucionário, Uirassu estava preocupado e tinha um semblante tenso. Uirassu dizia ao irmão:<br />

Para onde vou não tem volta.<br />

102


Uirassu nasceu em 5 de abril de 1952, na cidade de Alagoinhas. O pai, Francisco de Assis<br />

Batista, era funcionário da Secretaria da Fazenda do Estado, e faleceu precocemente aos 47 anos,<br />

em 6 de janeiro de 70. Trabalhava como coletor de tributos e era obrigado a mudar sempre de<br />

residência. Somente no ano de 63, a família passaria a residir definitivamente em Alagoinhas, no<br />

bairro de classe média baixa do Alto de Capinan. Antes, os filhos Ubirajara, Ubiratan, Dídimo,<br />

Uirassu, Ana Amélia, Rosa Maria e Francisco tiveram que conviver nas cidades de Rio Real,<br />

Itapicuru, Acajutiba e Jandaíra. A fazenda de parentes e primos em Itapicuru era onde passava as<br />

férias escolares e considerado um porto seguro. Uirassu ficava no meio do mato, caçando<br />

passarinho com estilingue, nadando nos rios e jogando bola com os meninos do interior.<br />

No Ginásio Estadual de Alagoinhas, onde fez todo o ensino de primeiro grau, foi<br />

considerado um estudante com uma liderança natural em sala de aula. Era extremamente<br />

brincalhão e alegre, e assim atraía as atenções para si. Tinha também a petulância juvenil. Como<br />

tinha aptidão para cálculos matemáticos e física, costumava exacerbar o talento precoce. O<br />

professor de matemática José Alfredo, atualmente diretor do Colégio Dídimo em Alagoinhas,<br />

comentou com o pai de Uirassu:<br />

- Sr. Francisco, seu filho tem um comportamento muito rebelde. Ele consegue responder o<br />

dever antes dos outros alunos e depois ainda me pergunta como é que encontrei a resposta.<br />

Fernando Xavier, colega de escola, recorda-se que os estudantes ficavam admirados com a<br />

sua perspicácia e o consideravam “como uma pessoa que percebia as coisas antes dos demais”.<br />

Uirassu percebeu, desde muito cedo, que a apologia patriótica ao regime militar, tão comum no<br />

ambiente da escola, não correspondia à realidade. Os estudantes não tinham liberdade sequer para<br />

atuar no centro cívico”, diz Fernando, que foi recrutado pelo amigo para o partido.<br />

Mas a militância de Uirassu só começou, realmente, em 1969, no Colégio Central,<br />

participando de um grupo de estudo onde lia documentos políticos do PC do B. Emília Teixeira, a<br />

época já estudante de geografia na UCSal, foi quem o recrutou para a organização e dava<br />

assistência política. Até então, Uirassu não tinha envolvimento partidário, embora, conversasse<br />

com o primo José Caldas de Almeida, militante do Partido, desde 1966. Quando chegou ao<br />

103


Central, havia todo um clima de repressão ocorrido com a cassação da matrícula dos estudantes.<br />

A forma como reagiu a todo esse clima repressor foi, junto com Gabriel Kraychete Sobrinho,<br />

Osvaldo Gouveia e Valdenor Cardoso, também estudantes do Central, tentar reorganizar o<br />

movimento estudantil através da Associação Baiana dos Estudantes da Bahia (ABES).<br />

É difícil dizer o momento preciso em que o estudante passou a ser um ativista político.<br />

Gabriel Kraychete, atualmente professor de Economia da <strong>Universidade</strong> Católica do Salvador,<br />

acredita ser quase inevitável, naquele momento, possuir vínculos com organização partidária,<br />

caso se quisesse participar do movimento estudantil. Porém, reconhece que o engajamento maior<br />

na militância política, a crença na idéia revolucionária, fazia parte do contexto de uma época, de<br />

uma geração . “Acreditava-se que, de fato, que era um processo de transformação mundial. Fazia-<br />

se o movimento estudantil, mas este era parte do processo de revolução no país. Você estava<br />

fazendo a revolução com aquilo. Pode parecer ridículo, mas havia uma generosidade muito<br />

grande por parte das pessoas. Tanto que boa parte dela morreu da forma mais generosa possível.<br />

Acreditando sinceramente que estava empenhada no processo de transformação da realidade e a<br />

favor de mais justiça social”.<br />

Hildebrando Dias era estudante secundarista em Alagoinhas, no ano de 69, quando<br />

conheceu Uirassu, que o recrutou para o PC do B. A aproximação se deu através da leitura de<br />

romances realistas como Menino de Engenho, José Lins do Rego; realismo-socialista,<br />

Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado; alguns textos do movimento estudantil; o livro<br />

Princípios Fundamentais de Filosofia, de Politzer. Quando percebeu já possuía uma militância<br />

franca no trabalho de reorganização do movimento estudantil na cidade. Hildebrando Dias lembra<br />

que Uirassu tinha um entusiasmo juvenil com a idéia da revolução. “Ele sonhava com a guerrilha,<br />

liderando destacamento. Ele falava sobre a guerrilha de forma épica. Havia um heroísmo juvenil<br />

nas atitudes dele, mas também era um traço de sua personalidade”, conta Hildebrando.<br />

Manoel Neto conheceu Uirassu nas reuniões da ABES, ele era o contato entre a entidade e<br />

a direção do Partido. Dava assistência, orientações e trazia material partidário para discutir. Não<br />

possuía capacidade intelectual semelhante a de Gabriel Kraychete, que se expressava muito bem.<br />

Mas, em compensação, era um entusiasta. Impressionava a sua vivacidade, seu entusiasmo, seu<br />

comprometimento com a vida partidária, sem perder o ar brincalhão, juvenil, feliz. É claro que<br />

104


essas são impressões, como ressalta Manoel Neto, de uma pessoa que na época tinha 16 anos. E<br />

resume: “ele era uma pessoa flexível e menos rígida na sua militância. Gostava de brincar e<br />

contar piadas. Isso me chamava a atenção, pois ele não era uma pessoa entristecida. É o que acho<br />

muito da nossa geração. Nossa geração se entristeceu. Nós não tivemos adolescência. Com 16<br />

anos, você vivia uma situação de trabalho político clandestino”.<br />

O economista Carlos Eduardo Carvalho, atualmente professor na Pontifícia <strong>Universidade</strong><br />

Católica de São Paulo, recrutado por Uirassu para o Partido, afirma que ele era muito alegre e<br />

gostava de cultivar uma imagem de revolucionário. Quando se viram pela última vez, Sassu lhe<br />

disse:<br />

- A gente não vai se ver mais, estou saindo de Salvador.<br />

- Você vai continuar com o movimento estudantil – perguntou.<br />

- Por aí, vou fazer outras tarefas.<br />

Uirassu Batista chegaria à região do Araguaia no segundo semestre de 1971 e pertenceria<br />

ao destacamento A, da guerrilha, próximo a região de Metade, à época região sul do Pará. Foi<br />

visto vivo pela última vez em 21 de abril de 1974.<br />

105


Epílogo<br />

106


Luzia Ribeiro chega ao Araguaia<br />

Luzia Ribeiro se deparava com um outro Brasil, um país desconhecido para quem saíra das<br />

ruas agitadas da cidade e se encontrava frente a frente com extensas áreas de mata verde e ainda<br />

não devastada pela ação do homem. No ônibus que percorria a recém-construída<br />

Transamazônica, este Brasil se descortinava a seu olhar. Um Brasil cheio de contrastes, estranho,<br />

a promessa do progresso em uma convivência, aparentemente, harmoniosa, com a pobreza do<br />

povo, com sua gente simples, suas galinhas e seus cachorros a ocuparem os mesmos bancos do<br />

ônibus que seguia mata adentro.<br />

Luzia, Maria Célia Côrrea, estudante de ciências sociais da <strong>Universidade</strong> Federal do Rio de<br />

Janeiro, e Tobias Pereira Júnior, estudante de medicina da <strong>Universidade</strong> Federal Fluminense,<br />

pegaram o ônibus em São Paulo, muitas horas atravessando estradas para um local ainda<br />

indefinido. A conversa fluía entre os três, num tagarelar típico de jovens com os seus 20 anos de<br />

idade. No ponto da estrada, a militante comunista Elza Monerat entra no ônibus. É ela quem vai<br />

conduzir Maria Célia para São João do Araguaia, localizado no Pará. Na região se concentraria o<br />

agrupamento de guerrilheiros da Base da Faveira, mais tarde seria o Destacamento A da<br />

Guerrilha do Araguaia.<br />

Com o olhar na mata, Luzia Ribeiro não sabia em que região, cidade ficaria. Vinha-lhe a<br />

mente, no entanto, o sorriso tranqüilo do dirigente comunista Maurício Grabois na última vez em<br />

que se encontraram, há poucos dias, em São Paulo. Ele examinou minuciosamente a sua mala<br />

com os lençóis bordados, as toalhas, os vestidos, a bolsa de passeio, o sapato de salto alto.<br />

Maurício a lhe perguntar se realmente desejava levar todos aqueles objetos. Sugeria até, o sorriso<br />

a não abandoná-lo, que poderia presentear algum morador da região, porque acreditava que para<br />

o lugar onde ela moraria as peças de roupas da cidade não teriam muita serventia. Como se<br />

desfazer de coisas tão suas, tão comuns à sua vida, ponderava Luzia. A mala a se esvaziar aos<br />

107


poucos, mas sem que deixasse para trás as duas toalhas de banho, de rosto, dois vestidos, as suas<br />

peças íntimas, uma saia, a calça jeans e as fotos dos pais e dos irmãos.<br />

Sim, ela sabia que o local onde moraria era o campo. Passou dois meses em reuniões<br />

constantes na capital paulista com Maurício Grabois, Carlos Nicolau Danielli, Lincoln Cordeiro<br />

Oest e Paulo Mendes Rodrigues, que avaliavam se ela estaria preparada para fazer o novo<br />

trabalho. Ela deixara a cidade de Salvador em outubro de 1970 e veio para o Rio de Janeiro à<br />

espera de uma definição sobre seu destino. Foram reuniões longas, conversavam sobre a situação<br />

do país, sobre a sua vida pessoal, a militância, seus sonhos, as perspectivas em relação ao futuro<br />

e, principalmente, o que poderia ser feito para acabar com a ditadura militar. Maurício Grabois<br />

lhe dizia que, apesar do “recrudescimento da repressão, as forças revolucionárias estavam<br />

desenvolvendo um trabalho para reconstruir a democracia no país. Que elas estavam conseguindo<br />

desenvolver suas atividades tanto no campo quanto na cidade”.<br />

Nesse verão de janeiro de 1971, quando seus olhos se deparavam com aquele rio largo a<br />

consumi-la aos poucos pela sua imensidão, Luzia percebeu que chegara ao local onde o trabalho<br />

de conflagração de uma área liberada seria realizado. Às margens do rio Araguaia, na cidade de<br />

Xambióa, esperavam-na José Toledo de Oliveira e Bergson Gurjão Farias com um largo sorriso.<br />

Ao vê-los, Luzia percebeu que eles estavam tão integrados à vida rural que nem sequer era<br />

possível distinguí-los dos moradores da região. José Toledo, advogado e bancário mineiro, e<br />

Bergson, estudante cearense, se transformaram em camponeses. Enquanto fazia a travessia do rio<br />

Araguaia que separava Xambioá, no Tocantins, de São Geraldo, no sul do Pará, eles contavam<br />

como vivia a população local. O povo ali era explorado e abandonado pelo Estado, mas estava<br />

cercado de riquezas minerais por todos os lados.<br />

Nem bem chegaram a São Geraldo, às cinco horas da tarde, Tobias e Luzia montaram nuns<br />

burros e adentraram na mata, a atravessar picadas e os igarapés imensos a ensopá-los de água. Os<br />

mosquitos insistentes a lhes picarem onde encontrassem pedaço de carne livre da blusa e a calça<br />

jeans. José Toledo a lhes dizerem que não se preocupassem, pois os mosquitos estavam<br />

satisfeitos em receber sangue novo. Bergson a comentar que a noite os ratos da mata iriam lhes<br />

fazer companhia. Tudo isso dito em meio a sorrisos e gargalhadas que percorriam a mata até<br />

chegarem ao Ponto de Apoio, chamado P.A, à 1 hora da madrugada. Estropiados após a longa<br />

108


travessia, foram recebidos com abraços pelo casal Ari e Aúrea Valadão e Dower Cavalcanti.<br />

Completava-se, assim, mais um dos grupos do Destacamento C, da Guerrilha do Araguaia.<br />

A formação das Forças Guerrilheiras na região do Araguaia, atualmente norte de Tocantins,<br />

foi organizada e planejada pelo Partido Comunista do Brasil nos anos subsequentes ao golpe<br />

militar. O primeiro militante destacado pelo PC do B para conhecer a área foi um negro forte e<br />

com quase dois metros de altura chamado Osvaldo Orlando da Costa, que seria conhecido por<br />

Osvaldão. Ele chegara no ano de 1967 para trabalhar no garimpo de Itamirim, na localidade<br />

do mesmo nome, situado entre Brejo Grande e Palestina do Araguaia, à esquerda da rodovia<br />

Transamazônica no sentido de Marabá-Imperatriz. Nascido em 27 de abril de 1938, na cidade<br />

mineira de Passa Quatro, Osvaldo cursara até o terceiro ano de engenharia na Tchecoslováquia e<br />

possuía larga experiência militar adquirida no Centro de Preparação dos Oficiais de Reserva<br />

(CPOR) no Rio de Janeiro. Para a população local, Osvaldão era apenas um exímio caçador e<br />

comerciante de peles. Conquistando a simpatia popular, ninguém estranhou quando aquele<br />

homenzarrão comprou um lote de terra no ano de 1969 às margens do rio Gameleira, onde<br />

construiu abrigo para si, José Genoíno Neto, Glênio Sá e José Humberto Bronca.<br />

Ainda no ano de 1967, chegava à região de Porto Franco, no Maranhão, o médico gaúcho<br />

João Carlos Hass Sobrinho, onde prestaria assistência médica. Maurício Grabois, Líbero<br />

Giancarlo Castiglia e Elza Monerat, João Amazonas e Ângelo Arroyo chegariam no ano de 1968.<br />

Estava composto o núcleo dirigente da guerrilha, que seria responsável pelo estudo da região e<br />

pela distribuição dos militantes que constituiriam, no futuro, as bases guerrilheiras. Nos anos<br />

seguintes até 1972, outros militantes deixavam a cidade e iam para a região. A população local<br />

não estranhava aquela movimentação de gente vindo da cidade para aqueles cafundós da mata,<br />

distante de todo e qualquer movimento da cidade. Era comum receber pessoas vindas de outras<br />

regiões à espera de ganhar dinheiro com o garimpo, porém encontravam um local pobre e<br />

abandonado pelo Estado. Os militantes do PC do B tinham, no entanto, o objetivo específico de<br />

organizar a luta daqueles camponeses em prol de melhoria para a região e contra o aparelho do<br />

Estado. Aquela luta seria um ponto inicial para enfraquecer a ditadura militar e criar uma área<br />

liberada. A estratégia do PC do B foi a de estabelecer relações de amizade com a população local,<br />

109


vivendo como camponeses e os ajudando na colheita de grãos, sem que fosse desenvolvido um<br />

trabalho político específico na região. O trabalho político só seria desenvolvido, depois da<br />

descoberta da guerrilha pelo Exército.<br />

Em entrevista aos historiadores Romualdo e Gilvane Felipe, o dirigente comunista João<br />

Amazonas, que fazia parte da Comissão Militar mas não participou do confronto porque saíra da<br />

região para uma reunião do Comitê Central em São Paulo, revelou que o trabalho a ser<br />

desenvolvido obedecia a várias etapas preparatórias. A saber: O trabalho político começaria a ser<br />

feito pela base da Faveira, no destacamento A. O segundo ponto era a progressiva estruturação<br />

das outras bases; aumentar o grau de conhecimento sobre a região, bem como a sua adaptação;<br />

estreitar os laços de integração com a massa; intensificar o treinamento militar e, por último,<br />

estabelecer parâmetros de infra-estrutura para garantir o armamento. João Amazonas ressalta que<br />

não havia uma data específica de quando seria deflagrado o confronto armado 24 .<br />

As experiências de luta armada bem como de qualquer movimento social no país devem<br />

passar por uma reflexão dos seus resultados alcançados. A reflexão faz bem ao país, a memória<br />

de um povo que deseja se constituir como nação.<br />

A avaliação sobre a guerrilha dentro do Partido Comunista do Brasil indicava para uma<br />

análise profunda do seu resultado político e com posições divergentes entre os dirigentes do<br />

Comitê Central. Havia uma ala minoritária coordenada por João Amazonas e Ângelo Arroyo que<br />

afirmava que a derrota da guerrilha foi militar, e não um erro estratégico de concepção do<br />

trabalho político. Uma outra análise defendida pelo líder comunista Pedro Pomar assinalava para<br />

uma autocrítica quanto à natureza do movimento em termos de princípios. Teria sido a<br />

experiência do Araguaia uma guerra popular prolongada como preconizavam os documentos do<br />

partido, ou um ato de resistência isolada dos combatentes que tinham sido transferidos,<br />

progressivamente, para a área desde o ano de 1967?, indagava Pomar. Neste caso, a guerrilha<br />

seria uma experiência semelhante ao foco guerrilheiro? A discussão estava em curso, mas o<br />

assassinato de Ângelo Arroyo, Pedro Pomar e João Baptista Franco Drumond, em 16 de<br />

dezembro de 1976, em pleno governo Geisel e a sua política de distensão política lenta e gradual,<br />

no episódio conhecido como Massacre da Lapa, teve como resultado o silenciamento das<br />

24 CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. “A guerrilha do araguaia: o vietnã é aqui”. In: Guerrilha do araguaia: a<br />

esquerda em armas. Editora <strong>Universidade</strong> Federal de Goiás, 1997. p.87.<br />

110


divergências internas sobre a concepção da Guerrilha do Araguaia. A crítica predominante à<br />

guerrilha do Araguaia feita pelo dirigente comunista Pedro Pomar é a de que se constituiu numa<br />

experiência similar ao foco guerrilheiro, na qual predomina a ação de um grupo de combatentes<br />

comunistas que pegam em armas ao invés da massa. Na sua análise, esse teria sido um dos erros<br />

principais cometidos pela Comissão Militar ao levar adiante a resistência armada sem que tivesse<br />

sido realizado um trabalho político com a população e sem que houvesse estruturas partidárias<br />

articuladas nas cidades próximas ao conflito.<br />

A discussão sobre a concepção da natureza do movimento também motivou o historiador<br />

Romualdo Campos Filho a percorrer a região do Araguaia para conversar in loco com os<br />

moradores que conviveram com os guerrilheiros. O resultado das suas entrevistas com a<br />

população local resultou na tese de mestrado Guerrilha do Araguaia: a esquerda em armada,<br />

aprovada pelo Departamento de História da <strong>Universidade</strong> de Goiás e transformada em livro com<br />

o mesmo título. Romualdo afirma: “o meu objetivo principal era desvendar o grande mistério<br />

que era a guerrilha, no que se refere à concepção que norteou as suas ações, porque esse foi um<br />

dos grandes dilemas do partido que levou inclusive a um racha. Ou seja, será que a guerrilha não<br />

teria passado de um “foco”, deixando patente uma certa irresponsabilidade dos dirigentes, ou<br />

teria se baseado nas concepções maoístas, onde a ligação com as massas é uma condição<br />

essencial? Foi disso que eu parti, e concluí que a acusação de foquismo não correspondia à<br />

maneira como a guerrilha foi idealizada. O problema é que foi descoberta ainda em fase de<br />

preparação. Depois, principalmente na terceira campanha das forças militares, já não havia mais<br />

nenhuma ligação com as massas, até porque a tática dos militares foi a de isolar os guerrilheiros,<br />

aí sim, mais do que foquismo se tornou voluntarismo”.<br />

A guerrilha do Araguaia ainda necessita ser estudada detalhadamente. É preciso também<br />

saber as circunstâncias das mortes dos guerrilheiros. Depoimentos de moradores ao historiador<br />

Romualdo Campos Filho comprovam que guerrilheiros não foram mortos em confronto. É o caso<br />

de Dinaelza Coqueiro e Uirassu Batista. Foram vistos com vida e sendo levados prisioneiros. As<br />

Forças Armadas silenciam sobre o assunto. Em declaração ao jornal O Globo, do dia 28 de abril<br />

de 1996, o ministro do Exército, general Zenildo Lucena afirmou: “A guerrilha do Araguaia<br />

111


pertence ao passado e o Exército está olhando para a frente 25 ”. O movimento armado que<br />

mobilizou a maior e mais importante operação militar brasileira desde a Segunda Guerra<br />

Mundial, quando a Força Experdicionárian Brasileira (FEB) criada para lutar contra as forças do<br />

Eixo, é considerado assunto enterrado desde que promulgada a Lei da Anistia, em 1979.<br />

Ser a terra, a lua, a mata<br />

Os militantes que chegavam à região eram logo integrados ao ritmo de vida da população<br />

local. Trabalhar com a terra, criar calos nas mãos, ajudar os outros moradores a colher seus frutos<br />

e aprender com eles. Esse era o primeiro contato com a nova realidade. A falta de habilidade com<br />

a terra se sanava aos poucos, seus vizinhos lhes diziam que eles demoravam demais para fazer a<br />

colheita. Deixe estar que nós aprendemos – era o que respondiam os guerrilheiros. Mas a<br />

adaptação não era fácil. Eles possuíam toda uma vivência na cidade e, de repente, vão conviver<br />

no mato, cultivar o solo, caminhar na mata, ser a lua, a terra.<br />

Criméia Almeida, uma das primeiras mulheres a chegar em Metade na base do<br />

destacamento A, localizada próximo a Marabá, afirma que a adaptação era difícil mas que se<br />

superava aos poucos. Lembra que Demerval Pereira, Uirassu Batista e José Lima Piauhy<br />

Dourado, os meninos que chegaram da Bahia no ano de 1971, para morar no sitio do baiano<br />

Nelson Lima Piauhy Dourado, não tinham medo de montar no lombo do burro, de caminhar na<br />

mata e trabalhar com a terra. Ao contrário dos militantes paulistas que tinham maiores<br />

dificuldades.<br />

Luzia Ribeiro, uma das sobreviventes da Guerrilha, presa um mês após o conflito, ressalta<br />

que a experiência dela na região foi muito particular. Ela confessa, sem nenhum constrangimento,<br />

que teve dificuldade para acompanhar o estilo de vida camponês. No seu relatório contundente<br />

sobre a guerrilha, Ângelo Arroyo, único dirigente que conseguiu sair do cerco do Exército na<br />

terceira campanha, relata que o Destacamento C foi o único a enfrentar as mais sérias<br />

dificuldades porque havia guerrilheiros recém-incorporados. Ele se referia a Luzia. No livro<br />

25 O Globo. 28.4.1996.<br />

112


Mulheres que foram à luta armada, do jornalista Luís Maklouf de Carvalho, Regilena Carvalho,<br />

guerrilheira que se apresentou ao Exército na segunda campanha, conta que Luzia passou por<br />

sérias dificuldades, porque tinha problemas de relacionamento com Paulo Rodrigues, chefe do<br />

destacamento C e porque não agüentava o ritmo de vida na roça.<br />

Luzia Ribeiro nunca falou publicamente da sua experiência no Araguaia. Encontrei-a em<br />

uma tarde de sábado, numa tranqüila casa na Praia do Flamengo. Apresentou-me a seu filho<br />

adotivo de 11 anos de idade que possui o nome de Uirassu, homenagem ao amigo de militância.<br />

Falar sobre a guerrilha é muito doloroso, porque tudo é um relembrar, ressurgem momentos tão<br />

vívidos como se ocorrossem hoje e não há quase trinta anos atrás. Como esquecer a tortura?<br />

Como esquecer a morte de amigos? Estes são alguns dos motivos porque nunca conseguiu falar<br />

publicamente sobre o que ocorrera. Abandonou a militância, o marxismo-dialético. Hoje, é<br />

evangélica. Luzia afirma: “não quero ter uma postura política aliada a nenhum partido. Tenho<br />

meus conflitos interiores, mas nego somente o materialismo-dialético. Me readaptei. Acho<br />

engraçado quando as pessoas dizem: ela vai superar. Superar, o que? Tive dificuldades de me<br />

adaptar lá e também aqui. Tive de selecionar valores, mudar de vida”. Luzia ficou cerca de seis<br />

meses presa no Quartel da 3ª Brigada de infantaria do Exército, em Brasília. Luzia ainda traz vivo<br />

na memória a vida dos militantes mortos no Araguaia e a quem devota o maior carinho, como os<br />

amigos Uirassu Batista, Demerval Pereira, Vandick Coqueiro, Dinaelza Santana, Dina Monteiro,<br />

Rosalindo Souza, José Lima Piauhy, Antônio Carlos Monteiro, Maurício Grabois, e tantos outros.<br />

Conversar com Luzia é uma experiência singular, porque ela se revela no falar e não teme dizer<br />

os seus conflitos pessoais vividos na região do Araguaia.<br />

Luzia começou a compreender a nova realidade quando lhe entregaram a sua nova mochila<br />

com bota, rede, uma coberta e o plástico, as roupas de guerrilheira - duas calças e blusas. Roupas<br />

de soldado. A mala com seus lençóis, vestidos, sapatos, ela enterrou quinze dias depois de sua<br />

chegada em um depósito debaixo da terra. Ela relata o tipo de dificuldade: “não sabia viver na<br />

roça. Não gostava de beber água do rio, pegava uma panela grande, fervia a água e depois<br />

colocava na muringa. Na reunião, falava abertamente o que estava passando. Bergson Gurjão me<br />

dizia que era uma fase, que eu devia beber água do riacho, porque na guerra não poderia ferver.<br />

113


Mais tarde, na primeira campanha, quando estava perdida na mata, bebi água de poça de lama.<br />

Sem a minha rede, dormir com a cara na lama”.<br />

As dificuldades de adaptação criavam uma certa angústica. Quando se encontrou com<br />

Dinalva Oliveira Teixeira, que fazia parte do mesmo destacamento, na base do Pau Preto, mas<br />

morava em outra casa no meio da mata, Luzia falou sobre os seus problemas: “falei que não era<br />

uma revolucionária do campo, era uma revolucionária da cidade. Dina, que sabia viver na mata,<br />

era geóloga e conhecia a mata pelas rochas, pela vegetação, me dizia que tudo isso iria passar,<br />

que todos passavam por aquelas dificuldades e aquilo acontecia porque nunca tinha vivido na<br />

roça”.<br />

Luzia sempre viveu numa típica casa de classe média do interior. Havia sempre um<br />

trabalhador doméstico a cuidar da rotina doméstica, a fazer a comida, a lavar as suas roupas. Ela<br />

que nunca tivera prenda ou tempo para coisas domésticas, que sequer sabia cozinhar para si<br />

mesma, tinha que aprender a ser uma daquelas mulheres camponeses. Tudo isso a fazia sentir que<br />

não conseguiria se adaptar e foi um dos motivos de conflito com Paulo Mendes Rodrigues, chefe<br />

do Destacamento C. Luzia relata:<br />

“Paulo dizia: nunca vi uma revolucionária cheia de dedos. Eu lavava as mãos quando ia<br />

almoçar. Ele dizia: você vai sofrer com a a guerra. Ele me mandava cortar lenha para fortalecer<br />

os músculos, voltava com vários pedaços de pau que trazia da mata. Ele dizia: Luzia não é assim.<br />

Você precisa fortalecer os músculos. Ele estava certo. Quando começou a guerra, eu não<br />

conseguia carregar o rifle, meus braços ficavam amortecidos. Mas, não conseguia perceber isso.<br />

Carregar água para mim, era um esforço enorme e doloroso. Preferia ir ao igarapé mil vezes a<br />

carregar o balde cheio. Pegava água em pequenas quantidades”.<br />

Luzia acrescenta: “Paulo queria que eu me tornasse uma revolucionária rural da noite para<br />

o dia. Era uma ativista da cidade, enfrentando todo o perigo da cidade mas o conforto também.<br />

No campo, nós precisamos comer leite de castanha, mesmo que não se gostasse. Ele me<br />

enxergava como comandante, eu subordinada. A partir daí, percebi que a guerra estava próxima e<br />

que eu iria ter pouco tempo para me adaptar”.<br />

Pergunto a Luzia se houve uma situação mais séria entre os dois, alguma agressão. Luzia<br />

conta: “teve uma ocasião em que, realmente, a situação foi um pouco mais grave. Paulo e José<br />

114


Toledo foram me ensinar a matar um jabuti. Ele é pequeno, parece uma tartaruga, tem uma<br />

carapuça bem grossa em cima do corpo. Eles demonstraram como eu deveria fazer. Eu não<br />

consegui matar o jabuti, a minha roupa, o meu rosto ficou ensopado de sangue. Eu furava o jabuti<br />

por todos os lados, tentava tirar a sua carapuça com as mãos e ele continuava vivo, pulsando,<br />

cheio de sangue. Eu não conseguia matar o jabuti. Paulo se aproximou de mim e disse: que<br />

guerrilheira você é? Com medo de sangue! Aquilo me deu tanta raiva, eu peguei o jabuti e joguei<br />

na cara dele. Fez um calo enorme. Nervosa, suja de sangue, me joguei no igarapé. A Auréa<br />

Valadão veio falar comigo, disse que tivesse mais paciência. Paulo nunca me falou nada”.<br />

Luzia conta tudo isso tomada pela emoção de reviver um momento em que ela se sentiu<br />

fragilizada diante de uma situação totalmente desconhecida. Pergunto se não teve vontade de<br />

desistir? Em nenhum momento, afirma, duvidou de sua capacidade de enfrentar a nova realidade.<br />

Quando chegou ao Araguaia, tinha medo até das ratazanas que se aproximavam da sua rede. Nas<br />

primeiras noites, mal conseguia dormir. O companheiro Bergson a lhe garantir que a ratazana não<br />

entraria dentro da rede. Depois, o cansaço de caminhar horas na mata começou a vencer o medo.<br />

Aprendeu a fazer depósito de alimentos, carregando pesadas latas de feijão e milho para dentro<br />

da mata. Para se alimentar, levava apenas um punhado de sal, farinha e água a lhe servirem de<br />

comida.<br />

É natural que houvesse momentos em que tudo aquilo lhe era estranho. Aquilo tudo era tão<br />

diferente da cidade, pensava. Na mata devia ser como a mulher do morador Pedro Onça que não<br />

se perdia nas caminhadas, matava até animal de grande porte e ainda conseguia carregar o marido<br />

nas costas. Apesar da tensão, havia momentos de solidariedade e amizade. O companheiro<br />

Bergson vivia a lhe falar da saudade que sentia de uma namorada. A questão sobre sexo ou a<br />

eventualidade de dois guerrilheiros manter um relacionamento afetivo, no entanto, não era um<br />

tabu. Perguntou se não podia lhe dar um beijo. Nunca aconteceu nada entre eles, a não ser um<br />

fraternal beijo às voltas de um buraco de terra e mata por todo lado. Quando o Exército descobre<br />

a existência dos militantes na região do Araguaia, encontra uma Luzia jovem, idealista e<br />

despreparada para enfrentar o confronto armado.<br />

115


A guerrilha descoberta<br />

A notícia das primeiras tropas do Exército na região chegou para o Destacamento C, no dia<br />

14 de abril de 1972, através de Jaime Petit da Silva, estudante do Instituto Eletrotécnico de<br />

Engenharia da Faculdade de Itajubá, que morava no Ponto de Apoio de Pau Preto, desde 1971.<br />

Luzia lembra que Jaime apareceu no entardecer do dia, cansado e com os pés feridos porque viera<br />

correndo dentro da mata. Jaime lhe dizia que a guerra começara, que havia soldados na região e<br />

que o seu grupo entraria na mata.<br />

A recomendação da Comissão Militar era a de que todos os Destacamentos se retirassem<br />

para áreas de refúgio e procurassem manter o contato com as massas. A presença do Exército na<br />

região do Araguaia, onde os militantes viviam há meses, já era prevista. O primeiro aviso de que<br />

o Exército possuía conhecimento dos planos de guerrilha surgiu quando os membros da<br />

Comissão Militar souberam que os militantes Pedro Albuquerque Neto e sua mulher Tereza<br />

Cristina foram presos em Recife, em março de 72. Eles saíram de São Geraldo do Araguaia no<br />

final de 71, devido à gravidez de Tereza Cristina que necessitava de cuidados médicos.<br />

Atualmente, a suspeita maior sobre a descoberta da área pelo Exército se refere a uma outra<br />

militante Lúcia Regina de Souza Martins, esposa de Lúcio Petit, guerrilheiro e irmão de Jaime<br />

Petit. Lúcia Regina teve problemas médicos e foi visitar os pais, no Rio de Janeiro. Não retornou.<br />

A família teria comunicado aos militares o segredo mais bem guardado do PC do B.<br />

A questão, no entanto, é que as Forças Armadas suspeitavam e possuíam conhecimento de<br />

que o Araguaia atraía as atenções de várias organizações de esquerda. No ano de 1970, as<br />

organizações procuravam montar, ao mesmo tempo e sem saber da existência uma das outras,<br />

bases guerrilheiras na região. Militantes da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-<br />

Palmares); Ação Popular; Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), Ação Libertadora<br />

Nacional (ALN) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) circulavam pela região. Em<br />

agosto de 1971, o destacamento de 60 homens comandados pelo general Antônio Bandeira, à<br />

época comandante da 3 a brigada de infantaria do Comando Militar do Planalto, prendeu vários<br />

desses militantes. Era a chamada Operação Mesopotâmia em ação - quem relata é o jornalista<br />

116


Amaury Ribeiro Júnior, em uma série de matérias publicadas no jornal O Globo, durante o<br />

período de 5 a 9 de abril de 1998, com base em documentos encontrados em posse do general. A<br />

VAR-Palmares sofreu a maior baixa com dois sítios de treinamento situados em Imperatriz (MA)<br />

e Iguaratins (TO) totalmente desmantelados.<br />

Sobre a descoberta da área de guerrilha do PC do B é muito provável que os órgãos de<br />

informação tenham obtido os dados através de um cruzamento entre informações prévias e os<br />

depoimentos, apesar de ser muito forte os indícios de denúncia de autoria de Lúcia Regina de<br />

Souza Martins - embora ela nunca tenha se pronunciado sobre a questão bem como não saber<br />

identificar a área exata de cada destacamento. O certo é que as tropas do Exército chegaram no<br />

dia 12 de abril na área do destacamento A, próximo a São Domingos do Araguaia, dois dias<br />

depois entraram no ponto de apoio do Pau Preto, área do destacamento C, próximo a São<br />

Geraldo. O destacamento B só seria atacado dez dias depois. Quando começou a guerrilha, havia<br />

69 militantes 26 . No final, 58 militantes são mortos e, até hoje, seus restos mortais não foram<br />

entregues às famílias.<br />

Luzia Ribeiro recorda que a notícia da chegada do Exército foi um momento de muita<br />

tensão, pois Bergson tinha ido a São Geraldo. Abandonaram o Ponto de Apoio, pegaram as suas<br />

mochilas e entraram na mata. Bergson a chegar ofegante e contar que a cidade estava toda<br />

cercada. Os 20 militantes que faziam parte do grupo C ficavam o tempo todo caminhando na<br />

mata. O contato com a Comissão Militar só será restabelecido em janeiro de 73. Ângelo Arroyo<br />

relata que o destacamento C foi o único a ir para uma área pouco conhecida e apresentou as<br />

maiores dificuldades, porque a mata não era conhecida por todos. Houve realmente isso, mas,<br />

sobretudo, uma avaliação imprecisa sobre o caminho a ser seguido.<br />

Luzia revela: “nós tivemos sérias dificuldades para atravessar a mata, pois Dower<br />

Cavalcanti, um dos sobreviventes do Araguaia, e Paulo tinham divergências sérias quanto ao<br />

caminho que deveria ser seguido para entrar em contato com a Comissão Militar. Dower<br />

discordava seriamente da decisão de Paulo”.<br />

Luzia não nega que teve dificuldades. Acredita que todos se assustaram com a situação de<br />

enfrentar o Exército atrás deles, seguindo-os pela mata. Houve momentos de puro desespero:<br />

26 ARROYO, Ângelo. “Relatório sobre a luta no Araguaia”. In: Araguaia, o partido e a guerrilha. São Paulo: Brasil<br />

Debates, 1980, p. 250.<br />

117


“Uma vez nós tivemos que atravessar uma pinguela, um pedaço de pau que servia como<br />

ponte. Abaixo tinha um rio violento. Eu criei dificuldades para atravessá-la. Paulo dizia que se<br />

nós atravessássemos, nós iríamos evitar um dia de caminhada. Todo mundo passou devagarinho.<br />

Eu fiquei por último.<br />

- Vamos, Luzia, disse-me Paulo.<br />

- Eu não vou não. Vou fazer o contorno do rio por terra. Eu os encontrarei adiante.<br />

- Você vai atrasar o nosso grupo. Você pode provocar a morte de muitos companheiros.<br />

- Se eu atravessar, vou cair e morrer.<br />

- Se ficar, o Exército te mata também.<br />

Nós tivemos uma briga daquelas. José Toledo de Oliveira percebeu algo errado e retornou<br />

para ver o que tinha acontecido. Toledo conversou longamente comigo, disse que devia passar<br />

sim, que eu estava atrasando toda a tropa, que o Exército estava atrás de nós. Eu disse: tudo bem.<br />

Se é pra evitar que meus companheiros morram, eu passo. Se eu morrer, morro sozinha. Toledo,<br />

então, colocou uma corda na minha cintura e na dele. Nós atravessamos assim. Caso ele caísse,<br />

eu também cairia. Nós levamos um tempo enorme para atravessar. Quando eu cheguei do outro<br />

lado, estava encharcada de suor. Eu desmaiei. Só fui despertar com a Dina Monteiro me fazendo<br />

uma massagem no corpo”.<br />

O desconhecimento sobre a área criava toda a sorte de contratempo e de tensão. A questão<br />

crucial, no entanto, é que enfrentar a mata exigia um preparo físico dos combatentes e comando<br />

militar eficiente também. Em documento encontrado no baú do general Antônio Bandeira,<br />

publicado pelo jornal O Globo, em 6 de abril de 1998, como sendo de autoria de Maurício<br />

Grabois, da Comissão Militar, há uma avaliação sobre o destacamento C, aponta erros e se<br />

propõe a reconsiderá-los caso verifique a situação real. Afirma: “quando começou a luta o<br />

Destacamento cometeu erros grosseiros e primários. Parece que, desde o começo da ação armada,<br />

ficou desarticulado. Seu comando não tomou qualquer medida para estabelecer contato com a<br />

118


Comissão Militar, faltando a todos os pontos. Manteve a mesma estrutura do período anterior às<br />

hostilidades e o Destacamento vinha atuando em três grupos separados em cada área, deixando de<br />

atuar como unidade autônoma e coesa, o que reduziu sua capacidade de luta e mobilidade. Seu<br />

comandante não tinha, assim, a tropa em suas mãos. O trabalho de massa foi muito pequeno<br />

(somente pouquíssimas casas das que o Bula (João Carlos Haas Sobrinho) visitou foram visitadas<br />

pelos combatentes do C). Por outro lado, os combatentes revelaram falta de vigilância<br />

particularmente em suas relações com as massas. Todas as quedas do Destacamento resultaram<br />

do não-cumprimento das normas de segurança no trabalho de massas, nas marchas e nos<br />

acampamentos. Do ponto de vista da responsabilidade imediata, de acordo com as precárias<br />

informações que temos, a culpa principal pelo ocorrido é do Comandante, que revelou completa<br />

falta de capacidade militar. Poderemos mudar de opinião caso novos dados nos forneçam outro<br />

quadro da situação”.<br />

A recompensa oferecida pelo Exército influenciou alguns moradores a servirem como guias<br />

das tropas. Alguns chegaram a entregar militantes perdidos dos seus destacamentos na primeira<br />

campanha. Luzia foi presa nestas circunstâncias: “eu e Dower Cavalcanti nós íamos voltando<br />

para o destacamento, quando ouvimos tiros. Eu corri. Fiquei três dias dormindo sozinha na mata.<br />

A minha intenção era encontrar Pedro Onça, um morador de confiança e que sabia do nosso<br />

trabalho. Um dia eu encontrei a casa de um outro morador. Ele me enganou, disse que iria avisá-<br />

lo e me pediu para chegar no dia seguinte às seis da manhã. Quando voltei, a casa estava cercada<br />

pelas tropas”. Luzia seria levada presa a Xambioã, depois Forte de Belém e encaminhada ao<br />

Quartel da III Brigada da infantaria em Brasília. Foi submetida a tortura e ficou presa seis meses.<br />

Em algumas situações os guerrilheiros confiaram demasiadamente na fidelidade da<br />

população local. Por exemplo, Bergson Gurjão Farias (Jorge) foi preso quando se aproximava de<br />

um ponto, encontro dentro da mata, para se encontrar com um morador chamado Cearense, que<br />

entregaria uma encomenda a Paulo. Quando estudante de química na <strong>Universidade</strong> Federal do<br />

Ceará e vice-presidente do Diretório Central dos Estudante, Bergson se feriu gravemente em uma<br />

manifestação estudantil, recuperou-se e foi para o Araguaia. Quando preso pelas tropas do<br />

Exército foi morto sob tortura à baioneta.<br />

119


Sobre a participação da população local, o trabalho ainda estava começando e demonstrava<br />

ainda um grau muito incipiente de participação. Os militantes só foram fazer a propaganda<br />

armada da luta após o ataque das forças armadas. Os guerrilheiros falavam que era necessário<br />

pegar em armas caso eles quisessem mudar a situação em que viviam; que eles enfrentavam<br />

dificuldades para vender o seu produto, que não tinham assistência médica e morria-se de<br />

malária, porque o Estado não se preocupava com eles, que o Estado os abandonara. Os moradores<br />

a lhes perguntar: vai demorar muito. Se for pra demorar, eu não quero não. Luzia acredita que<br />

alguns podiam aceitar a idéia de correr o risco de morrer, mas eles queriam mudar a situação<br />

logo. Não compreendiam que o trabalho político não era imediato, os resultados também.<br />

O destacamento A foi o mais bem sucedido na propaganda da luta armada. Até novembro<br />

de 72, o grupo já havia visitado cerca de 100 famílias. Maurício Grabois relata no seu texto que<br />

onze famílias dão apoio direto aos guerrilheiros, fornecem alimentos, passam informações, abrigo<br />

e propagandeiam a luta. 84 revelam simpatia e prestam ajuda eventual; dois estão em dúvida;<br />

somente três são contrários a luta. Os militantes intensificam a sua propaganda política com a<br />

divulgação de Comunicados sobre a guerrilha para dizer por que estavam em luta contra o<br />

Exército. As tropas não foram tão bem sucedidas na primeira campanha encerrada em julho de<br />

1972, apesar da morte de Bergson Gurjão, Maria Lúcia Petit, Idalísio Soares Aranha Filho e<br />

Kleber Lemos de Brito.<br />

Na segunda campanha ocorrida entre setembro à outubro de 1972, o Exército começou a<br />

realizar a Operação ACISO (Ação Cívico-Social), distribuindo remédios, garantindo assistência<br />

medica à população local, legalizou posses, ofereceu lotes de terra e entregou documentos<br />

pessoais. As tropas continuavam sob o comando do general Antônio Bandeira, que se utilizou de<br />

cerca de 3 mil soldados na primeira e segunda campanha. Antônio Carlos Monteiro Teixeira seria<br />

preso em 21 de setembro de 1972. Foi bastante torturado, sendo morto. Em posse de Antônio<br />

Carlos estavam mapas geológicos feito por ele, demarcando toda área. Regilena Carvalho relata<br />

no livro Mulheres que foram à luta armada, do jornalista Luís Maklouf, que essas informações<br />

foram importantíssimas para o Exército. Também seriam mortos João Carlos Haas Sobrinho,<br />

Manuel Nurchis e Ciro Flávio Salasar Oliveira.<br />

120


Em setembro também iria ocorrer a morte de um outro baiano, Rosalindo Souza que<br />

chegou a região em junho de 1971 junto com Regilena Carvalho e seu esposo Jaime Petit. A sua<br />

morte é um mistério. Na região Rosalindo, chamava-se Mundico, fazia poesia de cordel e alguns<br />

de seus poemas são lembrados pelo povo da região.<br />

Sobre a sua morte, Ângelo Arroyo relata que Rosalindo teria se acidentando com a sua<br />

própria arma, no final de setembro de 1973, quando a guerrilha enfrenta período de trégua. Em<br />

matéria da Veja, publicada em outubro de 1993, um oficial que serviu ao Centro de Informações<br />

do Exército disse dispor de informação de que ele teria sido morto pelos próprios companheiros.<br />

Em outra versão, revelada ao historiador Romualdo Campos Pessoa Filho, um fazendeiro<br />

confessou tê-lo matado quando Rosalindo se aproximava de sua fazenda para pegar comida. O<br />

fazendeiro não quer se identificar, porque serviu ao Exército como informante 27 .<br />

Apesar das mortes e prisões, os guerrilheiros conseguiram resistir as duas primeiras<br />

campanhas. Durante o período de trégua de um ano - outubro de 1972 à 1973 - antes da terceira<br />

campanha, o Exercito adota a estratégia usada pelos militantes do PC do B ao chegar ao<br />

Araguaia. Disfarçados de posseiros, estão inseridos na rotina do povo da região, são lavradores<br />

que vivem às voltas com plantações de arroz, feijão, milho. Estavam em ação as tropas<br />

especializadas do Centro de Informação do Exército, que ficariam conhecidas como secretas. Um<br />

dos seus comandantes é o major Sebastião Curió. Mais tarde, esse conhecimento servirá para<br />

aprisionar as pessoas que, de algum modo, possuíam contato com os guerrilheiros e os ajudavam<br />

quando precisavam. Começava, então, a repressão à população na tentativa de isolar a guerrilha.<br />

27 CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. “A guerrilha do araguaia: o vietnã é aqui”. In: Guerrilha do araguaia: a<br />

esquerda em armas. Editora <strong>Universidade</strong> Federal de Goiás, 1997. p.134.<br />

121


A ordem é matar os guerrilheiros<br />

Eles chegaram na calada da noite, na madrugada do dia 6 de outubro de 73. Vieram sujos,<br />

maltrapilhos, roupas rasgadas, igualzinhos aos guerrilheiros. Alguns moradores ainda chegaram a<br />

dizer: pronto, agora a selva vai ficar cheia do povo da mata 28 . Só foram saber que não eram os<br />

guerrilheiros, quando as suas casas são invadidas e moradores feitos prisioneiros. Eram as tropas<br />

do Exército com uma tática fatal para a guerrilha.<br />

Equivocadamente, a Comissão Militar considerava que as Forças Armadas não possuíam<br />

capacidade de se adaptar ao confronto na selva. Subestimou o inimigo e o comprometimento da<br />

massa. Tendo como referência as visitas e o contato com a população local, acreditava que ela<br />

poderia ingressar na luta caso as Forças Armadas atacassem novamente.<br />

De fato, os guerrilheiros possuíam prestígio. A população pobre do Araguaia os<br />

considerava pessoas educadas que viviam a tratar de sua febre, ensinar-lhes a ler, a ajudar a pôr<br />

no mundo os seus filhos. Osvaldo Orlando da Costa, Dinalva Teixeira, Lúcia Maria de Souza,<br />

Antônio de Pádua Costa, Nelson Lima Piauhy Dourado, André Grabois, Paulo Roberto Pereira<br />

Marques, Dinaelza Santana, Rosalindo Souza, Libero Giancarlo Castiglia e Paulo Rodrigues<br />

Mendes possuíam maior prestígio. Isso, no entanto, não foi suficiente para que a população<br />

tomasse para si a luta idealizada pelos guerrilheiros. Ao fazer a crítica da Guerrilha do Araguaia,<br />

o dirigente Pedro Pomar acentua, com razão, de que o Partido sequer estava estruturado nas<br />

cidades em torno do confronto<br />

Na guerra popular a participação popular é essencial para que a luta seja vitoriosa. Havia<br />

simpatia a aquele povo educado, houve alguns até que marcharam juntos. O morador de São<br />

Domingos, José Vieira e seu pai Luís Vieira chegaram a se incorporar a guerrilha, assim que<br />

souberam que estavam ocorrendo prisões. Sobre a atuação dos guerrilheiros na mata, José afirma:<br />

o pessoal do mato dizia que ninguém ia agir, ia ficar sempre escondido e caçar um jeito só de se<br />

28 Depoimento prestado ao historiador Romualdo Campos Pessoa Filho, em São Domingos-PA, em janeiro de 1994.<br />

122


defender do povo. Eles diziam que mais pra frente todo mundo ia vencer a luta, mas eles não<br />

diziam assim: vamos atacar o pessoal. Nunca eles me chamaram assim pra atacar ninguém 29 .<br />

Quando decidiu visitar a família, os amigos guerrilheiros prometeram levá-lo assim que<br />

desejasse. José Vieira e Antônio Pádua Costa foram presos a poucos quilômetros de São<br />

Domingos do Araguaia, no Pará. Foi a última vez em que viu Antônio Pádua Costa ainda com<br />

vida. O pai, Luís Vieira, seria morto também.<br />

O Comando de repressão às forças guerrilheiras no Araguaia percebeu que a população<br />

local era a principal força de sustentação para a guerrilha e executou com maestria seu plano de<br />

cerco e aniquilamento. Moradores foram presos e torturados em locais situados no Departamento<br />

Nacional de Estradas e Rodagem (DNER) e no Instituto Nacional de Colonização e Reforma<br />

Agrária (INCRA), das cidades de Marabá, Bacaba e Xambioá. Numa série de entrevistas aos<br />

historiadores Romualdo Campos Pessoa e Gilvane Felipe, há relatos de prisão e tortura. O Padre<br />

Roberto de Vallicourt conta que mais de trezentos moradores foram presos. Muitos deles ficavam<br />

nus, em pé, não podiam nem sentar nem deitar, comprimidos em celas pequenas e sem nenhuma<br />

iluminação. Pedro Marivetti, morador de São Domingos do Araguaia, conheceu vários dos<br />

guerrilheiros do Destacamento A e mantinha com eles relações de amizade. Ficou preso 45 dias.<br />

Abdias Soares da Silva, morador de São Domingos do Araguaia, conta que a noite eles<br />

costumavam simular a morte de presos. “Batiam na porta e faziam aquela loucura toda, a noite<br />

inteira, não deixava ninguém dormir não, era uma zoada danada. Batiam na porta, faziam que<br />

tavam matando gente, gente gritando, gente chorando. Perguntava se a gente conhecia o pessoal.<br />

A mim, eles só perguntavam isso. O que é que aquele pessoal queria, o que é que eles tavam<br />

fazendo. Eu contava o que eu sabia, que eu ouvia falar, né? Não tinha como contar muita coisa”.<br />

No Relatório Arroyo, consta que o confronto aberto com as tropas do Exército iniciou com<br />

56 guerrilheiros confiantes. Acreditavam que pudessem resistir a mais uma campanha. A maioria<br />

dos combatentes, porém, estava com poucas roupas, não havia calçados, alguns usavam lambreta<br />

de sola de pneu e outros andavam descalços. Já começavam a escassear bússolas, havia poucos<br />

plásticos que lhes abrigassem da chuva, isqueiros que os protegiam dos mosquitos, poucas facas,<br />

querosene e pilhas. Havia armas, mas muitas em conserto e já eram insuficientes os cartuchos<br />

29 Depoimento a Romualdo Campos Pessoa Filho, em São Domingos do Araguaia-PA, em 25/02/95.<br />

123


para as espingardas 20. As tropas se serviam de helicópteros, aviões e bons guias a lhes<br />

conduzirem dentro da mata.<br />

Maria Raimunda Rocha Veloso 30 , também moradora de São Domingos do Araguaia,<br />

lembra que uma vez os guerrilheiros apareceram na sua casa. Eles sempre a trataram bem e<br />

passavam horas conversando. Uma das guerrilheira tinha sido professora dos filhos dela. Era Jana<br />

Moroni Barroso, estudante de biologia da UFRJ, que foi para a região e se casou com Nelson<br />

Lima Piauhy Dourado. Jana a lhe dizer que a pessoa devia compartilhar o que tivesse com quem<br />

não possuía nada. Porém, naquele momento, havia somente o medo a consumi-la. Não estivera o<br />

Exército acampado no terreiro de sua casa há menos de dois dias?, questionava-se.<br />

- A senhora está com medo, dona Maria, perguntou-lhe Nelson.<br />

- Não senhor, tô com medo não, tô preocupada. Tô preocupada porque vocês chegaram e o<br />

Exército saiu daqui ontem de manhã. Se eu tô aqui com meus filhos, vocês tão aqui e os soldados<br />

chegarem? O que não há de ser de mim com esses meninos?<br />

- Não tenha medo não, que eles não vem não”.<br />

Mais tranqüila, Maria da Metade pegou uma galinha que tinha no seu quintal, matou,<br />

temperou e fez um almoço. Ainda lhes deu um pouco de farinha, dois pratos de tapioca e uma<br />

panela. À amiga Jana, entregou um pedaço de chita para fazer um casaco e se proteger dentro da<br />

mata. Foi a última vez que os encontrou.<br />

Houve pouco combate na mata. O seguinte relato é descrito no Relatório Arroyo: uma<br />

semana depois do início da terceira campanha, Antônio Alfredo Campos insistiu com André<br />

Grabois, Divino Fereira, Joao Gualberto Calatroni, e Demerval Pereira para pegar dois porcos<br />

que haviam numa roça próxima. André Grabois ainda disse: não vamos morrer pela boca,<br />

pessoal. No dia seguinte, quiçá a boca a lhe pedir para saborear a carne terna, decidiram pegá-los.<br />

Mataram-no a tiros e decidiram fazer um fogo de palha. O fogo subiu pelas árvores. Quando se<br />

preparavam para sair, ouviu um barulho estranho. Demerval Pereira a tranquilizá-los que deveria<br />

30 Informações revelados ao historiador Romualdo Campos Pessoa Filho, em janeiro de 1994.<br />

124


ser uma palha de coqueiro que caíra. Nem bem terminara de falar, aparecem soldados com armas<br />

em punho. Demerval foi o único a conseguir escapar. Nos primeiros meses de 1974, Demerval<br />

não teria a mesma sorte. Foi preso na casa da moradora Nazaré Rodrigues de Souza.<br />

Ainda em outubro de 1973, Lúcia Maria de Souza seria morta. Andava sozinha pela mata<br />

quando se depara com tropas. Foi metralhada nas pernas e coxas, e ainda lhe deram voz de<br />

prisão. Com uma mão direita, puxou um revólver 38 que atingiria a face do major Sebastião<br />

Rodrigues, o Curió, à época militar do Centro de Informações do Exército. Perguntaram seu<br />

nome. Guerrilheira não tem nome, respondeu. Ressoou pela mata o tiro fatal. Margarida Ferreira<br />

de Félix 31 , moradora de São Domingos do Araguaia, conta que, no dia seguinte, a tropa fora à<br />

casa dela pedir seu testemunho para que a identificasse. “Sim, aquela moça vivia com o povo da<br />

mata”, confirmou. Entrou em sua casa, olhou para o filho recém-nascido e lembrou de Lúcia a lhe<br />

dizer que não podia ajudá-la na hora do parto, porque o Exército estava atrás deles.<br />

A guerrilha prosseguia sem sucesso para os guerrilheiros. As tropas militares a andar pela<br />

mata sem fazer ruído. No final do mês de novembro, militantes encontram o corpo de Ari<br />

Valadão sem a cabeça. Os poucos moradores incorporados à guerrilha vão abandonando a luta,<br />

pedem para sair. Um dia, o ressoar de tiros dentro da mata faz com que um grupo de cinco<br />

guerrilheiros saia às pressas do acampamento deixando para trás mochilas e panelas, a vagar<br />

cinco dias pela mata sem ter o que comer e sequer um isqueiro para acender o fogo. Quando<br />

reencontrados, estão estropiados de cansaço, fome e inchados de picadas de insetos.<br />

Na manhã de natal de dezembro de 1973, a área onde estava a Comissão Militar sofre um<br />

intenso bombardeio. Havia 15 pessoas: Maurício Gabrois, Paulo Mendes Rodrigues, Gilberto<br />

Olímpio, Líbero Gianrcalo Castiglia, Luzia Augusta Garlippe, Dinalva Monteiro(com febre),<br />

Guilherme Gomes, José Humberto Bronca, Elmo Côrrea, Danilo Ribeiro, Antônio Teodoro de<br />

Castro, Telma Regina Cordeiro e Lauro. Osvaldo Costa e Uirassu Batista faziam a camuflagem.<br />

A única morte confirmada nesse confronto é a do líder comunista Maurício Grabois, deputado<br />

pelo PCB na Constituinte de 1946. Em entrevista ao repórter Rinaldo Gama, na revista Veja, em<br />

13 de outubro de 1993, um oficial afirma que presenciou a morte de um lutador. “Grabois estava<br />

31 Depoimento ao historiador Romualdo C. P. Filho, em São Domingos do Araguaia-PA, em julho de 1996.<br />

125


doente, enxergava mal, caiu atirando e se ajoelhara quando recebeu a bala final”. Nem todos<br />

morreram, mas ficaram dispersos na mata sem poder refazer contato com outros companheiros.<br />

Após o tiroteio, as palavras de Arroyo para um grupo de 25 combatentes foram a de que a<br />

guerrilha enfrentava seu momento mais crítico e que eles deviam abandonar aquela área em<br />

busca de outras que tivessem maior conhecimento. Ângelo Arroyo, um homem simples,<br />

acostumado as lutas operárias, ressaltou que muitos outros povos passaram por momentos difíceis<br />

e venceram porque persistiram na luta. Perguntava aos militantes se queriam abandonar a luta, se<br />

alguém desejasse teria a sua permissão. Ninguém aceitou. Ângelo Arroyo foi o único a conseguir<br />

escapar do cerco graças a um outro sobrevivente Antônio Pereira de Oliveira, à época chamado<br />

Zezinho, que conseguiu tirá-lo da área em 1974.<br />

A manhã de natal de 1973 selou a morte da guerrilha. Pedro Correa Cabral, oficial que<br />

participou da campanha de repressão à guerrilha e escreveu romance baseado no conflito,<br />

chamado Xambioá - Guerrilha do Araguaia, declara que o que houve a partir dali foi o<br />

extermínio de combatentes que já depuseram as armas. Segundo Cabral, nos meses seguintes<br />

muitos guerrilheiros teriam se rendido, foram presos e executados. Outros militantes teriam sido<br />

mortos em emboscadas fáceis porque já estavam vagando em total desalento, doentes e famintos.<br />

O oficial também conta que os corpos foram queimados a fim de que não existissem vestígios da<br />

Guerrilha do Araguaia 32 .<br />

Como morreram os guerrilheiros do Araguaia? interrogam os familiares. Por que não lhes<br />

foi, ao menos, dado o tratamento que cabe a todo prisioneiro de guerra? A Convenção de<br />

Genebra da qual o Brasil é partidário diz que todo prisioneiro de guerra deve ter a garantia de um<br />

tratamento digno. Aos mortos, cabe-lhes o direito a uma sepultura cristã.<br />

A indenização paga aos familiares através da Lei 9.140/95, que reconheceu a morte dos<br />

militantes, não é suficiente para que desistam da sua luta pela memória e de saber as<br />

circunstâncias da morte de seus filhos. Em 1993, as Forças Armadas encaminharam à Comissão<br />

Externa de Busca de Desaparecidos Políticos da Câmara Federal documentos da Marinha,<br />

Exército e Aeronaútica sob o carimbo de confidencial. O único a revelar a data da morte dos<br />

32 Para maiores detalhes, ler reportagem de Rinaldo Gama, da revista Veja, em 13 de outubro de 1993.<br />

126


guerrilheiros é o da Marinha, embora não revele as circunstâncias e não reconhece o local onde<br />

os militantes foram enterrados.<br />

Sabe-se que, na terceira campanha, cerca de 25 guerrilheiros não possuíam mais resistência<br />

física para o combate. Eles foram, literalmente, caçados. Osvaldo Costa, considerado o<br />

guerrilheiro com maior preparo militar, foi morto quando estava encostado a uma árvore, sem<br />

sequer poder levantar os braços para pegar a arma. Moradores se referem à prisão de vários<br />

guerrilheiros sem nenhum ferimento aparente.<br />

Dinaelza Santana Coqueiro, viva, sendo levada por soldados. Vandick teria sido morto em<br />

17 de janeiro de 1974. Nelson Lima Piauí Dourado morto após voltar com uma lata cheia de<br />

pepinos e abóboras, que pegara no roçado próximo, para o local onde estava abrigado dentro da<br />

mata. A lata fez barulho e ele teria sido metralhado e morto. Seu irmão, José Lima Piauí<br />

Dourado, teria sido visto pela última vez no ataque à Comissão Militar, na manhã de natal. Dina<br />

presa, depois de marcar um encontro dentro da mata com o morador para vender o revólver pois<br />

não tinha mais dinheiro. O morador chega acompanhado de tropas que fingem espancá-lo. “Não<br />

bate nele não, covardes. Vocês são covardes. Ele não tem culpa de nada”, disse-lhes Dina, a<br />

guerrilheira grávida que seria morta .<br />

Na manhã de 21 de abril de 1974, teriam sido levados presos Uirassu Batista, Lúcio Petit da<br />

Silva (Beto), e Antônio Ferreira Pinto (Antônio Alfaiate) 33 , os três últimos guerrilheiros<br />

capturados na mata e sendo levados vivos para um helicóptero do Exército.<br />

Com uma ferida na perna, Uirassu entrou no helicóptero, uma música soava no rádio. Ele a<br />

ouvia e com seu espírito brincalhão, balançava a perna. Essa é a última imagem - a mais<br />

impressionante - da Guerrilha do Araguaia, um jovem cafuzo do sertão da Bahia de 22 anos, de<br />

uma alegria impressionante e com sonhos os mais generosos possíveis, sendo levado para ser<br />

morto, friamente, à queima-roupa.<br />

33 Depoimento de Antônio Félix da Silva ao jornal Opinião, de Marabá, de 21 a 27 de junho de 1996.<br />

127


CRONOLOGIA<br />

1960 – Partido Comunista realiza V Congresso. Adota a concepção da revolução brasileira<br />

em duas etapas - revolução nacional e democrática, outra socialista, e defende a linha pacífica.<br />

Os líderes Maurício Grabois e João Amazonas são excluídos do Comitê Central.<br />

1961 –Semanário Novos Rumos publica o Programa e os Estatutos do Partido Comunista<br />

Brasileiro (PCB), em 11 de agosto. Acompanhava a publicação entrevista de Luís Carlos Prestes<br />

anunciado a decisão de encaminhar a documentação do partido para requisitar a sua legalização<br />

ao Tribunal Superior Eleitoral.<br />

1962 - PC do B realiza a Conferência Nacional Extraordinária. É oficializado o primeiro<br />

processo de cisão no, até então, único Partido Comunista brasileiro. O PC do B aprova a<br />

concepção da revolução no Brasil em duas etapas, semelhante ao PCB, mas defende o caminho<br />

da luta armada.<br />

1964 –<br />

31 de março – tropas do general Olympio Mourão de Minas Gerais seguem para o Rio de<br />

Janeiro. O golpe de Estado se concretiza: o presidente João Goulart segue para exílio no Uruguai.<br />

2 de abril – sede do SINDIPRETO é invadida por tropas policiais sob o comando do<br />

Capitão Etienne Falcão, que expulsou à cassetetes as pessoas presentes à reunião para discutir a<br />

resistência ao golpe. Líderes sindicais são presos. Nelson Lima Piauhy Dourado também.<br />

1965 –<br />

Nelson Lima Piauhy Dourado, militante do PC do B, viaja para o Rio de Janeiro.<br />

Amálio de Couto Araújo é apresentado ao dirigente estadual Rafael. Começa a ser formada<br />

a primeira base do PC do B na Bahia.<br />

128


1967 –<br />

Março - José Caldas de Almeida e Amálio Couto Araújo participam de reunião do Comitê<br />

Central. Questão em discussão: luta de massa no movimento estudantil.<br />

Agosto – Protesto estudantil e de populares contra a aprovação da Lei Orgânica do Ensino,<br />

que estabelecia em um dos seus artigos a cobrança da anuidade dos seus alunos. É aprovada.<br />

Novembro- Antônio Carlos Monteiro Teixeira participa da eleição da União dos Estudantes<br />

da Bahia (UEB).<br />

Militantes do PC do B vão morar em localidades próximas ao rio Araguaia, à época sul do<br />

Pará. Osvaldo Orlando da Costa, Maurício Grabois, Líbero Giarncarlo Castiglia, Elza Monerat,<br />

Ângelo Arroyo, João Amazonas e João Carlos Haas Sobrinho vão compor a primeira base rural<br />

no Araguaia.<br />

Direito.<br />

1968 -<br />

Rosalindo Souza é eleito presidente do Centro Acadêmico Rui Barbosa, da Faculdade de<br />

Março – Morte de Edson Luís de Lima Souto, estudante secundarista, em 28 de março de<br />

1968, por tropas policiais que invadiram o restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Estudantes<br />

baianos realizam manifestação no dia 31 de março.<br />

Junho – <strong>Universidade</strong> Federal da Bahia tem as suas atividades acadêmicas paralisadas.<br />

Estudantes estavam em greve.<br />

13 de dezembro – Presidente Costa e Silva sanciona o Ato Institucional n o 5. É o golpe<br />

dentro do golpe. Governo poderá suspender os direitos políticos de qualquer cidadão, no prazo de<br />

dez anos. Manifestação de natureza política são proibidas. E é suspensa a garantia de habeas<br />

corpus, nos casos de crimes políticos.<br />

129


1969<br />

26 de fevereiro – Presidente Costa e Silva sancionou decreto, no qual fixa sanções a<br />

professores e alunos que promovam greves dentro e fora dos meios estudantis. É o Decreto 477.<br />

Março – Vandick Coqueiro e Luzia Ribeiro; Dinaelza Santana e Emília Teixeira vão<br />

estudar na <strong>Universidade</strong> Federal da Bahia e <strong>Universidade</strong> Carólica do Salvador, respectivamente.<br />

Procuram reorganizar o movimento estudantil.<br />

15 de março – Rosalindo Souza, Demerval Pereira, Rui Medeiros, Eduardo Teixeria, entre<br />

outros, têm as matrículas cassadas. Estudantes são presos, quando se preparavam para realizar<br />

reunião na Faculdade de Direito contra a cassação.<br />

Dezembro - Rosalindo Souza conclui curso de direito na Faculdade Cândido Mendes, RJ.<br />

1970 –<br />

Outubro – reunião ampliada da base estudantil da Associação Baiana dos Estudantes<br />

Secundaristas (ABES), no Colégio Marista.<br />

27 de novembro de 1970 - Prisão de Paulo Pontes e Teodomiro Romeiro dos Santos,<br />

militantes do PCBR. Morre Walder Xavier de Lima, sargento da Aeronaútica.<br />

1971-<br />

Fevereiro – Uirassu Batista deixa Salvador, em 5 de fevereiro.<br />

13 de maio – julgamento do processo judicial contra Rosalindo Souza e Antônio Carlos<br />

Monteiro Teixeira. Acusados de promover distúrbio nas manifestações estudantis. Rosalindo<br />

deixou Salvador em 22 de abril de 1971. Antônio Carlos vivia no Araguaia, desde 1970.<br />

Março – Vandick Reidner Coqueiro e Dinaelza Santana saem de Salvador. Wagner<br />

Coqueiro, militante do PCBR, é procurado pelos órgãos de segurança.<br />

Agosto – ocorrem prisões na base estudantil secundarista do PC do B. Uirassu Batista, José<br />

Lima Piauhy Dourado e Demerval Pereira são citados no processo judicial sob acusação de<br />

reorganização de entidades estudantis na clandestinidade. Estudantes indiciados são absolvidos<br />

em julgamento realizado em 1974.<br />

130


Demerval Pereira, Uirassu Batista e José Lima Piauhy Dourado chegam em Metade,<br />

localidade próxima a Marabá – Pa, no segundo semestre do ano .<br />

1972<br />

Janeiro - Luzia chega a Xambioá, no Tocantins.<br />

14 de abril de 1972 – tropas do Exército atacam de surpresa destacamento C, da Guerrilha<br />

do Araguaia. Eduardo Monteiro, irmão de Anrônio Carlos, é preso na Transamazônica.<br />

Maio – Dower Cavalcanti e Luzia Ribeiro são presos.<br />

Setembro a Outubro – Exército realiza operação ACISO, distribui remédios e garante<br />

assistência médica à população local. Também iniciava a 2 a campanha de combate à guerrilha.<br />

21 de setembro – Antônio Carlos Monteiro é preso e morre sob tortura.<br />

Setembro – Morre Rosalindo Souza. Existem três versões para a sua morte: Relatório<br />

Arroyo informa que se acidentou com a própria arma; oficial não-identificado diz que foi morto<br />

pelos próprios companheiros; outra fazendeiro que serviu ao Exército afirma tê-lo matado,<br />

quando Rosalindo aproximava de sua casa.<br />

1973<br />

6 de outubro – tropas militares com trajes civis iniciam a 3 a campanha de combate à<br />

guerilha do Araguaia. Moradores são presos.<br />

25 de dezembro – local onde estava a Comissão Militar sofre um intenso bombardeio.<br />

Havia 15 pessoas. A única morte confirmada é a de Maurício Grabois. Grupos de 25 militantes<br />

fica disperso na mata. Entre eles, Dinalva Oliveira, vista pela última vez nesta manhã.<br />

30 de dezembro – José Lima Piauhy Dourado caiu em uma emboscada do Exército, teria<br />

levado um tiro.<br />

1974 –<br />

Janeiro a abril, militantes do PC do B teriam sido capturados vivos pelo Exército. Dados do<br />

Relatório da Marinha revelam: Nelson Lima Piauhy Dourado, morto em combate no dia 2 de<br />

janeiro. Demerval Pereira foi preso na casa da moradora Nazaré Rodrigues de Souza, e sua morte<br />

131


data de 28 de março de 1974. Dinaelza Santana foi vista com vida até 30 de dezembro de 1973,<br />

Vandick Coqueiro teria sido morto em 17 de janeiro de 1974.<br />

Na manhã de 21 de abril, Uirassu Batista, Lúcio Petit da Silva e Antônio Ferreira Pinto<br />

foram os últimos guerilheiros a serem levados – vivos - para um helicóptero do Exército.<br />

1976 – Assassinato de Pedro Pomar, João Batista Franco Drumond e Ângelo Arroyo, em<br />

São Paulo. Ângelo Arroyo era sobrevivente da terceira campanha do Exército e escreveu relatório<br />

sobre os últimos dias da guerrilha.<br />

1979 – Anistia política. Exilados retornam ao país, presos políticos são anistiados.<br />

1996 – Reportagem de O Globo, em 28 de abril, com fotos e documentos inéditos do<br />

Exército, que identificam militantes feitos prisioneiros. General Zenildo Lucena declara: “a<br />

guerrilha pertence ao passado e o Exército está olhando para a frente”.<br />

1993 – É entregue relatório do Ministério da Marinha à Comissão Externa de Busca de<br />

Desaparecidos Políticos da Câmara Federal. Revela data da morte de militantes, porém não há<br />

informação sobre as circunstâncias da morte.<br />

1995 - Estado reconhece a morte de 136 desaparecidos políticos durante o regime militar,<br />

com a publicação da lei 9. 140/95, em 4 de dezembro.<br />

1998 – Reportagem de O Globo, em 6 de abril, com documentos do general Antônio<br />

Bandeira revela detalhes sobre a 1 a e 2 a campanhas do Exército de combate à guerrilha do<br />

Araguaia.<br />

132


Referência Bibliográfica<br />

AMAZONAS, João et alii. Guerrilha do Araguaia. São Paulo: Anita Garibaldi, 1984.<br />

ARAÚJO, Maria do Amparo Almeida et. Al. Dossiê dos mortos e desaparecidos políticos a<br />

partir de 1964. Recife: Companhia Editora de Pernambuco. 1995<br />

ARNS, D. Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. São Paulo: Vozes, 1985.<br />

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. T.ª Queiroz, São Paulo, 1983.<br />

CABRAL, Pedro. Xambioá - Guerrilha do Araguaia. São Paulo: Recordo, 1993.<br />

CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Guerrilha do araguaia: a esquerda em armas. Editora<br />

<strong>Universidade</strong> Federal de Goiás, 1997.<br />

CAPOTE, Truman. A sangue frio. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.<br />

CAL<strong>DA</strong>S, Álvaro. Tirando o capuz. 3 a ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.<br />

DESLANDRES, Suely Ferreira et alii. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 7 a ed.<br />

Petropólis: Vozes, 1997/<br />

D’ARAÚJO. Maria Celina (Org.). Os anos de chumbo. Rio de Janeiro: Relume Dumará,<br />

1994.<br />

______________________(org). A memória militar sobre o golpe de 64. Rio de Janeiro:<br />

Relume Dumará, 1994.<br />

DÓRIA, Palmério, et alli. A guerrilha do araguaia. São Paulo: Alfa-Omega, s/d.<br />

FALCÃO, João. O partido comunista que eu conheci. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,<br />

1988.<br />

GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. São Paulo. Ática, 1987.<br />

GARCIA, Marco Aurélio Garcia (org.). Rebeldes e Contestadores. São Paulo: Editora Perseu<br />

Abramo, 1999.<br />

JOSÉ, Emiliano. Carlos Marighella: o inimigo número um da ditadura militar. São Paulo: Sol<br />

e Chuva. 1997.<br />

_____________, MIRAN<strong>DA</strong>, Oldack. Lamarca, o capitão da guerrilha. 2 a ed. São Paulo:<br />

Global, 1980.<br />

133


LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas - o livro-reportagem como extensão do jornalismo<br />

e da literatura. 2ª ed. Campinas: Editora da <strong>Universidade</strong> Estadual de Campinas, 1995.<br />

MAKLOUF, Luís . Mulheres que foram a luta armada. São Paulo: Globo, 1999.<br />

______________ . et alii. Pedro Pomar. São Paulo: Brasil Debates, 1980.<br />

MARTINS, Edilson. Nós do Araguaia.3 a ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.<br />

MEDINA, Cremilda de Araújo. Entrevista: o diálogo possível. 2 a ed. São Paulo: Editora Ática,<br />

1986.<br />

_21 _______________________. Sob o signo do diálogo (Relato de Experiência : Projeto<br />

São Paulo de Perfil.<br />

________________________.São Paulo de Perfil (reportagens realizadas por estudantes do<br />

curso de de Jornalismo). São Paulo: CEJ/ECA/USP.<br />

MIRAN<strong>DA</strong>, Nilmário; TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. São Paulo: Boitempo, 1999.<br />

MORAIS, Fernando. Olga. São Paulo: Recorde/ Altaya, 1999.<br />

MIR, Luís. A revolução impossível. São Paulo: Best Seller, 1994.<br />

PAIVA, Marcelo R. Feliz Ano Velho. 44 a ed. São Paulo: Brasiliense. 1982.<br />

__________________. Não és tú, Brasil. São Paulo: Mandarim. 1996<br />

PORTELA, Fernando. Guerra de Guerrilhas no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Global Editora,<br />

1979.<br />

POMAR, Pedro E. da Rocha. O massacre na lapa. São Paulo: Busca Vida, 1987.<br />

POMAR, Vladimir. Araguaia: O partido e a guerrilha. São Paulo; Brasil Debates, 1980.<br />

REED, John. Os dez dias que abalaram o mundo. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.<br />

REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. São Paulo: Brasiliense, 1989.<br />

SOUZA, Daniel; CHAVES, Gilmar (orgs). Nossa paixão era inventar um novo tempo. Rio de<br />

Janeiro: Rosa dos Tempos, 1999.<br />

TAVARES, Flávio. Memórias do esquecimento. 3ª ed. São Paulo: Globo, 1999.<br />

VENTURA, Maria Isabel Pinto (Ed). Política e revolucionarização do partido. Lisboa:<br />

Edições Maria da Fonte, 1977 (Coleção Documentos).<br />

134


Periódicos Consultados<br />

I - Jornais<br />

Folha de São Paulo: 13/5/95; 3/9/95.<br />

Jornal A Tarde: 22-28/8/67; 10/6/68, 11/6/68, 4-8/7/68; 23-27/8/68;<br />

8-9/10/68; 21/10/68; 11/11/68; 6/11/68; 1-3/2/1971; 13-14/4/72;<br />

21/8/95;<br />

Jornal da Bahia: 22-28/8/67; 25/10/67; 7/8/68; 21-25/1/71; 1-3/2/71.<br />

Jornal Opção (Goiás): 21-27/9/97.<br />

O Globo: 28/4/96; 5/4/98; 6/4/98/, 7/4/98, 8/4/98, 9/4/98<br />

Opinião, jul-96.<br />

II- Revistas<br />

Veja: 6/9/78; 5/9/79; 18/11/92; 13/10/93,<br />

Istoé Senhor: 7/11/90; 8/5/91; 4/9/95.<br />

135


ENTREVISTA-DEPOIMENTOS<br />

Antônio Ubirajara Dantas Batista, 22/12/99; 13/11/2000<br />

Ana Guedes, 30/11/99<br />

Amálio Couto de Araújo, 26/06/2000<br />

Carlos Augusto Pinheiro, 11/4/2000<br />

Carlos Eduardo de Carvalho, 07/7/2000<br />

Celso Cotrim, 19/5/2000<br />

Denilson Vasconcelos, 8/5/2000<br />

Dinorá Santana, 15/04/2000<br />

Eduardo Monteiro Teixeira, 27/3/2000<br />

Epaminondas Dourado, 24/3/2000<br />

Elia Maria Correia Souza, 31/3/2000<br />

Fábio Nóvoa, 7/6/2000<br />

Fernando Aranha, 23/03/2000<br />

Gabriel Kraychete Sobrinho, 07/2/2000<br />

Hildebrando Dias, 02/12/2000<br />

Itajacir Figueredo, 21/4/2000.<br />

João Ribeiro Souza Dantas, 21/3/2000<br />

José Caldas de Almeida, 10/04/2000<br />

Juraçi Novato, 6/5/2000<br />

Juca Ferreira, 1/12/99<br />

José Sérgio Gabrielli, 15/4/2000<br />

Jorge Almeida, 16/6/2000<br />

Luzia Reis Ribeiro, 17/11/99; 26/11/99<br />

Maria Luiza Monteiro Teixeira, 11/12/99<br />

Manoel Neto, 01/7/2000<br />

Osvaldo Barreto,04/7/2000<br />

Osvaldo Gouveia Ribeiro 23/10/2000<br />

Paulo Henrique Costa 15/11/2000<br />

Rui Hermann Medeiros, 20/4/2000<br />

Raimundo Batista da Luz 19/11/2000<br />

Sérgio Santana, 18/4/2000<br />

Teodora Rocha 30/10/2000<br />

Vítor Hugo Soares Borges, 27/01/2000.<br />

Ubirajara Coqueiro, 6/5/2000<br />

136


Criméia Almeida, 3/4/2000.<br />

Emília Teixeira, 13/4/2000<br />

Joaquina Lacerda, 7/11/2000.<br />

João Almeida, 21/11/2000.<br />

Jusselina Correia Souza, 13/12/2000.<br />

Luiz Nova, 14/8/2000.<br />

Maurício Barreto, 24/11/2000.<br />

Pedro Milton de Brito, 30/10/2000.<br />

Paulo Caires de Brito, 25/11/2000.<br />

Paulo Pontes, 17/9/2000.<br />

Tânia Coqueiro, 10/6/2000.<br />

Entrevistas Complementares 34<br />

34 As entrevistas estão registradas como complementares, pois constituíram-se referência para confirmar algumas<br />

informações.<br />

137


Depoimentos Consultados<br />

Para compor a memória dos militantes do PC do B na Guerrilha do Araguaia foi<br />

imprescindível a leitura dos depoimentos de moradores da região concedidos aos<br />

historiadores Romualdo Pessoa Campos Filhos e Gilvane Felipe, da <strong>Universidade</strong> Federal<br />

de Goiás. Os entrevistados revelam o grau de relacionamento que mantiveram com os<br />

militantes antes da descoberta da guerrilha e o desfecho final com a prisão de vários deles.<br />

Os depoimentos fazem parte do tese de mestrado do historiador Romualdo Pessoa Campos<br />

Filho, intitulada a Esquerda em Armas: História da Guerrilha do Araguaia (1972-1975);<br />

publicada com o mesmo nome pela Editora <strong>Universidade</strong> Federal de Goiás; Gilvane<br />

Felipe e sua tese de dissertação sobre a Guerrilha do Araguaia, pela École des Hautes<br />

Études en Science Sociales, Paris, França.<br />

Almir Ferreira, 18/1/1994.<br />

Abdias Soares da Silva, 21/2/1994.<br />

Domingas, julho de 1992.<br />

Maria Raimunda Rocha Veloso, Janeiro de 1994.<br />

Margarida Fereira Félix, julho de 1996.<br />

José Veloso de Andrade, 19/1/94; 25/02/96.<br />

José Vieira, 25/02/1995.<br />

Pedro Matos do Nascimento (Pedro Marivetti), 21/1/94.<br />

138


FOTOS<br />

139


140

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