As Meninas - Lygia Fagundes Telles O livro narra a história de três ...
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<strong>As</strong> <strong>Meninas</strong> - <strong>Lygia</strong> <strong>Fagun<strong>de</strong>s</strong> <strong>Telles</strong><br />
O <strong>livro</strong> <strong>narra</strong> a <strong>história</strong> <strong>de</strong> <strong>três</strong> universitárias <strong>de</strong> condição social e origens<br />
diversificadas, que se conhecem em um pensionato <strong>de</strong> freiras na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo,<br />
tornam-se muito amigas, apesar das diferenças <strong>de</strong> valores e personalida<strong>de</strong>s, convivem<br />
durante algum tempo, compartilham seus dramas e sonhos, ajudam-se nos momentos<br />
difíceis e terminam por separar-se <strong>de</strong>finitivamente. O encanto e a dificulda<strong>de</strong> aparente<br />
da leitura repousam no foco <strong>narra</strong>tivo cambiante: Lorena Vaz Leme, Ana Clara<br />
Conceição e Lia <strong>de</strong> Melo Schultz contam a própria <strong>história</strong> através do fluxo <strong>de</strong><br />
consciência, misturando suas falas, ações, lembranças e críticas recíprocas. Depois<br />
<strong>de</strong>ssa surpresa inicial, o leitor acaba por i<strong>de</strong>ntificar o estilo <strong>de</strong> cada personagem e<br />
sente-se <strong>de</strong>safiado a <strong>de</strong>svendar o universo interior das <strong>três</strong> "meninas"- uma paulista<br />
quatrocentona, uma baiana "terrorista" e uma mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> moral "duvidosa" e viciada<br />
em drogas. Os capítulos não têm nome, mas números: "Um" - Lorena Vaz Leme<br />
divaga em seu quarto dourado e rosa - com cozinha, gela<strong>de</strong>ira, banheira etc - no<br />
pensionato Nossa Senhora <strong>de</strong> Fátima: pensa na amiga Lia <strong>de</strong> Melo Schultz, que tem<br />
pretensões a escritora e é militante política; no gato <strong>As</strong>tronauta, que cresceu e<br />
abandonou-a; em Che Guevara, que foi lí<strong>de</strong>r <strong>de</strong> toda uma geração; em M.N., homem<br />
misterioso que lhe <strong>de</strong>sperta <strong>de</strong>sejos eróticos, em Jesus Cristo, a quem <strong>de</strong>dica a música<br />
<strong>de</strong> Jimi Hendrix; e na morte <strong>de</strong>sse roqueiro e <strong>de</strong> Rômulo, seu irmãozinho querido. Lia<br />
aparece para pedir-lhe o carro <strong>de</strong> "mãezinha" emprestado, e enquanto tomam o chá<br />
especial <strong>de</strong> Lorena, conversam e divagam sobre tolices e sobres coisas sérias,<br />
concomitantemente a greve na faculda<strong>de</strong>; a prisão <strong>de</strong> Miguel, namorado <strong>de</strong> Lia e<br />
militante político também; na alienação da burguesia acomodada; na repressão militar,<br />
nos amigos que estão presos e sendo torturados. Lorena lembra a morte traumática <strong>de</strong><br />
Rômulo e sua agonia nos braços da mãe, vitimado por um tiro aci<strong>de</strong>ntal dado pelo<br />
outro irmão, Remo. Da fuga <strong>de</strong>ste para o exterior através da Diplomacia, dos<br />
freqüentes presentes que ele envia a ela (sinos, lenços, roupas, comida...). Mistura a<br />
esses pensamentos a figura do médico Marcus Nemésios (o M.N.), casado e bem mais<br />
velho, <strong>de</strong> quem ela sonha receber amor, carinho e proteção (Aliás, passa o <strong>livro</strong> todo<br />
aguardando um telefonema <strong>de</strong>le, que nunca se concretiza); evoca ainda a figura <strong>de</strong><br />
Ana Clara, suas origens "suspeitas", no excesso <strong>de</strong> tranqüilizantes que consome;<br />
pensa na própria adolescência, ao piano, no gostoso convívio familiar, nos banhos <strong>de</strong><br />
banheira, na <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> morar no pensionato, no aluguel e <strong>de</strong>coração do quarto por<br />
Mieux, o atual namorado da mãe. Lia fala sobre o <strong>livro</strong> que escrevera e acabara por<br />
rasgar. Criticam Ana Clara e o namorado Max, traficante que a viciou em drogas, e o<br />
provável e <strong>de</strong>sconhecido noivo rico com quem ela preten<strong>de</strong> se casar para "sair do<br />
buraco", após plástica restauradora da virginda<strong>de</strong>, "bancada" por Lorena. Lia pe<strong>de</strong><br />
várias vezes o carro emprestado, e um pouco <strong>de</strong> "oriehnid" (dinheiro "ao contrário",<br />
para dar sorte) para o "aparelho"(= grupo <strong>de</strong> resistência à ditadura militar). Apesar <strong>de</strong><br />
temer envolvimentos com o grupo e suas conseqüências, Lorena é incapaz <strong>de</strong> dizer<br />
"não" aos pedidos da (s) amiga (s). "Dois" - Ana Clara e Max drogam-se na cama e<br />
<strong>de</strong>liram. Ela sente-se travada, bloqueada, apesar das sessões <strong>de</strong> terapia - ela o<strong>de</strong>ia o<br />
analista. Acha-se bonita (mo<strong>de</strong>lo, 1,77 m) e carente - a mãe, prostituta, nunca lhe <strong>de</strong>u<br />
atenção. Lembra-se do Dr. Algodãozinho, que <strong>de</strong>ixava seus <strong>de</strong>ntes apodrecerem para<br />
abusar sexualmente <strong>de</strong>la e da mãe, em sua ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntista. Pensa no quanto ama<br />
Max, mas que em janeiro casa-se com o noivo rico e resolve seus problemas. Sente<br />
ódio <strong>de</strong> Deus - e <strong>de</strong> negros. Resgata a infância carente, repleta <strong>de</strong> ruídos (ratos,<br />
baratas) e cheiros, nos prédios em construção, on<strong>de</strong> vivia com a mãe e os sucessivos<br />
amantes.Também evoca <strong>de</strong>talhes da vida das amigas Lia e Lorena. Max também<br />
<strong>de</strong>lira. Reza. Teve educação esmerada (fala francês, é fino) mas empobreceu e tornouse<br />
traficante. Tem uma irmã que sumiu com as jóias da família e encontra-se<br />
internada em sanatório. Ana e Max se amam, mas seu relacionamento é difícil e
complicado. "Três" - Lorena reflete sobre a violência do mundo; assaltos a bancos; a<br />
morte <strong>de</strong> Rômulo; a profissão <strong>de</strong> Remo propiciando sua "fuga" para o exterior.<br />
Gostaria <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r alienar-se da "máquina <strong>de</strong>sse mundo" violento (intertextualida<strong>de</strong><br />
com o texto "A Máquina do mundo", <strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>), como uma<br />
ostra <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua concha dourada (= seu quarto - refúgio). Rememora a chegada <strong>de</strong><br />
Lia e A. Clara e a "invasão" das duas à sua privacida<strong>de</strong>, a amiza<strong>de</strong> das <strong>três</strong>, apesar das<br />
personalida<strong>de</strong>s opostas. Miúda e magra, mostra certa inveja da beleza <strong>de</strong> Ana Clara,<br />
apesar da diferença cultural... Através da visão <strong>de</strong> Lorena, conhecemos um pouco mais<br />
sobre as duas amigas: Lia <strong>de</strong> Melo Schultz tem um "pé" baiano, da mãe Diú (D.<br />
Dionísia) e outro berlinense, do pai seu Pô (Herr Paul, ex-oficial nazista). Herdou do<br />
pai o vigor germânico; da mãe, as "proporções gloriosas e a cabeleira <strong>de</strong> sol negro" e o<br />
açúcar da voz. É uma "mulher-hino", enquanto Lorena vê-se como uma civilizada,<br />
requintada "balada medieval" (ou "Magnólia <strong>de</strong>smaiada", para os colegas da Faculda<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Direito). Ana Clara "arrombou" a privacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Lorena, obrigando-a a verda<strong>de</strong>iros<br />
exercícios <strong>de</strong> carida<strong>de</strong> cristã: mexe em tudo, nos <strong>livro</strong>s, nos objetos pessoais. Tem<br />
olhos ver<strong>de</strong>s, é mo<strong>de</strong>lo, linda, mas "<strong>de</strong> cuca embrulhada", <strong>de</strong>primida e <strong>de</strong>primente,<br />
juntadíssima, afetadíssima, mentirosíssima - "ni ange ni bête" - (nem anjo, nem<br />
<strong>de</strong>mônio). Envolvida com sexo e drogas. Enquanto lancha ao sol, Lorena recorda o<br />
aborto <strong>de</strong> Aninha, resgatando a fábula da formiga e da cigarra (inconsciente,<br />
bagunceira, irresponsável), com quem compara a amiga. Recebe carta <strong>de</strong> Remo e<br />
pensa na morte <strong>de</strong> Rômulo. Filosofa sobre o lado omisso das relações humanas. Sonha<br />
em casar-se com M.N., pois sente-se frágil, insegura, precisando <strong>de</strong> um homem em<br />
tempo integral. Ao voltar para o quarto, pensa no colega Fabrízio, na noite chuvosa em<br />
que ele veio estudar mas preferiu envolvê-la nos braços, ameaçando sua virginda<strong>de</strong>;<br />
na falta <strong>de</strong> luz e subseqüente chegada <strong>de</strong> Lia, estragando o momento mágico com suas<br />
alpargatas molhadas e suas pesquisas sobre a vida das prostitutas, sua obsessão por<br />
Miguel. Lia sai, mas chega Ana Clara, e "se instala". Fim da noite para Fabrízio e<br />
Lorena. No dia seguinte, conheceu o Dr. M.N. na sua Faculda<strong>de</strong> e ganhou carona.<br />
Passa a viver aguardando seu telefonema, fantasiando um amor edipiano. "Quatro" -<br />
Max <strong>de</strong>lira na cama. Gosta <strong>de</strong> Chopin, <strong>de</strong> Renoir. Conversa com a Coelha (A. Clara)<br />
sobre a riqueza passada, as viagens. Ana compara os diferentes níveis <strong>de</strong> artistas<br />
abstratos e reclama <strong>de</strong> estar lúcida - teria tomado aspirina? Lembra o passado <strong>de</strong><br />
miséria e sonha com o futuro promissor como psicóloga <strong>de</strong> ricaços - "Nessa cida<strong>de</strong> as<br />
pessoas não se preocupam mais com nome, mas com o saco <strong>de</strong> ouro" (<strong>de</strong> que adianta<br />
o nome Vaz Leme <strong>de</strong> Lorena, <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>irantes?). Quer esquecer a mãe, os<br />
amantes, Jorge, Aldo, Sérgio... e o suicídio com formicida. Lembra-se da amiga<br />
Adriana, feia e vesga, mas com casa na praia, on<strong>de</strong> A. Clara tentou lavar a memória<br />
do passado num banho <strong>de</strong> mar. Max <strong>de</strong>sperta e os dois <strong>de</strong>liram juntos. Ela está<br />
grávida e quer abortar. Ele <strong>de</strong>seja o filho, cuja voz diz ter ouvido. Vão ficar ricos e<br />
fazer cruzeiros pelo mundo. Ela é a gata borralheira, que tem encontro marcado com o<br />
noivo, que já <strong>de</strong>ve estar inquieto com o atraso. "Cinco" - Lorena aguarda o<br />
telefonema <strong>de</strong> M.N., como sempre. Pensa em arte, em literatura (Dante, Beatriz) , em<br />
música (jazz), em cheiros (incenso); em morte (Rômulo); na mãe e no carro (teme<br />
que Lia seja metralhada <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le). Gostaria <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r sair <strong>de</strong> moto com Fabrízio, um<br />
cinema, um jantar... mas acha que ele <strong>de</strong>ve estar na faculda<strong>de</strong>, incitando a greve e<br />
namorando uma poetazinha que resolveu seduzi-lo. Recebe a visita da irmã Bula e<br />
<strong>de</strong>sconfia que esta é a autora das cartas anônimas, que falam coisas horríveis sobre as<br />
meninas e as freiras, para Madre Alix, a superiora. Enquanto serve licor e biscoito para<br />
a freira, relembra a morte <strong>de</strong> Rômulo, as manchetes nos jornais; pensa em Lia, em<br />
Simone <strong>de</strong> Beauvoir (escritora francesa), em segundo e terceiro sexos, em M.N., em<br />
Che Guevara, em morrer e renascer (segundo S. Marcos, "é necessário nascer <strong>de</strong><br />
novo"). Recupera a teoria da amiga "terrorista" sobre a perda <strong>de</strong> pureza do baiano e<br />
do índio, e cita Gonçalves Dias. Coloca um Noturno <strong>de</strong> Chopin e serve constantemente
vinho à freirinha. Quando tampa a garrafa, pensa na ferida <strong>de</strong> Rômulo, na fuga <strong>de</strong><br />
Remo. Despe<strong>de</strong>-se da Irmã Bula e <strong>de</strong> sua velhice sem sentido. "Seis" - Na sala<br />
imunda e mal iluminada on<strong>de</strong> montaram o "aparelho", Lia ("Rosa <strong>de</strong> Luxemburgo") e<br />
Pedro começam a separar material para o jornal. Conversam sobre experiências<br />
homossexuais; Jango; o nazismo; conceito <strong>de</strong> santida<strong>de</strong>; sobre Che Guevara; Martin<br />
Luther King (lí<strong>de</strong>r negro americano), engajamento político-social, atuação da Igreja<br />
progressista, casamento <strong>de</strong> padres, amor... Sai para uma operação noturna com o<br />
Bugre, que lhe conta sobre a próxima <strong>de</strong>portação <strong>de</strong> Miguel para a Argélia. De volta ao<br />
pensionato, feliz, conversa com Madre Alix: fala <strong>de</strong> seu amor pela família, do passado<br />
com sauda<strong>de</strong>, do presente (fases da vida!...); <strong>de</strong> A. Clara, Max e seu envolvimento<br />
com drogas; na sua pretensa vocação para escritora; na <strong>de</strong>silusão com Miguel (muito<br />
cerebral) e Lorena (muito sofisticada). Madre Alix quer ajudá-las, mas sente-se<br />
impotente e teme por seu futuro. Sugere uma epígrafe para o <strong>livro</strong> <strong>de</strong> Lia e que serve<br />
para a vida das duas: "Sai da tua terra e da tua parentela e da casa <strong>de</strong> teu pai e vem<br />
para a terra que eu te mostrarei"(Gênesis). "Sete" - Irmã Clotil<strong>de</strong> leva frutas para<br />
Lorena, que se exercita na bicicleta. Falam sobre as duas Santas Teresas; sobre<br />
Tolstói; sobre homossexualismo (comenta-se no pensionato que I. Clotil<strong>de</strong> é lésbica);<br />
sobre beleza, i<strong>de</strong>ais, filosofias <strong>de</strong> vida. A freira vai lavar as mãos e volta criticando a<br />
cor, a saú<strong>de</strong> e a alimentação das <strong>três</strong> amigas. Lorena anseia por beleza e um<br />
telefonema... Quer ficar só, mas a freira se <strong>de</strong>mora na visita e no exame do quarto,<br />
dos animais, dos <strong>livro</strong>s da moça. Esta lê um pedaço <strong>de</strong> um <strong>livro</strong> <strong>de</strong> Direito, cita frases<br />
em latim, enquanto pensa sobre o lado oculto das pessoas: a vida é um jogo <strong>de</strong><br />
espelhos, e Lorena tem se<strong>de</strong> <strong>de</strong> autenticida<strong>de</strong>... Lia chega, a freira se vai. Devolve a<br />
chave do carro, conta sobre a viagem à Argélia, brinca <strong>de</strong> entrevistar Lorena (os<br />
assuntos <strong>de</strong> sempre: virginda<strong>de</strong>, casamento, M.N., Fabrízio, Pedro) e diz que esta é<br />
edipiana. Ambas mostram-se preocupadas com a gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> Ana "Turva" e sua<br />
<strong>de</strong>pendência. Divertem-se no jardim e <strong>de</strong>spe<strong>de</strong>m-se no portão. Lia pe<strong>de</strong> roupas para<br />
os "revolucionários". Lorena fica pensando na iniciação sexual das amigas e imagina<br />
como será sua "primeira vez"(M.N. é ginecologista, um "gentleman"). "Oito" - Ana<br />
Clara e Max acordam e conversam: ele e Lorena são "aristocratas", têm álbum <strong>de</strong><br />
retratos... Os <strong>de</strong> Lorena estão na garagem do pensionato. Criticam o amante jovem <strong>de</strong><br />
"mãezinha", Mieux. Max vai até a gela<strong>de</strong>ira, come e volta a dormir. Ana pensa na<br />
<strong>de</strong>sculpa que vai inventar para o noivo aceitar seus sumiço. Arruma-se e sai. Chove.<br />
São quase 11 h da noite. Não consegue táxi e aceita carona <strong>de</strong> um industrial em um<br />
Merce<strong>de</strong>s. Foge <strong>de</strong>le e refugia-se em um bar, on<strong>de</strong> encontra um velhote estranho que<br />
a convida para seu apartamento. Confundindo-o com "um pai" que nunca teve, segueo.<br />
Apartamento <strong>de</strong> boêmio - retratos na pare<strong>de</strong>, vitrola <strong>de</strong> corda, discos <strong>de</strong> tangos.<br />
Ana <strong>de</strong>ita-se na cama e dorme, enquanto ele lê para ela textos sobre Napoleão,<br />
Rodolfo Valentino e tem orgasmo. Diz que o platonismo amoroso é a forma mais sutil e<br />
temível da paixão infinita e insaciável. "Nove" - Na banheira, Lorena filosofa sobre<br />
"ser" ou "estar" no mundo - na <strong>de</strong>sintegração do ser humano na cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, no<br />
papel do filósofo, do advogado, do médico, do psiquiatra. Sente todos os sintomas <strong>de</strong><br />
todas as doenças mentais, apesar <strong>de</strong> charmosa e inteligente. Lembra-se da fazenda,<br />
das procissões em que se vestia <strong>de</strong> anjo. Rememora o primeiro encontro com M.N. e<br />
imagina as reações <strong>de</strong> mãezinha quando lhe contar sobre ele. Sai do banho<br />
emocionada e veste um robe. Chega o colega Guga, que lhe conta ter abandonado a<br />
família, a escola e estar vivendo em um porão, numa comunida<strong>de</strong>. Escandalizada com<br />
sua sujeira, Lorena corta-lhe as unhas, alerta-o sobre promiscuida<strong>de</strong> e lê para ele uma<br />
carta <strong>de</strong> M.N. Guga se excita e tenta amá-la. Ela quase ce<strong>de</strong>, mas reage e ele se vai.<br />
Chega Lia. Conversam sobre filosofia, Lacan, auto-i<strong>de</strong>ntificação, transferência <strong>de</strong><br />
afetos. Lia quer provar que M.N. está mais para pai que para namorado, mas Lorena<br />
não admite. Falam sobre o telefonema <strong>de</strong> Herr Pô e da promessa <strong>de</strong> ajuda em dinheiro<br />
para a viagem. Lorena entrega a Lia um cheque em branco e pe<strong>de</strong>-lhe para usar uma
cruz na corrente, enquanto filosofa sobre Deus, religião, fé. Lia sai rindo. Lorena faz<br />
caretas. "Dez" - Lia pega carona com o motorista <strong>de</strong> mãezinha <strong>de</strong> Lorena e vai visitála.<br />
No caminho, consegue fundir a cabeça do senhor com seu discurso sobre família e<br />
liberda<strong>de</strong>. Recebida no hall pelo mordomo, fuma, examina os objetos e tapetes<br />
luxuosos, enquanto imagina sua viagem, a <strong>de</strong>sunião da esquerda; vê-se na Argélia<br />
escrevendo seu diário e exaltando a Pátria. Mãezinha chora, na cama, a morte do<br />
psiquiatra Dr. Francis. Desajeitada, Lia tenta consolá-la e ouve suas lamúrias sobre a<br />
diferença <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> entre ela e Mieux, a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acompanhá-lo em seus<br />
programas, a dificulda<strong>de</strong> em aceitar a velhice e a morte. Lia lembra-se <strong>de</strong> sua família<br />
(tão equilibrada!) com sauda<strong>de</strong> e amor. Mãezinha pergunta sobre os namoros <strong>de</strong><br />
Lorena e Lia (acha-a masculinizada) e quer trazer a filha <strong>de</strong> volta à casa. Conta uma<br />
versão totalmente diferente sobre a morte <strong>de</strong> Rômulo (falência cardíaca, ainda bebê).<br />
Lia sente-se nauseada e pensa em ver o álbum <strong>de</strong> fotos na garagem: acha que<br />
mãezinha está escamoteando a tragédia por auto-<strong>de</strong>fesa. Ganha roupas e mala para a<br />
viagem. "Onze" - Tar<strong>de</strong> da noite. Ana Clara chega transtornada ao quarto <strong>de</strong> Lorena,<br />
que está estudando para a prova no dia seguinte (a greve terminara). Entra arrastada,<br />
gritando <strong>de</strong> dor no peito e imunda. Lorena coloca-a na banheira - seu corpo está cheio<br />
<strong>de</strong> nódoas roxas e sofre alucinações com formigas, baratas, Deus e Max. Pe<strong>de</strong> uísque e<br />
a bolsa. Delira. Lorena pensa no abismo entre o ser e o estar, num futuro feliz no<br />
campo, fora <strong>de</strong> sua casca. <strong>As</strong> novelas da vizinhança encobrem os ruídos e finalmente<br />
A. Clara adormece. Lorena toma chá. Finalmente Lia chega para preparar as malas (a<br />
viagem será na manhã seguinte) e Lorena vai até seu quarto. Conversam muito -<br />
sabem que estão se <strong>de</strong>spedindo - e Lia conta-lhe que Guga virá procurá-la. Não vêem<br />
futuro na relação com M.N., que jamais abandonará a família, pois a "dor do remorso<br />
dói mais que a dor física"(Tolstói). Ao voltar para o quarto, Lorena tem um choque: A.<br />
Clara está morta. "Doze" - Lia corre aos acenos da amiga. Ao entrar, encontra Lorena<br />
massageando o peito <strong>de</strong> A. Clara, tentando revivê-la, enquanto reza. Lia pensa em<br />
chamar o pronto-socorro, em acordar todo mundo, em que po<strong>de</strong>ria ter feito mais pela<br />
amiga, além dos "discursos". A bolsa <strong>de</strong> A. Clara está aberta: talvez dali ela tirara a<br />
própria morte. Lorena tem idéias e age: encomenda o corpo, reza em latim, veste e<br />
pinta A. Clara como se esta fosse a uma festa. Elimina todas as pista<br />
comprometedoras para Aninha e Max, além das freiras do pensionato. <strong>As</strong> duas amigas<br />
carregam A. Clara através da noite provi<strong>de</strong>ncialmente nebulosa e abandonam o corpo<br />
em um banco em uma linda praça do bairro. Voltam para o pensionato e separam-se:<br />
cada uma vai viver a própria vida. Lia no exílio. Lorena <strong>de</strong> volta para a casa <strong>de</strong><br />
mãezinha, <strong>de</strong>ixando sua concha para a futura hóspe<strong>de</strong>, que vem do Pará. Ação A ação<br />
do <strong>livro</strong> é prevalentemente interiorizada. Quase nada acontece na realida<strong>de</strong> exterior; a<br />
vidinha pacata e rotineira no pensionato, as conversas intermináveis, os estudos, as<br />
visitas das personagens ao redor do quarto <strong>de</strong> Lorena - centro daquele microcosmo -,<br />
poucos momentos na faculda<strong>de</strong> e no "aparelho"; as atitu<strong>de</strong>s contraditórias <strong>de</strong> Ana<br />
Clara e sua morte; a solução dada pelas amigas para se livrarem <strong>de</strong> um cadáver<br />
comprometedor. Tudo se passa no âmbito da memória, enquanto as meninas resolvem<br />
o passado e evocam suas experiências em busca <strong>de</strong> auto-conhecimento, <strong>de</strong> solução<br />
para seus traumas e conflitos interiores, para a exorcização <strong>de</strong> seus "fantasmas".<br />
Personagens Lorena Vaz Leme, filha <strong>de</strong> fazen<strong>de</strong>iros, culta, fina, aristocrática,<br />
<strong>de</strong>scen<strong>de</strong> <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>irantes. É aluna na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito e bastante estudiosa: cita<br />
com freqüência passagens da Bíblia, frases em latim, em francês, em espanhol, <strong>de</strong><br />
filósofos variados, escritores e músicos. Demonstra cultura e educação esmerada,<br />
on<strong>de</strong> se fun<strong>de</strong>m harmoniosamente o erudito e o popular. <strong>As</strong>sistiu impotente à<br />
<strong>de</strong>rrocada da própria família e evoca freqüentemente esse passado, on<strong>de</strong> contrapõe os<br />
momentos felizes da infância, na fazenda, à morte aci<strong>de</strong>ntal do irmão e a subseqüente<br />
<strong>de</strong>sagregação do núcleo familiar - a fazenda vendida, o pai internado em sanatório, o<br />
irmão traumatizado pela culpa, a mãe vivendo <strong>de</strong> fantasias, terapias e falsas ilusões.
Lorena tenta "equilibrar-se" fechando-se em uma concha dourada <strong>de</strong>ntro do<br />
pensionato <strong>de</strong> freiras, on<strong>de</strong> pratica ginástica, faz chá, recebe cartas e presentes do<br />
irmão, visitas freqüentes <strong>de</strong> colegas, e <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ajuda as amigas. Toma sol, lê, filosofa,<br />
mas pouco age. Segundo Lia, trata-se <strong>de</strong> uma burguesa alienada, apesar da bonda<strong>de</strong> e<br />
do carinho com que recebe e ajuda a todos. Mas o mundo insiste em invadir sua<br />
privacida<strong>de</strong> - as amigas, as freiras, Fabrízio, Guga, o amor impossível pelo médico<br />
mais velho colocam-na em freqüente conflito com o mundo exterior. Procurando viver<br />
<strong>de</strong> sonhos, per<strong>de</strong> várias oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> realizar-se afetivamente e ser feliz. No<br />
entanto, diante da morte <strong>de</strong> A. Clara, consegue <strong>de</strong>finir-se e agir positivamente,<br />
encontrando, por um lado, solução para o problema imediato; e, <strong>de</strong> outro, um possível<br />
<strong>de</strong>sfecho para sua alienação: voltará para a casa da mãe, acabará por perceber a<br />
impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um compromisso com M.N. e se abrirá para o amor <strong>de</strong> Guga,<br />
enquanto se resolve a enfrentar o mundo e a <strong>de</strong>ixar sua "concha" <strong>de</strong>finitivamente. Lia<br />
<strong>de</strong> Melo Schultz serve como contraponto à "finesse" <strong>de</strong> Lorena: veste-se mal, usa<br />
alpargatas, não gosta muito <strong>de</strong> banho, não cuida da aparência. Veio da Bahia para<br />
fugir da mãe superprotetora e do pai com um passado misterioso <strong>de</strong> ex-oficial nazista.<br />
Matricula-se no curso <strong>de</strong> Ciências Sociais (foco <strong>de</strong> agitações estudantis na década <strong>de</strong><br />
60), on<strong>de</strong> se envolve com um grupo militante da esquerda e apaixona-se por Miguel,<br />
que acaba preso. Sua preocupação consiste em angariar dinheiro e roupas para o<br />
"aparelho", e está sempre discursando contra a alienação da burguesia, das amigas, e<br />
a pobreza do Nor<strong>de</strong>ste. Seu equilíbrio repousa sobre dois referenciais: em seu<br />
engajamento político (doação <strong>de</strong> amor aos amigos e à liberda<strong>de</strong> da Pátria) e na<br />
segurança que encontra no amor <strong>de</strong> Miguel e no apoio da família, que, mesmo à<br />
distância, protege-a e dispõe-se a ajudá-la em sua fuga para o exterior. Escolhe seu<br />
próprio caminho e resolve-se bem. Ana Clara Conceição apresenta o temperamento<br />
mais problemático e a personalida<strong>de</strong> mais inconsistente das <strong>três</strong>, apesar do fascínio<br />
que a força <strong>de</strong> suas evocações exerce sobre o leitor, as amigas e Madre Alix,<br />
principalmente. Filha <strong>de</strong> pai <strong>de</strong>sconhecido, amargou uma infância carente, junto a uma<br />
mãe prostituída e constantemente machucada pelos sucessivos companheiros, um dos<br />
quais a induz ao suicídio pela ingestão <strong>de</strong> formicida. Ana foi seduzida por um <strong>de</strong>ntista,<br />
que abusa sexualmente da mãe e da filha. Traumatizada, não consegue encontrar<br />
prazer nos seus relacionamentos amorosos. Permanece quase o <strong>livro</strong> todo na cama<br />
com o namorado Max, traficante que a viciou em drogas e, embora conversem muito,<br />
seu discurso aparece truncado - amam-se, mas não conseguem ser felizes. Sob o<br />
efeito das drogas, suas evocações são basicamente sinestésicas: ruídos (o roque-roque<br />
dos ratos e o barulho das baratas, nas construções), cheiros (do consultório do<br />
<strong>de</strong>ntista, da bebida, do mar, do corpo <strong>de</strong> Max...), sensações variadas <strong>de</strong> frio e <strong>de</strong> calor<br />
entrecruzam-se enquanto ela <strong>de</strong>snuda seus traumas sem qualquer pudor e, fugindo à<br />
realida<strong>de</strong>, adia todas as soluções para "o ano que vem". Só que o peso da memória é<br />
mais forte: nem a aspirina; nem a ilusão <strong>de</strong> um noivo rico; nem a probabilida<strong>de</strong> da<br />
plástica restauradora da virginda<strong>de</strong>; nem a perspectiva <strong>de</strong> ascensão social através da<br />
Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Psicologia, da carreira <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo, do dinheiro que conseguirá na clínica<br />
para a burguesia; nem o amor e os conselhos <strong>de</strong> Madre Alix e das amigas conseguem<br />
salvá-la. Seu fim é trágico: morre <strong>de</strong> overdose no quarto <strong>de</strong> Lorena, e, vestida e<br />
enfeitada, cumpre seu <strong>de</strong>stino num banco <strong>de</strong> praça, sem prejudicar aquelas pessoas<br />
que conseguiram dar-lhe um pouco <strong>de</strong> afeto, mas não a paz <strong>de</strong> que tanto necessitava.<br />
Tempo Subjaz à <strong>narra</strong>tiva uma seqüência cronológica pouco marcada <strong>de</strong> alguns dias<br />
ou poucas semanas: o tempo é voluntariamente vago e difícil <strong>de</strong> precisar. O que<br />
prevalece é o tempo psicológico, pois tudo acontece através do entrecruzar da<br />
memória, da evocação do passado, da mistura com algumas ações no presente. Alguns<br />
fatos permitem a localização da obra no final dos anos 60, pois evocam as agitações<br />
sociais, as greves universitárias, a prisão e a tortura <strong>de</strong> militantes políticos sob o<br />
enrijecimento da ditadura militar, o crescimento agressivo da megalópole que tritura o
jovem e esmaga sua individualida<strong>de</strong>, alienando-o, censurando-o e dificultando-lhe a<br />
busca <strong>de</strong> caminhos. Passado e presente fun<strong>de</strong>m-se <strong>de</strong> modo inextricável, e nos<br />
traumas da memória encontram-se as explicações para os problemas existenciais das<br />
<strong>três</strong> meninas - símbolos <strong>de</strong> toda uma geração massacrada e alienada por forças do<br />
passado e das circunstâncias. Espaço Oprimidas pela cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> e sua violência, as<br />
<strong>três</strong> meninas refugiam-se no Pensionato N. Senhora <strong>de</strong> Fátima, na região central <strong>de</strong><br />
São Paulo. O quarto-concha <strong>de</strong> Lorena constitui-se no refúgio para on<strong>de</strong> as pessoas<br />
convergem em busca <strong>de</strong> conforto, <strong>de</strong> carinho, <strong>de</strong> segurança, <strong>de</strong> afeto e compreensão -<br />
um tipo <strong>de</strong> oásis <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mundo <strong>de</strong>sorganizado, caótico e extremamente<br />
ameaçador, on<strong>de</strong> "Deus vomita os mortos". Foco Narrativo O foco <strong>narra</strong>tivo em<br />
primeira pessoa é manipulado pela Autora <strong>de</strong> forma magistralmente cambiante: ele se<br />
<strong>de</strong>sloca constantemente (e inesperadamente!) para o fluxo <strong>de</strong> consciência das <strong>três</strong><br />
amigas, que se entrevistam, que se apresentam umas às outras e ao leitor, que<br />
refletem continuamente sobre si mesmas e umas sobre as outras, arrastando-nos<br />
nessas freqüentes invasões à privacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> A. Clara, Lorena e Lião, que se vão<br />
<strong>de</strong>snudando paulatinamente diante <strong>de</strong> nós. Existe uma dificulda<strong>de</strong> inicial para a leitura<br />
até a i<strong>de</strong>ntificação do estilo peculiar <strong>de</strong> cada personagem, pois cada uma <strong>de</strong>las se<br />
exprime <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> seu "dialeto" coloquial - o discurso mais elaborado e culto <strong>de</strong><br />
Lorena, o regionalismo politicamente engajado <strong>de</strong> Lião e o pensamento confuso e<br />
truncado <strong>de</strong> Ana "Turva". Superada essa dificulda<strong>de</strong>, o leitor mergulha <strong>de</strong> corpo e alma<br />
no universo fantástico <strong>de</strong>ssas <strong>três</strong> meninas encantadoras, representantes autênticas<br />
daquele que foi um dos períodos mais importantes e difíceis para a emancipação da<br />
mulher, para a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensamento e para a realização individual <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />
universo politicamente conturbado. O romance <strong>As</strong> <strong>Meninas</strong> oferece-nos, <strong>de</strong> um lado,<br />
um painel saboroso das vivências <strong>de</strong> <strong>três</strong> pessoas em busca <strong>de</strong> si mesmas; <strong>de</strong> outro,<br />
uma amostra dos problemas cruciais que agitaram a juventu<strong>de</strong> durante um dos<br />
períodos mais conturbados da <strong>história</strong> do Brasil, que <strong>Lygia</strong> <strong>Fagun<strong>de</strong>s</strong> <strong>Telles</strong> teve a<br />
ousadia e a coragem <strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar.