Religião e violência simbólica contra as mulheres Haidi Jarschel e ...
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Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder<br />
Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008<br />
<strong>Religião</strong> e <strong>violência</strong> <strong>simbólica</strong> <strong>contra</strong> <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong><br />
<strong>Haidi</strong> <strong>Jarschel</strong> e Cecília C<strong>as</strong>tillo Nanjarí<br />
Entre Nós – Assessoria, Educação e Pesquisa em Gênero e Raça<br />
<strong>Religião</strong>; Gênero; Violência<br />
ST 62 – Direitos Humanos, Democracia e Violência<br />
A <strong>violência</strong> <strong>simbólica</strong> é sutil e tem força ideológica para firmar valores culturais e morais. A<br />
nossa cultura foi fortemente influenciada pela visão cristã do mundo e por conseqüência do papel<br />
que <strong>mulheres</strong> e homens desempenham nela. A experiência religiosa eixo na cultura latino-<br />
americana é a matriz cristã. O encontro dos modelos patriarcais desta religião com a cultura branca<br />
colonialista que atravessaram mares e deixaram marc<strong>as</strong> destrutiv<strong>as</strong> para a vida de cultur<strong>as</strong><br />
autóctones (indígen<strong>as</strong> e afros) e para <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong>.<br />
N<strong>as</strong> diferentes igrej<strong>as</strong> que compõem o cenário religioso nacional, <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong> são sobretudo,<br />
servidor<strong>as</strong> e subordinad<strong>as</strong>, tendo pouco acesso às esfer<strong>as</strong> de decisão. A idéia de que essa é a<br />
“vontade de Deus” leva à naturalização da <strong>violência</strong> e dificulta a resistência e a denúncia. O relato a<br />
seguir 1 , exemplifica bem essa situação:<br />
“Filomena tem 24 anos, é branca, estudou até a 6ª série do ensino fundamental, é<br />
vendedora de produtos cosméticos por catálogo, freqüenta igreja evangélica, é<br />
c<strong>as</strong>ada com João há oito meses. Têm uma filha e um filho com cinco e três anos,<br />
respectivamente. João tem 29 anos, é moreno, marceneiro, desempregado,<br />
evangélico e não é dependente químico. Toda a família é natural da Bahia.<br />
Filomena conviveu com João por oito anos e desde o namoro sofria<br />
<strong>violência</strong>. C<strong>as</strong>ou-se com ele, há oito meses, por imposição da igreja, pois,<br />
para freqüentar a igreja não poderia estar numa situação moralmente<br />
irregular (sic). Denunciou-o por vári<strong>as</strong> vezes, inclusive na Bahia, por causa<br />
d<strong>as</strong> agressões freqüentes. Ele a vigiava constantemente, até mesmo em su<strong>as</strong><br />
id<strong>as</strong> ao banheiro. Exigia ter relações sexuais com ela desde a manhã à<br />
noite, mesmo que ela não tivesse vontade. João impedia os filhos de se<br />
alimentarem, como uma forma de agredir Filomena (sic). Exigia que <strong>as</strong><br />
crianç<strong>as</strong> presenci<strong>as</strong>sem <strong>as</strong> cen<strong>as</strong> de <strong>violência</strong>. Nos últimos quatro meses <strong>as</strong><br />
agressões se intensificaram, quando ela começou a trabalhar e conquistar<br />
sua independência econômica. Da última vez Filomena recebeu muit<strong>as</strong><br />
pancad<strong>as</strong> na cabeça, pensando não conseguir permanecer viva. O aparelho<br />
ortodôntico que usava foi quebrado, ficando apen<strong>as</strong> metade dentro de sua<br />
boca.<br />
Durante seu período de abrigamento, Filomena freqüentou a igreja<br />
evangélica do bairro. Foi orientada pelo p<strong>as</strong>tor a suportar o sofrimento<br />
nesta vida para obter recompensa na outra, além de dever orar pelo marido<br />
para que este retorn<strong>as</strong>se à igreja. Para orar, ela deveria estar ao lado dele<br />
porque, neste momento, ele en<strong>contra</strong>va-se desviado.<br />
Filomena apresentava-se sempre muito confusa e com um sentimento de<br />
que Deus estava aborrecido com ela por ter fugido do marido. Após um mês<br />
de abrigamento, Filomena decidiu voltar para o marido”.
Fatos como estes, ocorrem com muita freqüência com muit<strong>as</strong> <strong>mulheres</strong> de vári<strong>as</strong> religiões,<br />
que diante da idéia de um sacramento perene, como é considerado o c<strong>as</strong>amento, p<strong>as</strong>sam toda a sua<br />
vida submetida a uma relação violenta com seus companheiros. Vivem a maternidade como uma<br />
imposição, sentem-se culpabilizad<strong>as</strong> ao interromper uma gravidez e entendem que, ainda que <strong>as</strong><br />
relações conjugais aconteçam de forma violenta, devem manter-se fiéis à seus maridos e a seus<br />
filhos.<br />
Esta família de modelo patriarcal, proclamada como sagrada no Cristianismo, é a principal<br />
instituição através da qual <strong>as</strong> Igrej<strong>as</strong> Cristãs impõe e tornam vigentes su<strong>as</strong> doutrin<strong>as</strong> e prátic<strong>as</strong><br />
disciplinares, sobretudo no campo da moral sexual. Não é raro que <strong>mulheres</strong> c<strong>as</strong>ad<strong>as</strong> com, homens<br />
alcoólatr<strong>as</strong> violentos, sejam aconselhad<strong>as</strong> por um padre ou p<strong>as</strong>tor a ser pacientes, tolerantes e rezar<br />
para que estes homens se convertam em maridos carinhosos e responsáveis. É comum que se repita<br />
o seguinte ditado popular: “Ruim com ele, pior sem ele”. Aí está a “sagrada família”, que tem sido<br />
um lugar privilegiado do exercício da <strong>violência</strong>, conforme mostram <strong>as</strong> estatístic<strong>as</strong> sobre <strong>violência</strong><br />
doméstica.<br />
A abordagem da <strong>violência</strong> pelo prisma da religião é um grande desafio e necessidade em nosso<br />
contexto sócio-cultural tão marcado pela religiosidade e os pilares da religião cristã<br />
<strong>Religião</strong> pode ser uma faca de dois gumes. Ela sempre atua na direção de dar um sentido<br />
para a vida, às vezes possibilitando abrir horizontes para a existência e, outr<strong>as</strong>, estreitando caminhos<br />
com uma série de recursos punitivos. O que constatamos, no entanto, é que em qu<strong>as</strong>e tod<strong>as</strong> <strong>as</strong><br />
cultur<strong>as</strong> e em qu<strong>as</strong>e todos os tempos, a religião tem legitimado ideologicamente a subserviência d<strong>as</strong><br />
<strong>mulheres</strong>. E uma d<strong>as</strong> form<strong>as</strong> mais eficazes e sutis é <strong>as</strong>sociando o feminino ao mal, ao desviante, à<br />
desordem. Isto significa que, culturalmente, <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong> estão à mercê da punição naturalizada. A<br />
<strong>violência</strong> se instala na cultura pela <strong>as</strong>sociação mulher-mal, justificando <strong>as</strong>sim a sua exclusão e<br />
desqualificação de espaços de poder e decisões da sociedade. Atualmente estamos vivendo um<br />
fenômeno do fundamentalismo religioso que exacerba mais ainda o lado patriarcal e moralista d<strong>as</strong><br />
religiões, o que tem trazido como resultado um fortalecimento da mentalidade conservadora em<br />
relação aos papéis de <strong>mulheres</strong> e homens na sociedade. A desconstrução destes eixos conservadores<br />
se faz urgente e nos desafia a tod<strong>as</strong>/os para uma análise menos fragmentada e mais sistêmica da<br />
sociedade.<br />
Os valores religiosos aparecem muito difusos na cultura como um todo.<br />
2
A religião e cultura estão intrincad<strong>as</strong> em sua forma de manifestação na sociedade e na vida<br />
d<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong>. As crenç<strong>as</strong> religios<strong>as</strong> entram na construção cultural formando um todo sistêmico,<br />
difícil de separar mesmo num Estado laico, onde há uma clara divisão entre Estado e religião. É<br />
possível separá-l<strong>as</strong> apen<strong>as</strong> para análise, m<strong>as</strong> no cotidiano d<strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> ela exerce uma influência<br />
indissociável. Sobre a b<strong>as</strong>e da vivência humana, em su<strong>as</strong> fibr<strong>as</strong> mais íntim<strong>as</strong>, se inserta a<br />
experiência religiosa. Está inserida na experiência geral, pode ser distinguida, m<strong>as</strong> não separada. O<br />
que é variável é a relação com o sagrado ou o mistério. É sempre uma vivência relacional (outros /<br />
mundo) com o transcendente, no entanto sempre é uma experiência humana.<br />
A experiência com o sagrado tem configurações diferentes a partir de diferentes paradigm<strong>as</strong>,<br />
cosmovisões e símbolos de salvação.<br />
As representações do divino/sagrado são variáveis e muito complex<strong>as</strong>. As religiões<br />
monoteíst<strong>as</strong> (judaísmo, islamismo e cristianismo) são marcad<strong>as</strong> em sua história por um poder<br />
unilateral androcêntrico (centrado no m<strong>as</strong>culino). Isto se traduz claramente no exercício mediador<br />
com o sagrado (sacerdócio) que é reservado exclusivamente aos homens. As <strong>mulheres</strong> não são<br />
suficientemente dotad<strong>as</strong> para serem mediador<strong>as</strong> com o sagrado na maioria d<strong>as</strong> Igrej<strong>as</strong> cristãs – há<br />
exceções, onde algum<strong>as</strong> igrej<strong>as</strong> ordenam <strong>mulheres</strong>. Este é um principio norteador que legitima a<br />
<strong>as</strong>simetria de gênero e conseqüentemente a <strong>violência</strong> <strong>contra</strong> <strong>as</strong> mesm<strong>as</strong>. Uma vez declarad<strong>as</strong> “não<br />
apt<strong>as</strong>” para o sagrado ficam numa posição de sofrerem sob o sagrado. Esta prática está coerente<br />
com a compreensão do sagrado como m<strong>as</strong>culino. Deus é projetado como homem nest<strong>as</strong> religiões,<br />
que, por sua vez, legitima a centralidade no macho na sociedade: o sacerdote é homem, o rei é<br />
homem, os profet<strong>as</strong> são homens, os salvadores são homens... “Enquanto Deus é homem os homens<br />
serão deuses” diz Mary Daly. Est<strong>as</strong> são <strong>as</strong> tendênci<strong>as</strong> gerais dest<strong>as</strong> religiões monoteíst<strong>as</strong>, o que não<br />
significa que el<strong>as</strong> tenham variantes nest<strong>as</strong> linh<strong>as</strong> mestres. Há grupos <strong>contra</strong>-culturais em tod<strong>as</strong> <strong>as</strong><br />
f<strong>as</strong>es da história. O maior exemplo deste movimento <strong>contra</strong>-cultural está n<strong>as</strong> primeir<strong>as</strong> comunidades<br />
cristãs (cristianismo originário), com a grande e relevante liderança de <strong>mulheres</strong> à frente de<br />
comunidades, dando ênf<strong>as</strong>e a uma prática comunitária como salvadora e libertadora, como por<br />
exemplo, Maria Madalena que fundou vári<strong>as</strong> comunidades e foi uma grande missionária.<br />
A religião age fortemente pela subjetividade e no plano simbólico.<br />
Modelos, papéis, relacionamentos entre <strong>mulheres</strong> e homens, <strong>mulheres</strong> e <strong>mulheres</strong>, homens e<br />
homens está no plano institucional, simbólico e subjetivo. O modelo predominante é o da<br />
organização da família patriarcal, da relação heterossexual, da chefia m<strong>as</strong>culina, da submissão de<br />
3
filhos e da mulher ao pai e marido, do comportamento sexual, etc., estão pré-fixados por valores e<br />
em grande parte pela religião. Atribui-se os comportamentos sociais como sendo norm<strong>as</strong> divin<strong>as</strong>,<br />
fixando-se através de símbolos e ritos.<br />
a) O c<strong>as</strong>amento, por exemplo, é um rito que até bem pouco tempo não p<strong>as</strong>sava de um<br />
<strong>contra</strong>to civil e foi incorporado posteriormente na religião, tornando-se um sacramento na Igreja<br />
Católica (no protestantismo o rito é considerado como uma bênção matrimonial apen<strong>as</strong>), adquirindo<br />
<strong>as</strong>sim um caráter sagrado e marcado pel<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> “o que Deus uniu, não o separe o ser humano”...<br />
A partir daí, torna-se um drama para <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> “quebrarem” este laço especialmente pelo seu<br />
caráter sagrado.<br />
b) Nesta mesma direção temos um modelo fundante do cristianismo de modelos femininos.<br />
A partir do cristianismo dominante a mulher é considerada mais frágil e sem capacidade de<br />
autonomia: precisa ser vigiada, protegida, guiada, policiada, por que, a qualquer momento pode<br />
encarnar-se numa “Eva” e fará uma besteira, se torna desviante, atrapalhará a ordem, trará<br />
confusão... Eva (cujo significado é “mãe de tudo o que vive” – a grande deusa mãe no matriarcado)<br />
é apresentada na tradição como aquela que trouxe o mal ao mundo, a que desobedeceu a divindade,<br />
transgrediu a ordem. Agostinho (século IV) <strong>as</strong>sociou de forma relevante o mal e o pecado à mulher<br />
e a sexualidade. Desde então o cristianismo bebeu desta fonte agostiniana e construiu-se uma<br />
identidade feminina negativa. Como <strong>contra</strong>ponto, construiu-se uma imagem feminina redentora<br />
desta que pôs tudo a perder: Maria, a mulher-mãe, submissa, que diz “sim” e torna-se servil e<br />
<strong>as</strong>sexuada. Na América Latina, Maria tem um papel muito forte na espiritualidade, infelizmente<br />
b<strong>as</strong>tante distante da tradição do cristianismo originário (Cf. Evangelho de Luc<strong>as</strong> 1 no Magnificat,<br />
João 2 n<strong>as</strong> bod<strong>as</strong> de Cana, nos relatos da morte de Jesus, etc.) que apresenta uma Maria mulher com<br />
uma causa da justiça, batalhadora, nada servil, que tem iniciativa, coragem, etc. Na tradição cristã<br />
foi dando outros matizes para esta personagem, desenhada conforme a tradição patriarcal, como por<br />
exemplo nesta oração mexicana: “Oh Maria, Virgem de Guadalupe! Sem mancha, c<strong>as</strong>ta esposa de<br />
José, mãe terna de Jesus, modelo acabado de espos<strong>as</strong> e mães”.<br />
c) A sexualidade da mulher é arrancada de seu corpo e encerrada no âmbito da maternidade,<br />
na esfera da reprodução e da família. Em pouc<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, a sexualidade e o erotismo não são<br />
sagrados. O corpo sagrado é <strong>as</strong>sexuado, tudo se resume num ventre. A tradição cristã tem grandes<br />
problem<strong>as</strong> com o corpo e a sexualidade, negando-o da esfera do sagrado. Na corporificação<br />
<strong>simbólica</strong> de Eva como pecadora e Maria como redentora através da submissão e virgindade, está o<br />
“b<strong>as</strong>tão do patriarcado” na mão de Deus-Pai que pune ou redime. Este b<strong>as</strong>tão está voltado<br />
especialmente para a dimensão erótica n<strong>as</strong> <strong>mulheres</strong>.<br />
Com isto vemos quanto é complexo a esfera do simbólico, quanto alguns símbolos e<br />
modelos sagrados contribuem para uma cultura de <strong>violência</strong> <strong>contra</strong> a mulher e quão difícil é<br />
4
desconstruir valores, convicções, espiritualidade, justamente porque está fixado no âmbito da<br />
subjetividade. Faz-se necessário conhecer mais profundamente estes paradigm<strong>as</strong> e quanto eles estão<br />
arraigados na cultura a serviço de valores patriarcais. O outro p<strong>as</strong>so é o processo de enfrentamento<br />
destes modelos, por onde e como fazer a desconstrução e, o que se constrói coletivamente para<br />
colocar no seu lugar. Já temos muit<strong>as</strong> experiênci<strong>as</strong> coletiv<strong>as</strong> de e com <strong>mulheres</strong> que estão num<br />
processo de questionamento destes modelos opressores e grupalmente estão buscando outros<br />
paradigm<strong>as</strong> de espiritualidade a partir da tradição originária do cristianismo e de outr<strong>as</strong> cultur<strong>as</strong><br />
próxim<strong>as</strong>. Na Sagrada Escritura temos muit<strong>as</strong> personagens e relatos de experiênci<strong>as</strong> de <strong>mulheres</strong><br />
que vão além deste modelo dicotomizado do feminino de Eva e Maria, onde <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong> são<br />
mediador<strong>as</strong> do sagrado, são profetiz<strong>as</strong>, são juiz<strong>as</strong>, são protagonist<strong>as</strong> da história cotidiana e política.<br />
N<strong>as</strong> matrizes religios<strong>as</strong> afro temos modelos mais libertadores para <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong>, revelando a<br />
força e a beleza integralmente. Há vári<strong>as</strong> orixás feminin<strong>as</strong> e o corpo é o lugar da manifestação do<br />
sagrado, sendo que muit<strong>as</strong> <strong>mulheres</strong> são sacerdotis<strong>as</strong>.<br />
O Br<strong>as</strong>il é um Estado laico<br />
Conforme a Constituição vigente no seu inciso I, do art. 19 expressa que:<br />
É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos<br />
Municípios:<br />
I – estabelecer cultos religiosos ou igrej<strong>as</strong>, subvenciona-los,<br />
embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes<br />
relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a<br />
colaboração de interesse público.<br />
Neste <strong>as</strong>pecto a nossa Carta Magna <strong>as</strong>segura tanto a liberdade de opinião como a<br />
inviolabilidade de consciência. M<strong>as</strong> podemos ressaltar que a crença como a consciência é inerente<br />
ao ser humano, quem finalmente decide ou não em que ser divino queremos acreditar.<br />
N<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong> do autor Fernando Fonseca:<br />
“O Estado não tem sentimento religioso e, laico como é, não deve estabelecer preferênci<strong>as</strong><br />
ou se manifestar por meio de seus órgãos. Entendemos haver equívoco ao se afirmar que o Br<strong>as</strong>il<br />
acredita em Deus. Quem pode acreditar ou não são os br<strong>as</strong>ileiros [<strong>as</strong>] 2 .”<br />
Isto é diretiva para elaboração d<strong>as</strong> polític<strong>as</strong> públic<strong>as</strong> e sua aplicação. Profissionais em tod<strong>as</strong><br />
<strong>as</strong> áre<strong>as</strong> devem ter como b<strong>as</strong>e a Constituição e Norm<strong>as</strong> Técnic<strong>as</strong> oficiais do Estado, devendo saber<br />
discernir entre su<strong>as</strong> convicções filosófic<strong>as</strong> e religios<strong>as</strong> e, sua atuação profissional em relação às<br />
<strong>mulheres</strong> especialmente.<br />
5
A condição de ser mulher no tempo: uma história de <strong>violência</strong> a partir do direito<br />
No umbral do século XXI, observamos avanços no que a direitos da pessoa humana se<br />
refere, sendo garantidos por meio dos instrumentos de legislação internacional como pelos internos.<br />
A respeito, não nos cabe dúvida que há progressos significativos e de grande porte. Porém, ainda<br />
existem algum<strong>as</strong> taref<strong>as</strong> pendentes para serem dirimid<strong>as</strong>, como por exemplo, o tema da<br />
discriminação da mulher e su<strong>as</strong> conseqüênci<strong>as</strong> na sociedade constituindo ainda um dos nós que<br />
precisa ser desatado para que aconteçam os direitos realmente na sua plenitude.<br />
Podemos apontar como um destes nós a subordinação da mulher ao homem.<br />
Mesmo que exista n<strong>as</strong> noss<strong>as</strong> legislações previsão constitucional de igualdade entre gêneros,<br />
a explicação que en<strong>contra</strong>mos na hora de falar de subordinação da mulher ao homem tem sua<br />
origem na construção da história da humanidade.<br />
A discriminação <strong>contra</strong> <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong> e a <strong>violência</strong> que n<strong>as</strong>ce desta subordinação sustenta-se<br />
em velhos padrões patriarcais que podemos en<strong>contra</strong>r através de divers<strong>as</strong> fontes, sejam est<strong>as</strong><br />
culturais e por excelência <strong>as</strong> de conteúdo religioso.<br />
Desta maneira os diversos mitos religiosos convertem-se em palavra sagrada e<br />
inquestionável:<br />
…desde o início da vida humana há discriminação <strong>contra</strong> <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong>. A lenda de<br />
que a mulher teria sido feita a partir de uma costela do homem é uma<br />
inferiorização banal e, como se não b<strong>as</strong>t<strong>as</strong>se, atribui-se a ela a marca de<br />
tentadora, já que teria levado tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> demais gerações a serem expuls<strong>as</strong> do<br />
paraíso. 3<br />
Esta discriminação legitimada através do religioso foi aumentando seu poder de influência<br />
e perp<strong>as</strong>sou <strong>as</strong>pectos d<strong>as</strong> esfer<strong>as</strong> civil e pública.<br />
Ao traçarmos uma linha no tempo, podemos observar, por exemplo, como no direito<br />
romano, considerado o berço do nosso sistema jurídico, <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong> eram considerad<strong>as</strong><br />
propriedades do pai, quando eram solteir<strong>as</strong>, e quando c<strong>as</strong>ad<strong>as</strong> eram propriedades do marido. Eram<br />
considerad<strong>as</strong> simplesmente res 4 .<br />
Ulteriormente, entre os séculos XV e XVIII da nossa história ocidental, milhares de<br />
<strong>mulheres</strong> foram torturad<strong>as</strong> e exterminad<strong>as</strong> pela morte na fogueira, sob acusação de bruxaria. Foi a<br />
chamada Caça d<strong>as</strong> Brux<strong>as</strong>, que não eram nada mais que <strong>mulheres</strong> corajos<strong>as</strong> que lutavam pelos seus<br />
direitos, constituindo um perigo para a Igreja Católica como para o sistema político e econômico<br />
que imperava na época. 5 Nessa sociedade patriarcal, os maridos dominavam <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong> em<br />
privado, e <strong>as</strong> autoridades m<strong>as</strong>culin<strong>as</strong> defendiam em público a supremacia dos homens em tod<strong>as</strong> <strong>as</strong><br />
instânci<strong>as</strong> sociais.<br />
6
Lamentavelmente, esta realidade não dista muito do que atualmente acontece n<strong>as</strong> outr<strong>as</strong><br />
latitudes, além de ocidente. Em alguns países de tradição árabe, o clitóris é retirado para que el<strong>as</strong><br />
não possam sentir prazer sexual.<br />
Por outro lado, aproximando-nos à nossa realidade, no Br<strong>as</strong>il, no tempo dos barões do café,<br />
a mulher era considerada objeto de obediência do marido.<br />
O quadro histórico a que nos referimos tem sua explicação, entre outr<strong>as</strong> possíveis, n<strong>as</strong><br />
conseqüênci<strong>as</strong> do patriarcado, “...tempo em que <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong> eram esquecid<strong>as</strong> e enfraquecid<strong>as</strong> pela<br />
legislação, chegando a ser desconsiderad<strong>as</strong> como ser humano, tal como fazia Esparta, na Grécia”. 6<br />
Posteriormente, através da condição de submissão e propriedade m<strong>as</strong>culina que foi reconhecida a<br />
humanidade da mulher.<br />
Com a chamada época d<strong>as</strong> luzes, no século XVIII, cuja fermentação cultural e filosófica<br />
inundava a sociedade através de ideais de liberdade e independência, lentamente, esta visão de<br />
rigidez a respeito d<strong>as</strong> <strong>mulheres</strong> foi mudando. Porém, somente na segunda metade do século XX,<br />
após a conquista do sufrágio universal juntamente com os direitos trabalhist<strong>as</strong> é que a <strong>violência</strong><br />
<strong>contra</strong> a mulher p<strong>as</strong>sou a ser tema de importância.<br />
Desta maneira, a <strong>violência</strong> de gênero ganhou destaque nos diversos estudos<br />
interdisciplinares, como também p<strong>as</strong>sou a ser competência de polític<strong>as</strong> públic<strong>as</strong> transformando-se<br />
em um problema que precisava ser resolvido urgentemente através da saúde, segurança pública,<br />
educação, entre outros 7 . Por outra parte, foi abordado no âmbito da análise comportamental da<br />
sociedade, através dos fenômenos sócio-culturais e psicológicos 8 , e como estes são influenciados<br />
pela economia global afetando <strong>as</strong> camad<strong>as</strong> da população. Também foi pensada no âmbito da<br />
religião 9 permitindo uma porta de entrada fértil para desvendar <strong>as</strong> su<strong>as</strong> implicações e conseqüênci<strong>as</strong><br />
no tema da <strong>violência</strong> de gênero e sua legitimidade através do sagrado.<br />
Entretanto, a <strong>violência</strong> de gênero também pode ser pensada num marco mais abrangente de<br />
reflexão e ação como são os tem<strong>as</strong> dos Direitos Humanos Universais, <strong>as</strong> Convenções e Tratados<br />
Internacionais que, por sua vez, estão intimamente relacionados com os Movimentos de Mulheres<br />
que lutaram e lutam por melhores condições de vida.<br />
1 C<strong>as</strong>o verídico ocorrido na CASA ABRIGO – Regional do ABC, citado em LEMOS, Marilda de O. Entre nós: um<br />
estudo sobre a C<strong>as</strong>a-Abrigo regional do ABC para <strong>mulheres</strong> em situação de <strong>violência</strong>. São Caetano do Sul: IMES –<br />
Centro Universitário Municipal de São Caetano do Sul, dissertação de mestrado, 2003.<br />
2 O grifo é nosso<br />
3 OLIVEIRA, Flávia Lopes. Estupro (e outros crimes <strong>contra</strong> a mulher): quem é o réu? Disponível em:<br />
http://www.apriori.com.br/artigos>. Acesso em 13/novembro/2006<br />
4 ABBUD, Valderez Deusdedit. A temática da mulher: os velhos modelos estão voltando. Disponível em:<br />
http://www.correiocidadania.com.br/ed264/dicionario.htm. Acesso em 20/março/2002<br />
5 Confira Luiza E. Tomita sobre o tema “A Inquisição e a Caça às Brux<strong>as</strong> – Uma página tenebrosa da História d<strong>as</strong><br />
Mulheres”. In: Mandrágora. São Bernardo do Campo: UMESP. Ano 7, n. o 7/8, 2001/2002. p.37<br />
6 SANTIN, Janaina Rigo et al. “Violência doméstica: Como legislar o silêncio. Estudo disciplinar na realidade local”.<br />
In: Just. Do Direito. P<strong>as</strong>so Fundo. v.1, n. o 16, 2002. p.81<br />
7
7 Cf. SCHRAIBER, Lilia Blima e D’OLIVEIRA, Ana Flávia Pires Luc<strong>as</strong>. “A <strong>violência</strong> intrafamiliar e <strong>as</strong> <strong>mulheres</strong>:<br />
Considerações da perspectiva de gênero”. In: Conciencia Latinoamericana. v. XIV, n. o 12, octubre 2005. p.30-35<br />
8 Cf. SCHRAIBER, Lilia Blima et al. WHO Multi country study on women’s health and domestic violence against<br />
women. Brazil. São Paulo: FMUSP, 2002. (Relatório de pesquisa); O’TOOLE, L.L. e SCHIFFMAN, J.R. Gender<br />
violence. Interdisciplinary perspectives. New York: New York University Press, 1997; HEISE, L.; ELLSBERG, M. e<br />
GOTTEMOELLER, M. “Ending violence against women”. In: Population Reports, Series L, n. o 11, v.27. p.1-44, 1999<br />
9 A respeito deste tema a Revista Mandrágora, editada pelo Núcleo de Estudos Teológicos da Mulher na América Latina<br />
(NETMAL), do Curso de Pós-Graduação em Ciênci<strong>as</strong> da <strong>Religião</strong> da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e<br />
do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciênci<strong>as</strong> da <strong>Religião</strong>, dedicou um número especial com vários artigos<br />
desde uma perspectiva de gênero sobre esta temática: “Violência, Gênero e <strong>Religião</strong>”. In: Mandrágora. São Bernardo<br />
do Campo: UMESP. Ano 7, n. o 7/8, 2001/2002<br />
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