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Luis Washington Vita - Curso Independente de Filosofia

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LUÍS WASHINGTON VITA<br />

PANORAMA<br />

DA FILOSOFIA<br />

NO BRASIL<br />

[1969]<br />

1


ÍNDICE<br />

À Guisa <strong>de</strong> Prefácio............................................................................................... 3<br />

I - <strong>Filosofia</strong> da <strong>Filosofia</strong> no Brasil......................................................................... 4<br />

II - As Origens Lusíadas........................................................................................ 8<br />

III - O Pensamento Colonial.................................................................................. 12<br />

IV - O Sentido das “Luzes”................................................................................... 16<br />

V - Visão Romântica.............................................................................................. 25<br />

VI - Sob a Égi<strong>de</strong> do Ecletismo............................................................................... 31<br />

VII - Ortodoxia e Heterodoxia Positivistas............................................................ 37<br />

VIII - Monismo e Evolucionismo.......................................................................... 42<br />

IX - Reação Espiritualista...................................................................................... 46<br />

X - Tendências Contemporâneas........................................................................... 51<br />

1. Cientificismo e Analiticismo................................................................... 53<br />

a) Pontes <strong>de</strong> Miranda......................................................................... 53<br />

b) Eurialo Canabrava......................................................................... 54<br />

c) Os grupos logísticos....................................................................... 55<br />

2. Culturalismo e Historicismo.................................................................... 56<br />

a) Miguel Reale.................................................................................. 56<br />

b) Cruz Costa..................................................................................... 58<br />

c) Os marxistas................................................................................... 59<br />

d) Álvaro Vieira Pinto........................................................................ 61<br />

3. I<strong>de</strong>alismo e Existencialismo.................................................................... 63<br />

a) Renato Cirell Czerna..................................................................... 63<br />

b) Vicente Ferreira da Silva............................................................... 64<br />

c) Gerd A. Bornheim......................................................................... 66<br />

4. Neotomismo e Espiritualismo Cristão..................................................... 67<br />

a) A reconstrução metafísica.............................................................. 67<br />

b) Neotomismo.................................................................................. 68<br />

c) Espiritualismo cristão.................................................................... 70<br />

Bibliografia............................................................................................................ 72<br />

Apêndice: O Autor.............................................................................................. 74<br />

Luiz <strong>Washington</strong> <strong>Vita</strong> – por Wilson Chagas.................................... 75<br />

2


À GUISA DE PREFÁCIO<br />

Este é um ensaio <strong>de</strong>spretensioso e sinóptico sobre um complexo tema que já<br />

conta com ampla bibliografia, consoante se verifica às págs. 22 usque 33 das Fuentes <strong>de</strong><br />

la filosofia latinoamericana (<strong>Washington</strong>, D. C., Union Panamericana, 1967), com mais<br />

<strong>de</strong> 70 fichas <strong>de</strong> obras sobre o pensamento filosófico praticado no Brasil, sem falar <strong>de</strong><br />

outras 40 fichas <strong>de</strong> artigos <strong>de</strong> revistas sobre o mesmo assunto (cf. págs. 62 usque 67, op.<br />

cit.). Sobre sua pertinência e oportunida<strong>de</strong> trata o capítulo introdutório com algum pormenor.<br />

O que importa, agora, é justificar seu aparecimento na “Série Universitária” da<br />

benemérita Coleção “Catavento” da Editora Globo, <strong>de</strong> Porto Alegre. Ao que parece,<br />

esta edição se justifica por si mesma, seja pelo fato <strong>de</strong> levar ao gran<strong>de</strong> público informações<br />

sobre aspectos mais ou menos inusitados do espírito brasileiro na sua dimensão<br />

mais conspícua, seja pela recente instituição <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> no Brasil nos curricula<br />

universitários nacionais, a exemplo do que ocorre nos <strong>de</strong>mais países da América<br />

Ibérica. Não obstante a existência <strong>de</strong> exaustivos trabalhos sobre o assunto — dois dos<br />

quais mencionados no capítulo introdutório, <strong>de</strong> autoria dos Professores Cruz Costa e<br />

Antônio Paim, além <strong>de</strong> outros que aparecem na bibliografia no final <strong>de</strong>ste volume — o<br />

presente ensaio po<strong>de</strong>rá servir, sem dúvida, como compêndio propiciador <strong>de</strong> uma visão<br />

geral, ainda que breve, do nosso filosofar, sendo pois, um ponto <strong>de</strong> partida para estudos<br />

em níveis mais técnicos e minu<strong>de</strong>ntes. Visa este mo<strong>de</strong>sto livro, portanto, dois objetivos:<br />

o <strong>de</strong> ajudar nossos universitários na apreensão imediata do evolver das idéias filosóficas<br />

no Brasil, sem excessivo tecnicismo mas com máximo rigor e objetivida<strong>de</strong>; e levar ao<br />

gran<strong>de</strong> público noções sumárias do evolver da <strong>Filosofia</strong> no Brasil, imprescindíveis na<br />

composição da chamada “cultura geral”.<br />

São Paulo, 23 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1968.<br />

L. W. V.<br />

3


I<br />

FILOSOFIA DA FILOSOFIA NO BRASIL<br />

O atual panorama da cultura brasileira parece empolgado pela compreensão <strong>de</strong><br />

sua dimensão mais recôndita e mais conspícua: a filosófica, tanto passada quanto presente.<br />

A republicação do amplo e erudito ensaio <strong>de</strong> Cruz Costa (Contribuição à História<br />

das Idéias no Brasil, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1967) e o aparecimento do notável trabalho <strong>de</strong> Antônio<br />

Paim (História das Idéias Filosóficas no Brasil, São Paulo, 1967), são sintomáticos<br />

<strong>de</strong>sse necessário — ainda que insólito — interesse por tal tema. E o mais curioso é<br />

que, no conjunto da América Ibérica, foi o Brasil o país que mais cedo se interessou<br />

pelo evolver <strong>de</strong> suas idéias especulativas, como comprova A <strong>Filosofia</strong> no Brasil, <strong>de</strong> Sílvio<br />

Romero, editada em Porto Alegre em 1878.<br />

Este interesse, porém, não é algo a traduzir um fato incontestável, ou seja: que<br />

nosso legado filosófico já tem direitos assegurados para figurar com <strong>de</strong>staque no imenso<br />

painel do pensamento oci<strong>de</strong>ntal. Ao contrário, somos ainda mo<strong>de</strong>stos neste campo e as<br />

contribuições nacionais para a <strong>Filosofia</strong> universal longe estão <strong>de</strong> qualquer relevância,<br />

tanto que na Encyclopaedia of Philosophy, recentemente editada nos Estados Unidos,<br />

em oito alentados volumes, apenas aparecem dois artigos sobre nossos pensadores (Farias<br />

Brito e Miguel Reale). Claro está que é muito pouco, mesmo tendo em vista a pequenez<br />

<strong>de</strong> nosso legado especulativo e sua repercussão além fronteiras, e que só se explica<br />

pela unilateralida<strong>de</strong> do ponto <strong>de</strong> vista dos organizadores da mencionadas enciclopédia,<br />

para os quais só é <strong>Filosofia</strong> o que for tratado em nível lingüístico, semiótico, lógico<br />

simbólico, analítico ou empírico. Tamanho viés preconcebido acabaria, fatalmente,<br />

na indigência referida que, todavia, não traduz a realida<strong>de</strong>, pois sem sermos “milionários”<br />

do saber filosófico nem por isso <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> ser “remediados”...<br />

Mas, mesmo na hipótese <strong>de</strong> que figurasse uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> brasileiros na Encyclopaedia<br />

of Philosophy (o que é perfeitamente plausível, sem favor, numa nova edição) é<br />

evi<strong>de</strong>nte que não po<strong>de</strong>mos competir com países <strong>de</strong> maior tradição filosófica, mesmo<br />

porque <strong>Filosofia</strong> é prêmio e conquista, sedimentação e disciplina, saber e sapiência que<br />

só o tempo outorga e consolida. Daí o paradoxo <strong>de</strong> os Estados Unidos, por exemplo, tão<br />

avançados na Tecnologia, que é um fazer exterior, serem tão retrógrados e caudatários<br />

na <strong>Filosofia</strong>, que é um fazer interior, limitando-se ao “instrumentalismo” peculiar à cultura<br />

estaduni<strong>de</strong>nse, o que explica o reducionismo do pensamento norte-americano ao<br />

átrio do próprio pensamento, às metodologias, aos meios <strong>de</strong> inquirição em vez <strong>de</strong> visar<br />

os fins e o sentido do inquirido. Seja como for, porém, o Brasil não é acéfalo quanto à<br />

<strong>Filosofia</strong>, consoante o amargo e ressentido apotegma <strong>de</strong> Tobias Barreto. Temos cabeça<br />

filosófica, sim, como a têm os <strong>de</strong>mais povos, ainda que, no nosso caso, perturbada por<br />

circunstâncias inibidoras <strong>de</strong> toda or<strong>de</strong>m, não sendo a menor <strong>de</strong>las a presença difusa do<br />

positivismo, antifilosófico por vocação e <strong>de</strong>stino. Por isso a presente abordagem, em<br />

geral perfunctória e às vezes anedótica, talvez possa revestir-se <strong>de</strong> uma curiosida<strong>de</strong><br />

maior que o mero elenco <strong>de</strong> “filosofantes” mais ou menos em órbita (não é simples acaso<br />

o fato da peça As nuvens do teatro grego ter como personagem principal a figura <strong>de</strong><br />

Sócrates...), por seu vínculo à realida<strong>de</strong> e aos anseios nacionais.<br />

Com efeito, cumprindo seu papel, o pensamento brasileiro, não obstante ter sido<br />

mais assimilativo do que criativo, possibilitou aos filósofos nativos irem além do mero<br />

diletantismo, já que eles procuravam (e procuram) enfrentar os <strong>de</strong>safios dos seus respectivos<br />

momentos históricos, inseridos no e atentos ao ambiente brasileiro. Assim, a His-<br />

4


tória da <strong>Filosofia</strong> no Brasil se, por um lado, quase sempre é a história da penetração do<br />

pensamento alheio nos recessos <strong>de</strong> nossa vida espiritual ou a narrativa do grau <strong>de</strong> compreensão<br />

e do quociente <strong>de</strong> sensibilida<strong>de</strong> especulativa nossos, por outro lado é também<br />

a <strong>de</strong>monstração do critério <strong>de</strong> escolha ou <strong>de</strong> opção em face do pensamento mais a<strong>de</strong>quado<br />

para a solução dos mais can<strong>de</strong>ntes problemas nacionais, partindo, portanto, do<br />

ambiente histórico-social que o circunda e o alenta, ainda que com idéias elaboradas no<br />

exterior porém aqui testadas e convertidas em condicionadoras <strong>de</strong> ação mais que em<br />

categorias abstratas.<br />

Por isso tudo é preciso levar em linha <strong>de</strong> conta que as idéias filosóficas “importadas”<br />

passam, por regra, entre nós, por estranha e curiosa sorte. A mudança <strong>de</strong> habitat<br />

— um pensamento, meditado à sombra <strong>de</strong> carvalhos e castelos, <strong>de</strong>ve ser remeditado à<br />

vista <strong>de</strong> canaviais e mocambos... — serve, automaticamente, <strong>de</strong> campo <strong>de</strong> prova para as<br />

velhas idéias: algumas <strong>de</strong>stas atingem nova significação, outras logo se per<strong>de</strong>m. Disto<br />

resulta que a História da <strong>Filosofia</strong> no Brasil adquire gran<strong>de</strong> importância, pois serve não<br />

só para <strong>de</strong>terminar a sua generalida<strong>de</strong>, a sua aplicação às ativida<strong>de</strong>s humanas e a sua<br />

flexibilida<strong>de</strong> cultural, como também para compor a nossa própria história institucional:<br />

o Segundo Império é “eclético”, a Primeira República é “positivista” e o movimento <strong>de</strong><br />

1º <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1964 é “maniqueu”. Conhecer o sentido <strong>de</strong>stas posições filosóficas é enten<strong>de</strong>r<br />

o sentido <strong>de</strong> nossas próprias instituições políticas...<br />

Desta maneira, diferentemente do filósofo europeu, não é a necessida<strong>de</strong> “<strong>de</strong>sumanizada”<br />

e “pura” do conhecimento abstrato que incita o pensador brasileiro, mas uma<br />

necessida<strong>de</strong> pragmática, participante e engajada. Isto é: enquanto na Europa o pensador,<br />

quase sempre, é um produto do ambiente em que se formou e atua, no Brasil ele é, por<br />

regra, um reativo, um criador <strong>de</strong> atmosfera, um excitante intelectual, porque é sempre o<br />

condutor daquilo que, espiritualmente, é produto <strong>de</strong> outra circunstância espiritual. Daí o<br />

personalismo e o extremismo <strong>de</strong> suas idéias, não admitindo os matizes, as restrições ou,<br />

mesmo, a dúvida filosófica: é sempre um categórico, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da posição<br />

política que assume: <strong>de</strong> direita (Gustavo Corção, por exemplo) ou <strong>de</strong> esquerda (Álvaro<br />

Vieira Pinto, por exemplo). Por isso po<strong>de</strong> Guillermo Francovich afirmar que “a hipótese<br />

européia se torna axioma americano e, muitas vezes, a teoria se converte em dogma”.<br />

Claro está que entre assimilar e vulgarizar me<strong>de</strong>ia um abismo. A assimilação<br />

tem aqui, por assim dizer, um sentido fisiológico, transformando as idéias e incorporando-as<br />

num processo <strong>de</strong> enriquecimento. A vulgarização, por sua vez, é ativida<strong>de</strong> intelectual<br />

passiva, <strong>de</strong> falsa clareza, porque arbitrariamente simplifica o complexo e força a<br />

elementarização. Já se disse que trivializar não é esclarecer, e muito menos o é essa impertinente<br />

falsificação em que costumam incorrer alguns supostos clarificadores. A<br />

clareza lícita e <strong>de</strong>sejável é a do exame ou da exposição do assunto, que po<strong>de</strong> ser por si<br />

mesmo sumamente obscuro e o mais que se po<strong>de</strong> e se <strong>de</strong>ve chegar em tais casos é mostrar,<br />

com luci<strong>de</strong>z e honestida<strong>de</strong> intelectual, suas obscurida<strong>de</strong>s. Nesse sentido, os filósofos<br />

nacionais, ao contrário <strong>de</strong> terem sido meros vulgarizadores, em verda<strong>de</strong> foram e<br />

continuam sendo assimiladores <strong>de</strong> doutrinas alheias, adaptando-as às exigências <strong>de</strong> nossa<br />

formação histórico-espiritual.<br />

É bem verda<strong>de</strong> que, como já foi dito, têm sido diminutas as nossas contribuições<br />

positivas ao conhecimento filosófico geral. Esse fenômeno é fruto normal das situações<br />

históricas que vêm condicionando o <strong>de</strong>senvolvimento cultural e pedagógico do Brasil.<br />

A Colônia, o Império e a República são três fases históricas, ou três ilustrações políticas,<br />

da mesma <strong>de</strong>pendência econômica do Brasil em face <strong>de</strong> outras nações. Essa <strong>de</strong>pendência<br />

— que po<strong>de</strong> admitir, como ficção legal, a soberania do Estado <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte —<br />

não proporciona, porém, a este, aquelas condições materiais e culturais imprescindíveis<br />

à eclosão do espírito <strong>de</strong> livre crítica, ponto <strong>de</strong> partida da autonomia e da originalida<strong>de</strong><br />

5


do pensamento, especialmente do pensamento filosófico.<br />

Todavia, até on<strong>de</strong> um pensamento possa ser original é uma questão controvertida.<br />

Isto porque a originalida<strong>de</strong> não consiste apenas na singularida<strong>de</strong> absoluta da criação,<br />

se acaso esta é possível; verifica-se também quando o espírito, com autonomia e consciência,<br />

aceita o que outros disseram e o reelabora com plena in<strong>de</strong>pendência. Por isso a<br />

pretensão <strong>de</strong> se bastar a si próprio e o narcisismo da inteligência são quase sempre uma<br />

marcha para a esterilida<strong>de</strong>. Ou seja, o espírito vive <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong> contínua permuta,<br />

e não <strong>de</strong> barreiras nem <strong>de</strong> autolatrias. Daí a característica assimilativa do pensamento<br />

brasileiro que consiste na obliteração, substituição e modificação <strong>de</strong> modos <strong>de</strong><br />

sentir, pensar e agir por novos hábitos que se exteriorizam sob a emulação ou sugestão<br />

<strong>de</strong> idéias adventícias “aclimatadas”, que conseguem sobreviver no novo habitat.<br />

Desta forma, a antinomia cultural que Joaquim Nabuco vislumbrara na nossa<br />

História — pertencemos à América pelo “sentimento novo, flutuante do nosso espírito”,<br />

e à Europa pelas “camadas estratificadas do nosso espírito” — tem uma vigência relativa.<br />

Principalmente quando se leva em conta que as obras <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> pensadas e redigidas<br />

em nosso País, para serem entendidas e compreendidas, <strong>de</strong>vem ser tomadas à luz do<br />

momento histórico em que foram escritas e da finalida<strong>de</strong> que visavam. Assim entendido<br />

o problema da interpretação e da compreensão dos nossos filosofantes que expressaram<br />

as vicissitu<strong>de</strong>s das correntes européias no Brasil, apresenta-se ele <strong>de</strong> outra maneira, sob<br />

novas luzes, com diversa significação.<br />

Fica, portanto, provada — a <strong>de</strong>monstração é a narrativa que segue — a existência<br />

<strong>de</strong> uma <strong>Filosofia</strong> no Brasil, não como um organismo eidético, supratemporal, totalmente<br />

imune à contingência histórica, mas alguma coisa que não é mais que a elevação<br />

abstrativa <strong>de</strong> uma situação vital historicamente dada. No processo <strong>de</strong> assimilação das<br />

idéias alheias, imprimimos as nossas características, <strong>de</strong> acordo aliás com o velho princípio:<br />

tudo o que se recebe toma a forma do recipiente, ou como certos perfumes que, em<br />

contato com a epi<strong>de</strong>rme, sofrem uma alteração química que lhes alteram a fragrância, e<br />

nisto consiste nossa “originalida<strong>de</strong>”.<br />

De resto, a <strong>Filosofia</strong> no Brasil formula problemas próprios. Evi<strong>de</strong>ntemente, em<br />

primeiro lugar é o prolongamento <strong>de</strong> uma tradição que nasceu na Grécia, nada tendo <strong>de</strong><br />

estranho que suas influências gerais tenham sido “européias” e que não se <strong>de</strong>sviara, no<br />

essencial, do curso seguido pela meditação filosófica da época mo<strong>de</strong>rna. Em segundo<br />

lugar, os sucessivos pronunciamentos <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong> dos nossos pensadores — “pretensões<br />

nunca justificadas”, ao ver <strong>de</strong> Cruz Costa — <strong>de</strong>vem ser entendidos menos como<br />

uma <strong>Filosofia</strong> peculiar do que temas peculiares, nos quais é flagrante sua autenticida<strong>de</strong><br />

graças ao profundo vínculo com a concreta circunstância nacional. Claro está que esta<br />

autenticida<strong>de</strong> não significa que tenha <strong>de</strong> sacrificar-se o peculiar ao verda<strong>de</strong>iro, nem impe<strong>de</strong>,<br />

da mesma forma, que um dos elementos essenciais <strong>de</strong>la seja neste caso sua função<br />

<strong>de</strong> prolongamento e colaboração à tradição filosófica do Oci<strong>de</strong>nte.<br />

Justificada a sintonia da <strong>Filosofia</strong> no Brasil com a <strong>Filosofia</strong> universal, tornam-se<br />

óbvios os reflexos <strong>de</strong>sta sobre aquela, com pequenas ou gran<strong>de</strong>s diferenças sincrônicas.<br />

Isto é patente nas gerações ligadas ao ecletismo, ao positivismo, ao espiritualismo, ao<br />

historicismo e ao existencialismo, recolhendo da tradição européia o mais característico<br />

do pensamento contemporâneo, procurando <strong>de</strong>senvolver, com sucesso diverso, as diferentes<br />

correntes especulativas, que coincidiam com as mais fundas aspirações das camadas<br />

intelectuais superiores.<br />

Nesse sentido, temos Matias Aires assimilando o iluminismo, Diogo Antônio<br />

Feijó o kantismo, Mont’Alverne o ecletismo, Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães o espiritualismo,<br />

Pereira Barreto o positivismo, Tobias Barreto o evolucionismo, Farias Brito o bergsonismo,<br />

Leonel Franca a neo-escolástica, Miguel Reale o culturalismo, Cruz Costa o his-<br />

6


toricismo, Vicente Ferreira da Silva o existencialismo, Caio Prado Júnior o marxismo,<br />

Eurialo Canabrava a <strong>Filosofia</strong> Analítica, para só citar os chefes <strong>de</strong> escolas. Ao lado <strong>de</strong>sses<br />

filosofantes perfila a dissolução da <strong>Filosofia</strong> na Literatura e no pensamento geral,<br />

que é precisamente uma das características do pensamento filosófico no Brasil. É o caso<br />

<strong>de</strong> Paulo Prado ou Sérgio Milliet, Gilberto Freire ou Afrânio Coutinho, Fernando <strong>de</strong><br />

Azevedo ou Oswald <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Oliveira Viana ou Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>... que, sem tratar<br />

seus temas <strong>de</strong> maneira estritamente filosófica, sem dúvida a<strong>de</strong>nsam a problemática especulativa.<br />

Portanto, a <strong>Filosofia</strong> no Brasil não é, mesmo em suas tendências mais “logicistas”,<br />

ocupação exclusiva sobre temas abstratos, como também não é simples reflexão<br />

sobre circunstâncias concretas com uma finalida<strong>de</strong> meramente “pragmática”. Por isso<br />

po<strong>de</strong>mos afirmar que há uma <strong>Filosofia</strong> brasileira contanto que não omitamos uma tradição<br />

que, como a do Oci<strong>de</strong>nte, se caracteriza, em gran<strong>de</strong> parte, por haver engendrado a<br />

forma do pensar filosófico, e contanto que a procura <strong>de</strong> uma autenticida<strong>de</strong> e peculiarida<strong>de</strong><br />

brasileiras não nos faça esquecer que o que em última instância, importa na <strong>Filosofia</strong><br />

— é a verda<strong>de</strong>.<br />

7


II<br />

AS ORIGENS LUSÍADAS<br />

No capítulo anterior ficou <strong>de</strong>monstrado o que confirma qualquer História da <strong>Filosofia</strong>:<br />

cada filósofo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, <strong>de</strong> certo modo, <strong>de</strong> seus precursores. A regra é geral, variando<br />

apenas a medida <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>pendência, mas <strong>de</strong> ninguém po<strong>de</strong>mos afirmar que seja<br />

absolutamente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Portanto, todo sistema filosófico representa um membro<br />

num contexto supra-individual. Daí Bruno Bauch consi<strong>de</strong>rar fundamental o fato <strong>de</strong> que<br />

“todo trabalho sistemático concreto só po<strong>de</strong> lograr a própria fecundida<strong>de</strong> sistemática<br />

através da continuida<strong>de</strong> das relações sistemáticas em que o mesmo sistema adquiriu<br />

vida histórica. Mas, se se quisesse <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r da vida histórica e espiritual que agora se<br />

converteu em realida<strong>de</strong>, isolar-se <strong>de</strong>le e começar do nada, con<strong>de</strong>nar-se-ia a si mesmo a<br />

uma ôca vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> sentido”.<br />

Como conseqüência do supradito, há <strong>Filosofia</strong> num país quando existem nele filósofos.<br />

E no Brasil sempre houve alguns espíritos preocupados com os altos problemas<br />

da <strong>Filosofia</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nosso primeiro século. Com os colonizadores, certamente, para<br />

aqui vieram homens embebidos do espírito do Renascimento, sem dúvida <strong>de</strong> mentalida<strong>de</strong><br />

antagônica aos valores medievais. A subitaneida<strong>de</strong> e expansão dos gran<strong>de</strong>s acontecimentos<br />

produzidos nos domínios da Geografia, da História Natural, da Astronomia, da<br />

erudição, da técnica e das mundividências, cuja correlação constitui um dos mais sutis<br />

problemas da sociologia da ciência, não se verificaram, como é óbvio, apenas em Portugal<br />

metropolitano, mas se apresentaram no mundo lusíada com características peculiares.<br />

Com efeito, tanto quanto é possível reduzir a esquema tão complexo e impetuoso<br />

movimento — o das Descobertas dos galeões lusitanos — po<strong>de</strong> dizer-se que os gran<strong>de</strong>s<br />

acontecimentos renascentistas foram conseqüência dos fatos propostos à consi<strong>de</strong>ração<br />

intelectual pela revivescência da literatura greco-romana e pelo alargamento do espaço<br />

terrestre e celeste em resultado dos <strong>de</strong>scobrimentos, os quais, no dizer <strong>de</strong> Humboldt,<br />

como que duplicaram a obra da criação, além da mutação que implicou a nova<br />

or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> problemas sobre o homem. O resultado mais fecundo foi o passo imenso que<br />

representou a substituição <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s livrescas da Ida<strong>de</strong> Média pelas da Antiguida<strong>de</strong>,<br />

na formação do espírito <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> e da mentalida<strong>de</strong> científica. Isto é, a missão<br />

primordial da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> científica consistiu em expurgar o saber da crosta <strong>de</strong> erros e<br />

equivocadas interpretações que a Ida<strong>de</strong> Média tolerava, regenerando-o nas fontes puras<br />

e sempre vivas da ciência helênica. Por isso se <strong>de</strong>signa, comumente, <strong>de</strong> Renascença o<br />

século XVI, e a <strong>de</strong>signação, embora orgulhosa e até pedante, é apropriada para sugerir a<br />

sensação que o homem <strong>de</strong> Quinhentos teve <strong>de</strong> renascer com alentos e modos <strong>de</strong> vida<br />

espiritual que, <strong>de</strong> certo modo, se haviam interrompido ou atrofiado durante séculos.<br />

Pelo imperativo das circunstâncias, o saber encerrado nos livros da Antiguida<strong>de</strong> clássica<br />

tornou-se, assim, o saber dominante e privilegiado, ditando, conseqüentemente, o rumo<br />

inicial do novo i<strong>de</strong>al científico. A este i<strong>de</strong>al científico chama Joaquim <strong>de</strong> Carvalho <strong>de</strong><br />

restituição, pelo sentimento retrospectivo que o animava.<br />

Enquanto, pois os estudos humanísticos renovam as Ciências, na oci<strong>de</strong>ntal praia<br />

lusitana armam-se galeões que singram os sete mares. As <strong>de</strong>scobertas coadjuvavam os<br />

critérios da observação e da experiência, contribuição esta das mais importantes da inteligência<br />

extremo-oci<strong>de</strong>ntal ao pensamento mo<strong>de</strong>rno. É curioso observar, aqui, que a<br />

atenção estudiosa do português dos Descobrimentos se tenha voltado, sempre e sempre,<br />

8


para a náutica. Sagres é o gran<strong>de</strong> símbolo. Portugal convertera-se numa espécie <strong>de</strong> celeiro<br />

e cantina <strong>de</strong> marinheiros, e a própria aristocracia — chefes <strong>de</strong> quilhas — tinha na<br />

literatura um entretenimento para distrair-se das fadigas e preocupações <strong>de</strong> uma vida<br />

cheia <strong>de</strong> epopéia. De fundo eminentemente utilitarista, a cultura metropolitana distraía a<br />

maruja com seus autos, recolhendo da oficialida<strong>de</strong> os apontamentos dos gran<strong>de</strong>s cruzeiros.<br />

Criada e <strong>de</strong>senvolvida pela navegação, a Ciência Matemática em Portugal teve seu<br />

ponto culminante em Pedro Nunes, que, por sua vez, teve em Martim Afonso <strong>de</strong> Sousa,<br />

um marinheiro recém-chegado do Brasil, uma fonte <strong>de</strong> sugestões e, principalmente, <strong>de</strong><br />

problemas náuticos ligados à Cosmografia.<br />

Este fato <strong>de</strong>monstra o profundo vínculo existente entre as navegações e a cultura<br />

do Renascimento. Aliás, o concurso dos Descobrimentos foi enorme e incalculável para<br />

o <strong>de</strong>senvolvimento do espírito europeu mo<strong>de</strong>rno, para o <strong>de</strong>senvolvimento do humanismo,<br />

para a formação do sentido crítico, para a supressão do critério <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> em<br />

Ciência e em <strong>Filosofia</strong>, e para os lentos progressos do Homo sapiens diante da tirania do<br />

Homo credulus.<br />

Contudo, a evolução, que parecia iniciar-se, é violentamente interrompida, por<br />

um movimento <strong>de</strong> restauração católica: Contra-Reforma. Por Alvará <strong>de</strong> 12 <strong>de</strong> setembro<br />

<strong>de</strong> 1564, Portugal adota a ortodoxia firmada pelo Concílio <strong>de</strong> Trento, e os professores<br />

<strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> são obrigados a jurar, periodicamente, com toda a solenida<strong>de</strong>, sua obediência<br />

à fé católica. A ação fiscalizadora do Santo Ofício, a catequese da Companhia <strong>de</strong><br />

Jesus e a vigilância do Paço fixaram balizas ao ambiente do pensamento. O Concílio <strong>de</strong><br />

Trento estipulou as invariâncias da doutrina, como sistema religioso, moral e metafísico.<br />

Para além <strong>de</strong>las não se podia ir. Os livros eram inspecionados pelo Desembargo do<br />

Paço, pela autorida<strong>de</strong> eclesiástica ordinária e pelo Santo Ofício para lograrem ser impressos.<br />

E conforme a instância tinham uma chancela <strong>de</strong> aprovação: nihil obstat, imprimir<br />

potest, imprimatur.<br />

Graças a essa cortina <strong>de</strong> incenso espargida entre homilias pelos executores das<br />

<strong>de</strong>cisões do Concílio <strong>de</strong> Trento, o mundo lusíada entrou em colapso. A política <strong>de</strong> intencional<br />

insularida<strong>de</strong> sofrida pelo pensamento português, em conseqüência da ressaca<br />

<strong>de</strong> intolerância provocada pelo alastramento da rebelião protestante, atingira fundo. Entre<br />

Portugal das Descobertas e Portugal Santificado se interpôs o obscurantismo propositado.<br />

Ou segundo as palavras <strong>de</strong> Antero <strong>de</strong> Quental: “Saímos duma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> homens<br />

vivos, movendo-se ao ar livre: entramos num recinto acanhado e quase sepulcral,<br />

com uma atmosfera turva pelo pó dos livros velhos, e habitado por espectros <strong>de</strong> doutores.”<br />

Elemento essencial, <strong>de</strong>ntre os fatores externos que inibiram o pensamento lusíada,<br />

foi a censura, ao mesmo tempo régia e eclesiástica, zelote sem entranhas do Trono e<br />

do Altar. Claro está que erraria quem atribuísse ao Concílio <strong>de</strong> Trento a iniciativa em tal<br />

matéria, pois ele se limitara tão-somente a reforçar a cinta <strong>de</strong> ferro com que a Igreja, em<br />

nome da religião, comprimiu o cérebro da catolicida<strong>de</strong>. Efetivamente, já em 1480, vários<br />

bispos haviam or<strong>de</strong>nado que, nenhum livro fosse publicado sem a revisão do <strong>de</strong>legado<br />

da autorida<strong>de</strong> eclesiástica. O Papa Alexandre VI estabelecera a censura em todos<br />

os povos submetidos a Roma, proibindo, na bula <strong>de</strong> 1501, aos impressores, editarem<br />

qualquer escrito, em que não houvesse vista ou exame do arcebispo, dos seus vigários<br />

ou dos oficiais, sob pena <strong>de</strong> excomunhão e multa fixada pelas autorida<strong>de</strong>s eclesiásticas.<br />

Em 1517, o Concílio <strong>de</strong> Latrão, na sua X sessão, inseriu um <strong>de</strong>creto proibindo<br />

que se imprimisse qualquer livro sem exame prévio do bispo, na diocese on<strong>de</strong> se tivesse<br />

feito a impressão. De qualquer maneira, porém, os <strong>de</strong>cretos formulados pelo Concílio <strong>de</strong><br />

Trento, ampliatórios dos <strong>de</strong> outros anteriores, do mesmo jaez, visavam à edição e à impressão<br />

dos livros, que eram examinados meticulosamente e autorizados pelo Ordinário<br />

9


(bispo ou arcebispo na sua diocese, na plena posse da sua jurisdição).<br />

Todos os esforços foram mobilizados para o fiel cumprimento das recomendações<br />

trentinas, com agentes do Santo Ofício varejando palácios ou simples vivendas, e<br />

indagando aos comandantes dos galeões que entrassem Torre <strong>de</strong> Belém a<strong>de</strong>ntro se traziam<br />

livros suspeitos e prejudiciais à religião cristã, fazendo ver aos respectivos capitães<br />

quão vantajoso seria para eles entregá-los, no caso afirmativo, para não se proce<strong>de</strong>r contra<br />

“hos culpados con todo rigor <strong>de</strong> justiça”, consoante o documento seiscentista.<br />

Por outro lado, os censores tinham alçada para emendar ou até mesmo mutilar os<br />

textos, o que explica que, a cada passo, nas censuras se leia: “vi este livro e alimpeio <strong>de</strong><br />

algüas cousas”. Por isso tudo pô<strong>de</strong> escrever Silva Bastos em sua História <strong>de</strong> Censura<br />

Intelectual em Portugal: “Suponha-se que algum pensador ou escritor sentisse em si<br />

asas para se transportar às regiões transcen<strong>de</strong>ntes: sabia o que o esperava, se a sua obra,<br />

que para ser conhecida e divulgada tinha <strong>de</strong> ir à férula censória, resvalasse, na frase<br />

porventura a mais anódina, para o racionalismo, ultrapassasse o círculo imposto aos<br />

cérebros peninsulares, pela mais rigorosa e meticulosa ortodoxia. Isto explica o fato <strong>de</strong>,<br />

no longo acervo dos livros censurados pela Inquisição até à criação da ‘Real Mesa Censória’<br />

(1776), se não encontrassem, ao menos, traduções <strong>de</strong> obras que em França, em<br />

Inglaterra, na Alemanha, na Holanda, apaixonavam os espíritos. O seu <strong>de</strong>stino estava<br />

naturalmente traçado: ou seriam queimados em público cadafalso, pelo executor da alta<br />

justiça, ou ficariam jazendo no secreto do Santo Ofício da Inquisição ou da Real Mesa.<br />

Alguns <strong>de</strong>sses livros cá chegaram, é certo — mas como? Por contrabando, ou no maior<br />

segredo, a <strong>de</strong>speito da máxima vigilância nas fronteiras. Mas <strong>de</strong>sgraçado do seu possuidor,<br />

se uma <strong>de</strong>núncia lhe caísse sobre a cabeça: ou iria apodrecer nas masmorras inquisitoriais,<br />

ou o fogo se encarregaria <strong>de</strong> lhe castigar a audácia...”<br />

Do mesmo parecer é Lopes Praça, usando, porém, <strong>de</strong> uma linguagem ao gosto<br />

romântico (sua interessante História da <strong>Filosofia</strong> em Portugal data <strong>de</strong> 1868). Para ele, a<br />

“Companhia <strong>de</strong> Jesus ensinava e precavia, a Inquisição espionava e torturava”. E transcreve<br />

<strong>de</strong> um manuscrito do Colégio <strong>de</strong> Coimbra este trecho do Ritual Teológico: “Não<br />

se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rão opiniões contra a Lógica Conimbricense nas disputas; e quando muito se<br />

po<strong>de</strong>rá pôr a questão problematicamente, mas poucas vezes.” Comenta o historiador da<br />

<strong>Filosofia</strong> em Portugal que “fora dos comentários pairava o erro. Era necessário coarctar<br />

os espíritos <strong>de</strong>ntro daqueles limites”. Como? Através da censura da Inquisição, cuja<br />

regra X dizia: “Por quanto neste reino, e particularmente em Lisboa, há muito comércio<br />

<strong>de</strong> estrangeiros setentrionais das partes entradas, ou infestadas <strong>de</strong> heregia, proíbem-se<br />

quaisquer livros em língua ingreza, framenga e tu<strong>de</strong>sca (ainda que não estêm nomeados<br />

no catálogo), para efeito que nenhum se possa ter, nem ler, sem primeiro se presentar ao<br />

Santo Ofício, e se examinar sua qualida<strong>de</strong>. E também nos franceses se encomenda que<br />

se tenha muita advertência, como não forem notoriamente sem suspeita, e proibidos.”<br />

Claro está que a <strong>Filosofia</strong> difundida e ensinada pelos jesuítas nos seus colégios<br />

era o tomismo reconquistado pelos Conimbricenses e que consistia em comentários a<br />

textos físicos (incluindo os psicológicos) e lógicos <strong>de</strong> Aristóteles sendo mínima a parte<br />

moral. O fundamento <strong>de</strong>ssas doutrinas medievalizantes — <strong>de</strong> profunda ressonância teológica<br />

— estava no fato <strong>de</strong> sobrepor as instâncias da Revelação e <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> à capacida<strong>de</strong><br />

racional do homem e ao livre emprego <strong>de</strong> seus meios <strong>de</strong> conhecimento, pois concebia<br />

a or<strong>de</strong>m natural como fundada numa regularida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>nte, origem <strong>de</strong> toda<br />

verda<strong>de</strong> ôntica. Por isso seu principal objetivo era forjar uma consciência absolutista e<br />

teocrática, condicionada essencialmente pela idéia <strong>de</strong> uma hierarquia social e política.<br />

Pouco se importavam os jesuítas que seu pensamento fosse “ainda que menos latino”, já<br />

que se mantinha “bom católico”, transformando-se Portugal numa verda<strong>de</strong>ira Ilha da<br />

Purificação...<br />

10


Informa, ainda, Lopes Praça, que “escusado é dizer-se que os livros <strong>de</strong> hereges<br />

não podiam ler-se”, e se encontravam no índice os nomes <strong>de</strong> Lorenzo Valia, Ramée,<br />

Paracelso, Cardano, Erasmo, Vives, Giordano Bruno, Telésio, Montaigne, Bacon, Hobbes,<br />

Espinosa, Malebranche e Locke. E o requinte da censura qualificava, segundo o<br />

melhor gosto barroco, as proposições con<strong>de</strong>nadas: blasfematória, herética, cheirando a<br />

herética, errônea, escandalosa, falsa, capciosa, temerária, perigosa, malsoante, ofensiva<br />

d’ouvidos pios... Esclarece Lopes Praça: “A proposição é blasfematória quando contraria<br />

às perfeições divinas, é herética se repugna às <strong>de</strong>cisões formais da Igreja, é quase<br />

herética ou cheira a heresia a que revela no autor disposições <strong>de</strong> negar um dogma reconhecido<br />

pela Igreja, é errônea a proposição que ataca a fé e os bons costumes, é escandalosa<br />

a que diminui ou ten<strong>de</strong> a diminuir nos fiéis o horror ao pecado ou o respeito às<br />

coisas santas, é falsa a proposição que, sem ofen<strong>de</strong>r nem a fé, nem os bons costumes, é<br />

todavia contrária à verda<strong>de</strong>, é capciosa a que se po<strong>de</strong> tomar em mais <strong>de</strong> um sentido,<br />

dando azo à insensível danificação das crenças; é temerária a contrária à opinião do<br />

maior número dos teólogos e à crença geral dos fiéis e ao mesmo tempo pouco fundamentada;<br />

é perigosa aquela <strong>de</strong> que os hereges po<strong>de</strong>m abusar para a <strong>de</strong>fesa dos seus erros;<br />

é malsoante a que exprime uma verda<strong>de</strong> incompleta ou em termos duros e ásperos,<br />

capazes <strong>de</strong> a tornar odiosa; uma proposição ofen<strong>de</strong>, finalmente, aos ouvidos pios, se,<br />

conquanto verda<strong>de</strong>ira, não se harmonizar bem com a crença geral, fazendo nascer a suspeita<br />

<strong>de</strong> que o autor trata com pouco respeito o que muito se <strong>de</strong>ve respeitar.” Naturalmente<br />

se distinguiam as censuras teológicas das censuras eclesiásticas (a excomunhão,<br />

por exemplo), as quais eram entendidas como “penas medicinais”, isto é, era uma pena<br />

imposta para induzir o réu da contumácia ao arrependimento e à volta ao bom caminho.<br />

Esta é a filosofia que os jesuítas difun<strong>de</strong>m e ensinam nos seus colégios d’alémmar:<br />

o tomismo reconquistado pelos Conimbricenses. Ou, <strong>de</strong> acordo com Lopez Praça:<br />

“<strong>de</strong>ntre os códices que compulsamos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o último meado do século XVI até já quase<br />

o expirar do século XVIII, nem um sequer encontramos que não representasse a <strong>Filosofia</strong><br />

Escolástica, se excetuarmos uma Synopse Philosophica, escrita <strong>de</strong>pois do reinado <strong>de</strong><br />

D. João V. Até este reinado nada encontramos, que pu<strong>de</strong>sse consi<strong>de</strong>rar-se como inspiração<br />

da <strong>Filosofia</strong> Mo<strong>de</strong>rna”.<br />

11


III<br />

O PENSAMENTO COLONIAL<br />

As famosas Constitutiones Societatis Jesu, parte IV, capítulo XIV, <strong>de</strong>terminavam:<br />

“In Theologia legetur vetus et Novum Testamentum et doctrina scholastica divi<br />

Thomae... In logica et philosophia naturali et morali, et metaphysica, doctrina Aristotelis<br />

sequenda est.” Assim, com certa liberalida<strong>de</strong> na interpretação dos textos e incorporando<br />

as conquistas do Humanismo, <strong>de</strong> acordo aliás com a imposição das circunstâncias<br />

históricas, criaram os jesuítas nas suas escolas, do velho e do novo mundo, uma constante<br />

<strong>de</strong> pensamento, uma nova tradição filosófica a que já se <strong>de</strong>u o nome <strong>de</strong> tomismo<br />

mo<strong>de</strong>rado. Orientação esta que encontrou nos problemas políticos e jurídicos o assunto<br />

em que eles exerceram com maior originalida<strong>de</strong>, conforme reconhece o historiador da<br />

Segunda Escolástica, o jesuíta Carlo Giacon.<br />

Os inacianos preferiram Aristóteles a Platão, porque a doutrina do estagirita, na<br />

sua opinião, atendia melhor às exigências <strong>de</strong> uma concepção católica do mundo e do<br />

homem. Não era, entretanto, apenas o Aristóteles da tradição escolástica, mas o Aristóteles<br />

do Humanismo, renovado pelos comentadores que não <strong>de</strong>sprezavam sequer a lição<br />

<strong>de</strong> alexandristas e averroístas. Nesse sentido, informa Carlo Giacon que “à Segunda<br />

Escolástica cabia o problema <strong>de</strong> conciliar o valor real do pensamento aristotélico com<br />

impelentes exigências da nova cultura humanística”. Estribando-se, <strong>de</strong>sta forma, na autorida<strong>de</strong><br />

dos textos aristotélicos, que eram examinados em função dos interesses da religião<br />

católica, este ensino, sem renovar-se em sua estrutura e processos, logo <strong>de</strong>scambou<br />

para o aparato das disputas verbais. Os esforços isolados, entre os quais o do jesuíta<br />

Borri, não foram suficientemente eficazes para modificar a força dos hábitos pedagógicos<br />

então vigentes. Aliás, a formalística do regime universitário, com os seus atos e oposições,<br />

favorecia muito mais as exigências <strong>de</strong> um saber verbal — próprio <strong>de</strong> canonistas,<br />

teólogos e legistas — do que as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> um conhecimento amparado na<br />

experiência e nas Matemáticas.<br />

Graças a um manuscrito publicado por Fi<strong>de</strong>lino <strong>de</strong> Figueiredo em 1921, dispomos<br />

hoje <strong>de</strong> uma informação segura sobre o tipo <strong>de</strong> estudos filosóficos ministrados pelos<br />

jesuítas. Depois <strong>de</strong> passar pelos cursos <strong>de</strong> Gramática, Humanida<strong>de</strong>s e Retórica, os<br />

estudantes ingressavam nas aulas <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, das quais havia quatro na Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Évora: “Na primeira se faziam tristes e enfadonhas Postilas, nas quais se gastavam<br />

cada dia duas horas, uma <strong>de</strong> manhã, e uma <strong>de</strong> tar<strong>de</strong>, e eram as Postilas <strong>de</strong>ste primeiro<br />

ano <strong>de</strong> Universais e sinais somente, a que se ajuntavam algumas lições ru<strong>de</strong>s e frívolas<br />

dos termos lógicos, pelos conhecidos livros <strong>de</strong> Barreto, Soares, Teles, Aranha, Macedo,<br />

dos quais faziam comprar aos estudantes.” Na segunda, havia Postilas iguais às do ano<br />

anterior, nas quais se continham assuntos da Física “reduzida à pueril curiosida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scobrir os princípios dos corpos tanto in fieri [em processo <strong>de</strong> realização], como in<br />

facto esse [acabado]; a sutilizar, e supor os apetites da matéria-prima; e tratar muito<br />

abstratamente da forma substancial, da união <strong>de</strong>stas duas substâncias e da provação <strong>de</strong>sta<br />

mesma união”. No terceiro ano <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, “se não postilava nada, porque as lições<br />

<strong>de</strong> Metafísica indispensavelmente eram pelo livro do Pe. Silvestre Aranha, e por outro<br />

do mesmo autor se ensinavam Intelecgões, Tópicos e Notícias que eram as matérias do<br />

ato <strong>de</strong> bacharel que necessariamente haviam <strong>de</strong> fazer neste ano os estudantes com outras<br />

três, que lhe precediam, tiradas das lições do primeiro ano, que eram os Termos Lógicos<br />

ou como diziam Dialéticos e rematava este ato com uma questão <strong>de</strong> Metafísica, e muita<br />

12


Metafísica, <strong>de</strong>fendida por uma parte e outra”.<br />

Assim, com uma Metrópole tão letárgica e tão fechada em matéria <strong>de</strong> pensamento<br />

puro, presa <strong>de</strong> corpo e alma ao chamado “tomismo mo<strong>de</strong>rado” (que concebia o universo<br />

como uma hierarquia <strong>de</strong> entes e essências, na relação <strong>de</strong> potência para ato, <strong>de</strong> matéria<br />

para forma, do mundo da natureza ascen<strong>de</strong>nte ao mundo da graça até chegar a<br />

Deus: última forma e única essência pura), evi<strong>de</strong>ntemente a <strong>Filosofia</strong> que veio no bojo<br />

dos galeões para a Colônia estava compreendida na Teologia. É bem possível que, no<br />

século dos Descobrimentos, algum herege alcançasse nossas praias, atirado ao mar por<br />

suas idéias blasfematórias ou ofensivas aos pios ouvidos. Sem dúvida, porém, mais <strong>de</strong><br />

um irmão inaciano era iniciado nas Artes, como naquela altura se chamava ao estudo da<br />

<strong>Filosofia</strong>. Mas, nesse Brasil do século XVI, do <strong>de</strong>scobrimento, das primeiras feitorias,<br />

da <strong>de</strong>fesa contra piratas e gentio, da divisão em capitanias ou do estabelecimento do<br />

Governo-Geral, não havia espaço nem ocasião senão para certos escassos gêneros literários.<br />

E já se vê que a <strong>Filosofia</strong> seria o último <strong>de</strong>les.<br />

Mesmo assim, o Pe. Manuel da Nóbrega, Jesuíta Primaz do Brasil, entre uma<br />

conversão e uma providência, encontra tempo para meditar, formado que era em <strong>Filosofia</strong><br />

e Direito Canônico pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter feito o curso <strong>de</strong><br />

Humanida<strong>de</strong>s na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salamanca. Mal <strong>de</strong>sembarca, em março <strong>de</strong> 1549, na<br />

Bahia, o inaciano brada aos seus ajudantes-<strong>de</strong>-campo: “Esta terra é a nossa empresa”, e<br />

pela terra e pela empresa daria tudo, inclusive a própria vida. Em 1556 escreve o Diálogo<br />

sobre a conversão do gentio on<strong>de</strong> há doutrina. História e experiência sobre a natureza<br />

humana colocada no duplo ponto <strong>de</strong> vista natural e cristão. Segundo Serafim Leite,<br />

“Nóbrega, bom canonista e teólogo, cita Santo Agostinho, doutor da graça, que é implícita<br />

no Diálogo, mas dissimula-a com arte suma <strong>de</strong>ntro do gênero literário que adotou,<br />

colocando-o no nível dum intérprete e dum ferreiro.” Nóbrega, assim, põe na boca do<br />

Ferreiro <strong>de</strong> Cristo, segundo suas próprias expressões, estas palavras: “isto é tudo da parte<br />

<strong>de</strong> Deus mas da parte do gentio também é necessário aparelho [auxílio], porque ouvi<br />

que diz Santo Agostinho: que Deus me fez sem mim, não me salvará sem mim”. De<br />

acordo com a informação <strong>de</strong> Serafim Leite, Nóbrega “lia e fazia oração pelas Meditações<br />

<strong>de</strong> Santo Agostinho”.<br />

O Pe. Nóbrega, porém, é uma exceção. As manifestações culturais do nosso<br />

primeiro século são um quase nada, pois o que importava era a posse e a instalação, mas<br />

uma instalação como que provisória, porque todos queriam volver. “Não querem bem à<br />

terra, pois têm sua afeição a Portugal”, dizia o agostiniano Nóbrega. Isto não dá letras,<br />

que são suntuárias, <strong>de</strong> satisfação efêmera, mas perdurável. Portanto, a Metrópole, com o<br />

<strong>de</strong>slumbramento e o fausto das suas cida<strong>de</strong>s civilizadas, ocupava constantemente o pensamento<br />

dos colonos mais que transterrados, exilados. A outra força negativa era a ação<br />

do <strong>de</strong>serto sobre os colonos, fazendo com que muitos sucumbissem ao meio, “ao ponto<br />

<strong>de</strong> furar lábios e orelhas, matar os prisioneiros segundo os ritos, e cevar-se em sua carne”,<br />

como informa Capistrano <strong>de</strong> Abreu, fenômeno esse caracterizado por Araripe Júnior<br />

como obnubilação.<br />

Conforme Araripe Júnior esclarece, “consiste este fenômeno [obnubilação] na<br />

transformação por que passavam os colonos atravessando o Oceano Atlântico, e na sua<br />

posterior adaptação ao meio físico e ao ambiente primitivo. Basta percorrer as páginas<br />

dos cronistas para reconhecer esta verda<strong>de</strong>. Portugueses, franceses, espanhóis, apenas<br />

saltavam no Brasil e internavam-se, per<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> vista as suas pinaças e caravelas, esqueciam<br />

as origens respectivas. Dominados pela ru<strong>de</strong>z do meio, entontecidos pela natureza<br />

tropical, abraçados com a terra, todos eles se transformavam quase em selvagens; e<br />

se um núcleo forte <strong>de</strong> colonos, renovado por contínuas viagens, não os sustinha na luta,<br />

raro era que não acabassem pintando o corpo <strong>de</strong> genipapo e urucu e adotando idéias,<br />

13


costumes e até as brutalida<strong>de</strong>s dos indígenas. Os exemplos históricos surgem em penca:<br />

Hans Sta<strong>de</strong>, Soares Moreno, Paes Pina, (Amanaiara), Anhanguera, e os trugimões ou<br />

línguas que <strong>de</strong>ram tanto que fazer a Villegaignon”.<br />

Por outro lado, comparada à colonização espanhola, a obra dos portugueses distingue-se<br />

principalmente pela predominância <strong>de</strong> seu caráter <strong>de</strong> exploração comercial,<br />

repetindo assim o exemplo da colonização da Antiguida<strong>de</strong>, sobretudo da Fenícia. A fisionomia<br />

mercantil, quase semita, <strong>de</strong>ssa colonização, exprime-se sensivelmente no sistema<br />

<strong>de</strong> povoação marginal; isto é, mesmo em seus melhores momentos, a obra realizada<br />

no Brasil pelos portugueses teve um caráter acentuado <strong>de</strong> feitoria, muito mais que<br />

colonização. Isto vem acentuar ainda mais “a quase ininterrupta <strong>de</strong>solação filosófica do<br />

Brasil colonial”. Consoante Robledo O ápice <strong>de</strong> uma cultura, seu fruto mais complexo e<br />

esplêndido, é um sistema filosófico. Ora, como podia nascer em algum cérebro uma<br />

nova mundividência, ou ao menos um comentário progressivo das já existentes, on<strong>de</strong> o<br />

máximo que se conseguiu foram esboços <strong>de</strong> rudimentos <strong>de</strong> uma cultura própria, na luta<br />

contínua e <strong>de</strong>sigual do colonizador contra o meio ambiente?<br />

Agravava essa situação o corolário inevitável do estatuto jurídico que a Metrópole<br />

impôs à sua Colônia, que durante muito tempo foi dividida em capitanias cujos<br />

donatários podiam transmiti-las por herança, usando e abusando <strong>de</strong>las conquanto pagassem<br />

à Coroa os impostos estipulados. O <strong>de</strong>sinteresse metropolitano pela feitoria <strong>de</strong> ultramar<br />

— “com a qual a pátria tão pouco se importa”, lamentava Mem <strong>de</strong> Sá — estava<br />

claro na providência tomada pela Coroa <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar o Brasil, como a África Oci<strong>de</strong>ntal,<br />

lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>portação e, pior ainda, pois enquanto para a África iam os <strong>de</strong>linqüentes primários<br />

ou reinci<strong>de</strong>ntes pela primeira vez, para o Brasil eram <strong>de</strong>portados os <strong>de</strong> segundas<br />

ou ulteriores reincidências. Esta flor da criminalida<strong>de</strong>, em seu novo domicílio, não recebia<br />

outro castigo, já que o <strong>de</strong>sterro era tido como suficiente expiação. Assim, <strong>de</strong> acordo<br />

com a informação <strong>de</strong> Han<strong>de</strong>lmann, os <strong>de</strong>portados podiam, sem nenhum impedimento,<br />

apenas <strong>de</strong>sembarcados, adquirir terras e participar <strong>de</strong> tudo como os <strong>de</strong>mais colonos.<br />

É só nos fins do século, com as fortunas acumuladas nos engenhos nor<strong>de</strong>stinos,<br />

em meio ao luxo dos vestuários e suntuosida<strong>de</strong>s das casas-gran<strong>de</strong>s, que foi permitido<br />

também o brilho das lentejoulas do espírito. Por volta <strong>de</strong> 1580 em diante, no Colégio <strong>de</strong><br />

Olinda começou-se a ensinar <strong>Filosofia</strong>, segundo informa Fernão Cardim na sua Narrativa<br />

Epistolar. Assim, enquanto a totalida<strong>de</strong> dos colonos ou <strong>de</strong>fendia, ou conquistava, ou<br />

penetrava em novas terras, preocupações absolutas então, os jesuítas moldavam os culumins<br />

e mazombinhos, fazendo-os ler as nobilitantes Vidas <strong>de</strong> Santos. Outra espécie <strong>de</strong><br />

leitura não era possível. Estando o ensino nas mãos dos jesuítas, é lógico que só eles<br />

dispunham <strong>de</strong> livros. Mas a quantida<strong>de</strong> não dava para o gasto, e na correspondência<br />

<strong>de</strong>sses magníficos padres-mestres os pedidos <strong>de</strong> livros são uma constante comovente. A<br />

razão disso era, diz Manuel da Nóbrega, “porque nos fazem muita míngua para as dúvidas<br />

que cá há, que todas se perguntam a mim”.<br />

De acordo com Serafim Leite, tais livros não primavam pela qualida<strong>de</strong>. Por exemplo,<br />

o Irmão Pero Correia, já em 1553, pedia várias obras “em linguagem” (não<br />

sabia latim), “<strong>de</strong> um chamado Doutor Constantino, <strong>de</strong> Sevilha”, intitulando-se “Confissão<br />

<strong>de</strong> um pecador, Doutrina Cristã, Exposição do Primeiro Salmo <strong>de</strong> David, Beatus<br />

Vir, Suma <strong>de</strong> doutrina cristã, e o Catecismo para instruir os meninos”. Pero Correia tinha<br />

visto um <strong>de</strong>les, o que tratava da primeira parte dos Artigos da Fé, “coisa mui santa”.<br />

Não obstante a singeleza e santida<strong>de</strong> dos assuntos tratados, as caixas <strong>de</strong> livros, vindas<br />

da Europa, sempre eram examinadas para o <strong>de</strong>vido crivo. Havia, ainda, uma seleção <strong>de</strong><br />

leituras. Não se davam a ler a todos, indistintamente, à proporção que iam chegando.<br />

Estava <strong>de</strong>terminado que se examinassem antes (e corrigissem) no que tivessem contrário<br />

à “edificação” e aos “bons costumes”. Isto já em 1596, e a fiscalização não caía ape-<br />

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nas sobre as obras heréticas, ou supostas tais, pois até os livros poéticos sofriam a censura<br />

da pedagogia colegial. Como havia distinção entre os livros escritos em latim e<br />

aqueles que apareciam “em romance”, a estes era imposto todo o rigor da mesa censória.<br />

Essa medida era tomada, ao ver <strong>de</strong> Serafim Leite, “pelos <strong>de</strong>vaneios que suscitam em<br />

cabeças juvenis”. Desta forma, podia a Congregação da Bahia, em 1583, propor, à imitação<br />

da romana, e sob os aplausos gerais, “que se <strong>de</strong>sse alguma emenda aos escritos <strong>de</strong><br />

Humanida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Plauto, Terêncio, Horácio, Marcial e Ovídio”.<br />

Contudo, era na escola superior que os jesuítas haviam concentrado a gran<strong>de</strong><br />

ambição <strong>de</strong> sua política educativa, elaborando um escol, culto e religioso, para realizar<br />

os objetivos místicos, sociais e políticos <strong>de</strong> Santo Inácio. Humanistas por excelência, e<br />

os maiores <strong>de</strong> seu tempo, concentraram todo o seu esforço, do ponto <strong>de</strong> vista intelectual,<br />

em <strong>de</strong>senvolver, nos seus discípulos, as ativida<strong>de</strong>s literárias e acadêmicas que correspondiam,<br />

<strong>de</strong> resto, aos i<strong>de</strong>ais do “homem culto” em Portugal, on<strong>de</strong>, como em toda a<br />

Península Ibérica, se encastelara o espírito da Ida<strong>de</strong> Média, e a educação, dominada pelo<br />

clero, não visava por essa época senão a formar letrados e eruditos. O apego ao dogma e<br />

à autorida<strong>de</strong>, a tradição escolástica e literária e a repugnância pelas ativida<strong>de</strong>s técnicas e<br />

artísticas, tinham forçosamente <strong>de</strong> caracterizar, na Colônia, toda a educação mo<strong>de</strong>lada<br />

pela da Metrópole, que se manteve fechada e irredutível ao espírito crítico e <strong>de</strong> análise,<br />

à pesquisa e à experimentação. Portanto, para apreciar com justiça essa cultura padronizada,<br />

<strong>de</strong> tendência universalista, e <strong>de</strong> tipo clássico, transmitida pelo ensino jesuítico, é<br />

preciso que não se veja à luz da civilização atual, mas, remontando aos séculos XVI e<br />

XVII, se examine e se meça pelos costumes e i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> então, segundo os quais se pretendia<br />

manter o latim ainda erguido à categoria <strong>de</strong> língua geral e sustentar nos homens o<br />

fascínio pelas letras clássicas, até à cópia servil dos mo<strong>de</strong>los antigos.<br />

Consoante adverte Cruz Costa, “qualquer que possa ser a nossa posição em face<br />

das idéias da Companhia <strong>de</strong> Jesus, é inegável que muito contribuíram os jesuítas, com<br />

as suas escolas, com os seus colégios para a nossa formação intelectual”. Naturalmente<br />

ao lado dos filhos <strong>de</strong> Santo Inácio também os franciscanos contribuíram com seu ensino.<br />

Daí a pertinente observação <strong>de</strong> Miguel Reale ao afirmar que “começa a <strong>Filosofia</strong> no<br />

Brasil, no período colonial, no recesso dos Seminários. Tal origem <strong>de</strong>terminou, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

logo, quatro características fundamentais: quanto ao objeto do filosofar, predominaram<br />

os problemas éticos ou os ontológicos, nem sempre distintos dos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m teológica;<br />

quanto à orientação metodológica, prevaleceu, então, <strong>de</strong>smedida confiança nos po<strong>de</strong>res<br />

da razão, entregue a si mesma, no processo abstrato das inferências formais; quanto ao<br />

sentido das pesquisas, nada apresentaram elas <strong>de</strong> peculiar e próprio, <strong>de</strong>senvolvendo-se<br />

como simples prolongamento ou reflexos <strong>de</strong> um sistema tradicional <strong>de</strong> idéias, consi<strong>de</strong>rado<br />

<strong>de</strong> valida<strong>de</strong> universal e perene; quanto à atitu<strong>de</strong> dos filósofos, o que predominava<br />

era a tranqüila confiança em verda<strong>de</strong>s que, tidas como indiscutíveis, suscitaram natural<br />

inclinação para a intolerância e o espírito <strong>de</strong> catequese”. Uma possível resultante disso<br />

tudo é o Peregrino da América, em que se tratam vários discursos espirituais e morais<br />

com várias advertências e documentos contra os abusos que se acham introduzidos<br />

pela malícia diabólica no Estado do Brasil, <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Nuno Marques Pereira (1652-<br />

1728), tido como o livro mais lido no Brasil no século XVIII e que narra a peregrinação<br />

daqueles “filósofos <strong>de</strong> surrão e cajado” que começando a arrebaçar sentenças nunca<br />

levam “caminho <strong>de</strong> terminar”, típico produto da prosa mística e moralista tradicional <strong>de</strong><br />

claro intuito: incutir a doutrina teológica sob as mais diferentes formas, conjugando ao<br />

mesmo tempo <strong>Filosofia</strong> militante e Teologia.<br />

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IV<br />

O SENTIDO DAS “LUZES”<br />

Com o advento das idéias e i<strong>de</strong>ais iluministas do século XVIII, entra em crise o<br />

quadro <strong>de</strong> valores <strong>de</strong>fendido pela Companhia <strong>de</strong> Jesus, cuja índole aristocrática se chocava<br />

com a ascensão vitoriosa e <strong>de</strong>finitiva da burguesia. E o primeiro baluarte a ruir é a<br />

inquisição que não passava, segundo Antônio José Saraiva, “<strong>de</strong> um instrumento da política<br />

geral do grupo que se consolidou em Portugal <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados do século XVI e que<br />

permaneceu sob o regime filipino. Temos a contraprova disto ao verificarmos que<br />

quando o controle político exercido por esse grupo esmorece e entra em crise, <strong>de</strong>vido ao<br />

<strong>de</strong>senvolvimento das suas contradições internas, a própria Inquisição entra em <strong>de</strong>clínio<br />

— <strong>de</strong>clínio arrastado, com sobressaltos <strong>de</strong> violência que a sua forte estrutura impunha”.<br />

De fato, a função do Tribunal do Santo Ofício não era <strong>de</strong>struir os judaizantes,<br />

mas fabricá-los, nem era assimilar os cristãos-novos mas sim seqüestrá-los e multiplicálos.<br />

O nome <strong>de</strong> “cristãos-novos” era o apelativo <strong>de</strong>magógico com que o grupo dominante<br />

em Portugal <strong>de</strong>s<strong>de</strong> meados do século XVI procurou afastar a burguesia da direção<br />

política do Estado e da hegemonia econômica. O <strong>de</strong>saparecimento da casta assim <strong>de</strong>signada<br />

ao toque das leis <strong>de</strong> Pombal revela simplesmente que a burguesia se tornara, sob o<br />

seu governo, um grupo dominante e que a aristocracia senhorial per<strong>de</strong>ra a partida.<br />

A luta, porém, fôra longa e terrível. Sebastião José <strong>de</strong> Carvalho e Melo reuniu<br />

em dois pesados tomos tudo quanto dois séculos <strong>de</strong> queixas, <strong>de</strong> rivalida<strong>de</strong>s e má-fé existia<br />

contra os jesuítas. A causa é vencida pelo ministro português, com a extinção da<br />

Companhia <strong>de</strong> Jesus. A notícia da supressão publicou-se em Lisboa, a 9 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong><br />

1773. Segundo informa J. Lúcio d’Azevedo, cumprido o que fôra por tanto espaço o<br />

objeto <strong>de</strong> suas veementes aspirações, Pombal enten<strong>de</strong>u dar ao seu contentamento o máximo<br />

relevo. Houve manifestações <strong>de</strong> regozijo no paço, nas ruas e nos templos. Por or<strong>de</strong>m<br />

do governo, Lisboa pôs luminárias, sendo cominadas penas <strong>de</strong> multa e ca<strong>de</strong>ia aos<br />

<strong>de</strong>sobedientes; D. José escreveu ao Papa exprimindo o seu reconhecimento; e por todos<br />

os modos, e em todo o reino, a vitória alcançada a tanto custo se celebrou com estrépito.<br />

Diz o biógrafo do Marquês que, “expelindo os jesuítas, sacudira do país, como julgava,<br />

a lepra que por duzentos anos o tinha gafado”.<br />

Nas publicações pombalinas antijesuíticas figuram, com especial projeção, os atentados<br />

dos inacianos contra a inteligência portuguesa, como seja a introdução dos In<strong>de</strong>x<br />

romanos (que serão objeto <strong>de</strong> graves e extensas increpações), ou, então, crimes ainda<br />

mais graves como seja o extermínio dos sábios e cultos. Esse conjunto <strong>de</strong> eventos<br />

mal-afortunados teriam constituído o “último golpe mortal na Literatura Portuguesa”.<br />

Na acusação dos jesuítas, sempre os acontecimentos intelectuais aparecem em primeira<br />

linha, misturando-se substancialmente a <strong>de</strong>cadência da ilustração com a <strong>de</strong>cadência do<br />

trono. Todos esses males eram como que a prolação <strong>de</strong> um só — a <strong>de</strong>cadência da cultura<br />

intelectual e o atraso das Ciências — e a tendência a converter em mística, e mística<br />

religiosa, o sistema <strong>de</strong> meios engendrados pela razão para os combater. Daí terem os<br />

escritos pombalinos <strong>de</strong>nunciados os “horrorosos estragos” que atingiram os estudos do<br />

reino, estabelecendo “um geral idiotismo, como é manifesto”.<br />

Contudo, se por um lado o pombalismo con<strong>de</strong>nava a censura jesuítica, por outro<br />

estabelecia nova censura. E, nessa política <strong>de</strong> proibição <strong>de</strong> livros e autores, se a influência<br />

da Companhia <strong>de</strong> Jesus se exerceu <strong>de</strong> modo a tornar bastante estreito o critério<br />

selecionador, no tempo <strong>de</strong> Pombal pouco ou nada se abrandou tal critério, embora nem<br />

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sempre possamos discernir-lhe o sentido com clareza. Assim, em 1746 o Colégio das<br />

Artes baixou edital con<strong>de</strong>natório <strong>de</strong> Descartes por “conclusões opostas ao sistema <strong>de</strong><br />

Aristóteles, o qual nestas escolas se <strong>de</strong>ve seguir”; porém, já em 1752 o frei qualificador<br />

do Santo Ofício crê vislumbrar no cartesianismo o “método útil para abraçarmos sem<br />

horror os sistemas da Física mo<strong>de</strong>rna, a que até aqui olhávamos com menos afeição”.<br />

Ora, vencidos os jesuítas, vemos a Mesa Censória <strong>de</strong> Pombal <strong>de</strong> novo con<strong>de</strong>nar Descartes,<br />

“porquanto o povo português ainda não está acostumado a ler no seu próprio<br />

idioma este gênero <strong>de</strong> escritos”.<br />

Naturalmente, antes do governo do Marquês <strong>de</strong> Pombal, as fronteiras lusitanas<br />

eram como uma barreira fiscal protecionista, fechada ao progresso <strong>de</strong> além Pireneus,<br />

para que ele não viesse perturbar o sono do país, e tão fechada que era quase impossível<br />

o contrabando filosófico. Depois do consulado pombalino quis-se novamente cerrá-la,<br />

mas já não foi inteiramente possível evitar o contrabando, pois os imigrados políticos o<br />

faziam e o fez o próprio tio da rainha, Duque <strong>de</strong> Lafões, que ilustrara o seu espírito em<br />

meios <strong>de</strong> alta cultura do estrangeiro, que lhe inspirou a fundação da Aca<strong>de</strong>mia das Ciências,<br />

<strong>de</strong> Lisboa. Penetraram, assim, em Portugal, as idéias filosóficas dos redatores da<br />

célebre Enciclopédia francesa do século XVIII, idéias que tinham sido combatidas com<br />

rancor na própria França, e cuja entrada em território português se pretendia evitar. Por<br />

isso foi um belo ato <strong>de</strong> tolerância o da Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Ciências lisboeta admitindo, nesses<br />

tenebrosos tempos, no seu seio, como sócio correspon<strong>de</strong>nte, um dos maiores enciclopedistas:<br />

d’Alembert.<br />

Às idéias <strong>de</strong> libertação do pensamento juntaram-se as idéias <strong>de</strong> liberação política,<br />

que conquistaram a<strong>de</strong>ptos entre as classes doutas, não obstante a perseguição implacável<br />

do feroz inten<strong>de</strong>nte da polícia Pina Manique, coadjuvado pela Inquisição que reviveu<br />

com o advento ao trono <strong>de</strong> D. Maria I, a Louca, perseguindo homens ilustres nas<br />

Ciências ou nas Letras, ou os obrigando a fugir do país para evitar a garra dos fanáticos<br />

galfarros. Entre os perseguidos figuraram o Pe. Correia da Serra e o Dr. Avelar Brotero,<br />

botânicos eminentes que tiveram que emigrar, e Anastácio da Cunha, que o Tribunal do<br />

Santo Ofício arrastou da sua cátedra <strong>de</strong> professor na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra à prisão<br />

<strong>de</strong> um convento.<br />

Desta forma, não se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> um Iluminismo português no mesmo sentido<br />

em que são caracterizadas as manifestações “iluminadas” do pensamento inglês, francês,<br />

e alemão. De acordo com Cabral <strong>de</strong> Moncada, o Iluminismo lusitano foi “essencialmente<br />

Reformismo e Pedagogismo. O seu espírito era, não revolucionário, nem antihistórico,<br />

nem irreligioso como o francês, mas essencialmente progressista, reformista,<br />

nacionalista e humanista. Era o Iluminismo italiano: um Iluminismo essencialmente<br />

cristão e católico”. Todavia, forçoso é reconhecer, o Iluminismo, em que pesem as peculiarida<strong>de</strong>s<br />

que historicamente assumiu nos diversos países, foi sempre um programa<br />

pedagógico, uma atitu<strong>de</strong> crítica <strong>de</strong> revisão <strong>de</strong> problemas do qual não se po<strong>de</strong>m dissociar,<br />

no fundo, as intenções <strong>de</strong> uma reforma, tanto das instituições quanto dos hábitos <strong>de</strong><br />

pensamento. Seus propósitos mais significativos se resumem no lema pelo qual Kant,<br />

num breve escrito, procurou vislumbrar, através <strong>de</strong> uma variada gama <strong>de</strong> matizes doutrinários,<br />

o sentido íntimo <strong>de</strong> uma aspiração geral: sapere au<strong>de</strong>, isto é: ousa saber.<br />

Em Portugal — <strong>de</strong> acordo com Laerte Ramos <strong>de</strong> Carvalho o eco <strong>de</strong>stes i<strong>de</strong>ais<br />

europeus se manifestou, concreta e historicamente, como um programa político <strong>de</strong> governo.<br />

Um dos traços mais significativos do Iluminismo português é a sua expressão <strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> consciente e <strong>de</strong> não menos consciente repúdio às formas e hábitos <strong>de</strong> pensamento<br />

até então imperantes. É mister esclarecer, todavia que tanto esta mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

quanto este repúdio revestiram-se <strong>de</strong> um formalismo pedagógico bastante característico.<br />

O hábito das disputas, tão fortemente enraizado na escola e na mentalida<strong>de</strong> portuguesas,<br />

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pelo trabalho <strong>de</strong> vários séculos <strong>de</strong> tradição escolástica, não permitiu que o programa <strong>de</strong><br />

renovação cultural se processasse, livre <strong>de</strong> quaisquer fatores restritivos, no <strong>de</strong>bate amplo<br />

dos reais interesses i<strong>de</strong>ológicos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Por isso a máxima figura do século pombalino foi a do pedagogo Luís Antônio<br />

Verney. Com este vulto singular pô<strong>de</strong> o século XVIII <strong>de</strong>votar-se, inteiro, numa luta pela<br />

contemporaneida<strong>de</strong>. De resto, Verney foi maior que o próprio Pombal, pois, <strong>de</strong> certa<br />

forma, não passou o po<strong>de</strong>roso ministro <strong>de</strong> D. José <strong>de</strong> mero executor <strong>de</strong> seus esquemas.<br />

Com efeito, o barbadinho lusitano, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se impregnar do Iluminismo italiano durante<br />

sua estada em Roma, recebera o encargo <strong>de</strong> “iluminar” uma nação inteira, e ambos,<br />

Pombal e Verney, toparam pela frente o mesmo obstáculo: os jesuítas. Aliás, o amplo<br />

repúdio <strong>de</strong> Verney aos inacianos se dirigia mais contra seus métodos pedagógicos<br />

do que propriamente contra sua filosofia. Daí sua intenção primeira em escrever um<br />

Verda<strong>de</strong>iro Método <strong>de</strong> Estudar, pois chocava-o, até às entranhas, aquela Gramática<br />

Latina do Pe. Manuel Álvares, pesada máquina <strong>de</strong> 247 regras só para a sintaxe dos nomes,<br />

formados em arrevesados versos latinos, acrescidas <strong>de</strong> exceções, apêndices e observações.<br />

E mais do que isto, Portugal clamava urgentemente por um sopro cientificista,<br />

pois a <strong>Filosofia</strong> do século XVIII já havia ultrapassado o humanismo olímpico e se<br />

cingira, agora, ao pensamento matemático, que tudo explicava através <strong>de</strong> suas fórmulas<br />

e leis. Para atingir esse escopo, Newton, com seu cálculo <strong>de</strong> fluxões, e Leibniz, com seu<br />

cálculo infinitesimal, criavam um instrumento universal para “explicar” a natureza, num<br />

sentido relativo e condicionado às forças específicas da razão.<br />

Por isso a <strong>Filosofia</strong> do século XVIII se atira por toda parte com este exemplo único,<br />

com o paradigma metódico da Física newtoniana, e o aplica universalmente. Não<br />

se contenta com consi<strong>de</strong>rar a análise como um gran<strong>de</strong> instrumento intelectual do conhecimento<br />

físico-matemático, mas vê nela a arma necessária <strong>de</strong> todo o pensamento em<br />

geral. Nos meados do século, a vitória <strong>de</strong>sta concepção é <strong>de</strong>finitiva. E por muito que os<br />

diversos pensadores e as diversas escolas difiram em seus resultados, coinci<strong>de</strong>m nestas<br />

premissas epistemológicas. Falam a mesma linguagem o Traité <strong>de</strong> métaphysique, <strong>de</strong><br />

Voltaire, a “introdução” à Enciclopédia <strong>de</strong> d’Alembert, e a investigação sobre os princípios<br />

da teologia natural e da moral, <strong>de</strong> Kant, como assinala Cassirer. E também são <strong>de</strong><br />

Verney, ainda que em menor grau, essas mesmas premissas.<br />

Realmente, foi Verney o ponto mais elevado da articulação <strong>de</strong> Portugal com a<br />

Europa culta na época do Iluminismo. Foi ele próprio, na opinião <strong>de</strong> Cabral <strong>de</strong> Moncada,<br />

o mais insigne iluminista português <strong>de</strong>sse século. E isto porque a obra verneyana<br />

nos dá, numa síntese, toda a complexa mentalida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ológica que se achava na base<br />

das expressões culturais do regime sob o consulado pombalino. O seu pensamento marca<br />

a expressão limite <strong>de</strong>ssa mentalida<strong>de</strong>, na direção da qual esta se movia e para que<br />

tendia, Verney é como que a consciência filosófica, a “consciência objetiva” <strong>de</strong> todo o<br />

movimento reformador da sua época em Portugal, <strong>de</strong> que Pombal procurou ser o executor.<br />

Se o primeiro foi a sensibilida<strong>de</strong> mais <strong>de</strong>licada e o cérebro <strong>de</strong>sse movimento <strong>de</strong> idéias,<br />

o segundo foi a sua vonta<strong>de</strong> forte e como que o músculo. Nele encontramos, antes<br />

<strong>de</strong> mais nada, na sua mais elevada expressão, tudo o que essa mentalida<strong>de</strong> continha <strong>de</strong><br />

radicalismo reformista, <strong>de</strong> filosófico <strong>de</strong>sdém pelo passado como fonte <strong>de</strong> sabedoria, do<br />

culto pela igualda<strong>de</strong> das classes perante o trono, <strong>de</strong> utopismo iluminista, <strong>de</strong> presunção<br />

doutrinária, <strong>de</strong> otimismo e abstratismo políticos, <strong>de</strong> intelectualismo ético, <strong>de</strong> pedagogismo,<br />

<strong>de</strong> ciênciomania e <strong>de</strong> todos os <strong>de</strong>mais traços que caracterizam aquilo a que hoje<br />

se po<strong>de</strong>ria chamar, sumariamente, a “política do espírito” do reinado <strong>de</strong> D. José.<br />

Contudo, no próprio mundo cultural lusíada viveu uma figura que sintetizou, ainda<br />

com maior eminência, todos os traços iluministas: Matias Aires da Silva e Eça<br />

(1707-1763), não vacilando Jacinto do Prado Coelho em afirmar que se trata <strong>de</strong> um vul-<br />

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to que “tem jus a um lugar cimeiro, ao lado <strong>de</strong> Verney, como lúcido e fervoroso representante<br />

do Iluminismo em Portugal”. Essa curiosa figura do Brasil colonial nasceu em<br />

São Paulo, on<strong>de</strong> viveu os primeiros onze anos <strong>de</strong> sua vida, tendo aqui aprendido, com<br />

os jesuítas a ler e a amar a leitura, a escrever e a amar as letras clássicas. E também aqui<br />

apren<strong>de</strong>u os rudimentos das Ciências Humanas e Divinas, que iriam ocupar toda a sua<br />

vida <strong>de</strong> misantropo e <strong>de</strong> meditativo, o que levou Cruz Costa a caracterizá-lo como “um<br />

moralista pessimista e <strong>de</strong>sencantado, assim uma espécie <strong>de</strong> ‘libertino’ ranzinza, vivendo<br />

em um meio fanático e beato”.<br />

Depois <strong>de</strong> transitar por Coimbra, on<strong>de</strong> se licenciou em Artes (<strong>de</strong>nominação <strong>de</strong><br />

estudos propedêuticos <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>), partiu para Paris on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>dicou, <strong>de</strong> modo particular,<br />

ao estudo das Ciências Naturais, da Matemática e do Hebraico. Teve os mais famosos<br />

professores do tempo nessas matérias, tais como Godin, Grosse e Phourmond, participando,<br />

ao mesmo tempo, da gran<strong>de</strong> agitação <strong>de</strong> idéias que então se processava no<br />

mundo europeu. De sua lavra literária restam duas obras meritórias: Reflexões Sobre a<br />

Vaida<strong>de</strong> dos Homens (1752) e Problemas <strong>de</strong> Arquitetura Civil (publicado postumamente<br />

por iniciativa <strong>de</strong> seu filho Manuel Inácio em 1770).<br />

O que era a <strong>Filosofia</strong> no Brasil por essa época po<strong>de</strong> ser perfeitamente verificável<br />

graças a Eduardo Frieiro que em seu livro O Diabo na Livraria do Cônego, analisa o rol<br />

dos livros do padre inconfi<strong>de</strong>nte Luís Vieira da Silva, por sinal antigo professor <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong><br />

e, segundo Alberto Faria, “a maior ilustração colonial da época”. No auto <strong>de</strong> seqüestro<br />

da livraria do ilustre cônego, po<strong>de</strong>m ser encontradas várias obras <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>,<br />

Metafísica e Lógica: a Summa theologica, <strong>de</strong> Santo Tomás <strong>de</strong> Aquino, a Philosophia<br />

peripatetica, <strong>de</strong> Mayr, os Elémentes <strong>de</strong> métaphysique, do jesuíta Du Phanjas, a Lógica,<br />

<strong>de</strong> Verney, as Disputationes metaphysicae, do jesuíta Silvestre Aranha, a Metaphysica e<br />

a Lógica, <strong>de</strong> Musschenbroeck, os Elementos Metafísicos, <strong>de</strong> Brescia, o Compendium<br />

philosophicum theologicum, <strong>de</strong> Manuel Inácio Coutinho e um manuscrito <strong>de</strong> “postilas<br />

<strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>”. E também obras afins da <strong>Filosofia</strong>, como os clássicos franceses, notadamente<br />

Voltaire, Bossuet, Montesquieu, Descartes (através <strong>de</strong> sua Geometria), a tradução<br />

francesa da História da dinastia dos Tudors, <strong>de</strong> Hume etc.<br />

Sem dúvida, a Colônia então vivia numa estupenda apatia espiritual. A educação<br />

pouco progredira e pior estava com a expulsão dos jesuítas. Os conhecimentos dos eclesiásticos<br />

limitavam-se, geralmente, a um mau latim, e o indivíduo feliz que reunia o<br />

conhecimento <strong>de</strong>ste e do francês, conforme afirma Armitage, era olhado como um gênio<br />

raro, digno <strong>de</strong> ser visto e ouvido. Ao contrário da América espanhola, que, conheceu<br />

muito cedo, mal se firmara a Conquista, a imprensa e o ensino universitário, não havia<br />

em todo o Brasil uma só tipografia, e a nossa Universida<strong>de</strong> data pouco mais <strong>de</strong> 30 anos...<br />

O quadro geral era esse, numa visão <strong>de</strong> conjunto. Mas havia, aqui e ali, pequenos<br />

núcleos <strong>de</strong> homens instruídos ou ávidos <strong>de</strong> instrução, mais ou menos contagiados<br />

do “furor <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r” e da “febre <strong>de</strong> inteligência”, que caracterizam a última meta<strong>de</strong><br />

do século XVIII, o por sinal chamado “século educador”. Claro está que as diligentes<br />

autorida<strong>de</strong>s coloniais opunham obstáculos à entrada <strong>de</strong> livros no Brasil, o que entretanto<br />

não impedia que tais escritos fossem lidos e até às vezes muito lidos, como comprovam<br />

as livrarias dos inconfi<strong>de</strong>ntes que atestam um índice <strong>de</strong> ilustração muito adiantado para<br />

o meio em que viviam.<br />

Nesse sentido, referindo-se ao atraso intelectual dos brasileiros em fins do século<br />

XVIII e princípios do seguinte, disse o historiador Armitage que “as Histórias da Grécia<br />

e Roma, o Contrato Social <strong>de</strong> Rousseau e alguns volumes dos escritos <strong>de</strong> Voltaire e do<br />

Aba<strong>de</strong> Reynal, que haviam escapado à vigilância das autorida<strong>de</strong>s, formavam as únicas<br />

fontes <strong>de</strong> instrução”. Comentando esse passo, diz Eduardo Frieiro: “Lia-se Rousseau,<br />

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Voltaire, Reynal... E o inglês Armitage ainda achava pouco! Que mais queria ele que se<br />

lesse? Rousseau, um dos raros filósofos <strong>de</strong>mocratas <strong>de</strong> seu tempo, influiu nas idéias <strong>de</strong><br />

Jefferson e Adams. O Contrato Social chegou a ser a Bíblia dos homens do Terror e<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou mais tormentas e catástrofes sobre a Europa e todo o mundo civilizado que<br />

as mais apaixonantes místicas a serviço dos apetites e do instinto agressivo do homem.<br />

Pois esse livrinho andava <strong>de</strong> mão em mão no Brasil, como em toda a América. Voltaire<br />

fôra o bota-fogo número um, o incendiário principal <strong>de</strong> uma época que o absolutismo<br />

dos governantes, a corrupção dos aristocratas, a <strong>de</strong>pravação do clero e a licença geral<br />

dos costumes já haviam carcomido. Enfim, Reynal era o autor da Histoire philosophique<br />

et politique <strong>de</strong>s établissements et du commerce <strong>de</strong>s européens dans les <strong>de</strong>ux In<strong>de</strong>s,<br />

um dos livros mais notáveis do século XVIII e o que alcançou mais retumbante êxito,<br />

especialmente na América. Leu-se muito esse livro, que verberava as cruelda<strong>de</strong>s dos<br />

colonizadores católicos nas duas índias e apresentava originalmente a História não como<br />

uma sucessão <strong>de</strong> batalhas e reinados, mas como <strong>de</strong>terminada pelas preocupações<br />

econômicas dominantes nas nações.”<br />

Matias Aires é uma espécie <strong>de</strong> traço <strong>de</strong> união entre os séculos XVII e XVIII, ligando<br />

o provi<strong>de</strong>ncialismo do primeiro ao empirismo do segundo através, precisamente,<br />

<strong>de</strong> seus dois livros. Com efeito, já pelo estilo, com os seus paralelismos e arredondamentos<br />

oratórios, já pelo pensamento, em que, se continua o pessimismo acre <strong>de</strong> um La<br />

Rochefoucauld, as Reflexões ligam-se insofismavelmente ao século XVII. Analisando<br />

com agu<strong>de</strong>za implacável os cordéis que movem os homens, Matias Aires chega, por<br />

vezes, a aproximar-se do existencialismo dos nossos dias. Define o Homem pela flui<strong>de</strong>z,<br />

pela mudança: inquieto, insaciável, correndo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo em <strong>de</strong>sejo, <strong>de</strong> razão precária,<br />

a cada passo iludida pelos sentidos, pela imaginação e pelos afetos, acima <strong>de</strong> tudo<br />

joguete do amor-próprio, a que Matias Aires chama também vaida<strong>de</strong> — eis o Homem<br />

tal como o <strong>de</strong>screvem sobriamente as Reflexões. E o pensador misantropo empenha-se<br />

em <strong>de</strong>smascarar os artifícios sociais (pretensões <strong>de</strong> sangue azul, distinção dos homens<br />

pelos trajos etc.) inventados e mantidos pelo amor-próprio.<br />

Em certo passo, é verda<strong>de</strong>, mostra-se compenetrado da mentalida<strong>de</strong> científica,<br />

positiva, do Século das Luzes: “Hoje as filosofias todas se compõem <strong>de</strong> Matemáticas;<br />

<strong>de</strong> sorte que já não há silogismo que conclua, se não é fundado em alguma <strong>de</strong>monstração<br />

geométrica; na Física não se está pelo que se diz, senão pelo que se vê. [...] Um alambique,<br />

um eolípilo, uma máquina pneumática e a mistura <strong>de</strong> vários corpos explicam<br />

mais em uma hora do que um professor <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> em muito tempo.” Mas a idéia geral<br />

<strong>de</strong>sse trecho airesano é a <strong>de</strong> que também a Ciência é relativa, muda <strong>de</strong> época para época;<br />

o que parece conquista <strong>de</strong>finitiva no século XVIII po<strong>de</strong> vir a ser rejeitado pela Ciência<br />

posterior. Por isso pergunta: “Que coisa é a Ciência Humana, senão uma humana<br />

vaida<strong>de</strong>?” E, mais além, prossegue: “A vaida<strong>de</strong> das ciências toda se cansa em conjeturas,<br />

que faz passar por <strong>de</strong>monstrações”, pois, afinal, o que mais importa é precisamente<br />

o que o Homem mais ignora: “Para tudo somos sábios, só para nós somos ignorantes.<br />

Falta-nos o conhecimento próprio.”<br />

É evi<strong>de</strong>nte que as Reflexões são obra <strong>de</strong> um moralista que, obviamente, põe o<br />

conhecimento do Homem espiritual acima do conhecimento da Natureza. Mais: <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m<br />

do começo ao fim uma tese — tudo é amor-próprio, tudo é vaida<strong>de</strong>, inanida<strong>de</strong> — e<br />

o movimento dialético arrasta Matias Aires a afirmações que — ele próprio o reconhece<br />

— não <strong>de</strong>vem ser tomadas ao pé da letra: “se os conceitos neste livro não são justos, é<br />

porque em certo gênero <strong>de</strong> discurso, estes se não <strong>de</strong>vem tomar rigorosamente pelo que<br />

as palavras soam, nem em toda a extensão ou significação <strong>de</strong>las”, consoante se lê no<br />

prólogo às Reflexões.<br />

O Problema <strong>de</strong> Arquitetura Civil, suscitado pelo terremoto <strong>de</strong> 1755, permite-nos<br />

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ter em conta uma face complementar do pensamento <strong>de</strong> Matias Aires, possibilitando-<br />

nos <strong>de</strong>finir melhor a sua posição perante o Iluminismo. Aqui é da Natureza exterior que<br />

se ocupa, das possibilida<strong>de</strong>s que o Homem possui <strong>de</strong> dominá-la pela razão, do método<br />

científico indispensável para conseguir um conhecimento seguro, para balizar as fronteiras<br />

do que se sabe e do se ignora. Redigido com a elegância, e até com as estruturas<br />

oratórias a que nos habituaram as Reflexões, o Problema vale, em gran<strong>de</strong> parte, pelas<br />

repetidas digressões não só informativas como especulativas: “qualquer livro — justifica-se<br />

o autor — ainda que pequeno, é como um erário público, em que po<strong>de</strong> recolher-se<br />

ou <strong>de</strong>positar-se tudo quanto po<strong>de</strong> ser publicamente útil. A notícia dos fenômenos mais<br />

raros em toda a parte tem lugar”.<br />

Pon<strong>de</strong>ra o pensador paulista (e este é um tema que vem das Reflexões) como é<br />

difícil “distinguir a verda<strong>de</strong> da ilusão, a imagem natural daquela que não é mais do que<br />

aparente”. Ainda, como no livro anterior, insiste, no Problema, em que a razão humana<br />

apreen<strong>de</strong> os <strong>de</strong>feitos, mas não, muitas vezes, os porquês dos fenômenos a que se aplica.<br />

É este um motivo para <strong>de</strong>sistir? De modo algum. É antes uma lição <strong>de</strong> fecunda prudência.<br />

Pondo <strong>de</strong> lado ambições metafísicas, Matias Aires entrega-se ao estudo das Ciências<br />

Naturais com o mesmo entusiasmo com que se <strong>de</strong>ra a escalpelar a vida psicológica<br />

e as mentiras sociais. Não estudara ele, em França, por irreprimível interesse, a Matemática,<br />

a Química e a Física, além dos Direitos Civil e Canônico e do Hebraico? Não<br />

tece ele, no Problema, o elogio do “expertíssimo Grasse”, seu antigo mestre <strong>de</strong> Química?<br />

Dentro dos limites que lhe são impostos, a Ciência do mundo físico não só respon<strong>de</strong><br />

à invencível curiosida<strong>de</strong> do Homem, como po<strong>de</strong> ser para ele <strong>de</strong> uma utilida<strong>de</strong> incalculável.<br />

“Muitas coisas úteis tem achado o estudo; por isso bem disse o primeiro que proferiu:<br />

‘Dii laboribus omnia vendunt’.” E Matias Aires enumera: “A invenção da pólvora,<br />

da vitrificação artificial, da separação dos metais confundidos entre si, do quadrado dos<br />

tempos e <strong>de</strong> outros muitos <strong>de</strong>scobertos admiráveis são artes que a Natureza ven<strong>de</strong>u pelo<br />

preço <strong>de</strong> uma indagação constante.”<br />

Como se vê, mostra-se Matias Aires a<strong>de</strong>pto e cultor esclarecido da Ciência do<br />

seu tempo. Preconiza o experimentalismo e a dúvida metódica, rejeitando o verbalismo,<br />

as afirmações inverificáveis, os sistemas fundados em abstrações: “Física instruída <strong>de</strong>spreza<br />

tudo aquilo que não tem na experiência um fundamento certo; admite as rarida<strong>de</strong>s<br />

que po<strong>de</strong>m ser examinadas, não aquelas que, não po<strong>de</strong>ndo examinar-se, só se estabelecem<br />

em uma tradição mal-entendida, recebida ligeiramente, e sem exame.” Esta posição<br />

teórica é, nos Problemas, freqüentemente <strong>de</strong>fendida: “Nas matérias físicas não se consi<strong>de</strong>ra<br />

a autorida<strong>de</strong> dos antigos ou mo<strong>de</strong>rnos; e só se aten<strong>de</strong> para a autorida<strong>de</strong> da experiência;<br />

esta é a que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> o ponto, e não os que trataram <strong>de</strong>le: tudo o que não consta por<br />

uma experiência constante e reiterada é o mesmo que não ser, ou não constar por modo<br />

algum.” Para o investigador científico as palavras são perigosos alçapões, pois muitas<br />

vezes são dadas fraudulentamente como equivalentes das coisas ou explicações das coisas:<br />

“Conhecemos ou ouvimos estas vozes [como espíritos animais etc.]; mas não conhecemos<br />

nem vemos a substância do que elas significam. Vemos certos efeitos mas<br />

não quem os causa, nem como são causados. Melhor seria ignorarmos as palavras, já<br />

que não po<strong>de</strong>mos saber o que elas dizem; porque às vezes na ignorância há mais saber<br />

do que na Ciência mesma.” A consciência clara <strong>de</strong> que não se sabe importa mais do que<br />

falíveis conjeturas: “na Física, a prova conjetural tem pouca ou nenhuma autorida<strong>de</strong>;<br />

porque em tudo o que é improvável, ou em que não po<strong>de</strong>m haver provas evi<strong>de</strong>ntes, <strong>de</strong>vemos<br />

respeitar mais a in<strong>de</strong>cisão do que a solução; e esta, quando está <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong><br />

evidência, não só é <strong>de</strong>sprezível mas também influi <strong>de</strong>sprezo na matéria <strong>de</strong>cidida: a escurida<strong>de</strong><br />

total tem mais valor que uma clarida<strong>de</strong> sombria e mal segura”. Enfim, uma coisa<br />

é certa: em experiências feitas exatamente <strong>de</strong> maneira idêntica, nas mesmas condições,<br />

21


o resultado tem <strong>de</strong> ser o mesmo; o “acaso” não é fator <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar: “A verda<strong>de</strong> é que a<br />

fortuna em nenhum caso influi nem tem po<strong>de</strong>r algum [...] o verda<strong>de</strong>iro duen<strong>de</strong> sempre<br />

consistiu em ser mal dirigido o experimento; na falta das justas proporções, e no erro<br />

em o modo <strong>de</strong> operar.”<br />

O empirismo iluminista do Problema <strong>de</strong> Arquitetura Civil é precedido pelo provi<strong>de</strong>ncialismo<br />

das Reflexões Sobre a Vaida<strong>de</strong> dos Homens, cuja filosofia moralista se<br />

resume em três termos essenciais: a corrupção irremediável e completa da natureza humana;<br />

a vaida<strong>de</strong> social em todas as suas manifestações; o po<strong>de</strong>r inapelável da Providência<br />

e <strong>de</strong> sua manifestação temporal — a Natureza. Portanto, a Providência, a Natureza e<br />

o Homem são os três termos do universo <strong>de</strong> Matias Aires. Para Matias Aires, porém, a<br />

vaida<strong>de</strong> não é apenas uma força negativa. Sendo a vaida<strong>de</strong> um efeito da corrupção completa<br />

da natureza humana, encontramo-la misturada a todos os nossos movimentos, tanto<br />

para o bem como para o mal. E nesse sentido é que se verifica ser a vaida<strong>de</strong>, na filosofia<br />

<strong>de</strong> Matias Aires, não como habitualmente se consi<strong>de</strong>ra uma paixão entre as <strong>de</strong>mais,<br />

e sim uma paixão “sobre” ou “sob” as <strong>de</strong>mais, ou antes uma condição geral da<br />

natureza corrompida, radicalmente corrompida. O ceticismo das Reflexões no concernente<br />

às possibilida<strong>de</strong>s do Homem-ceticismo que, não obstante certo apriorismo e a<br />

estrutura dialética da obra, <strong>de</strong>nuncia já, por vezes, a experiência vital, angustiante, da<br />

ínfima flui<strong>de</strong>z — é em parte compensado pela confiança na razão pragmática, na utilida<strong>de</strong><br />

da Ciência positiva para a criação <strong>de</strong> um mundo melhor; e o testemunho iniludível<br />

<strong>de</strong>ssa confiança iluminística é o Problema. O principal traço <strong>de</strong> união entre os dois livros<br />

<strong>de</strong> Matias Aires, o primeiro consagrado às realida<strong>de</strong>s morais, o segundo às realida<strong>de</strong>s<br />

físicas, resi<strong>de</strong>, ao ver <strong>de</strong> Jacinto do Prado Coelho, “no espírito <strong>de</strong> livre exame, na<br />

razão cautelosa e <strong>de</strong>spreconcebida”.<br />

Um outro filósofo brasileiro do século XVIII, <strong>de</strong>sta vez não-iluminista, é Frei<br />

Gaspar da Madre <strong>de</strong> Deus (1715-1800), mais conhecido como cronista dos fatos coloniais.<br />

Por uma Provisão Régia <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1675, foi concedido aos que cursassem<br />

<strong>Filosofia</strong> no Colégio dos jesuítas da Bahia o privilégio da equiparação universitária.<br />

Quase cem anos <strong>de</strong>pois, em 1759, com a expulsão dos inacianos das possessões ultramarinas<br />

<strong>de</strong> Portugal, o po<strong>de</strong>roso ministro <strong>de</strong> D. José autoriza aos franciscanos o estabelecimento,<br />

no Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, equiparado ao <strong>de</strong> Coimbra. Essa<br />

primeira tentativa do governo metropolitano para fundar na Colônia um instituto <strong>de</strong> educação<br />

universitária é franqueada aos estudantes em 1776. Precisamente nesse tempo e<br />

nessa escola ensina <strong>Filosofia</strong> o beneditino paulista, on<strong>de</strong> escreveu seu tratado inspirado<br />

nas idéias do scotismo, bastante difundido na época tanto em Portugal como em sua<br />

colônia sul-americana, graças à adoção do compêndio <strong>de</strong> Claudius Frassen — Philosophia<br />

Aca<strong>de</strong>mica, Roma, 1726, 4 vols. — recomendado então até “pela boa latinida<strong>de</strong>”.<br />

Claro está que inexiste qualquer originalida<strong>de</strong> no pensamento <strong>de</strong> Madre <strong>de</strong> Deus, mas<br />

tanto ele como os seus contemporâneos que tinham <strong>de</strong> lecionar, organizavam os próprios<br />

cursos sem pretensões inovadoras; tiravam <strong>de</strong>ste e daquele, ou repetiam com pequenas<br />

alterações, a postila que eles mesmos tinham escrito quando estudantes. Salvo<br />

poucas exceções, era o que se praticava, sem que ninguém estranhasse. E o fra<strong>de</strong> colonial<br />

não figurava <strong>de</strong>ntre essas poucas exceções. A lógica peripatética, sobre todas, o<br />

agradava, julgando profícua a disputa escolástica, não faltando a questão dos “universais”,<br />

tão do agrado dos scotistas, optando <strong>de</strong>cisivamente pela existência <strong>de</strong> “naturezas<br />

comuns reais que são universais <strong>de</strong> essência” e participando da controvérsia dos seguidores<br />

do Doutor Sutil sobre a “comunida<strong>de</strong> da natureza”.<br />

Como filósofo, Frei Gaspar da Madre <strong>de</strong> Deus <strong>de</strong>ixou um tratado <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>,<br />

resumo das lições professadas no convento beneditino do Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1748, em<br />

dois volumes, manuscritos, existentes no arquivo do Mosteiro <strong>de</strong> São Bento, em São<br />

22


Paulo, e que foi i<strong>de</strong>ntificado por D. Wolfang Kretz, o primeiro tomo, e por D. Bonifácio<br />

Jansen, o segundo. O tratado filosófico <strong>de</strong> Frei Gaspar está encimado pelo seguinte título:<br />

Philosophia platonica seu rationalem naturalem et transnaturalem philosophiam<br />

sive logicam, physicam et metaphysicam complectens per F. Gaspar a Madre Dei in<br />

hoc benedictino monasterio Fluvil Jamuariensis die 7 Martii Anno Domini 1748. Desse<br />

tratado só foi dado a lume, até agora, o título, o proêmio e o índice. O título fala <strong>de</strong> Platão;<br />

o proêmio é curto e nada elucida sobre a orientação filosófica do autor; e no índice<br />

parece sobressair-se Aristóteles em vez <strong>de</strong> Platão, sobretudo no segundo tomo, on<strong>de</strong><br />

Firei Gaspar estuda a matéria e as causas consoante a concepção aristotélica do saber. A<br />

curiosida<strong>de</strong> que cerca esse livro é tão gran<strong>de</strong> que o Instituto Brasileiro <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, por<br />

iniciativa do Prof. Miguel Reale, incumbiu ao Prof. Carlos Lopes <strong>de</strong> Matos que preparasse<br />

uma edição bilíngüe do tratado do filósofo-cronista <strong>de</strong> São Paulo. Aguar<strong>de</strong>mos.<br />

Finalmente, temos a figura <strong>de</strong> Francisco Luís dos Santos Leal (1740-1820), professor<br />

régio nascido no Rio <strong>de</strong> Janeiro e autor da História dos filósofos antigos e mo<strong>de</strong>rnos<br />

para uso dos filósofos principiantes, publicada em Lisboa, em dois tomos (1788<br />

e 1792), e que se trata do primeiro livro em seu gênero em língua portuguesa. Cumpre,<br />

antes <strong>de</strong> tudo, advertir que nos <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iros anos do século XVIII a concepção da História<br />

da <strong>Filosofia</strong> como história das seitas e das aberrações do espírito já não se apresentava<br />

como concepção única ou dominante. Devia-se o fato, sobretudo, à influência <strong>de</strong><br />

Saverien que, no prefácio à sua História dos Filósofos Mo<strong>de</strong>rnos, criticara por dispersiva<br />

e caótica, a or<strong>de</strong>nação cronológica da história científica e filosófica, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo o<br />

critério <strong>de</strong> que <strong>de</strong>via ser exposta em função das gran<strong>de</strong>s individualida<strong>de</strong>s que se ocuparam<br />

<strong>de</strong> objetos ou <strong>de</strong> pensamentos afins. Ao carioca Santos Leal caberá importar o-<br />

conceito historiográfico <strong>de</strong> Saverien e adotá-lo.<br />

O autor da História dos Filósofos Antigos e Mo<strong>de</strong>rnos foi sacerdote, tendo residido<br />

a maior parte <strong>de</strong> sua vida em Portugal, on<strong>de</strong> se bacharelou em Cânones pela Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Coimbra, exercendo o magistério <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> racional e moral para o qual<br />

fôra nomeado em novembro <strong>de</strong> 1771 e jubilado em fevereiro <strong>de</strong> 1819. O título completo<br />

<strong>de</strong> seu livro é: História dos filósofos antigos e mo<strong>de</strong>rnos para uso dos filósofos principiantes,<br />

em que se relatam as suas vidas e as suas ações, a parte da <strong>Filosofia</strong> em que<br />

foram eminentes os seus sistemas, os seus <strong>de</strong>scobrimentos e a correção dos seus erros.<br />

Acompanhado <strong>de</strong> notas sobre as terras em que floresceram, e explicações dos termos<br />

filosóficos, que po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>sconhecidos aos filósofos principiantes.<br />

Discriminando três conceitos <strong>de</strong> História da <strong>Filosofia</strong>, que “ou ensina em que<br />

tempo e <strong>de</strong> que modo se inventaram as ciências e como chegaram às nossas ida<strong>de</strong>s, ou<br />

expõe o sistema <strong>de</strong> cada uma das seitas, ou conta as vidas, as ações e as fadigas literárias<br />

dos filósofos”, Santos Leal preferiu o último, por influência <strong>de</strong> Saverien, cujo método<br />

“segurava ser excelentíssimo”, embora se socorresse na exposição dos fatos, das<br />

notícias e das anedotas, da História Crítica da <strong>Filosofia</strong>, <strong>de</strong> Deslan<strong>de</strong>s, publicada em<br />

Amsterdã, em francês, em 1737 e 1756, da História Crítica, <strong>de</strong> Brucker, e <strong>de</strong> outros que<br />

<strong>de</strong>ram largo crédito a tradições fabulosas. Desta maneira aplicou o historiador brasileiro<br />

um método diverso do até então seguido, e é esta circunstância que merece ser <strong>de</strong>stacada,<br />

pois sob os <strong>de</strong>mais aspectos sua História representa até um retrocesso.<br />

O projeto <strong>de</strong> Santos Leal era ambicioso e vasto: atingir o próprio século em que<br />

vivia. Não ultrapassou, porém, os primórdios, porque apenas <strong>de</strong>u ao prelo, no volume<br />

primeiro, as biografias dos “filósofos do povo hebreu, cal<strong>de</strong>u, e dos da Pérsia, da índia,<br />

<strong>de</strong> Fenícia, da Cítia, da China, e dos gregos da <strong>Filosofia</strong> fabulosa”; e, no volume segundo,<br />

as <strong>de</strong> Homero, Hesíodo, Epimêni<strong>de</strong>s, Minos, Radamanto, Triptolemo, Zaleuco, Carondas,<br />

Drácon, Licurgo, Tales, Sólon, Cílon, Pítaco, Bias, Cleóbulo, Periandro, Pitágoras,<br />

Heráclito, Demócrito, Protágoras, Fereci<strong>de</strong>s. Em todas as biografias, algumas das<br />

23


quais são seguidas <strong>de</strong> excursos e <strong>de</strong> digressões, é manifesta a <strong>de</strong>ficiência da informação,<br />

colhida normalmente em vulgarizadores da História <strong>de</strong> Brucker, cuja nomenclatura adota,<br />

a ausência <strong>de</strong> cronologia, a falta <strong>de</strong> perspectiva histórica, a carência <strong>de</strong> problemática<br />

e <strong>de</strong> crítica objetiva — coisas porventura secundárias para quem pretendia, acima <strong>de</strong><br />

tudo, moralizar pela divulgação <strong>de</strong> conhecimentos necessários à formação <strong>de</strong> uma cultura<br />

ampla e útil, isto é, a <strong>Filosofia</strong>, cuja História confundia praticamente com a história<br />

das produções do espírito humano.<br />

Um exemplo dos excursos e digressões <strong>de</strong> Santos Leal são suas pretensas “notas<br />

sobre a vida <strong>de</strong> Pitágoras”: 1ª) O sábio <strong>de</strong>ve continuamente trabalhar em utilida<strong>de</strong> dos<br />

outros homens; 2ª) Que coisa é a anarquia; 3ª) O homem <strong>de</strong>ve ser tal qual <strong>de</strong>seja parecer<br />

aos outros; 4ª) Sobre as assembléias dos ingleses; 5ª) Sobre o abuso das Matemáticas;<br />

6ª) Sobre a máxima do filósofo, que se não <strong>de</strong>via julgar da bonda<strong>de</strong> da música pelo ouvido,<br />

mas pelo entendimento; 7ª) Adverte-se a extravagância do filósofo explicando o<br />

sentido da vista; 8ª) Ignora-se o que entendia o filósofo por “leis da harmonia”, ou “mistura<br />

<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s”; 9ª) Hecatombe; 10ª) Sobre a política. Quanto à ausência <strong>de</strong> cronologia,<br />

adota a expressão “gregos da <strong>Filosofia</strong> fabulosa”, que, <strong>de</strong> resto, se tornou trivial<br />

na historiografia lusíada a partir dos meados do século XVIII.<br />

24


V<br />

VISÃO ROMÂNTICA<br />

O movimento <strong>de</strong> cultura, e por isso mesmo também filosófico, que nasce como<br />

uma reação ao Iluminismo — é o Romantismo. No Brasil foi a primeira afirmativa <strong>de</strong><br />

nossos valores mais caros, atuando como centros irradiadores as duas Faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Direito existentes na primeira meta<strong>de</strong> do século XIX: a <strong>de</strong> São Paulo e a do Recife. Ao<br />

lado <strong>de</strong>sses dois institutos <strong>de</strong> estudos superiores também atuam as lojas maçônicas.<br />

Num estudo sugestivo, A. Almeida Júnior <strong>de</strong>fine com acerto e precisão o verda<strong>de</strong>iro<br />

caráter da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo, a “Velha Aca<strong>de</strong>mia”, que foi menos<br />

uma escola <strong>de</strong> juristas do que um ambiente, um meio plasmador da mentalida<strong>de</strong> dos<br />

escóis pensantes do século XIX brasileiro. Bastante <strong>de</strong>ficiente do ponto <strong>de</strong> vista didático<br />

e científico foi, não obstante o ponto <strong>de</strong> encontro <strong>de</strong> quantos se interessavam pelas coisas<br />

do espírito e da vida pública, vinculando-os numa solidarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> grupo, fornecendo-lhes<br />

elementos para elaborar a sua visão do país, dos homens e do pensamento. Por<br />

outro lado, as chamadas “repúblicas” (pensões <strong>de</strong> estudantes <strong>de</strong> Direito) foram outro<br />

fermentário <strong>de</strong> idéias e discussões, estruturadas pelo princípio da origem comum (taubateanos,<br />

mineiros, fluminenses) ou do interesse comum (literatura, estudo). Das “repúblicas”<br />

a sociabilida<strong>de</strong> literária se expandia pelos grêmios, inaugurados pela Filomática,<br />

que data <strong>de</strong> 1850. Algumas <strong>de</strong>ssas associações tiveram o seu periódico, <strong>de</strong>stacando-se a<br />

famosa Revista Mensal do Ensaio Filosófico Paulistano. Algo semelhante ocorria no<br />

Recife.<br />

Além da preleção acadêmica, do livro e da apostila escolar, coube às associações<br />

político-culturais <strong>de</strong>sempenhar função cultural, <strong>de</strong>batendo e divulgando informações e<br />

idéias hauridas nos poucos livros <strong>de</strong> interesse real para o tempo. É o momento em que<br />

viceja a maçonaria, não apenas multiplicando lojas propriamente ditas, a partir <strong>de</strong> 1800,<br />

como inspirando a formação <strong>de</strong> grupos interessados na difusão do saber e no culto da<br />

liberda<strong>de</strong>. “Nesse tempo — informa Antônio Cândido — tais associações <strong>de</strong>sempenharam<br />

não apenas funções hoje atribuídas aos agrupamentos partidários, mas algumas das<br />

que se atribuem ao jornalismo, às socieda<strong>de</strong>s profissionais, à Universida<strong>de</strong>: congregaram<br />

e poliram os patriotas, serviram <strong>de</strong> público às produções intelectuais, contribuíram<br />

para laicizar as ativida<strong>de</strong>s do espírito, formularam os problemas do País, tentando analisá-los<br />

à luz das referências teóricas da Ilustração. Foi um toque <strong>de</strong> reunir para os homens<br />

interessados na cultura e na política, corroborando o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> Hipólito da<br />

Costa num dos seus melhores ensaios, on<strong>de</strong> analisa a necessida<strong>de</strong> e função das ‘socieda<strong>de</strong>s<br />

particulares’: elas correspon<strong>de</strong>m a uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> organização social, —<br />

pois a marcha da civilização está ligada à diferenciação da socieda<strong>de</strong> — e condicionam<br />

o próprio funcionamento do Estado, ao se interporem entre ele e os indivíduos cujas<br />

ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>finem e coor<strong>de</strong>nam.” E tudo fluía — acadêmicos e maçons — numa atmosfera<br />

romântica.<br />

Problema prévio apaixonante, e por isso mesmo controvertido, é o da <strong>de</strong>finição<br />

do Romantismo. Já na sua origem, em 1801, afirmava Sébastien Mercier que “o Ro-<br />

mantismo não se <strong>de</strong>fine: sente-se”. Para alguns, o Romantismo é uma constante espiritual<br />

do homem, contraposta ao Classicismo: é a tendência a acentuar a primazia do sentimento<br />

sobre o pensamento, da intuição sobre o conceito, do dinâmico sobre o estático,<br />

do orgânico sobre o mecânico, do alusivo sobre o presente, do expressivo sobre o plástico.<br />

Assim, romântico seria o dionisíaco enquanto que o clássico seria o apolíneo, e<br />

25


acompanha a humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua gênese. A esta concepção se opõe a teoria historicista,<br />

que afirma ser o Romantismo uma forma da vida humana e, por isso, constitui<br />

uma etapa da História, isto é, um dos modos <strong>de</strong> ser do homem num dado instante <strong>de</strong> sua<br />

evolução.<br />

Portanto, se por um lado temos o Romantismo entendido como uma forma literária,<br />

como uma “escola” oposta à clássica, ou como um “estilo” que preexiste à época<br />

romântica, que não morre com ela, pois se po<strong>de</strong> ser romântico em qualquer tempo, ou<br />

seja, o Romantismo é um princípio ou tipo supra-histórico do ser humano; por outro<br />

lado, temos o Romantismo <strong>de</strong>finido não só, nem primariamente, como um fenômeno<br />

literário, pois fora <strong>de</strong> sua época estrita só existe <strong>de</strong> um modo analógico e parcial, ou<br />

seja, antes e <strong>de</strong>pois sem dúvida se encontram “traços” que constituirão ou constituíram a<br />

forma <strong>de</strong> vida, ou estilo vital, que se chama Romantismo e que não ocorre antes <strong>de</strong> 1800<br />

nem <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1850. Assim, a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>terminar com um único caráter<br />

ou com um grupo <strong>de</strong> caracteres estéticos ou vitais a essência do Romantismo, como se<br />

ele fosse uma entida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>al, planando acima da História, levou os estudiosos do problema<br />

a se orientarem para aquelas reconstruções que partem do pressuposto da historicida<strong>de</strong><br />

do movimento romântico e que, daí, se esforçam para individualizá-lo no seu<br />

<strong>de</strong>vir.<br />

Com efeito, admite Roger Picard, ainda que com algumas restrições, que o Romantismo<br />

“foi uma época histórica”, daí explicar-se sua integração com toda a vida <strong>de</strong><br />

seu tempo, especialmente com o movimento das idéias, das reivindicações e das lutas<br />

sociais. Quer isto dizer que mais que um momento da <strong>Filosofia</strong> ou da Arte, foi o Romantismo<br />

um momento da cultura européia, que vai precisamente dos fins do século<br />

XVIII até a meta<strong>de</strong> do século XIX, e que explica os seus motivos mais característicos na<br />

sua reação ao Iluminismo, que o prece<strong>de</strong>. Ao império da razão e das suas regras opõe a<br />

exaltação da genialida<strong>de</strong> e espontaneida<strong>de</strong> do espírito nos seus aspectos a-racionais,<br />

intuitivos, sentimentais, fi<strong>de</strong>ístas. E à <strong>Filosofia</strong> coube interpretar esse momento espiritual<br />

nos gran<strong>de</strong>s sistemas <strong>de</strong> Fichte, Schelling e Hegel, nos quais é feita a tentativa grandiosa<br />

<strong>de</strong> mostrar a fecundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um princípio espiritual (respectivamente, Eu, Absoluto<br />

e Idéia), no qual se integra numa unida<strong>de</strong> todo o sistema do universo. I<strong>de</strong>ntificando<br />

os contrários, fundindo todos os aspectos da realida<strong>de</strong> e da cultura num princípio único,<br />

e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo a tese da igualda<strong>de</strong> essencial da <strong>Filosofia</strong>, da Ciência, da Arte e da Religião,<br />

encontrou o Romantismo seu filósofo máximo em Schelling, que lhe imprimiu o<br />

tom peculiar <strong>de</strong> sua forma mentis.<br />

A partir <strong>de</strong> então, o homem passou a ser encarado em sua vida total. Mais que o<br />

entendimento e a vonta<strong>de</strong> se impuseram o sentimento e a fantasia. Com isso, o Romantismo<br />

instalou sua pátria, predominantemente, na região artística, <strong>de</strong> maneira especial na<br />

região da poesia. Daí ter se encaminhado para uma direção irracional, em busca <strong>de</strong> um<br />

“viver-com-tudo” que, ao mesmo tempo, aparece também como intuição intelectual que<br />

repele todo conceito <strong>de</strong>finitivamente perfilado e acompanha a vida em seu <strong>de</strong>vir que<br />

segue para o Infinito e <strong>de</strong>sfaz, reiteradamente, toda forma. Excluindo e incluindo o irracional<br />

e o racional, isto é, espontaneida<strong>de</strong>, a novida<strong>de</strong> imprevisível e a força coor<strong>de</strong>nadora<br />

e unificadora que ten<strong>de</strong> a fazer <strong>de</strong> um caos um cosmos, o Romantismo <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser<br />

um fato principalmente literário — e filosófico só por acessão — para se transformar<br />

num fato principalmente filosófico, on<strong>de</strong> não só a Literatura, mas também a Ciência, a<br />

Religião, a História se encontram conjugadas por um mesmo esforço para conquistar<br />

uma visão total da vida.<br />

Processo, <strong>de</strong>vir espiritual que emerge dialeticamente do impulso originário do<br />

Sturm und Drang, através do limite e da meditação neoclássica, encontrou o Romantismo<br />

sua melhor caracterização neste passo <strong>de</strong> Oskar Walzel: “Solidão e magia <strong>de</strong> bos-<br />

26


que, o sussurro <strong>de</strong> riacho que vai para um moinho; o silêncio noturno da vila alemã,<br />

vozes <strong>de</strong> sentinelas à noite e murmúrio <strong>de</strong> fontes; um palácio em ruínas com um jardim<br />

abandonado, no qual estátuas <strong>de</strong> mármore se <strong>de</strong>sfazem lentamente e caem em pedaços;<br />

as ruínas <strong>de</strong> um castelo <strong>de</strong>struído: tudo isso que <strong>de</strong>sperta o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> evitar a monotonia<br />

<strong>de</strong> todos os dias — é romântico.” Acentuando a unida<strong>de</strong> das forças espirituais e vendo a<br />

sua fonte comum num obscuro e vital sentimento que, aos poucos, se clarifica à luz da<br />

consciência, o Romantismo encontrou em Albert Béguin o estudioso capaz <strong>de</strong> acordar<br />

sua alma.<br />

Num famoso estudo sobre o Romantismo alemão e a poesia francesa, Albert Béguin<br />

procura traçar o, por assim dizer, périplo da ambição da poesia romântica, que era<br />

chegar, por meio do ato da criação, a uma contemplação sem objeto, a uma pura presença<br />

inefável para on<strong>de</strong> se orienta o místico. Daí o Romantismo, confiando-se às imagens,<br />

procura encontrar a fecundida<strong>de</strong> da imaginação mística, e alguma coisa mais que a fecundida<strong>de</strong>:<br />

a verda<strong>de</strong> do conhecimento místico e sua saudável influência. As imagens<br />

fazem bem à alma, já se havia dito nos primórdios do Romantismo; a poesia é a realida<strong>de</strong><br />

absoluta, se acrescentará <strong>de</strong>pois. Ao irromper em seu mistério, os poetas buscavam a<br />

total harmonia com a natureza, impulsionados com intensida<strong>de</strong> pelas representações do<br />

inconsciente. Para isso aniquilaram as aparências temporais, apreen<strong>de</strong>ram a existência<br />

imediata como uma vida para âmbitos noturnos e oníricos, aplicaram novos significados<br />

à revelação das sensações, e assim a poesia se converteu numa forma <strong>de</strong> conhecimento<br />

“mágico” que relacionava estreitamente o circundante com a vida obscura do poeta.<br />

Desta maneira, Jean Paul, Novalis, Tieck, Hoffmann, Höl<strong>de</strong>rlin e muitos outros na Alemanha<br />

do século XIX, encaminharam sua inspiração por uma busca do Ser só comparável<br />

à empreendida pelo místico. Haviam <strong>de</strong>scoberto que uma mesma lei impera no<br />

mundo exterior e no interior da consciência, e ela lhes ofereceu a segurança <strong>de</strong> atingir<br />

essa prevista comunicação que os fazia dissolver-se no universo. A concepção “analógica”<br />

entre universo e alma se fez a tal grau consciente que, em geral, precedia à aventura<br />

lírica. E isto ensejou uma impetuosa corrente universal que confiava sua inspiração ao<br />

sonho e à noite e que ajudou a criar o conceito mo<strong>de</strong>rno da arte. Nesse sentido, a poesia<br />

passou a ser a interpretação dos fenômenos e dos mistérios do universo, porque é uma<br />

série <strong>de</strong> gestos mágicos realizados pelo poeta que não conhece claramente sua significação,<br />

mas que acredita firmemente que esses ritos são os elementos <strong>de</strong> uma magia soberana.<br />

E precisamente nessa humanização do divino, nesse pressentimento do Infinito nas<br />

intuições — como queria Uhland — está a essência do romântico.<br />

Era o Romantismo a vitória do indivíduo sobre a disciplina moral e intelectual<br />

do Classicismo, que transformara a cultura humana, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVI, num jogo <strong>de</strong><br />

princípios invariáveis e regras inflexíveis <strong>de</strong>ntro dos quais o espírito se movia com dificulda<strong>de</strong>,<br />

e quase sem autonomia. Uma vitória, porém, imersa num halo mórbido, pois as<br />

linhas nítidas do Classicismo são substituídas pelos entretons românticos; uma in<strong>de</strong>cisa<br />

religiosida<strong>de</strong>, a atração pelos aspectos dolentes da natureza, pelos crepúsculos silenciosos<br />

e pelas ruínas ver<strong>de</strong>jantes, e tranqüilas, uma vaga pieda<strong>de</strong> por todas as matérias da<br />

Terra e, ao mesmo tempo, um <strong>de</strong>scontentamento permanente <strong>de</strong> tudo quanto existe, assim<br />

como uma constante exaltação pelo <strong>de</strong>sconhecido e pelos gran<strong>de</strong>s sacrifícios e heroísmos.<br />

Dos nevoentos fior<strong>de</strong>s nórdicos emerge a enigmática máscara <strong>de</strong> Odin: é o mal<br />

do século...<br />

E o Brasil foi colhido em cheio pelo Romantismo, fazendo do garoento planalto<br />

paulista seu reduto. Na capital <strong>de</strong> São Paulo os acadêmicos <strong>de</strong> Direito se reúnem numa<br />

associação singular, <strong>de</strong>dicada aos problemas do espírito. Essa socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> estudantes<br />

era a já mencionada “Ensaio Filosófico”, que mantinha a Revista Mensal. Álvares <strong>de</strong><br />

Azevedo, ao proferir, em 1850, o discurso <strong>de</strong> instalação, nos informa do interesse filo-<br />

27


sófico dos nossos românticos. A época era dominada pelo ecletismo <strong>de</strong> Cousin, mas o<br />

espiritualismo acomodado do pensador francês não satisfazia a todos os moços. E <strong>de</strong>ntre<br />

estes está Álvares <strong>de</strong> Azevedo, que preferia “embeber-se no transcen<strong>de</strong>ntalismo alemão<br />

— Kant, Fichte, no i<strong>de</strong>alismo mais puro e vaporoso, reduzindo o panteísmo <strong>de</strong> Espinosa<br />

e a visão em Deus <strong>de</strong> Malebranche ao egotismo <strong>de</strong> Fichte e Hegel”, proclamando serem<br />

“a <strong>Filosofia</strong> e a Poesia dos gran<strong>de</strong>s caminhos das Nações, as gran<strong>de</strong>s bossas on<strong>de</strong> se lê o<br />

progresso ao crânio popular”. Sustentava Álvares <strong>de</strong> Azevedo a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

“filosofia brasileira do século XIX”, como “síntese <strong>de</strong> um povo, como a querem Pedro<br />

Leroux e Gioberti”, e “não uma ciência fragmentária e parasita do passado, pálida cópia<br />

do que foi, como a enten<strong>de</strong>u o ecletismo <strong>de</strong> Cousin”. Como se vê, Álvares <strong>de</strong> Azevedo<br />

estava impregnado do “mal romântico”, pois é característico do pensamento do Romantismo<br />

a tendência à i<strong>de</strong>ntificação dos contrários à fusão <strong>de</strong> todos os aspectos da realida<strong>de</strong><br />

e da cultura num princípio único, assim como a tese da igualda<strong>de</strong> essencial da <strong>Filosofia</strong>,<br />

da Ciência, da Arte e da Religião.<br />

Também à parábola romântica pertence o movimento “krausista” que irrompeu<br />

na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo. Como se sabe, a filosofia <strong>de</strong> Krause — típico<br />

filósofo romântico — que não exerceu gran<strong>de</strong> influência no pensamento filosófico em<br />

geral, conseguiu, no entanto, agrupar um número bastante consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> discípulos<br />

que expuseram e propagaram suas idéias, particularmente no domínio da <strong>Filosofia</strong> do<br />

Direito. Assim, o gran<strong>de</strong> sucesso do krausismo ocorreu na Península Ibérica e nas suas<br />

antigas colônias. Tanto na Espanha como em Portugal constituiu o krausismo, mais que<br />

uma corrente filosófica propriamente dita, um movimento <strong>de</strong> renovação espiritual que<br />

tendia a renovar as energias nacionais em todas as esferas, particularmente na educação<br />

e na política. Isto é, o krausismo, na Ibéria e na Ibero-América mais que um sistema<br />

filosófico, foi uma mentalida<strong>de</strong> cultural, tentativa heróica <strong>de</strong> incorporação das Espanhas<br />

ao pensamento europeu mo<strong>de</strong>rno.<br />

Os historiadores da <strong>Filosofia</strong> inserem a doutrina <strong>de</strong> Krause <strong>de</strong>ntro do ciclo <strong>de</strong><br />

sistemas que reivindicam o direito exclusivo à herança <strong>de</strong> Kant. Como Fichte, Schelling,<br />

Hegel, Reinhold e tantos outros, Krause clama para si o título <strong>de</strong> único escoliasta<br />

verda<strong>de</strong>iro do mestre <strong>de</strong> Königsberg e, como tal, se consi<strong>de</strong>ra capacitado melhor que<br />

ninguém para expor e elaborar o criticismo kantiano. Mas, em verda<strong>de</strong>, à influência <strong>de</strong><br />

Kant acrescentou outras. A analítica <strong>de</strong> Kant, as aspirações reformadoras e humanitárias<br />

<strong>de</strong> Fichte, o panteísmo <strong>de</strong> Schelling, e o sistema <strong>de</strong> noções universais — categorias —<br />

<strong>de</strong> Hegel, tudo isto encontra guarida, com maiores ou menores modificações, na doutrina<br />

<strong>de</strong> Krause <strong>de</strong>nominada racionalismo harmônico, pela síncrese das doutrinas aglutinadas,<br />

ou panenteísmo, porque seu princípio fundamental é Deus, ou a “Essência”, já<br />

que tudo é uno e o conjunto <strong>de</strong> seres é um só ser.<br />

Com efeito, o sistema <strong>de</strong> Krause se <strong>de</strong>signa com o nome <strong>de</strong> “panenteísmo” no<br />

sentido <strong>de</strong> que faz do mundo o conjunto finito que se <strong>de</strong>senvolve no seio da infinida<strong>de</strong><br />

divina. Contudo, Deus se acha, como ser pessoal, separado do mundo; é propriamente<br />

seu fundamento e sua superação. Em Deus se realiza a unida<strong>de</strong> dos contrários que no<br />

mundo se manifesta e por isso Deus é, ao mesmo tempo, indiferença dos contrários e a<br />

origem <strong>de</strong> toda oposição. O mundo se cin<strong>de</strong> em dois modos <strong>de</strong> ser fundamentais: a natureza<br />

e o espírito, unidos na humanida<strong>de</strong>. Esta se compõe <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> seres que se<br />

influenciam reciprocamente e que se vinculam a Deus por sua constante tendência para<br />

a unida<strong>de</strong> suprema. Em Krause a Epistemologia e a Metafísica se vinculam tão estreitamente<br />

que é impossível separá-las, daí para ele o conhecimento partir <strong>de</strong> uma simples<br />

unida<strong>de</strong>, atravessar uma etapa <strong>de</strong> diferenciação e concluir com a harmonização dos contrários<br />

numa unida<strong>de</strong> superior. É precisamente sua síntese harmônica do i<strong>de</strong>alismo alemão,<br />

impregnada <strong>de</strong> um sentido liberal e <strong>de</strong>mocrático, e aureolada com o brilho <strong>de</strong> seu<br />

28


omanticismo, que o fará conquistar a<strong>de</strong>ptos e formar escola no mundo ibérico.<br />

Assim, na altura <strong>de</strong> 1844, foi Krause o mentor filosófico das aulas <strong>de</strong> Coimbra,<br />

em virtu<strong>de</strong> da atuação <strong>de</strong> seu discípulo Ferrer. E, se nos lembrarmos que o compêndio<br />

<strong>de</strong> Ferrer foi por muito tempo o livro <strong>de</strong> cabeceira <strong>de</strong> nossos estudiosos <strong>de</strong> Direito Natural;<br />

se pensarmos na influência po<strong>de</strong>rosa do <strong>Curso</strong>, <strong>de</strong> Ahrens, o discípulo amado <strong>de</strong><br />

Krause, po<strong>de</strong>mos avaliar a influência <strong>de</strong>cisiva que o krausismo exerceu em nosso ambiente<br />

político e jurídico, mo<strong>de</strong>lando a mentalida<strong>de</strong> dos liberais do Império. Na Faculda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo essa ascendência cresce <strong>de</strong> ponto, especialmente quando, num<br />

mesmo sentido, se conjugam os ensinamentos <strong>de</strong> Galvão Bueno no “curso anexo”, autor<br />

<strong>de</strong> umas Noções <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, publicadas em 1877, sob inspiração <strong>de</strong> Tiberghien, com<br />

as aulas do Prof. João Teodoro Xavier, cuja obra, Teoria Transcen<strong>de</strong>ntal do Direito,<br />

impressa em 1876, compendia os princípios fundamentais do “racionalismo harmônico”<br />

<strong>de</strong> Krause, on<strong>de</strong> reconhece que “até hoje o compêndio <strong>de</strong> Ferrer tem nesta Faculda<strong>de</strong><br />

[<strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo] fornecido os temas, e a or<strong>de</strong>m das preleções”. Mas, quer ir<br />

mais longe, e, então, propõe “ampliar as teorias harmônicas <strong>de</strong> Ahrens e <strong>de</strong> Krause”, já<br />

que seu pensamento se pren<strong>de</strong> a esses pensadores “pela afinida<strong>de</strong>”. De resto, para o<br />

mestre paulista Krause é o “sucessor <strong>de</strong> Kant, Fichte, Schelling e Hegel [que] completou,<br />

<strong>de</strong>senvolveu e coroou as doutrinas <strong>de</strong>stes últimos filósofos”.<br />

Portanto, é com João Teodoro que o krausismo apresenta no Brasil raros lampejos<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento autônomo, ao passo que, em outros autores, se transforma num<br />

ecletismo impreciso, como o que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta profissão <strong>de</strong> fé <strong>de</strong> Sá e Benevi<strong>de</strong>s:<br />

“Eu professo os princípios da escola doutrinária <strong>de</strong> Krause e dos Católicos”, isto é, aceitava<br />

o pietismo do pensador alemão, absolutamente <strong>de</strong>ntro do pensamento protestante,<br />

pelas afinida<strong>de</strong>s que mantinha, se não com a dogmática, pelo menos com a concepção<br />

<strong>de</strong> vida do catolicismo. Aliás, a figura <strong>de</strong> José Maria Correia <strong>de</strong> Sá e Benevi<strong>de</strong>s é curiosíssima.<br />

No prefácio aos seus Elementos <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> do Direito Privado (1884) escreve:<br />

“A maior parte dos compêndios que têm gran<strong>de</strong> circulação acha-se imbuída dos<br />

princípios racionalistas absolutos, <strong>de</strong> teorias revolucionárias e protestantes. Não contesto<br />

completamente o mérito <strong>de</strong> tais escritores, pois que reconheço que, a par <strong>de</strong> seu racionalismo<br />

absoluto e liberalismo revolucionário, há muitas doutrinas verda<strong>de</strong>iras. Seu<br />

estudo é, porém, perigoso à mocida<strong>de</strong>, porque nessas obras há o erro e a verda<strong>de</strong>, com<br />

engenhosa mistura.” Daí sua tendência eclética, separando o “erro” da “verda<strong>de</strong>”, aceitando,<br />

católico militante, a verda<strong>de</strong> protestante do krausismo e rejeitando seu erro. Todavia,<br />

repeliu em bloco o positivismo e o evolucionismo, consoante informa Spencer<br />

Vampré: “Combater o positivismo era uma das mais tenazes preocupações <strong>de</strong> sua inteligência<br />

e, em todas as aulas, a propósito <strong>de</strong> nada, lá surgiam remoques a Augusto Comte,<br />

Littré, Laffitte, e também a Herbert Spencer, a Stuart Mill e a outros filósofos da época”,<br />

o que, <strong>de</strong> acordo com Júlio Ribeiro, malbaratava “um tempo que po<strong>de</strong>ria muito<br />

melhor aproveitar”.<br />

No pensamento brasileiro da primeira meta<strong>de</strong> do século XIX, contudo, sobressai<br />

a figura <strong>de</strong> Diogo Antônio Feijó (1784-1843), que, por outro lado, no <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> nossa<br />

formação romântica, marcou o Regente um sulco profundo. Vivendo com os padres do<br />

Patrocínio, espécie <strong>de</strong> Port-Royal em Itu, no interior da então Província <strong>de</strong> São Paulo,<br />

para on<strong>de</strong> fôra numa ânsia sincera <strong>de</strong> pureza e perfeição moral em pleno <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> uma crise mística culminada na prática <strong>de</strong> rigorosa ascese, emerge <strong>de</strong> seu<br />

mundo interior pelos acontecimentos políticos da época. O padre, como diz Otávio Tarquínio<br />

<strong>de</strong> Sousa, que buscava a perfeição espiritual nos exercícios do cenóbio do Patrocínio,<br />

foi tentado e caiu em tentação. Não na da carne, não na da cobiça dos bens materiais:<br />

na tentação da política. Naturalmente, o momento histórico, com os sucessos que<br />

iam em breve <strong>de</strong>senrolar-se, não propiciava surtos <strong>de</strong> natureza mística; a época seria<br />

29


essencialmente política, obrigando os homens mais cultos a se ocuparem intensamente<br />

da cida<strong>de</strong>, da coisa pública, abafando pendores contemplativos ou as solicitações da<br />

vida interior. Com efeito, foi a geração <strong>de</strong> Feijó que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> assistir à radicação da<br />

família real portuguesa no Brasil e à elevação do País à categoria <strong>de</strong> Reino, viu-se chamada<br />

a realizar a in<strong>de</strong>pendência política da nacionalida<strong>de</strong> e a dar-lhe os primeiros alicerces<br />

<strong>de</strong>mocráticos. Mesmo assim, em <strong>Filosofia</strong> Feijó avançava até Kant, acompanhando<br />

as conquistas da Sociologia e do Direito Público.<br />

Uma leitura atenta <strong>de</strong> seus Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, redigidos para aten<strong>de</strong>r às suas<br />

aulas ditadas em Itu, e a compreensão do momento histórico <strong>de</strong> sua fatura, nos convencerão<br />

da importância <strong>de</strong>sse aspecto quase inédito do Regente. Com efeito, na primeira<br />

meta<strong>de</strong> do século XIX dormia a Província ban<strong>de</strong>irante o sono modorrento <strong>de</strong> após gran<strong>de</strong>s<br />

esforços. São Paulo havia sofrido as <strong>de</strong>scobertas auríferas no fim do século XVII e<br />

no princípio do século XVIII. A população estava rarefeita e a Província mergulhada na<br />

ignorância. Uma vila se <strong>de</strong>stacava <strong>de</strong> todas, porém, famosa por suas escolas e pelo saber<br />

<strong>de</strong> seus mestres: Itu. Dentre esses professores sobressaía Feijó, regendo as ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong><br />

<strong>Filosofia</strong> e <strong>de</strong> Retórica. Francisco Nardy Filho, conhecido historiador ituano, é quem<br />

informa: “Notável era o <strong>de</strong>senvolvimento intelectual da socieda<strong>de</strong> ituana e seu amor<br />

pela instrução, pois em 1830 já existia em Itu um colégio, mantido pela Câmara, on<strong>de</strong><br />

era lecionado Latim, Francês, Matemática, <strong>Filosofia</strong> e Retórica.” Essa tradição ituana <strong>de</strong><br />

cultura explicaria o fato <strong>de</strong> Feijó, em 1818, ou seja, 14 anos apenas após a morte <strong>de</strong><br />

Kant, e quando ainda não era bem conhecido fora da Alemanha, transmitir aos seus alunos<br />

as linhas mestras do pensamento criticista. Não importa saber se o conhecimento da<br />

obra e da doutrina do filósofo tu<strong>de</strong>sco, por parte <strong>de</strong> Feijó, fosse direto ou indireto. Nem<br />

objetar que, tentando ele uma conciliação entre elementos <strong>de</strong> doutrina crítica e elementos<br />

da tradição vigente no Brasil em sua época, não fosse puro o seu kantismo. Dúvida<br />

não há que os elementos <strong>de</strong> criticismo acumulam-se, uns encobertos por uma terminologia<br />

imprecisa e obscura, outros nítidos e incontestáveis, todos porém significando que<br />

o Pe. Feijó, na pequena vila <strong>de</strong> Itu, sabia tomar contato com uma fonte viva do pensamento<br />

mo<strong>de</strong>rno, <strong>de</strong>le assimilando o que era possível assimilar dadas as circunstâncias<br />

pouco propícias do meio e do tempo. E isto porque o que importa, mais que a conformida<strong>de</strong><br />

formal dos textos, é o espírito novo que anima os escritos do padre Regente, homem<br />

da Igreja formado à luz <strong>de</strong> um pensamento dogmático e que, no entanto, prefere a<br />

<strong>Filosofia</strong> Crítica, “que <strong>de</strong>scobre a verda<strong>de</strong>ira origem dos nossos conhecimentos”.<br />

30


VI<br />

SOB A ÉGIDE DO ECLETISMO<br />

A corrente que dominará o pensamento brasileiro dos meados do século XIX é o<br />

Ecletismo, representado por Mont’Alverne, Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães, Ferreira França,<br />

Morais e Vale e Antônio Pedro <strong>de</strong> Figueiredo, inspirados em maior ou menor grau por<br />

Victor Cousin, que pretendia conciliar, num sistema pouco <strong>de</strong>finido, o que julgava verda<strong>de</strong>iro<br />

em todos os sistemas, consi<strong>de</strong>rados como manifestações parciais <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong><br />

única e mais ampla. Nesse sentido, é o Ecletismo uma reunião <strong>de</strong> teses conciliáveis<br />

tomadas <strong>de</strong> diferentes sistemas <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, e que são justapostas, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado,<br />

pura e simplesmente, as partes não conciliáveis <strong>de</strong>stes sistemas. Saisset, discípulo <strong>de</strong><br />

Cousin, afirmara na lição <strong>de</strong> abertura do curso <strong>de</strong> História da <strong>Filosofia</strong> na Sorbona, a 19<br />

<strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1857, “o Ecletismo criador — dos homens <strong>de</strong> gênio, dos Platões, dos Aristóteles,<br />

dos Leibniz — consiste em recolher todas as gran<strong>de</strong>s idéias suscitadas pelo progresso<br />

das ida<strong>de</strong>s, e em fundi-las no crisol <strong>de</strong> uma idéia nova”.<br />

O sucesso das idéias ecléticas entre nós explica-se, <strong>de</strong> acordo com Clóvis Bevilacqua,<br />

pelo fato <strong>de</strong> o Ecletismo ter sido a <strong>Filosofia</strong> que mais profundas simpatias <strong>de</strong>spertou<br />

na alma brasileira, <strong>de</strong>vido ao seu verbalismo, ao seu lirismo e à sua superficialida<strong>de</strong>,<br />

por sinal três virtu<strong>de</strong>s bem brasileiras. Por isso os textos ecléticos foram vertidos<br />

para a língua portuguesa falada no Brasil, o que é um fato insólito na história cultural<br />

<strong>de</strong>ste país, cujos escóis aristocratizantes se negam, por regra, a qualquer ativida<strong>de</strong> divulgatória.<br />

Por exemplo, os positivistas, que tinham prelos próprios, apenas verteram o<br />

Catecismo Positivista e jamais o Discurso sobre o Espírito Positivo. Victor Cousin teve<br />

mais sorte: em 1843 Antônio Pedro <strong>de</strong> Figueiredo traduzia, e publicava a suas expensas,<br />

o <strong>Curso</strong> <strong>de</strong> História da <strong>Filosofia</strong>, e em 1849, Morais e Vale traduzia a <strong>Filosofia</strong> Popular.<br />

Por outro lado, a Editora Garnier publicava, em 1885, o Tratado Elementar <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>,<br />

<strong>de</strong> Paul Janet, em dois tomos, e a <strong>Filosofia</strong> da Felicida<strong>de</strong>, do mesmo autor, sequaz<br />

do Ecletismo, além <strong>de</strong> Mont’Alverne, Geruzer e outros ecléticos. No prefácio do<br />

primeiro dos livros citados <strong>de</strong> Paul janet, informa o editor B. L. Garnier que as “mesas<br />

<strong>de</strong> exames gerais, em todo o Império” eram obrigadas a seguir o programa do “Imperial<br />

Colégio <strong>de</strong> Pedro Segundo”, totalmente inspirado em Victor Cousin “e a aceitarem as<br />

doutrinas <strong>de</strong>sses compêndios”, isto é, <strong>de</strong> Janet na parte geral e do Pe. F. A. Jaffre, na<br />

parte histórica. Portanto, o Ecletismo foi a <strong>Filosofia</strong> oficial no Brasil entre 1840 e 1880,<br />

numa tentativa <strong>de</strong> hegemonia filosófica única em toda a nossa história das idéias.<br />

Contudo, se em sentido geral eclética é toda reunião <strong>de</strong> elementos doutrinais alheios<br />

num conjunto, cabe distinguir entre a mera seleção <strong>de</strong> doutrinas que aten<strong>de</strong> apenas<br />

à sua possível conciliação e conseqüentes preferências subjetivas, e a seleção produzida<br />

por um princípio superior, que dá a cada um dos elementos conciliados um novo<br />

sentido. A primeira acepção é pejorativa, reunião que é sem nova elaboração, reservando-se<br />

para este tipo <strong>de</strong> conciliação sem método e sem crítica o termo Sincretismo, <strong>de</strong>finido<br />

por Franck — outro sequaz <strong>de</strong> Cousin — como “conciliação mais ou menos forçada<br />

<strong>de</strong> doutrinas totalmente diferentes”, pois a posição sincrética não é uma integração,<br />

mas um mero agregado ou justaposição, já a segunda acepção nada tem <strong>de</strong> pejorativo e<br />

traduz o fato <strong>de</strong> que toda nova filosofia, em última instância, é eclética, englobando em<br />

seu seio os aspectos <strong>de</strong> doutrinas alheias aparentemente incompatíveis com ela.<br />

Pertence ao Ecletismo autêntico o espiritualismo eclético <strong>de</strong> Victor Cousin, cuja<br />

característica é a adoção <strong>de</strong> um princípio que é, ao mesmo tempo, critério <strong>de</strong> verda<strong>de</strong><br />

31


para a discriminação das doutrinas anteriores, as quais não são negadas ou aceitas em<br />

bloco, mas selecionadas <strong>de</strong> acordo com o resultado <strong>de</strong>ssa discriminação. Daí o próprio<br />

Cousin repetidamente advertir: “não aconselho, certamente, esse cego sincretismo que<br />

per<strong>de</strong>u a escola <strong>de</strong> Alexandria e que procurava aproximar pela força os sistemas contrários;<br />

o que recomendo é um ecletismo ilustrado que, julgando com eqüida<strong>de</strong> e inclusive<br />

com benevolência todas as escolas, peça-lhes por empréstimo o que têm <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iro e<br />

elimine o qua têm <strong>de</strong> falso”.<br />

A filosofia <strong>de</strong> Cousin, que coincidiu com a situação política conciliadora <strong>de</strong> sua<br />

época, não obstante ter sido quase sempre combatida como superficial, esten<strong>de</strong>u-se rapidamente,<br />

sobretudo nas Penínsulas Ibérica e Itálica e em alguns países hispanoamericanos,<br />

notadamente em Cuba e no Brasil. No Império <strong>de</strong> Pedro II foi o Ecletismo<br />

recebido com aplausos gerais, graças à inércia política daquela socieda<strong>de</strong> escravocrata e<br />

semipatriarcal, on<strong>de</strong> a luta pelo po<strong>de</strong>r não passava <strong>de</strong> intrigas palacianas, on<strong>de</strong> os partidos<br />

não representavam nada <strong>de</strong> substancial, sendo manejados displicentemente por um<br />

monarca bocejante e on<strong>de</strong>, finalmente, por essa época, o Marquês <strong>de</strong> Paraná formava o<br />

mais heterogêneo e amorfo dos governos, que a História batizou precisamente com o<br />

predicado próprio da <strong>Filosofia</strong> eclética, como o Gabinete da Conciliação.<br />

E conciliador foi o Frei Francisco <strong>de</strong> Mont’Alverne (1784-1858), fra<strong>de</strong> capuchinho<br />

famoso por sua oratória mas <strong>de</strong> limitada importância filosófica <strong>de</strong>vido ao <strong>de</strong>scaso<br />

dos estudos especulativos em sua época. Sílvio Romero informa: “Então o ensino filosófico<br />

era um amálgama <strong>de</strong> Storkenau e Genuiense, esses nomes <strong>de</strong>sconhecidos na história<br />

do ensino público dos povos cultos... Uns restos estropiados <strong>de</strong> Locke e Condillac,<br />

reduzidos a figuras mínimas pelos discípulos e comentadores, e algumas laudas enganadoras,<br />

brilhantes pelo estilo e frágeis pela análise, <strong>de</strong> Laromiguière, tal o seu conteúdo.<br />

— Tudo isto <strong>de</strong>corado, não para perscrutar o enigma do homem e do universo: sim para<br />

limar a argúcia e secundar a loqüela. Depois, mais alguma vulgarização das obras <strong>de</strong><br />

Maine <strong>de</strong> Biran, que não teve contraditores por não ter quem o lesse, segundo diz Taine,<br />

e <strong>de</strong> Victor Cousin, que sacrificava o pensamento pelo amor da frase, como no-lo <strong>de</strong>clara<br />

Renan, trouxe a propensão e finalmente a queda completa para o ecletismo espiritualista<br />

francês. A esta fase pertencem Mont’Alverne e os seus continuadores: Eduardo<br />

França e Domingos <strong>de</strong> Magalhães. Tão pobre, tão insalubre foi o alimento que lhe forneceu<br />

a cultura <strong>de</strong> sua pátria, em seu tempo; tão ingratas as influências a que teve <strong>de</strong><br />

ce<strong>de</strong>r, que a crítica sente-se com impulsos <strong>de</strong> o absolver.”<br />

Sua <strong>de</strong>ficiente formação intelectual porém, não foi obstáculo para que resplan<strong>de</strong>cessem<br />

com brilho singular as qualida<strong>de</strong>s oratórias do Frei Francisco, tendo sido, moço<br />

ainda, nomeado pregador da Real Capela <strong>de</strong> D. joão VI e na velhice, já cego, D. Pedro<br />

II fez-lhe um apelo para que pregasse numa festa religiosa a que comparecia a imperial<br />

figura do Bragança que se sentia no íntimo um polígrafo e um humanista. Tudo colaborava<br />

para o sucesso dos sermões <strong>de</strong> Mont’Alverne, dotado <strong>de</strong> temperamento romântico<br />

e <strong>de</strong> figura física impressionante. Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães, seu discípulo amado, o<br />

<strong>de</strong>screve <strong>de</strong> alta estatura, <strong>de</strong> compleição musculosa, <strong>de</strong> rosto longo, <strong>de</strong>scarnado e pálido,<br />

enquadrado escultòricamente no negro capuz do cenobita; olhos gran<strong>de</strong>s e rasgados, aos<br />

quais assomava o entusiasmo na constante dilatação das pálpebras; voz forte, prolongada,<br />

flexível <strong>de</strong> timbre cavernoso e áspero; movimentos amplos, precisos, majestosos.<br />

Numa palavra: João Caetano, o mais famoso ator da ribalta imperial, era assíduo ouvinte<br />

<strong>de</strong> seus sermões, que os consi<strong>de</strong>rava como a melhor <strong>de</strong>monstração da arte cênica.<br />

Ainda hoje, numa capelinha construída por Anchieta, num promontório à margem do<br />

Saco <strong>de</strong> São Francisco, em Niterói, é mostrado com orgulho o púlpito — hoje lacrado<br />

— on<strong>de</strong> pregou Mont’Alverne.<br />

Sua docência — ensinou Retórica, <strong>Filosofia</strong> e Teologia em São Paulo e no Se-<br />

32


minário <strong>de</strong> São José, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, — da qual resultou o Compêndio <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong><br />

(publicado postumamente em 1859, mas sua redação data <strong>de</strong> 1833) era, claro está, o<br />

mo<strong>de</strong>lo perfeito da <strong>Filosofia</strong> teatralizada, expondo primeiro as doutrinas <strong>de</strong> Locke e<br />

Condillac, <strong>de</strong>pois os ecléticos franceses. O tom oratório <strong>de</strong> Victor Cousin o seduzia <strong>de</strong><br />

tal forma que não duvida em chamá-lo <strong>de</strong> — sublime. Para Mont’Alverne o eclético<br />

espiritualista francês era um <strong>de</strong>sses “gênios, nascidos para revelar os prodígios da razão<br />

humana”, um homem que se “levantou como um Deus, no meio do caos, em que se cruzavam<br />

e combatiam todos os elementos filosóficos”. E não titubeava em fazer seu autoelogio:<br />

“O País tem altamente <strong>de</strong>clarado que eu fui uma <strong>de</strong>ssas glórias <strong>de</strong> que ele ainda<br />

hoje se ufana.” Daí seu propósito <strong>de</strong> forcejar por aproveitar o que Cousin tinha feito, “e<br />

restaurar com ele o sistema filosófico”, já que para Mont’Alverne “o sistema sublime <strong>de</strong><br />

Mr. Cousin quase não é conhecido no Brasil”.<br />

Aten<strong>de</strong>ndo ao chamado da glória, o orador-fílósofo proferia orações como quem<br />

respira, e ao reunir suas Obras Oratórias, lamentava no prefácio a perda <strong>de</strong> alguns sermões,<br />

mais sensíveis a seus olhos que a dos famosos hexâmetros virgilianos. Antecipando-se<br />

a possíveis imperfeições nos seus escritos, escusava-se dizendo: “Quando,<br />

pois havia <strong>de</strong> exprimir uma idéia, empregava em sua exposição o termo que me parecia<br />

mais significativo ou mais sonoro, sem preocupar-me <strong>de</strong> sua precisão nem ainda <strong>de</strong> sua<br />

existência.” Isto explica seu entusiasmo pelas doutrinas <strong>de</strong> Condillac, mais literárias do<br />

que filosóficas, mais eloqüentes que profundas, esmaltadas <strong>de</strong> citações clássicas e que<br />

serviam a<strong>de</strong>quadamente à empolada eloqüência sacra <strong>de</strong> Mont’Alverne.<br />

Domingos José Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães (1811-1882), par do Império com o título<br />

<strong>de</strong> Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Araguaia, foi o discípulo predileto, o biógrafo <strong>de</strong>votado e o arauto<br />

do Ecletismo <strong>de</strong> Mont’Alverne, reproduzindo as lições, o estilo e o cabotinismo do mestre.<br />

Depois <strong>de</strong> passar pelos preparatórios no Seminário <strong>de</strong> São José, on<strong>de</strong> ouvia, basbaque,<br />

as <strong>de</strong>monstrações filósofico-oratórias <strong>de</strong> Mont’Alverne, e que era menos a ciência<br />

do que a facúndia do mestre que encantava os seus alunos, formou-se em Medicina na<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra. Em 1841 regeu a ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> no Colégio Pedro II,<br />

<strong>de</strong>ixando-a pouco <strong>de</strong>pois para entregar-se à carreira diplomática. Precisamente em Paris<br />

publicou sua obra principal — Fatos do Espirito Humano, 1858 — redigida em Nápoles<br />

entre 1847 e 1857, e que é um estudo psicológico da natureza humana, da origem e valor<br />

do conhecimento.<br />

Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães, que ouviu as lições <strong>de</strong> Jouffroy em Paris e leu Cousin,<br />

era <strong>de</strong> constituição doentia, talvez epiléptico. Fôra secretário do Duque <strong>de</strong> Caxias nas<br />

campanhas do Maranhão e canta em o<strong>de</strong>s pindáricas as vitórias do célebre general, o<br />

mesmo fazendo na revolta dos Farrapos, recebendo em paga a investidura parlamentar<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>putado pela Província do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Enquanto filósofo — como poeta,<br />

Gonçalves <strong>de</strong> Magalhães é tido como o introdutor do Romantismo no Brasil — con<strong>de</strong>nsa,<br />

com maior ou menor coerência, a escola escocesa, o ecletismo francês e o ontologismo<br />

italiano. Não é um eclético tão ortodoxo como Mont’Alverne, mas o é e mais<br />

profundamente ainda se jurasse por Cousin, porquanto sua filosofia é a filosofia da conciliação<br />

entre o inconciliável. Ou seja, achava que infalivelmente operar-se-ia uma fusão<br />

entre os mais opostos sistemas — sensualismo e espiritualismo — “os dois gran<strong>de</strong>s<br />

e únicos sistemas fundamentais <strong>de</strong> toda a <strong>Filosofia</strong>”, que “hão <strong>de</strong> acabar infalivelmente<br />

por uma fusão, por uma só doutrina”.<br />

Eduardo Ferreira França (1809-1857), médico baiano <strong>de</strong> renome, formado em<br />

Paris, é autor <strong>de</strong> dois tomos encimados pelo título Investigações <strong>de</strong> Psicologia (1854),<br />

on<strong>de</strong> <strong>de</strong>bate os principais problemas <strong>de</strong> Psicologia Experimental <strong>de</strong> seu tempo, passando<br />

em revista Reid, Dugald-Stewart, Gallupi, Maine <strong>de</strong> Biran, Jouffroy, Royer-Collard,<br />

A. Garnier e Tissot. Querendo combater a frenologia <strong>de</strong> Gall em nome do espiritualis-<br />

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mo, acaba por nos oferecer uma paródia substitutiva, suplantando as localizações cerebrais<br />

por localizações espirituais e com o mesmo luxo e frenesi do autor suíço. Reportando-se<br />

à “locabilida<strong>de</strong>” — faculda<strong>de</strong> intelectual autônoma, que nos dá apenas o conhecimento<br />

<strong>de</strong> nosso corpo como nosso, e que sem ela o veríamos como outro qualquer,<br />

estranho por completo a nós — Ferreira França informa que nisso pára, nisso esgota sua<br />

função a locabilida<strong>de</strong>, pois para o tenebroso mundo exterior surge no momento preciso<br />

outra faculda<strong>de</strong>: a receptivida<strong>de</strong>. Por isso carradas <strong>de</strong> razão teve Sílvio Romero quando<br />

diz que o espiritualista baiano “reduz o homem a uma alma recôndita, remota, a tal ponto<br />

distinta do corpo, que este correria o perigo <strong>de</strong> confundir-se como um outro corpo<br />

qualquer, se aquela não tivesse uma faculda<strong>de</strong> especial que o vem salvar <strong>de</strong> um completo<br />

esquecimento. É o requinte da espiritualida<strong>de</strong>! Ao ver <strong>de</strong> Antônio Gómez Robledo,<br />

<strong>de</strong>sses três ecléticos brasileiros, Ferreira França é, sem dúvida, a figura mais grave. Não<br />

tem a polimatia do Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Araguaia, não é um contertúlio mais daqueles saraus<br />

filosóficos da corte carioca, que faziam as <strong>de</strong>lícias <strong>de</strong> Mont’Alverne. Ao contrário <strong>de</strong>les,<br />

o médico baiano, reflexivo e discreto, foi um leal servidor da Ciência e possuiu, com<br />

vocação autêntica, o <strong>de</strong>sejo do saber principal. Os vícios <strong>de</strong> seu sistema não são imputáveis<br />

a ele, mas ao estado <strong>de</strong>sventurado dos estudos filosóficos em seu tempo e em seu<br />

meio.<br />

Manuel Maria <strong>de</strong> Morais e Vale (1824-1886), catedrático da Escola <strong>de</strong> Medicina<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro, entre 1852 e 1884, quando foi jubilado, aí <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a tese encimada<br />

pelo título Consi<strong>de</strong>rações sobre a Mendicida<strong>de</strong>, con<strong>de</strong>nando a mendicida<strong>de</strong> por ele <strong>de</strong>finida<br />

como “lepra contagiosa que inva<strong>de</strong> toda classe <strong>de</strong> indivíduo”. Em 1851 publicou,<br />

em dois pequenos tomos, seu Compêndio <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, sem nenhuma intenção <strong>de</strong> propor<br />

idéias novas ou modificar teorias correntes, mas com o propósito <strong>de</strong> facilitar aos alunos<br />

a preparação rápida do exame <strong>de</strong> admissão às escolas superiores, em consonância com o<br />

ecletismo oficial. Expositor monótono <strong>de</strong> Química Médica, seus alunos o chamavam<br />

“poço-sem-bomba”. Professor esforçado e assíduo às aulas, no dia em que faleceu sua<br />

velha e querida consorte dirigiu-se à Escola <strong>de</strong> Medicina. Chorando, entrou na sala <strong>de</strong><br />

lições, sentou-se, enxugou as lágrimas — e disse: “Minha Esposa acaba <strong>de</strong> falecer,<br />

meus filhos estão inconsoláveis, a dor é pungente, mas a matéria é vasta e o tempo urge.<br />

Trataremos hoje do enxofre...”, consoante informa Paulo Augusto.<br />

Mas, sem dúvida alguma, a mais significativa figura do Ecletismo brasileiro é o<br />

pernambucano Antônio Pedro <strong>de</strong> Figueiredo (1814-1859), apelidado Cousin Fusco pelo<br />

fato <strong>de</strong> ter traduzido Victor Cousin e ser mulato. Analisando seu pensamento político,<br />

afirma Amaro Quintas: “É, em verda<strong>de</strong>, Antônio Pedro <strong>de</strong> Figueiredo o espírito representativo<br />

<strong>de</strong> sua época. Se há no seu socialismo fulgurações que o projetam além das<br />

tendências meramente utópicas <strong>de</strong> seus contemporâneos, imprimindo-lhe um caráter<br />

quase científico, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r o Cousin Fusco do sentido romântico, às vezes<br />

mesmo lírico, dos homens da geração que fez a Revolução Praieira (1848). A objetivida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Antônio Pedro <strong>de</strong> Figueiredo em estudar os nossos problemas sociais não anulou<br />

por completo a sua i<strong>de</strong>ntificação com o socialismo romântico da primeira meta<strong>de</strong> do<br />

século XIX. Se na percepção dos fenômenos sociais ele se avantajou ao seu tempo, não<br />

fugiu entretanto, o mulato pernambucano, ao aspecto <strong>de</strong> lírica fraternida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> compreensão<br />

generosa da vida política que caracteriza toda a beleza e toda a magnitu<strong>de</strong> do espírito<br />

<strong>de</strong> ‘48’.”<br />

O ponto <strong>de</strong> partida do legado especulativo <strong>de</strong> Antônio Pedro <strong>de</strong> Figueiredo, conforme<br />

<strong>de</strong>monstrou Antônio Paim, parece consistir no reconhecimento <strong>de</strong> uma tensão<br />

universal, <strong>de</strong> uma polarida<strong>de</strong>, a partir da qual tudo se explicaria. Essa polarida<strong>de</strong> é sempre<br />

<strong>de</strong> dois termos que coexistem e têm por fundamento um otimismo profundo, uma<br />

confiança romântica e radical no progresso, que seria, em última instância, a conquista<br />

34


do equilíbrio entre as tensões. Esse otimismo se apóia na tese <strong>de</strong> Jouffroy, consoante a<br />

qual todos os atos da individualida<strong>de</strong> humana ten<strong>de</strong>m a um único fim: ao prazer que<br />

resulta da satisfação dos <strong>de</strong>sejos que a organização <strong>de</strong> cada indivíduo <strong>de</strong>termina em si<br />

próprio. Daí ter ele se lançado diretamente ao exame da ativida<strong>de</strong> humana.<br />

De acordo com o Cousin Fusco, o fato <strong>de</strong> que a ativida<strong>de</strong> humana tenha como<br />

objetivo a conquista do prazer (satisfação do <strong>de</strong>sejo) envolve certas condições: 1ª) que<br />

exista o objeto <strong>de</strong>sejado; 2ª) que esteja ao alcance do indivíduo que o <strong>de</strong>seja; 3ª) que<br />

seja empregado com vistas ao prazer. A primeira condição é o que a economia política<br />

<strong>de</strong>nomina riquezas; a segunda, distribuição; e a terceira, consumo. Se as riquezas existissem<br />

naturalmente, na proporção do <strong>de</strong>sejo, e se sempre estivessem ao seu alcance,<br />

toda a questão resumir-se-ia no consumo. Como ocorre a insuficiência das riquezas naturais,<br />

surge o fenômeno da produção. A primeira tensão com que se <strong>de</strong>fronta é a que se<br />

forma entre o trabalho e a matéria do trabalho. O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssa idéia leva-o a<br />

<strong>de</strong>frontar-se <strong>de</strong> pronto com a luta entre os homens. Mas, logo a seguir, Antônio Pedro<br />

<strong>de</strong> Figueiredo encaminha o seu pensamento para a <strong>de</strong>scoberta do equilíbrio, condição do<br />

progresso.<br />

Com efeito, para ele a formação da socieda<strong>de</strong> tem sua origem no fato <strong>de</strong> que não<br />

sendo o homem o único ente <strong>de</strong> sua espécie no globo, tenha <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo se <strong>de</strong>frontado<br />

com outros homens dotados <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s análogas. A apropriação das riquezas naturais<br />

gera entre eles um estado <strong>de</strong> guerra mas também a revelação <strong>de</strong> certa comunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> interesse — sua solidarieda<strong>de</strong>, como diz — que os levam ao estabelecimento <strong>de</strong> certos<br />

vínculos sociais. Primitivamente, esses laços não seriam mais que uma simples convenção<br />

para garantir a cada um certa liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção, distribuição e consumo,<br />

fixando limites ao <strong>de</strong>senvolvimento individual.<br />

As coor<strong>de</strong>nadas que <strong>de</strong>scobrira na individualida<strong>de</strong> humana serão transportadas<br />

para o que ele <strong>de</strong>nomina indivíduo social. A premissa <strong>de</strong> que a ativida<strong>de</strong> individual teria<br />

por fim a satisfação do <strong>de</strong>sejo que lhe é próprio e congênito, aplicada à socieda<strong>de</strong>, vai<br />

impor um certo rumo à meditação <strong>de</strong> Antônio Pedro <strong>de</strong> Figueiredo. Trata-se da missão<br />

<strong>de</strong> primeiro plano que atribui à Ciência Política. Daí afirmar que a política é ciência que<br />

pesquisa as leis da organização das socieda<strong>de</strong>s, é a indagação das condições da felicida<strong>de</strong><br />

dos povos: “Essa ciência que se liga mais diretamente do que outra qualquer ao movimento<br />

das paixões humanas, é o foco e o alvo comum <strong>de</strong> todas as outras, as quais se<br />

lhe <strong>de</strong>vem reunir para terem um sentido prático e progressivo.”<br />

Assim, da seqüência lógica da consciência filosófica universal — que lhe fôra<br />

revelada por Cousin — <strong>de</strong>duz Antônio Pedro <strong>de</strong> Figueiredo a idéia do progresso incessante<br />

da humanida<strong>de</strong>, já que enten<strong>de</strong> que “tudo se enca<strong>de</strong>ia na História e na Natureza”.<br />

Por isso aspira a compreen<strong>de</strong>r esse processo imenso que constitui a obra humana em seu<br />

conjunto. E, mais que isto, busca <strong>de</strong>scobrir a forma <strong>de</strong> organização que melhor convenha<br />

à socieda<strong>de</strong>, porquanto todas as criações do homem se encaminham para uma síntese<br />

global, “alvo superior dos esforços do homem e <strong>de</strong>sejo incessante que o agita e arrasta<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o berço até ao túmulo; [...] pensamento imutável que faz palpitar o seio da humanida<strong>de</strong>,<br />

e que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ela existe, a conduz através das idéias históricas e a faz caminhar<br />

com passos, ora vagarosos ora rápidos, a estrada gloriosa do progresso”. A peculiarida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ssa busca figueiredoana consiste em que não se esgota nas consi<strong>de</strong>rações<br />

<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m teórica, mas afronta diretamente os problemas concretos ante os quais se <strong>de</strong>frontava<br />

nosso País como um todo e Pernambuco <strong>de</strong> seu tempo particularmente.<br />

Na “Exposição <strong>de</strong> Princípios” <strong>de</strong> sua revista O Progresso — on<strong>de</strong> publicou a<br />

maioria <strong>de</strong> suas meditações — <strong>de</strong>clara Antônio Pedro <strong>de</strong> Figueiredo: “na esfera das idéias<br />

filosóficas, preten<strong>de</strong>mos nós arvorar a ban<strong>de</strong>ira do livre pensamento. Persuadidos<br />

<strong>de</strong> que para a razão do homem só há legítimos os dados da razão, não aceitaremos senão<br />

35


aquilo que nos apresentar o caráter da evidência, e não reconhecemos dogma algum que<br />

tenha o privilégio <strong>de</strong> dirigir os nossos atos, antes <strong>de</strong> nos ter convencido o espírito”. Assim,<br />

o tradutor <strong>de</strong> Cousin, o redator <strong>de</strong> O Progresso e o professor mulato do Ginásio<br />

Pernambucano exerceu a crítica das idéias com toda pertinência e, para sua época, <strong>de</strong><br />

modo surpreen<strong>de</strong>nte. E isto se explica pelo fato <strong>de</strong> se misturarem ao seu ecletismo as<br />

influências <strong>de</strong> Owen, Fourier e, sobretudo Saint-Simon, cujas doutrinas socialistas procurou<br />

adaptar às condições e necessida<strong>de</strong>s da região nor<strong>de</strong>stina do país. Por isso, se o<br />

pensamento <strong>de</strong> Antônio Pedro <strong>de</strong> Figueiredo reflete, por vezes, o verbalismo e o lirismo<br />

próprios dos ecléticos, em momento algum é superficial ou vazio, graças ao seu engajamento<br />

e participação nos anseios sociais <strong>de</strong> seu tempo. Em suma: chega a ser incrível<br />

a inexistência <strong>de</strong> um estudo exaustivo <strong>de</strong>ssa “mensagem”, figurando por acaso, às vezes,<br />

raríssimas vezes, nos panoramas expositivos da história das idéias no Brasil.<br />

36


VII<br />

ORTODOXIA E HETERODOXIA POSITIVISTAS<br />

Na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX, na Europa, e mais tar<strong>de</strong> no Brasil, o panorama<br />

filosófico se altera. A nova palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m é reivindicar o valor das ciências particulares<br />

contra as áridas construções metafísicas do i<strong>de</strong>alismo transcen<strong>de</strong>ntal que vai <strong>de</strong><br />

Fichte a Hegel e o valor da experiência contra o apriorismo próprio da <strong>Filosofia</strong> romântica.<br />

Esse novo e vasto movimento filosófico foi o Positivismo que <strong>de</strong>ve ser tido não<br />

apenas como uma direção especulativa mas, principalmente, como um movimento que<br />

enformou a cultura européia a partir da segunda meta<strong>de</strong> do século XIX. Nesse sentido, o<br />

Positivismo, mais que uma doutrina filosófica, foi um método, uma forma mentis, isto é,<br />

afirmava que qualquer que seja o objeto da investigação, era preciso consi<strong>de</strong>rar a experiência<br />

como o único critério da verda<strong>de</strong>. Assim, não obstante as diferenças que distinguem<br />

as várias formas positivas (a francesa, a italiana, a alemã, a inglesa etc.), suas<br />

constantes e pontos comuns po<strong>de</strong>m ser esquematizados assim: a) reformular e buscar a<br />

verda<strong>de</strong> nos fatos positivos; b) consi<strong>de</strong>rar a experiência como única fonte do saber e<br />

critério último <strong>de</strong> certeza; c) acordo e quase i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre conhecimento filosófico e<br />

conhecimento científico; d) atitu<strong>de</strong> agnóstica ou negativa diante dos problemas da Metafísica,<br />

que ultrapassavam os limites da experiência, pertencendo assim ao âmbito da<br />

fantasia; e) concepção mecanicista da natureza e, conseqüentemente, <strong>de</strong>terminismo dos<br />

fatos naturais e humanos; f) unida<strong>de</strong> do real, não obstante alguns positivistas afirmarem<br />

a diversida<strong>de</strong> da matéria com relação ao espírito; g) gênese, explicações e justificações<br />

dos valores espirituais segundo a evolução biológica e as leis da Psicologia.<br />

Assim, se a eclosão do Positivismo se <strong>de</strong>ve, em parte, a uma reação diante da <strong>Filosofia</strong><br />

romântica especulativa, por outro lado se mantém quase durante todo o século<br />

XIX, penetrando <strong>de</strong> modo profundo, inclusive nas direções <strong>de</strong> pensamento que, como o<br />

neokantismo, por exemplo, se propuseram combatê-lo. Desta forma, constituiu o Positivismo<br />

uma teoria do saber que se negava a admitir outra realida<strong>de</strong> que não fossem os<br />

fatos e a investigar outra coisa que não fossem as relações entre os fatos. Isto é, o Positivismo<br />

não só exigia <strong>de</strong> toda a ciência que partisse <strong>de</strong> fatos tomados no sentido <strong>de</strong> objetos<br />

perceptíveis, mas também que se limitasse a comprová-los e a enlaçá-los com leis.<br />

Determinado pelo <strong>de</strong>sprezo à Metafísica e por uma confiança sem limites na Ciência, o<br />

Positivismo adotou como critério único da verda<strong>de</strong> o método da Ciência enquanto consistisse<br />

em fatos, em fenômenos, em alguma coisa positiva, como se dizia então com<br />

uma palavra em voga. Combatia pois qualquer ousadia da razão apenas, qualquer pretensão<br />

<strong>de</strong> conhecimento a priori, qualquer tentativa <strong>de</strong> alcançar aquilo que escapava aos<br />

sentidos, que transbordava da experiência — as chamadas coisas em si. Espírito científico<br />

e antimetafísico caracterizavam, portanto, o Positivismo que, por isso, era mais<br />

uma tendência e uma metodologia, que um sistema doutrinal.<br />

Em nosso País o Positivismo obteve a mais ampla ressonância, figurando na<br />

própria ban<strong>de</strong>ira nacional um dos lemas <strong>de</strong> Augusto Comte. A razão do seu sucesso no<br />

Brasil talvez se <strong>de</strong>va também ao excesso <strong>de</strong> “espiritualismo” da tradição, que cansara os<br />

letrados, ou, como dizia Clóvis Bevilacqua, a ascendência dos i<strong>de</strong>ais positivistas se <strong>de</strong>va<br />

à circunstância <strong>de</strong>ssa doutrina haver prometido manter a <strong>Filosofia</strong> “num terra-a-terra<br />

bem próprio para interessar as inteligências pouco atreitas às contensões prolongadas e<br />

às abstrações elevadas”. Ou porque, acrescenta: “O Positivismo, resumindo o conjunto<br />

vastíssimo do saber humano em poucos livros, e impondo os preceitos científicos com o<br />

37


dogmatismo intransigente com que evangelizam as religiões abluindo máculas <strong>de</strong> heresias,<br />

favoneava a nossa indolência mental, que prefere os <strong>de</strong>vaneios da imaginação e as<br />

facilida<strong>de</strong>s do dogmatismo às asperezas do estudo e da análise.” Portanto, é possível<br />

compreen<strong>de</strong>r-se o sucesso do Positivismo entre nós e entre outros povos parentes do<br />

nosso, como o Chile e o México, justamente por esse repouso que permitem ao espírito<br />

as <strong>de</strong>finições irresistíveis e imperativas do sistema <strong>de</strong> Comte, porquanto, <strong>de</strong> todas as<br />

formas <strong>de</strong> evasão da realida<strong>de</strong>, o convívio das idéias e especulação pareceu-nos a mais<br />

fácil em nossa difícil adolescência política e social.<br />

No Brasil o Positivismo se bipartiu em duas alas quase sempre antagônicas: os<br />

“ortodoxos”, seguidores da Religião da Humanida<strong>de</strong> e crentes no Gran<strong>de</strong> Ser, representados<br />

pelos “apóstolos” Miguel Lemos e Teixeira Men<strong>de</strong>s, e os “dissi<strong>de</strong>ntes”, cujos vultos<br />

maiores foram Luís Pereira Barreto, Pedro Lessa, Alberto Sales e Vicente Licínio<br />

Cardoso.<br />

Luís Pereira Barreto (1840-1923) formara-se em Medicina em Bruxelas, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo<br />

tese perante a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina do Rio <strong>de</strong> Janeiro em 1865, à base <strong>de</strong> preceitos<br />

positivistas. Em seguida, publica os dois primeiros tomos <strong>de</strong> suas Três <strong>Filosofia</strong>s<br />

(“<strong>Filosofia</strong> Teológica”, 1874, e <strong>Filosofia</strong> Metafísica, 1876), jamais editando a terceira<br />

parte, que se intitularia “Positivismo”, <strong>de</strong>vido às lutas que manteve com os seguidores<br />

da Religião da Humanida<strong>de</strong>, cujos reflexos são patentes na circular <strong>de</strong> 1881, assinada<br />

por Miguel Lemos, on<strong>de</strong> a obra filosófica do médico fluminense é tida como uma “manta<br />

<strong>de</strong> retalhos, escandalosamente plagiados aqui e ali”.<br />

Mesmo seguindo <strong>de</strong> perto os fundadores do sistema positivista, glosando páginas<br />

<strong>de</strong> Comte e Littré, a obra <strong>de</strong> Pereira Barreto é o documento filosófico mais importante<br />

do Positivismo brasileiro, por seu sentido científico e pela originalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicar a lei<br />

dos três estados à realida<strong>de</strong> brasileira, afirmando que o Brasil havia ultrapassado o estado<br />

teológico, achava-se no metafísico e caminhava para o positivo. Esse seu interesse<br />

em aplicar os ensinamentos <strong>de</strong> Comte à realida<strong>de</strong> nacional culmina num longo artigo<br />

publicado no jornal O Estado <strong>de</strong> São Paulo, edição <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1901, e encimado<br />

pelo título “O século XX sob o ponto <strong>de</strong> vista brasileiro”, mas que sob hipótese alguma<br />

seria aceito pelos membros do Apostolado Positivista, pois combatia a Igreja católica e<br />

os jesuítas. De qualquer maneira, porém, a penetração das obras <strong>de</strong> Pereira Barreto era<br />

tão acentuada (no dizer <strong>de</strong> Edmundo Lins, elas influíram, com as <strong>de</strong>mais obras da nascente<br />

doutrina, sobre a mocida<strong>de</strong> que freqüentou a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo,<br />

<strong>de</strong> 1875 a 1890) que um dos lentes da famosa aca<strong>de</strong>mia, José Maria Correia <strong>de</strong> Sá e<br />

Benevi<strong>de</strong>s, católico e tomista irredutível, apesar do krausismo, como já foi dito, quase<br />

não dava uma aula sem objetar alguns aspectos da obra <strong>de</strong> Comte, embora fosse o Direito<br />

Romano a matéria sobre a qual <strong>de</strong>via discorrer.<br />

Pedro Lessa (1859-1921), catedrático <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> do Direito na Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong><br />

São Paulo e autor <strong>de</strong> É a História uma Ciência? (1906), Discursos e Conferências<br />

(1912) e Estudos <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> do Direito (2ª ed., 1916), fôra um positivista acentuadamente<br />

heterodoxo, porquanto, ao contrário dos comteanos, dizia que “quanto à Metafísica,<br />

que só o acanhado espírito <strong>de</strong> seita repele, o que a constitui é um conjunto <strong>de</strong> especulações<br />

sobre os seres e os fenômenos que não po<strong>de</strong>mos conhecer cientificamente”,<br />

colocando, ao lado da Metafísica, vista como conjunto <strong>de</strong> especulações sobre o incognoscível,<br />

a Religião, cujo objeto é a fé, e a Ciência, cujo objeto é a explicação. Consoante<br />

Miguel Reale, “spenceriano, pois, mas sem conceber a evolução culminando no<br />

triunfo individualista; admirador <strong>de</strong> Comte, mas sem admitir a redução do plano da Religião<br />

ao da Ciência; naturalista; sim, mas sem divinizar a natureza, ou sentir escrúpulos<br />

em usar a palavra ‘Deus’ substituída por natureza naturante ou quejandas, Pedro Lessa<br />

po<strong>de</strong>rá não ter sido um criador, capaz <strong>de</strong> abrir clareiras novas às especulações filosófi-<br />

38


cas ou filosófico-jurídicas, mas soube fundir em sua personalida<strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> convicções<br />

atuais, segundo uma linha dominante <strong>de</strong> equilíbrio e <strong>de</strong> coerência”.<br />

Alberto Sales (1857-1904), político, jurista, pedagogo e pensador, como os <strong>de</strong>mais<br />

positivistas heterodoxos não foi um filósofo criador, pois para ele a <strong>Filosofia</strong> era<br />

um “instrumento” <strong>de</strong> sua ação política, i<strong>de</strong>ólogo da República que fôra, servindo-se<br />

primeiro <strong>de</strong> Comte e, <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong> Spencer, para a sua militância. Por isso o pensador<br />

campineiro não se livrou do <strong>de</strong>stino da maioria dos intelectuais <strong>de</strong> sua geração, repartindo<br />

a vida entre a Política e as Letras, impondo-se, porém, a tarefa <strong>de</strong> estabelecer vinculações<br />

entre ambas as esferas, <strong>de</strong> modo que sua obra doutrinária fosse a fundamentação<br />

<strong>de</strong> sua ação política. Assim, com Alberto Sales aparece pela primeira vez, nitidamente<br />

formulada, a idéia <strong>de</strong> que a República, que exigia uma fundamental mudança no<br />

regime <strong>de</strong> vida do País, clamara <strong>de</strong> maneira imperiosa, para sua plena realização, o emprego<br />

<strong>de</strong> uma doutrina sobre o homem e a socieda<strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>sse servir <strong>de</strong> guia à política<br />

das novas gerações.<br />

Com efeito, os numerosos temas que foram objeto da meditação <strong>de</strong> Alberto Sales<br />

compõem rigorosa unida<strong>de</strong> que tem, como centro, o problema político. Por isso, sua<br />

filosofia não é senão uma reflexão acerca das instituições, e sua singularida<strong>de</strong>, entre<br />

nós, consistiu em prolongar o pensamento político aos <strong>de</strong>mais planos que <strong>de</strong>vem servirlhe<br />

<strong>de</strong> fundamentação teórica. E se daí surge, como <strong>de</strong> uma fonte propulsora, a obra <strong>de</strong><br />

Alberto Sales em toda sua amplitu<strong>de</strong>, daí também <strong>de</strong>rivam suas gran<strong>de</strong>s limitações. Por<br />

isso seria <strong>de</strong>scabido pedir-lhe nem originalida<strong>de</strong> nem profundida<strong>de</strong>. E, no entanto, sua<br />

empresa intelectual, situada no marco histórico <strong>de</strong> seu tempo, possui relevos que a fazem<br />

digna <strong>de</strong> apreço, já que não era fácil pensar com certa elevação num país <strong>de</strong>stituído<br />

<strong>de</strong> estímulos culturais. Seu tema constante foi a reforma política, que ele queria fundamentar<br />

em princípios incontrovertíveis com o fim <strong>de</strong> racionalizar uma vida social que se<br />

lhe aparecia, então, entregue a uma pura vitalida<strong>de</strong> inorgânica presidida pela improvisação.<br />

Em suma, foi Alberto Sales mais que um filósofo da política um político interessado<br />

pela <strong>Filosofia</strong>, sendo um dos primeiros a abordar, no Brasil, alguns dos problemas<br />

que sempre preocuparam aos filósofos, e conhecer suas idéias é conhecer uma das reações<br />

brasileiras ao pensamento europeu dos fins do século XIX.<br />

Vicente Licínio Cardoso (1889-1931), catedrático na Escola Politécnica do Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro e autor <strong>de</strong> curiosa <strong>Filosofia</strong> da Arte (1918), orientou os seus trabalhos no<br />

sentido positivo da Ciência, empreen<strong>de</strong>ndo, ao mesmo tempo, uma interpretação do<br />

Brasil e significativos estudos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m estética. Para ele, “os positivistas ortodoxos<br />

subordinados a Teixeira Men<strong>de</strong>s e a Miguel Lemos, quiseram sempre o impossível”. E<br />

acrescentava: “eu admiro esses homens que trocam as realida<strong>de</strong>s da vida pelas contemplações<br />

fervorosas das coisas impossíveis”. Todavia, sua estética está impregnada <strong>de</strong><br />

positivismo, pois, para Vicente Licínio Cardoso, três são as “noções capitais e fundamentais<br />

para o estabelecimento da <strong>Filosofia</strong> da Arte: a arte como função do meio, a variação<br />

do grau <strong>de</strong> i<strong>de</strong>al em arte e a arte como expressão das civilizações”. Para Cruz<br />

Costa, contudo, a parte mais sugestiva da obra cardosiana não é a filosófica ou a estética,<br />

mas aquela que reflete “a sua atenção <strong>de</strong> conhecer sua terra”.<br />

Se o Positivismo “heterodoxo” revestiu-se <strong>de</strong> algum interesse filosófico, o Positivismo<br />

“ortodoxo” nada teve que ver com a <strong>Filosofia</strong>, tendo sido antes <strong>de</strong> tudo, um<br />

fenômeno religioso (inclusive com liturgia e levítico), em menor escala um aci<strong>de</strong>nte<br />

político e, ainda em mais reduzidas proporções, uma ativida<strong>de</strong> especulativa. Tal espírito<br />

fundamentalmente numinoso, para não dizer sacralizante, <strong>de</strong>corria da personalida<strong>de</strong> do<br />

fundador da “seita”, Augusto Comte, conservadora ainda que não imobilista. Com efeito,<br />

coerente com sua originária inspiração política, Comte instituiu a Religião da Humanida<strong>de</strong>,<br />

isto é, para superar a crise da anarquia na qual a Revolução <strong>de</strong>ixara os espíritos,<br />

39


a moral positivista <strong>de</strong>via ser integrada e submetida a algo mais forte: a algo que “ligasse”<br />

os espíritos entre si <strong>de</strong> modo incindível. Somente uma religião po<strong>de</strong> operar este milagre,<br />

surgindo assim a religião positivista, que é a Religião da Humanida<strong>de</strong>, a única<br />

religião possível <strong>de</strong>pois do monoteísmo. É ela uma religião <strong>de</strong>monstrável e, fundandose<br />

sobre verda<strong>de</strong>s positivas, <strong>de</strong>ve ser aceita por todos. Sua fórmula principal é a seguinte:<br />

“O amor por princípio, a or<strong>de</strong>m por base, o progresso por fim.” Essa numinosida<strong>de</strong><br />

ensejará curiosos aspectos da ortodoxia positivista no Brasil, cômicos uns, dramáticos<br />

outros.<br />

Os fautores do Positivismo “ortodoxo” entre nós foram os apóstolos Miguel<br />

Lemos (1854-1916) e Teixeira Men<strong>de</strong>s (1855-1927) que fundaram, juntamente com<br />

Benjamim Constant, em 1876, a Socieda<strong>de</strong> Positivista e, em 1881, o Apostolado Positivista<br />

do Brasil. São figuras proeminentes da história do positivismo mundial e, mais<br />

ainda, expressões profundamente trágicas, até ao ridículo, <strong>de</strong> um dos momentos mais<br />

interessantes da consciência humana.<br />

Miguel Lemos, iniciado, numa solenida<strong>de</strong> impressionante, no Positivismo por<br />

Laffitte, vigário visível <strong>de</strong> Comte e papa da Religião da Humanida<strong>de</strong>, jurou sobre o túmulo<br />

do Mestre fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> eterna, e cumpriu o compromisso com ânimo admirável.<br />

Quando se retirou da vida ativa, entregou o facho da fé positivista a Teixeira Men<strong>de</strong>s<br />

que, aos quinze anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, recusou-se altivamente a receber o título <strong>de</strong> bacharel para<br />

não se ver obrigado a jurar fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao imperador e à religião oficial do Estado. Expulso<br />

juntamente com Miguel Lemos da Escola Politécnica do Rio <strong>de</strong> Janeiro, matricula-se<br />

na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina, não para exercer a profissão, mas com o único propósito<br />

<strong>de</strong> adquirir a instrução enciclopédica recomendada por Comte. Assim sendo, não se<br />

exagerou quando Teixeira Men<strong>de</strong>s foi apontado como o único indivíduo, no mundo, a<br />

realizar plenamente, em todos os atos <strong>de</strong> sua vida pública ou privada, o complicado e<br />

austero código ético-jurídico do Positivismo, encarnando perfeitamente o tipo i<strong>de</strong>al do<br />

homem sonhado por Comte. Até seu casamento foi celebrado segundo o ritual positivista,<br />

talvez o primeiro sacramento da Religião da Humanida<strong>de</strong> levado a efeito no continente<br />

americano. Em sua casa não havia escravos, e muito menos empregadas domésticas,<br />

e quando algum convidado trazia “babás”, estas estavam obrigadas a tomar assento<br />

à mesa do anfitrião. Nada <strong>de</strong> café, nem bebidas alcoólicas, nem cigarros.<br />

Consagrados <strong>de</strong> corpo e alma ao Apostolado, Miguel Lemos e Teixeira Men<strong>de</strong>s<br />

viveram com gran<strong>de</strong> pobreza, chegando o primeiro a exercer o ofício <strong>de</strong> relojoeiro, que<br />

havia aprendido com sua paciência habitual, recusando assim o ajutório dos seqüazes.<br />

Era bem conhecida no Rio <strong>de</strong> Janeiro a estranha figura <strong>de</strong> Miguel Lemos, o “papa ver<strong>de</strong>”<br />

(<strong>de</strong>vido à capinha ver<strong>de</strong> que usava nos ofícios litúrgicos da igreja positivista), que<br />

Luís Edmundo <strong>de</strong>screve sobraçando papéis, sempre viajando <strong>de</strong> bon<strong>de</strong>, entre operários e<br />

negrinhos com embrulhos. E ele mesmo, mais <strong>de</strong> uma vez, foi distribuir folhetos na Rua<br />

do Ouvidor, <strong>de</strong> protesto contra o privilégio funerário, contra a troca <strong>de</strong> café por trigo ou<br />

contra a vacinação obrigatória or<strong>de</strong>nada por Oswaldo Cruz. Nesse sentido, insurgindose<br />

contra o tratado comercial entre o Brasil e a Argentina, dizia Teixeira Men<strong>de</strong>s que “o<br />

trigo é incontestàvelmente um alimento fundamental, ao passo que o café é uma substância<br />

cujo caráter nocivo, salvo casos excepcionais, acha-se proclamado pelo conjunto<br />

dos cientistas oci<strong>de</strong>ntais”. Com referência à luta <strong>de</strong> Oswaldo Cruz contra a febre amarela,<br />

afirmava Teixeira Men<strong>de</strong>s que a vacinação, além <strong>de</strong> “tirânica”, era anticentífica (circular<br />

<strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1907).<br />

Diante disso, razão tinha Anatole France quando afirmava que a Religião da<br />

Humanida<strong>de</strong> era triste e tirânica, o que explica a arquitetura da Igreja positivista do Rio<br />

<strong>de</strong> janeiro, instalada num prédio frio e severo. Dentro da nave, o busto <strong>de</strong> Comte e um<br />

retrato <strong>de</strong> Clotil<strong>de</strong>, simbolizando a humanida<strong>de</strong>. Ao longo dos muros, os bustos das per-<br />

40


sonalida<strong>de</strong>s históricas que dão nome aos meses do calendário positivista: Moisés, Aristóteles,<br />

César, São Paulo, Homero, Carlos Magno, Descartes, Shakespeare, Gutenberg,<br />

Arquime<strong>de</strong>s, Fre<strong>de</strong>rico o Gran<strong>de</strong>, Bichat e Heloísa.<br />

Lima Barreto, no romance Isaías Caminha, <strong>de</strong>screve o cerimonial litúrgico das<br />

prédicas dominicais <strong>de</strong> Teixeira Men<strong>de</strong>s, quando o seu personagem não podia reprimir<br />

o riso ao surgir o vice-diretor do Apostolado com a capinha ver<strong>de</strong> aos ombros, “ao som<br />

<strong>de</strong> um tímpano rouco, arrepanhando a batina”. “Ficava assombrado — são impressões<br />

que o romancista nos confiou através <strong>de</strong> Isaías Caminha — com a firmeza com que ele<br />

[Teixeira Men<strong>de</strong>s] anunciava a felicida<strong>de</strong> contida no Positivismo e a simplicida<strong>de</strong> dos<br />

meios necessários para a sua vitória; bastava tal medida, bastava essa outra — e todo<br />

aquele rígido sistema <strong>de</strong> regras, abrangendo todas as manifestações da vida coletiva e<br />

individual, passaria a governar, a modificar costumes, hábitos e tradições. Explicava o<br />

catecismo. Abria o livro, há um trecho e procurava o caminho para alusões a questões<br />

atuais, repetindo fórmulas para se obter um bom governo que ten<strong>de</strong>sse a preparar a era<br />

normal — o advento final da Religião da Humanida<strong>de</strong>.” “Eu achava — comenta Isaías<br />

— aquela dissertação tão intelectual, tão baldia <strong>de</strong> comunicação, tão incapaz <strong>de</strong> erguer<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim o <strong>de</strong>votamento, o altruísmo, o esforço sobre mim mesmo em favor dos<br />

outros, como dizia o Apóstolo, que me quedava a indagar até que ponto o auditório respeitoso<br />

estava convencido e até que ponto fingia convicção.”<br />

Seja como for, Teixeira Men<strong>de</strong>s foi o mais belo fruto moral e cultural do Positivismo,<br />

no Brasil e no mundo, criando profundas raízes seu exemplo e sua lição. Por isso<br />

pô<strong>de</strong> afirmar Cruz Costa que “o Positivismo não morreu <strong>de</strong> todo no Brasil. Desapareceu,<br />

ou quase <strong>de</strong>sapareceu, na sua forma religiosa e pouca influência tem sob a forma<br />

política. Mas, cremos, o seu espírito, contraditório, e aparentemente paradoxal, mantémse<br />

difuso ainda no pensamento brasileiro”.<br />

41


VIII<br />

MONISMO E EVOLUCIONISMO<br />

A mais importante tendência filosófica ligada ao Positivismo e que, por sua vez,<br />

viria acentuar, por volta <strong>de</strong> 1860, a progressiva importância e influência das Ciências<br />

Naturais, é o Evolucionismo. Seus primeiros a<strong>de</strong>ptos são trânsfugas da <strong>Filosofia</strong> positiva,<br />

cabendo a Spencer a chefia do novo movimento, porquanto, antecipando-se a Darwin,<br />

concebia a idéia <strong>de</strong> uma interpretação geral da realida<strong>de</strong> à base do princípio <strong>de</strong><br />

evolução, isto é, transformação que faz passar um agregado do homogêneo ao heterogêneo,<br />

ou do menos heterogêneo ao mais heterogêneo. Segundo Spencer, “a evolução é<br />

uma integração <strong>de</strong> matéria e uma dissipação concomitante <strong>de</strong> movimento, durante a<br />

qual a matéria passa <strong>de</strong> uma homogeneida<strong>de</strong> in<strong>de</strong>finida e incoerente a uma heterogeneida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>finida e coerente e durante a qual o movimento retido sofre uma transformação<br />

paralela”. Nesse sentido, o Evolucionismo seria a doutrina que afirma que a lei geral do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento dos seres é a diferenciação — isto é, transformação <strong>de</strong> elementos semelhantes<br />

em elementos diferentes ou <strong>de</strong> elementos menos diferentes em elementos<br />

mais diferentes — acompanhada <strong>de</strong> integração, lei esta que teria permitido a formação,<br />

sucessivamente, do sistema solar, das espécies químicas, das faculda<strong>de</strong>s intelectuais,<br />

das instituições sociais etc.<br />

Vinculado à <strong>Filosofia</strong> Evolucionista está o Monismo, entendido como uma doutrina<br />

que consi<strong>de</strong>ra a pluralida<strong>de</strong> dos seres como resolúvel numa unida<strong>de</strong> fundamental<br />

imanente, porquanto o princípio evolucionista é — <strong>de</strong> modo mais ou menos explícito —<br />

essencial ao Monismo. Daí Haeckel <strong>de</strong>fini-lo como “unida<strong>de</strong> do universo, sem antítese<br />

entre espírito e matéria; i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus e mundo, que não foi criado, mas que evolui<br />

segundo leis eternas; negação <strong>de</strong> uma força vital in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte das forças físicas e químicas;<br />

mortalida<strong>de</strong> da alma; não aceitação da oposição estabelecida pelo cristianismo<br />

entre os fins da carne e os fins do espírito; excelência da natureza; racionalismo; religião<br />

da ciência do bem e da beleza”.<br />

Precisamente somatória do Evolucionismo e Monismo é a doutrina adotada pelos<br />

corifeus da chamada Escola do Recife: Tobias Barreto (1839-1889) e Sílvio Romero<br />

(1851-1914) e, em menor grau, Clóvis Bevilacqua (1859-1944). O sucesso das idéias <strong>de</strong><br />

Spencer e Haeckel até certo ponto é compreensível pela maneira amena com que esses<br />

pensadores expunham suas idéias. Tanto os Primeiros Princípios como os Enigmas do<br />

Universo, (este último principalmente), são livros que se revestem <strong>de</strong> um encanto fácil,<br />

envoltos numa atmosfera otimista <strong>de</strong> perfeição das coisas e dos homens através do progresso.<br />

E abordam temas empolgantes que cativam o interesse filosófico nascente, tais<br />

como as questões <strong>de</strong> Deus, da imortalida<strong>de</strong>, da liberda<strong>de</strong>. E tudo facilmente resolvido<br />

ou prestes a se resolver ou sem solução (que é a forma resolutiva do incognoscível spenceriano).<br />

A vida <strong>de</strong> Tobias Barreto mais que um biógrafo aguarda um romancista. Foi versátil<br />

e gostava <strong>de</strong> repetir com Renan que sua glória eram as suas contradições. E confessava:<br />

“Eu sou um pouco volúvel. Esta verda<strong>de</strong> que, há trinta anos, já me dizia em tom<br />

convicto a minha primeira <strong>de</strong>ida<strong>de</strong>, quando se viu sacrificada a um rosto mais gentil,<br />

permanece no mesmo estado <strong>de</strong> frescura, pelo que toca, não a amores, mas a teorias,<br />

que nunca tiveram força <strong>de</strong> ganhar-me o coração e que, portanto, não duvido <strong>de</strong>sprezar<br />

<strong>de</strong> olhos enxutos, por causa <strong>de</strong> outras, que melhores me pareçam.”<br />

Mulato e oriundo, como ele dizia, da “fulgurante plebe”, apren<strong>de</strong>u latim com um<br />

42


padre e violão, sozinho. Adolescente, mudou-se para a Bahia com o fito <strong>de</strong> seguir a carreira<br />

eclesiástica. A primeira e única noite <strong>de</strong> seminário foi suficiente para dissuadi-lo<br />

da missão divina. Impaciente por se ver preso no claustro e ralado <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s, rompeu<br />

escandalosamente a tranqüilida<strong>de</strong> da casa cantando uma modinha ao violão. Expulso,<br />

foi pernoitar numa “república” <strong>de</strong> estudantes, que nessa mesma noite pegou fogo. O<br />

evento é comentado por Roberto Lyra assim: “<strong>de</strong>vemos bendizer aquele incêndio do<br />

albergue baiano, em que, certa noite dormiu um seminarista frustro, às voltas com hinos<br />

e latinórios pios, para amanhecer, livre, <strong>de</strong> bolso vazio, cantarolando, lavando o peito<br />

com eloqüência bocagiana, na golfada <strong>de</strong> epitheta ornantia <strong>de</strong> que era cioso. Entre os<br />

salvados do sinistro, figurava uma carcaça mestiça, mas ficou reduzido a cinzas todo o<br />

seu patrimônio <strong>de</strong> aspirante a vigário — um violão”.<br />

Tobias Barreto tinha <strong>de</strong> quem puxar, filho que era <strong>de</strong> um mestiço bem carregado,<br />

tipo folgazão, caçoísta, liberal-jacobino que exercia as funções <strong>de</strong> escrivão <strong>de</strong> órfãos e<br />

ausentes na remota vila sergipana <strong>de</strong> Campos. O futuro filósofo era boêmio, gostava <strong>de</strong><br />

bailes e serenatas, cantava e tocava violão admiravelmente, vivia <strong>de</strong>sinteressado <strong>de</strong> coisas<br />

práticas, nunca ten<strong>de</strong> em gran<strong>de</strong> apreço os preceitos da higiene, e a veia satírica do<br />

pai nele refloria com seiva nova. Em prosa e verso ria-se com fina graça das parvoíces e<br />

enganos alheios. Quando <strong>de</strong>sembarca no Recife para estudar Direito, aos primeiros passos<br />

em terra, sofre o coice <strong>de</strong> um burro que o magoou violentamente. Dias <strong>de</strong>pois, cai<br />

atacado <strong>de</strong> varíola. Em 1864 entra para a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito, on<strong>de</strong> encontra Castro<br />

Alves, e os dois passaram a ser os pontos aglutinantes <strong>de</strong> preferências e simpatias, cada<br />

qual possuindo o seu bando, sua facção, a sua corte. E ambos se <strong>de</strong>safiavam em versos<br />

em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> suas atrizes favoritas sendo a <strong>de</strong> Tobias “formosa ondina das celestes vagas”.<br />

Informa Sílvio Romero que só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1870 <strong>de</strong>ixou Tobias <strong>de</strong> ser o eterno recitador<br />

<strong>de</strong> versos nos teatros, nas festas patrióticas e nos salões.<br />

Depois <strong>de</strong> formado, embarca para Escada, trocando antes “a blusa do poeta pelo<br />

casacão do filósofo”, mantendo-se porém fiel aos três <strong>de</strong>feitos apontados por Sílvio<br />

Romero: “abusava do café, fumava em excesso e era um caído por mulheres”. Antes <strong>de</strong><br />

viajar para o sertão pernambucano passa por uma livraria da Rua do Imperador. É uma<br />

visita histórica pois aí encontra um dicionário <strong>de</strong> alemão, suas núpcias com o germanismo.<br />

Na cida<strong>de</strong> sertaneja imprime um jornal estranho, do qual era o único redator e<br />

talvez o único leitor: Deutscher Kampfer. Com 42 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, ameaçado <strong>de</strong> morte<br />

pelos litigantes do espólio <strong>de</strong> seu sogro, volta ao Recife, disputa uma cátedra na Faculda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Direito e é aprovado. Era a origem da escola teuto-sergipana, título sarcástico<br />

forjado por Carlos <strong>de</strong> Laet.<br />

Assim, enrolado no manto roçagante do filósofo, transpõe Tobias Barreto os limiares<br />

do templo do Direito cujos penetrais ia perscrutar. Jurista ou filósofo, foram as<br />

idéias gerais, as sínteses que o seduziam e a que consagrou as energias másculas <strong>de</strong> seu<br />

engenho. Mas, se as idéias gerais apanhavam, num amplexo ousado, as bases da Ciência,<br />

escorçando-a em traços concisos, nunca se ligaram num todo harmônico <strong>de</strong> modo a<br />

nos darem uma síntese completa da <strong>Filosofia</strong> ou do Direito. Informa Clóvis Bevilacqua<br />

que “assim como faltava-lhe o gosto para os <strong>de</strong>talhes, para as análises morosas e percucientes,<br />

falecia-lhe a tenacida<strong>de</strong> para levar a termo uma obra <strong>de</strong> certa amplitu<strong>de</strong>, cuja<br />

construção <strong>de</strong>mandasse uma contensão <strong>de</strong> espírito prolongada por longos meses, a vista<br />

sempre <strong>de</strong>tida num mesmo círculo <strong>de</strong> idéias. Surgia-lhe a concepção, a <strong>de</strong>scarga das<br />

forças criadoras levava-o febril à produção, mais aliviada daquela necessida<strong>de</strong> psíquica,<br />

enfastiava-o prosseguir no mesmo caminho e anseava por velejar em outros mares e<br />

aspirar outros perfumes”.<br />

O monismo <strong>de</strong> Tobias Barreto era inspirado em Ludwig Noiré, que assumira ares<br />

<strong>de</strong> oráculo na <strong>Filosofia</strong> coeva pelo fato <strong>de</strong> mitigar o materialismo <strong>de</strong> Haeckel, seu<br />

43


mestre, propugnando por um “monismo filosófico” que dissipava as aporias do filósofo<br />

brasileiro e aquietava as antinomias que o angustiava, pois no fundo reivindicava um<br />

sentimento religioso acima <strong>de</strong> todo formalismo e superador <strong>de</strong> todo rito. Ou, conforme a<br />

interpretação <strong>de</strong> Hermes Lima: “Seu monismo era assim perfeitamente agnóstico. E se é<br />

exato que qualquer tipo <strong>de</strong> monismo, dualista ou pluralista, ten<strong>de</strong>rá sempre a acentuar<br />

ou a feição espiritualista ou a feição materialista, o <strong>de</strong> Tobias evoluiu mo sentido da<br />

primeira.”<br />

Quanto a Sílvio Romero, não obstante ter ficado, na nossa formação cultural,<br />

como crítico <strong>de</strong> Literatura, sua gran<strong>de</strong> inclinação fôra a <strong>de</strong> crítico <strong>de</strong> doutrina, on<strong>de</strong> encontrara<br />

a direção <strong>de</strong> seu pensamento, o objetivo <strong>de</strong> suas disposições intelectuais e a sua<br />

vocação. A posição filosófica <strong>de</strong> Sílvio Romero, porém, foi menos estável que a <strong>de</strong> Tobias,<br />

apesar <strong>de</strong> terem ambos feito escala em todo o sistema que lhes caísse sob os olhos<br />

<strong>de</strong>smesuradamente abertos aos “avanços” do século. O Homo novus que estava em Sílvio<br />

se empolgava com os achados científicos das teorias mo<strong>de</strong>rnas, numa <strong>de</strong>monstração<br />

ostensiva <strong>de</strong> nefilibatismo, a<strong>de</strong>pto das opiniões em voga, em suma como quer Leonel<br />

Franca, “uma vítima da moda filosófica, <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> estar sempre com a escola novíssima”.<br />

Contudo, algum mérito tinha Sílvio Romero ao vibrar com sua época, empenhando-se<br />

nas correntes espirituais contemporâneas.<br />

Comprimido pelos esquemas positivistas hauridos em Spencer, <strong>de</strong>finia-se, em<br />

1878 na <strong>Filosofia</strong> no Brasil, “sectário convicto do Positivismo <strong>de</strong> Comte, não na direção<br />

que este lhe <strong>de</strong>u nos últimos anos <strong>de</strong> sua vida, mas na ramificação <strong>de</strong> Littré, <strong>de</strong>pois que<br />

travei conhecimento com o transformismo <strong>de</strong> Darwin, procuro harmonizar os dois sistemas<br />

num criticismo amplo e fecundo”. Tratava-se aqui, <strong>de</strong> um criticismo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />

como ele mesmo esclarecia, firmado nos dados positivos, “espécie <strong>de</strong> neokantismo,<br />

não por ir pedir idéias a Kant, mas por tomar-lhe o espírito”, o que traduzia a tendência<br />

geral do século XIX, o século do criticismo científico; liberda<strong>de</strong> infinita <strong>de</strong> investigação<br />

pessoal da verda<strong>de</strong>. “Sou eu, pois, sectário do positivismo e do transformismo? Sim;<br />

enten<strong>de</strong>ndo-os porém dum modo largo e não sacrificando a minha liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar a<br />

certas imposições caprichosas que os sistemas possam, porventura, apresentar.” Segundo<br />

suas próprias palavras, já no fim da vida, Sílvio Romero se colocava no número dos<br />

críticas <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, “espíritos que procuram caminho entre os sistemas europeus, com<br />

segura autonomia <strong>de</strong> pensamento”.<br />

De Clóvis Bevilacqua escreveu Sílvio Romero: “crítico, filósofo e jurista, não<br />

sei se os haverá superiores em nossa terra”. Foi um dos últimos, senão o último dos representantes<br />

<strong>de</strong> uma geração da inteligência brasileira que esteve à altura das exigências<br />

do seu tempo. Por isso nunca separou a ciência do verda<strong>de</strong>iro sentido que ela <strong>de</strong>ve ter<br />

na nossa terra, isto é, formadora <strong>de</strong> uma consciência nacional.<br />

Gran<strong>de</strong> jurista, não se limitou apenas à literatura jurídica. Alicerçou-a numa forte<br />

cultura filosófica e como resultado dos seus estudos, publicou alguns trabalhos meritórios<br />

<strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>. Fôra introduzido nos ensinamentos positivistas no Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

para on<strong>de</strong> se encaminhara a fim <strong>de</strong> fazer os estudos preparatórios. De volta ao Recife,<br />

compreen<strong>de</strong>u Comte através <strong>de</strong> Littré acrescido <strong>de</strong> Stuart Mill. Por influência <strong>de</strong> Tobias<br />

Barreto e Sílvio Romero, passou a <strong>de</strong>dicar-se ao transformismo darwinista, <strong>de</strong>pois ao<br />

monismo haeckeliano, para terminar firmando-se, <strong>de</strong>finitivamente, no evolucionismo<br />

spenceriano, ao qual se manteve fiel até o fim <strong>de</strong> sua vida. Mas um evolucionismo evoluído,<br />

porquanto Clóvis Bevilacqua propugnava a fusão <strong>de</strong> duas idéias aparentemente<br />

antagônicas (movimento e sentimento) através <strong>de</strong> uma metempírica: “Por mim, não teria<br />

escrúpulos <strong>de</strong> lançar a ponte <strong>de</strong> uma interferência lógica sobre esses dois domínios embora<br />

penetrasse no campo que não é propriamente da experiência e da observação, mas<br />

que o margina em íntima continuida<strong>de</strong>. Não nos é permitido afastar completamente, não<br />

44


direi a Metafísica, mas esse quer que seja além do puramente experimental, a que se dá<br />

o nome <strong>de</strong> metempírica.”<br />

À Escola do Recife pertence, <strong>de</strong> certo modo, Eucli<strong>de</strong>s da Cunha (1866-1909),<br />

temperamento inquieto e torturado, sempre incitado para o alto, mas sem se <strong>de</strong>cidir por<br />

qualquer sistema ou doutrina na interpretação da vida e da realida<strong>de</strong> objetiva. Tendo<br />

uma visão do mundo profundamente impregnada <strong>de</strong> positivismo (é ele próprio quem<br />

<strong>de</strong>clara que sofrera “o domínio cativante <strong>de</strong> Augusto Comte”), tinha Eucli<strong>de</strong>s da Cunha<br />

como unida<strong>de</strong> metodológica um evolucionismo spenceriano que, através dos tempos,<br />

vai se modificando à medida que a ele se agregam outras correntes correlatas que surgem<br />

paralelamente a Spencer. Todavia, jamais fôra um spenceriano ortodoxo e impermeável,<br />

pois seu pensamento estava influenciado por outras teorias, hipóteses e concepções<br />

que se mesclavam e fundiam-se a esse evolucionismo mecanicista. Ao pensador<br />

inglês se soma Comte, o filósofo e matemático e não o político e religioso. Portanto,<br />

metodologicamente pesa menos a influência comtiana, enquanto que a spenceriana é<br />

mais profunda e duradoura, marcando todo o pensamento <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s da Cunha. No fim<br />

<strong>de</strong> sua vida, porém, surge uma nova influência, Ernst Mach, a seu ver “lúcido e genial”.<br />

Por isso foi constante sua irredutível atitu<strong>de</strong> anti-metafísica: em carta a Oliveira Lima, a<br />

respeito da Lógica, <strong>de</strong>clara-se seguidor da “direção extremamente lúcida que lhe traçou<br />

Stuart Mill [que] está <strong>de</strong> todo a cavaleiro das in<strong>de</strong>cifráveis divagações metafísicas”. E,<br />

no concurso à cátedra <strong>de</strong> Lógica do Colégio Pedro II (que, à época do “terror” republicano,<br />

se chamava Colégio Nacional), afirmara: “Não se compreen<strong>de</strong> nenhuma ciência<br />

das coisas em si, nenhuma ciência do Ser. Compreen<strong>de</strong>m-se ciências <strong>de</strong> relações...”,<br />

consi<strong>de</strong>rando a Metafísica “falsa ciência, toda feita <strong>de</strong> hipóteses arrojadíssimas, <strong>de</strong>senvolvendo-se<br />

sob o influxo exclusivo do método reflexivo”.<br />

Um dos problemas mais controvertidos do pensamento euclidiano é o do seu<br />

“socialismo”, afirmado por uns e negado por outros. Para um intérprete marxista, Clóvis<br />

Moura, “Eucli<strong>de</strong>s da Cunha sempre se manifestou <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> vigamentos que oscilavam<br />

entre um positivismo superficial e um socialismo impreciso”, ou seja: “Desbastados,<br />

porém, os elementos acrescidos pela simpatia dos socialistas e acrescidos os elementos<br />

injustamente retirados pelos anti-socialistas, não se po<strong>de</strong> afirmar, em sã consciência,<br />

haver sido Eucli<strong>de</strong>s da Cunha um socialista, muito menos um marxista”, pois o que ele<br />

entendia por socialismo (era “um amálgama <strong>de</strong> solidarismo humanitarista e utópico”,<br />

sendo “sua inclinação — pelo menos sentimental — pelo anarquismo”. Seja como for,<br />

Eucli<strong>de</strong>s da Cunha foi um pensador engajado e participante das exigências <strong>de</strong> seu País e<br />

<strong>de</strong> seu tempo, <strong>de</strong> nítida consciência crítica ainda que contraditória e trágica, como sua<br />

biografia.<br />

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IX<br />

REAÇÃO ESPIRITUALISTA<br />

Nos fins do século XIX a Europa sofre o abalo <strong>de</strong> uma crise espiritual. Tudo que<br />

representava Positivismo — na <strong>Filosofia</strong>, nas Ciências, nas Artes — passa a ser alvo<br />

predileto <strong>de</strong> uma crítica implacável. Em nome do espírito e dos valores espirituais é<br />

feita a revisão das Ciências Naturais e <strong>de</strong> seus pressupostos. As novas correntes i<strong>de</strong>alistas<br />

interrogam criticamente o Positivismo, perguntando-lhe se, como ele preten<strong>de</strong>, as<br />

ciências interpretam com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> os fatos naturais dados pela experiência, se a fé na<br />

ciência é menos dogmática que a fé na metafísica espiritualista, se a ciência é um saber<br />

imutável ou não é mais que um contínuo suce<strong>de</strong>r-se <strong>de</strong> hipóteses, se em verda<strong>de</strong> é indispensável<br />

ao saber científico um <strong>de</strong>terminismo universal, se, por último, a concepção<br />

mecânica da natureza correspon<strong>de</strong> à realida<strong>de</strong>. Entrava assim em franca crise o cientificismo<br />

positivista, graças principalmente a uma cerrada crítica feita por pensadores mergulhados<br />

no próprio “espírito científico”, <strong>de</strong> modo especial Ravaisson, Boutroux e Milhaud,<br />

concluindo este último que a mundividência <strong>de</strong> Spencer ou <strong>de</strong> Taine <strong>de</strong>rivava <strong>de</strong><br />

uma transformação ilegítima da ciência em Metafísica. Em suma, esses investigadores<br />

opinavam que a ciência era obra do espírito que cria suas convenções e em seguida as<br />

impõe à realida<strong>de</strong>, respon<strong>de</strong>ndo esta com êxito ou não.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista estritamente filosófico, coube a Bergson fazer a mais vigorosa<br />

crítica contra o “cientificismo” em nome da própria ciência. Para ele, a <strong>Filosofia</strong> era, em<br />

primeiro lugar, uma continuação das tendências que, opondo-se ao Positivismo, procuravam<br />

sua superação por meio cie uma assimilação <strong>de</strong> seu conteúdo mais valioso. Este<br />

traço <strong>de</strong> assimilação da <strong>Filosofia</strong> positivista, única forma possível <strong>de</strong> sua superação, é<br />

característico em Bergson no mesmo sentido que o é o “positivismo absoluto” <strong>de</strong> Husserl.<br />

Segundo Bergson, para captar-se a autêntica realida<strong>de</strong> absoluta do mundo e da vida,<br />

é preciso abandonar o ponto <strong>de</strong> vista da mera contemplação extrínseca a esta realida<strong>de</strong><br />

em que se coloca o cientista e procurar penetrá-la interiormente, o que se consegue<br />

através da intuição, que <strong>de</strong>screve a realida<strong>de</strong> como um todo qualitativamente heterogêneo<br />

em perfeita continuida<strong>de</strong>, ao mesmo tempo que em incessante mutação.<br />

De acordo com suas palavras, “a realida<strong>de</strong> é um processo <strong>de</strong> perene criação, sem<br />

princípio nem fim, que não apresenta duas vezes a mesma fisionomia, mas que mostra<br />

em cada instante um aspecto original e imprevisível: é um fluxo constante, on<strong>de</strong> nada<br />

persiste, uma continuida<strong>de</strong> móvel e viva, sem divisão alguma <strong>de</strong> parte”. Este processo<br />

criador é captado pela intuição, que nos mergulha na corrente móvel da realida<strong>de</strong> e nos<br />

libera dos esquemas abstratos da razão, que rompem e solidificam a mobilida<strong>de</strong> das<br />

imagens, fazendo <strong>de</strong>stes fragmentos <strong>de</strong> experiências coisas da natureza, colocadas no<br />

espaço umas ao lado <strong>de</strong> outras. Para Bergson, pois, a intuição é o modo <strong>de</strong> conhecimento<br />

que, em oposição ao pensamento, capta a realida<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira, a interiorida<strong>de</strong>, a duração,<br />

a continuida<strong>de</strong>, o que se move e o que se faz.<br />

Assim, enquanto o pensamento roça o externo, converte o contínuo em fragmentos<br />

separados, analisa e <strong>de</strong>compõe, a intuição se dirige ao <strong>de</strong>vir, instala-se no âmago do<br />

real e se impregna, como as chamadas intuições místicas, <strong>de</strong> inefabilida<strong>de</strong>s. É uma intuição<br />

dirigida também, como a volitiva, às existências, mas que não surge em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

uma resistência, e sim mediante um movimento que rompe as categorias estabelecidas<br />

pelo pensamento, que inverte a direção pragmática <strong>de</strong>ste e se esforça por <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>r-se<br />

das categorias especializadoras do pensar. Desta forma, o intuicionismo bergsoniano se<br />

46


eveste <strong>de</strong> um sentido que reage contra o racionalismo, aliando-se <strong>de</strong> certa forma ao<br />

irracionalismo.<br />

Antipositivista <strong>de</strong>clarado e seguidor <strong>de</strong> Bergson foi Farias Brito (1862-1917),<br />

cujo pensamento é fruto <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sforço pessoal contra os republicanos brasileiros que o<br />

perseguiram, da atmosfera simbolista <strong>de</strong> sua época e do alucinado autodidatismo <strong>de</strong> sua<br />

formação filosófica, do qual resultaram obras <strong>de</strong> sentido “estopante e in<strong>de</strong>cifrável”, no<br />

dizer <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s da Cunha, enquanto João Ribeiro via na obra do pensador cearense<br />

uma “coisa insólita” já que para ele Farias <strong>de</strong> Brito “era um filósofo pela abundância,<br />

pela prolixida<strong>de</strong> ou pela vastidão e até mesmo pela caligem do estilo, por vezes impenetrável”,<br />

resultando daí que “não é coisa fácil alcançar uma inteligência razoável das suas<br />

doutrinas”.<br />

Fazendo sua autobiografia, informava Farias Brito: “Devo observar que minha<br />

vida é extremamente simples. Nada tenho <strong>de</strong> notável. Sou verda<strong>de</strong>iramente um homem<br />

sem história, porque nunca se passaram comigo coisas extraordinárias.” Teve a vida <strong>de</strong><br />

um homem: comum com seus problemas cotidianos. Em três ocasiões apenas a sua vida<br />

<strong>de</strong>stoa <strong>de</strong>stas normas habituais, quando sofre injustiças odiosas. A primeira quando foi<br />

<strong>de</strong>stituído do cargo <strong>de</strong> secretário do Governo do seu Estado <strong>de</strong>vido à violenta <strong>de</strong>posição<br />

do Gen. José Clarindo, em 1892. A segunda, foi causada pelo fato <strong>de</strong> ter sido preterido<br />

no preenchimento da ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Lógica do Colégio Pedro II, em 1909, graças a uma<br />

intervenção <strong>de</strong>cisiva do Barão do Rio Branco, o mais influente político <strong>de</strong> sua época,<br />

em favor <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s da Cunha, segundo colocado. Rio Branco interce<strong>de</strong>u com todo o<br />

peso <strong>de</strong> seu prestígio em carta a Francisco da Veiga: “Deci<strong>de</strong>-se agora a escolha do lente<br />

<strong>de</strong> Lógica para o Ginásio Nacional. Não <strong>de</strong>i até aqui um passo a favor <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s da<br />

Cunha por enten<strong>de</strong>r que ele não precisa disso. Agora, porém, que sei ter havido uma<br />

escandalosa cabala contra ele, no seio da Congregação, e que outros candidatos recorrem<br />

a padrinhos ou pistolões — como diz o povo — sinto-me obrigado — sem pedido<br />

algum <strong>de</strong>le — a queimar cartucho em favor <strong>de</strong>sse moço puro e digno...” O po<strong>de</strong>roso<br />

ministro concluía sua carta nestes termos: “Peço-lhe que faça pelo Eucli<strong>de</strong>s tudo quanto<br />

pu<strong>de</strong>r junto ao Presi<strong>de</strong>nte e ao Dr. Lyra. E não há tempo a per<strong>de</strong>r.” E não foi perdido<br />

tempo, para <strong>de</strong>sgraça <strong>de</strong> Farias Brito. A terceira <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong> sua vida foi motivada pelo<br />

malogro <strong>de</strong> sua candidatura à Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras. Nas três vezes reagiu com<br />

orgulho, fanatismo e revolta.<br />

O pensamento <strong>de</strong> Farias Brito é pampsiquista em seus fundamentos. Há no mundo<br />

duas or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> fenômenos, diz ele: os objetivos <strong>de</strong> movimento e os subjetivos <strong>de</strong><br />

consciência, correspon<strong>de</strong>ntes, respectivamente, à realida<strong>de</strong> física e à realida<strong>de</strong> psíquica.<br />

Essas duas realida<strong>de</strong>s são irredutíveis, enquanto fenômenos. Transposta, porém, à or<strong>de</strong>m<br />

fenomenal, alcançado o plano das “essências”, elas po<strong>de</strong>m reduzir-se a uma só<br />

unida<strong>de</strong> básica: a coisa em si ou o númeno da linguagem kantiana. Mas, a “coisa em si”<br />

<strong>de</strong> Farias Brito não se confun<strong>de</strong> com a “coisa em si” <strong>de</strong> Kant, que o pensador cearense<br />

combate: é a própria inteligência criadora, o espírito que anima todo o Universo. E o<br />

espírito não é apenas “uma força em nós”, mas também “uma força fora <strong>de</strong> nós”. Daí<br />

compreen<strong>de</strong>r ele a matéria como uma função do espírito, uma concretização formal <strong>de</strong><br />

seus <strong>de</strong>sdobramentos. Aqui surge a influência profunda da distinção espinosiana entre<br />

Natura naturans e Natura naturata, ou seja, entre a natureza criadora, ativa e natureza<br />

criada, passiva. Dessa forma <strong>de</strong> pampsiquismo parte Farias Brito para chegar a uma<br />

concepção panteísta do Universo e <strong>de</strong> Deus, sendo este último a razão do mundo, impessoal<br />

e eterna, o meio infinito <strong>de</strong>ntro do qual evolui continuamente o mundo finito. E<br />

a finalida<strong>de</strong> do mundo é o conhecimento da Verda<strong>de</strong>. Deste princípio extrai Farias Brito<br />

uma doutrina moral: o comportamento moral do homem <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>duzido, simultaneamente,<br />

do conhecimento <strong>de</strong> si mesmo e do conhecimento da natureza. Conhecendo o<br />

47


papel que <strong>de</strong>sempenhamos no mundo, ficamos conhecendo a maneira mais justa e melhor<br />

<strong>de</strong> nos comportarmos nele.<br />

Cumpre observar, contudo — e sua biografia é a melhor prova disso — que o<br />

pensamento <strong>de</strong> Farias Brito se <strong>de</strong>senvolve como recobrimento conceitual <strong>de</strong> suas experiências<br />

fundamentais; o ceticismo que por vezes revela e que Schopenhauer confirmou<br />

mais que alentou, é temperado por certo espírito <strong>de</strong> resignação e <strong>de</strong> consolo, espírito que<br />

não tem tanto raízes estóicas quanto cristãs. Pois em lugar <strong>de</strong> buscar o consolo pela via<br />

do abster-se, Farias Brito o buscou pela via da compreensão e do combate contra o sofrimento.<br />

Nesta via se revelou a existência <strong>de</strong> um espírito que o mecanicismo materialista<br />

e o positivismo cientificista vigentes <strong>de</strong>sconheciam. Esta comprovação, que tinha<br />

lugar por meio <strong>de</strong> sua experiência e por meio <strong>de</strong> sua análise intelectual, <strong>de</strong>via provocar<br />

uma crítica severa das correntes contemporâneas dominantes, especialmente daquelas<br />

que, sem argumentação consistente, negavam todo valor espiritual em nome <strong>de</strong> um materialismo<br />

eriçado <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s. A conversão da <strong>Filosofia</strong> em saber fundamental do<br />

homem, em norma para a vida, correspondia também a essa tendência essencial <strong>de</strong> Farias<br />

Brito, tendência que não negava a ciência, mas que proclamava sua importância para<br />

salvar ao homem. Por isso era característico em Farias Brito aproximar a Religião à<br />

<strong>Filosofia</strong>, e fazer <strong>de</strong>sta última a expressão conceituai <strong>de</strong> um sentimento religioso, e da<br />

primeira o saber popularizado. A <strong>Filosofia</strong> é uma superação da ciência que não nega<br />

esta última, senão que, pelo contrário, a salva. A redução da exteriorida<strong>de</strong> à intimida<strong>de</strong><br />

como modo <strong>de</strong> encontrar, por analogia, a essência do cosmos constituía, por outro lado,<br />

a base <strong>de</strong> sua Metafísica: o em si era <strong>de</strong>scoberto graças a seu prévio achado no mundo<br />

interior do homem. O intelectualismo <strong>de</strong> Farias Brito se opunha, contudo, ao irracionalismo<br />

schopenhaueriano, pois a vonta<strong>de</strong> cega era inferior para ele ao lúcido pensamento<br />

do espírito. Assim chegava ele a um espiritualismo radical, em certas ocasiões parecido<br />

ao materialismo <strong>de</strong> Berkeley.<br />

Esse unitário e coerente esquema, porém, é discutível, porquanto, <strong>de</strong> acordo com<br />

Laerte Ramos <strong>de</strong> Carvalho, a unida<strong>de</strong>, “se unida<strong>de</strong> existe nas obras <strong>de</strong> Farias Brito”,<br />

advém sobretudo das perguntas que formulou, com notável constância, durante todo o<br />

seu longo itinerário intelectual, mas não das respostas que propôs como solução dos<br />

problemas filosóficos. Para estas perguntas apresentou Farias Brito mais <strong>de</strong> uma resposta.<br />

Em 1895, julgou que o naturalismo filosófico, inspirado por Noiré e conhecido, en-<br />

tão, por intermédio <strong>de</strong> ligeiras informações <strong>de</strong> Tobias Barreto, representava a solução<br />

<strong>de</strong>finitiva. Resultou <strong>de</strong>ste naturalismo a singular compreensão do problema religioso e<br />

metafísico. Em 1899, porém, trocou o naturalismo filosófico pelo espinosismo. Em<br />

1905 se encerrou o plano da Finalida<strong>de</strong> do Mundo. Os dois livros, Evolução e Relativida<strong>de</strong><br />

e A Verda<strong>de</strong> como Regra das Ações, quebraram a unida<strong>de</strong> das primeiras obras e,<br />

com a crítica do Evolucionismo, do Monismo, do Positivismo e do Criticismo, prepararam<br />

o caminho espiritualista percorrido nas obras posteriores. Finalmente, em 1912 e<br />

1914, se esboçou uma direção espiritualista <strong>de</strong> suspeitas e equívocas raízes, que conduziu<br />

Farias Brito à retificação <strong>de</strong> aspectos fundamentais <strong>de</strong> seu pensamento.<br />

Tímido por natureza, conformista por <strong>de</strong>stino e i<strong>de</strong>alista fracassado, levou uma<br />

vida triste acrescida <strong>de</strong> pessimismo. Schopenhauer e von Hartmann foram para Farias<br />

Brito uma espécie <strong>de</strong> prazer <strong>de</strong> justificação, <strong>de</strong> compensação, <strong>de</strong> consolo. Leu mais do<br />

que viveu, fêz mais História da <strong>Filosofia</strong> do que propriamente <strong>Filosofia</strong>, e não criou<br />

sistema: resumiu-os, resultando daí uma obra “melancólica e caliginosa” na apreciação<br />

<strong>de</strong> Cruz Costa, que também diz: “A pregação <strong>de</strong> Farias Brito fôra inútil, fizera prosélitos<br />

para outra seita [‘foi o instrumento <strong>de</strong> que se serviu a Providência’, julga Leonel Franca].<br />

É que Farias havia sido simplesmente o eco, um tanto anacrônico e artificial, <strong>de</strong><br />

uma crise que empolgara, em certo momento, o pensamento europeu. A crise se resolve-<br />

48


a, ultrapassara as dificulda<strong>de</strong>s que as transições sempre apresentam. Farias Brito ficara<br />

na crise e não a ultrapassaria. Até morrer, luta para libertar-se das influências do Naturalismo.<br />

Agarra-se a Schopenhauer, abriga-se em Renouvier, quer encontrar apoio em.<br />

Bergson, mas não consegue nunca expressar o seu pensamento”.<br />

Não é por acaso que um dos melhores estudos sobre o filósofo cearense, <strong>de</strong> autoria<br />

<strong>de</strong> Sílvio Rabelo, intitula-se, precisamente: Farias Brito ou una Aventura do Espírito...<br />

Ainda que Farias Brito não tenha <strong>de</strong>ixado nenhum discípulo, sua influência se<br />

fez sentir <strong>de</strong> modo especial em Jackson <strong>de</strong> Figueiredo (1891-1928) que, marcado pelo<br />

pensamento britista, levou às últimas conseqüências a reação espiritualista, esforçandose<br />

por <strong>de</strong>senvolver uma metafísica cristã numa linha <strong>de</strong> orientação católica e <strong>de</strong> exaltação<br />

mística irracionalista ou anti-racionalista que culminará num apostolado reacionário<br />

sob a égi<strong>de</strong> do tradicionalismo <strong>de</strong> Joseph <strong>de</strong> Maistre e, principalmente, <strong>de</strong> Charles<br />

Maurras, fundando a chamada “doutrina da Or<strong>de</strong>m”. Isto. porque para Jackson <strong>de</strong> Figueiredo<br />

o Liberalismo era o principal responsável pela <strong>de</strong>rrocada da Cristanda<strong>de</strong> no<br />

século XIX e que se refletia no Brasil <strong>de</strong>scristianizado o Estado e a socieda<strong>de</strong> nacionais.<br />

Convencido que a pior legalida<strong>de</strong> é sempre melhor que a revolução, exaltara o fascismo,<br />

não tendo sido mero acaso que do círculo jacksoniano saísse o movimento integralista.<br />

Misto <strong>de</strong> pensador político, artista engajado e apóstolo fanático, reconhecia-se a<br />

si mesmo, antes <strong>de</strong> tudo, soldado e combatente por inclinação e <strong>de</strong>ver, impressionando a<br />

todos sua “visão <strong>de</strong> tragédia”. Daí ter <strong>de</strong>clarado: “A vida é para mim um drama, com<br />

epílogo nas mãos <strong>de</strong> Deus.” Temperamento agressivo, participara do apedrejamento aos<br />

jesuítas expulsos <strong>de</strong> Portugal, <strong>de</strong>nominando sua bengala <strong>de</strong> tantos feitos <strong>de</strong> molecagem<br />

“Cremilda”. Também fôra vítima <strong>de</strong> doença pertinaz e intermitente, a eczema, que lhe<br />

intumescia a pele, até mesmo do rosto, o que o mantinha em constante estado <strong>de</strong> irritação,<br />

não obstante seu caráter ciclotímico. Possuído às vezes <strong>de</strong> cólera incontrolável,<br />

matou animais domésticos que alegravam sua vida, como, por exemplo, o cãozinho Pubi<br />

e uma pobre andorinha engaiolada, sem nenhuma causa aparente. Sua caracterologia<br />

é <strong>de</strong>scrita por J. S. Leite Fontes nestes têrmos: “Traços esquisotímicos, embora secundariamente,<br />

integram essa notável personalida<strong>de</strong>, facetando-a como uma rocha <strong>de</strong> arestas<br />

agudas e cortantes, e lançando no âmago <strong>de</strong>sse oceano <strong>de</strong>sencontrado e proceloso, uma<br />

linha rígida, a abrir sulcos profundos.”<br />

Sempre extremado, afirmava: “Nós ficamos acima da natureza — e ou alcançamos<br />

em cheio o sobrenatural ou <strong>de</strong>scemos violentamente ao prenatural.” Isto o fazia<br />

apegar-se às orações como fundamento indispensável: “A Igreja não precisa <strong>de</strong> nós. Nós<br />

é que precisamos da Igreja. Se não pu<strong>de</strong>rem combater por ela, nada façam. Mas não<br />

<strong>de</strong>ixem <strong>de</strong> rezar todas as sextas-feiras na Igreja do Parto”, pois era ali que o Cristo propiciaria<br />

o nascimento das almas pelo sangue e pelo Espírito. Por isso fundou a revista<br />

“A Or<strong>de</strong>m”, em 1921, e no ano seguinte, o Centro D. <strong>Vita</strong>l, com o objetivo <strong>de</strong> reunir o<br />

escol da intelligentzia brasileira para as lutas apostólicas, <strong>de</strong>fesa da Igreja e da or<strong>de</strong>m<br />

social vigente, lutando contra os pruridos revolucionários no plano da inteligência e dos<br />

fatos.<br />

O pensamento clc Jackson <strong>de</strong> Figueiredo alcançou suas linhas estruturais <strong>de</strong>terminantes<br />

nos anos que se seguiram à sua conversão ao catolicismo. Os autores que mais<br />

o impressionaram foram Nietzsche, Pascal, Amiel, Farias Brito, Bergson, Joseph <strong>de</strong><br />

Maistre, Charles Maurras e Benri Massis. Partindo <strong>de</strong> que não há sincronização entre o<br />

conhecimento da verda<strong>de</strong> e o afastamento do pecado, somente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rado<br />

este último é que po<strong>de</strong>ria resolver o problema da inteligência, já que, a seu ver, o que<br />

importa ao <strong>de</strong>stino do homem é o “cisma do ser” que o pecado representa. Com isto,<br />

insinuava em tudo o gran<strong>de</strong> mistério do Homem. Tendo sido sobretudo apóstolo — dos<br />

49


valores cristãos mais conservadores, da manutenção do status quo, do ódio aos ju<strong>de</strong>us e<br />

metecos — todas as suas ativida<strong>de</strong>s foram exercidas em função <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>sumana apologética<br />

cristã, constituindo-se, assim, no precursor do obscurantismo dos nossos dias,<br />

por sinal <strong>de</strong>nunciado por Alceu Amoroso Lima, seu substituto à frente do Centro D.<br />

<strong>Vita</strong>l, mas em hipótese alguma seu seguidor.<br />

Com Jackson <strong>de</strong> Figueiredo se encerra o segundo ciclo do pensamento filosófico<br />

no Brasil, ensejado pelas Aca<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> Direito, pelas Escolas Politécnicas e pelas Faculda<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> Medicina, assim como o primeiro ciclo nascera no recesso dos Seminários<br />

<strong>de</strong> Teologia. Nesse sentido, escreve Miguel Reale: “Já no século passado, com o estabelecimento<br />

das Faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo e do Recife, para elas se <strong>de</strong>slocaram<br />

os centros irradiadores da nossa cultura. O sacerdote ce<strong>de</strong>u o lugar ao bacharel em Ciências<br />

Jurídicas e Sociais, operando-se, <strong>de</strong>sse modo, uma profunda alteração no estilo<br />

<strong>de</strong> nosso filosofar. Quanto ao objeto ou ao conteúdo dos estudos, fácil é perceber que os<br />

espíritos se sentiram mais atraídos pela problemática política e social, passando as questões<br />

ontológicas para um plano secundário, até serem sumariamente postas <strong>de</strong> lado, sob<br />

o impacto do naturalismo científico que arrogantemente <strong>de</strong>blaterava contra a Metafísica,<br />

sem se aperceber <strong>de</strong> seus irredutíveis pressupostos metafísicos; quanto à orientação<br />

metodológica, se houve menor confiança nos po<strong>de</strong>res da razão, acentuou-se uma tendência,<br />

já em germe na primeira fase, para o ecletismo ou a conciliação das doutrinas,<br />

primeiro com o espiritualismo <strong>de</strong> Cousin e, <strong>de</strong>pois, com o naturalismo, cujos princípios<br />

alguns pensadores, como Tobias Barreto e Sílvio Romero preten<strong>de</strong>ram, a todo transe,<br />

<strong>de</strong>bal<strong>de</strong> conciliar com a filosofia crítica <strong>de</strong> Immanuel Kant; quanto ao sentido das pesquisas,<br />

algo <strong>de</strong> nosso, ligado às nossas circunstâncias, imperceptivelmente se inseria<br />

nos escritos <strong>de</strong> nossos juristas-filósofos, mesmo quando cuidavam estar apenas reproduzindo<br />

o pensamento alienígena: o peculiar ocultava-se no modo <strong>de</strong> sofrer a influência,<br />

na utilização, para fins imprevistos, <strong>de</strong> idéias e doutrinas que, em suas terras <strong>de</strong> origem,<br />

albergavam significados diversos (o que explica a repercussão em nosso meio, não <strong>de</strong><br />

obras <strong>de</strong> sumos pensadores, mas sim <strong>de</strong> seus seguidores menores, como Krause e Noiré,<br />

fenômeno aliás comum a todo o mundo ibero-americano); quanto à atitu<strong>de</strong> dos filósofos,<br />

finalmente, o espírito <strong>de</strong> catequese é substituído pelo da polêmica, como se as indagações<br />

filosóficas tivessem <strong>de</strong> culminar sempre num veredictum, na sentença favorável<br />

ou con<strong>de</strong>natória dos sistemas. Daí a acritu<strong>de</strong>, o tom agreste, e até mesmo agressivo <strong>de</strong><br />

certas páginas <strong>de</strong> nossos positivistas até às primeiras décadas do presente século.”<br />

50


X<br />

TENDÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS<br />

Um acontecimento social <strong>de</strong> vincada ressonância altera completamente o panorama<br />

da <strong>Filosofia</strong>: a Primeira Gran<strong>de</strong> Guerra. Essa dolorosa experiência, naturalmente,<br />

não po<strong>de</strong>ria ter passado em vão, já que nas trincheiras não haviam combatido e sofrido<br />

as categorias e idéias, olímpicas e inefáveis, mas sim homens <strong>de</strong> carne e osso. E os homens<br />

<strong>de</strong> carne e osso se voltam <strong>de</strong>pois para a <strong>Filosofia</strong> — alguns ficaram nos campos<br />

<strong>de</strong> batalha, como, por exemplo, Adolf Reinach, discípulo <strong>de</strong> Husserl e Privatdozent em<br />

Göttingen para que esta os atenda no seus humanos anseios, já remotos das idéias da<br />

pura razão ou <strong>de</strong> uma problemática puramente abstrata. Com isto, a <strong>Filosofia</strong> se encontrou<br />

<strong>de</strong> repente colocada, ao acordar <strong>de</strong> novo, diante <strong>de</strong> uma incalculável quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s temas e problemas que, por sua vez, exigiram um renovado esforço <strong>de</strong> aplicação,<br />

bem como o emprêgo <strong>de</strong> novos princípios e métodos. E assim surgiu um novo estilo<br />

filosófico, caracterizado pela coragem das problemáticas e pelo vigor no impulso da<br />

investigação.<br />

Desta maneira, a <strong>Filosofia</strong> contemporânea po<strong>de</strong> ser esquematizada, <strong>de</strong> um modo<br />

geral, pelos seguintes traços: partindo da gran<strong>de</strong> transformação operada nas condições<br />

da vida e da nova missão <strong>de</strong>sta, a <strong>Filosofia</strong> dos nossos dias procura estabelecer novas<br />

relações com o passado e novas formas <strong>de</strong> o interpretar. Abandona progressivamente —<br />

no campo histórico-filosófico, que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XIX se tinha extraordinariamente<br />

alargado — a orientação que consistia na reprodução essencialmente retrospectiva dos<br />

sistemas clássicos e na investigação puramente filológica; <strong>de</strong> pormenor, dos textos e<br />

opiniões. Pelo contrário, o que ela procura é estabelecer uma estreita ligação entre a<br />

própria História da <strong>Filosofia</strong> e a consciência dos problemas atuais. Quer isto dizer que<br />

vastas perspectivas, apesar <strong>de</strong> incertas, se abriram ao mundo filosófico perto da vida e<br />

junto à sua raiz.<br />

Essa humanização da <strong>Filosofia</strong>, por sua vez, provoca, como contraparte polêmica,<br />

o aparecimento <strong>de</strong> correntes que abstraem o homem do pensamento filosófico mediante<br />

a “tecnização” e formalização <strong>de</strong> seus filosofemas que, como as amuradas dos costados,<br />

não nos permitem cair mas também nos impossibilitam avançar. Com isto a <strong>Filosofia</strong>,<br />

ou, melhor, essa filosofia — <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um saber com conteúdo para se transformar<br />

— ou, melhor ainda, transfigurar-se num conjunto <strong>de</strong> atos, numa ativida<strong>de</strong>, e não<br />

num conhecimento, isto é, num esclarecimento da linguagem para a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> pseudoproblemas,<br />

já que sua “missão” não é solucionar problemas porém <strong>de</strong>nunciar falsas<br />

obsessões, seccionando, assim, o homem que filosofa <strong>de</strong> sua filosofia, <strong>de</strong> toda <strong>Filosofia</strong>.<br />

Seja como for, os problemas fundamentais da <strong>Filosofia</strong> contemporânea po<strong>de</strong>m<br />

ser reduzidos, no que diz respeito à interpretação do real, à antítese entre o ponto <strong>de</strong><br />

vista que quer ser exclusivamente imanentista (na acepção <strong>de</strong> presença do fim da ação<br />

na própria ação ou do resultado <strong>de</strong> uma operação qualquer na própria operação, significando<br />

então o que os escolásticos entendiam por “ação imanente”, ou seja, que permanece<br />

no agente), e o ponto <strong>de</strong> vista que quer provar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transcendência (na<br />

acepção <strong>de</strong> estado ou condição do princípio divino ou do ser que está fora <strong>de</strong> toda coisa,<br />

<strong>de</strong> toda experiência humana — enquanto experiência <strong>de</strong> coisas ou do próprio ser, significando<br />

então um princípio que se encontra além da experiência e, não obstante, fundaa).<br />

Assim, o imanentismo contemporâneo tem como problema fundamental a História,<br />

em relação à qual assume duas atitu<strong>de</strong>s: ou mantém alguns elementos naturalísticos na<br />

51


sua explicação, ou resolve cada elemento natural no processo histórico. Também o<br />

transcen<strong>de</strong>ntalismo assume duas atitu<strong>de</strong>s: ou coloca a transcendência como divino, ou<br />

como realida<strong>de</strong> natural. Uma das tentativas <strong>de</strong> sintetizar imanência e transcendência é o<br />

existencialismo, que, não obstante compor-se, por vezes, <strong>de</strong> direções divergentes entre<br />

si, confluem neste intento.<br />

A multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas, <strong>de</strong> sugestões e <strong>de</strong> perspectivas, senão novas ao menos<br />

renovadas, do pensamento filosófico contemporâneo, surge quase como um caos,<br />

sendo difícil, para não dizer impossível, traçar o seu perfil multímodo, acentuando ora o<br />

dinâmico, ora o fenomênico, ora o biológico, ora o histórico, ora o existencial, ora o<br />

temporal. Dentro <strong>de</strong>ste perfil, e sem que isto represente <strong>de</strong> modo algum a pretensão <strong>de</strong><br />

unificar arbitrariamente tendências diferentes e até antagônicas, cabe a maioria das correntes<br />

da <strong>Filosofia</strong> contemporânea. Essa multiplicida<strong>de</strong> das tendências filosóficas vigentes<br />

hoje em dia também ocorre no Brasil, como po<strong>de</strong> ser verificado nas quase sete <strong>de</strong>zenas<br />

<strong>de</strong> fascículos trimestrais da estupenda Revista Brasileira <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, tribuna aberta<br />

ao <strong>de</strong>bate especulativo on<strong>de</strong> encontram acolhida todas as tendências do pensamento<br />

atual, confirmando o polimorfismo e a complexida<strong>de</strong> da fisionomia filosófica brasileira,<br />

convivendo no seu regaço as mais <strong>de</strong>sencontradas correntes do especular hodierno.<br />

É que, sem dúvida alguma, a inteligência brasileira chegara, afinal, à sua maiorida<strong>de</strong><br />

filosófica, explicada por Miguel Reale assim: “Com as Faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>,<br />

examinadas estas em sua ação <strong>de</strong> conjunto no panorama mental brasileiro, já começa a<br />

se sentir um complexo <strong>de</strong> resultados, atribuíveis a vários fatores. Subordinando esta<br />

análise aos quatro ângulos, com os quais tenho procurado caracterizar as fases do pensamento<br />

nacional, diria que, quanto ao objeto, alarga-se, atualmente, o campo das indagações<br />

mesmo porque a pluralida<strong>de</strong> das Faculda<strong>de</strong>s existentes no País, operando concomitantemente<br />

como distintos focos irradiantes <strong>de</strong> pensamento (e a fe<strong>de</strong>ralização das<br />

Universida<strong>de</strong>s veio potenciar esse processus, com conseqüências que suponho benéficas)<br />

têm como resultado a afirmação <strong>de</strong> uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tendências: se aqui prevalecem<br />

preocupações <strong>de</strong> caráter metafísico ou gnosiológico, acolá prepon<strong>de</strong>ram orientações<br />

pragmáticas, <strong>de</strong> cunho marcadamente sociológico ou histórico, o que <strong>de</strong>termina<br />

uma convergência enriquecedora <strong>de</strong> perspectivas; quanto à orientação metodológica, a<br />

mesma multiplicida<strong>de</strong> se reproduz, afirmando-se outro vigor e rigor no a<strong>de</strong>stramento do<br />

intelecto, enriquecido por mais objetivo preparo científico: e mais viva compreensão<br />

histórica dos sistemas, vistos, não como construções artificiais <strong>de</strong> valor puramente arquitetônico,<br />

mas como idéias-força integradas concretamente nos diversos ciclos <strong>de</strong><br />

cultura; quanto ao sentido das pesquisas, ten<strong>de</strong>-se a compreen<strong>de</strong>r que a universalida<strong>de</strong><br />

da <strong>Filosofia</strong> está mais nos problemas, antigos ou novos, do que na unida<strong>de</strong> acabada <strong>de</strong><br />

soluções só aparentemente <strong>de</strong>finitivas, e que, paralela ou juntamente com a especulação<br />

pura, que não <strong>de</strong>stoa da comunhão total das idéias <strong>de</strong> nosso tempo, po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve o filósofo<br />

ter olhos para a comunida<strong>de</strong> particular em que se situa e se realiza como homem; e,<br />

finalmente, quanto à atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> filósofo, logicamente <strong>de</strong>flui uma situação mais aberta e<br />

compreensiva, substituída a polêmica pelo diálogo o qual po<strong>de</strong> assumir a veemência dos<br />

<strong>de</strong>bates, mas ditados pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> captar o real na totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas valências.”<br />

Assim sendo, é possível esboçar as correntes e perspectivas no pensamento filosófico<br />

atual no Brasil em quatro gran<strong>de</strong>s grupos: os cientificistas e analiticistas; os cul-<br />

turalistas e historicistas; os i<strong>de</strong>alistas e existencialistas; e os neotomistas e espiritualistas<br />

cristãos. Destaquemos os principais representantes <strong>de</strong>ssas tendências:<br />

52


1 - CIENTIFICISMO E ANALITICISMO<br />

a) Pontes <strong>de</strong> Miranda<br />

A primeira figura a aparecer no panorama das idéias contemporâneas no Brasil é<br />

Pontes <strong>de</strong> Miranda (1894), jurista, sociólogo e pensador, que dá seqüência às tradições<br />

cientificistas da “Escola do Recife”, graças à utilização filosófica que faz das teorias<br />

científicas, meditando os fundamentos da ciência: primeiro do empiriocriticismo <strong>de</strong><br />

Mach e, <strong>de</strong>pois, do neopositivismo do Círculo <strong>de</strong> Viena. Tendo construído sua obra jurídica<br />

e sociológica a partir <strong>de</strong>sses pressupostos críticos, posteriormente Pontes <strong>de</strong> Miranda<br />

ofereceu sua doutrina epistemológica que se apresenta como um esforço <strong>de</strong> eliminação<br />

do irracional (que está na base da relação sujeito-objeto, po<strong>de</strong>ndo ser <strong>de</strong>finido, ao<br />

ver <strong>de</strong> Lima Vaz, como um “nominalismo crítico”.<br />

Em O Problema Fundamental do Conhecimento (1937), sua mais importante obra<br />

do ponto <strong>de</strong> vista filosófico, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Pontes <strong>de</strong> Miranda uma tese bastante original<br />

no campo da Gnosiologia. Para ele, conhecemos o mundo pelas sensações, mas toda<br />

sensação por si só já é uma abstração, ou uma “extração”. O “ser” só se dá a nós abstraído,<br />

isto é: não gostamos da manga, nem cheiramos o cravo ou a violeta, mas sim gostamos<br />

do gôsto <strong>de</strong> manga, cheiramos o cheiro <strong>de</strong> cravo ou <strong>de</strong> violeta. Assim, os sentidos<br />

não nos dão a realida<strong>de</strong> total do mundo, mas apenas aquilo que do mundo nos excita.<br />

Por outro lado, a inteligência, <strong>de</strong>pois que recebe as impressões dos sentidos, não se limita<br />

a representá-las, mas vai além, faz associações, induções, <strong>de</strong>duções, generalizações.<br />

O problema fundamental do conhecimento é, portanto, o <strong>de</strong> saber o que se passa entre a<br />

sensação e o conceito ou o julgamento intelectual.<br />

Com isto, procura o pensador nor<strong>de</strong>stino por termo final à divergência secular<br />

entre i<strong>de</strong>alistas e realistas: a separação entre realismo e i<strong>de</strong>alismo, diz ele, não cabe em<br />

consciência. É estéril discutir se o que conhecemos está realmente no objeto, ou é uma<br />

relação entre sujeito e objeto, on<strong>de</strong> se faz a “extração” dos elementos próprios <strong>de</strong> um e<br />

<strong>de</strong> outro, a fim <strong>de</strong> se obter um conceito que contenha apenas o que é comum a um e a<br />

outro, com eliminação das diferenças. A oposição tradicional entre (su)jeito e (ob)jeto<br />

<strong>de</strong>saparece, afirma Pontes <strong>de</strong> Miranda, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o instante que a nossa inteligência extrai o<br />

“sub” do sujeito e o “ob” do objeto, ficando apenas com o “jeto”, que é o elemento comum<br />

aos dois. Não se trata, como po<strong>de</strong> parecer à primeira vista, <strong>de</strong> mera questão <strong>de</strong><br />

palavras, mas sim da tradução em palavras, <strong>de</strong> uma operação mental, que é a base <strong>de</strong><br />

todo o conhecimento. Extrair os “jetos” (ou “jectos”, <strong>de</strong> que o “jeito” <strong>de</strong> “sujeito” é mera<br />

varieda<strong>de</strong> verbal) dos objetos e do sujeito é assegurar a objetivida<strong>de</strong> e a realida<strong>de</strong><br />

duradoura do conhecimento.<br />

Verificando, ainda, que, normalmente, colocamos um muro divisório entre o espírito<br />

e o mundo, afirma que incumbe à <strong>Filosofia</strong> <strong>de</strong>rrubá-lo, e por dois meios: limpando<br />

a escória, sub-jetiva do sujeito e a escória ob-jetiva do objeto e, ao mesmo tempo,<br />

fazendo que o espírito se observe a si mesmo, “se ponha como objeto na relação e <strong>de</strong>pois<br />

se limpe <strong>de</strong> sub e <strong>de</strong> ob, quer dizer, se torne jeto e jeto”. O mundo não seria diferente<br />

do que é, diz ele, se a nossa consciência fosse diferente, mas o nosso conhecimento<br />

sê-lo-ia, como é diferente o nosso conhecimento do conhecimento do homem ágrafo<br />

e dos animais. Se não tivesse a apreensão <strong>de</strong> si mesma como “jeto”, isto é, in specie, a<br />

consciência não po<strong>de</strong>ria respon<strong>de</strong>r à pergunta: existe o eu <strong>de</strong> outrem? Nem o mundo é<br />

só feito <strong>de</strong> impressões subjetivas ou <strong>de</strong> “pedaços” do espírito, nem o espírito é só feito<br />

<strong>de</strong> representações do mundo exterior: a relação que se traduz pelo conhecimento tem<br />

que eliminar as diversida<strong>de</strong>s e oposições entre eles separando o sub e o ob, isto é, pondo<br />

53


<strong>de</strong> lado o que só é subjetivo no sujeito e o que só é objetivo no objeto, a fim <strong>de</strong> que o<br />

conhecimento venha a constituir uma relação <strong>de</strong> ser a ser, isto é, <strong>de</strong> “jeto” a “jeto”.<br />

Para extrair os “jetos”, porém, que são, por assim dizer, as essências dos objetos (incluindo<br />

entre estes o próprio sujeito), a inteligência humana precisa dos dados da experiência<br />

sensível, que recolhemos através das várias ciências. Assim, a <strong>Filosofia</strong> ou a teoria<br />

do conhecimento precisam do apoio da ciência para serem edificadas: toda filosofia que<br />

<strong>de</strong>spreza a ciência é estéril.<br />

b) Euríalo Canabrava<br />

Pensador polêmico, às vezes agressivo e dogmático, é Euríalo Canabrava (1903),<br />

cuja trajetória especulativa parece percorrer todos os horizontes do céu filosófico, tendo<br />

partido da fenomenologia e do existencialismo, passa pelo neopositivismo, sobretudo na<br />

forma <strong>de</strong> crítica do método e crítica da linguagem que lhe <strong>de</strong>ram Carnap e Morris, para<br />

culminar na plena adoção da chamada filosofia analítica, na acepção, <strong>de</strong> reconhecer na<br />

análise o único procedimento da investigação filosófica, restringindo-a aos fatos observáveis<br />

e às relações entre os fatos. Com isto, o “último” Euríalo Canabrava ten<strong>de</strong> à eliminação<br />

<strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s ou <strong>de</strong> conceitos “em si”, isto é, absolutos e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> toda<br />

observação e pressupostos como realida<strong>de</strong>s ou verda<strong>de</strong>s “últimas”. Daí afirmar, em Estética<br />

da Crítica (1963): “Se admitimos a existência <strong>de</strong> problemas metafísicos, parece<br />

entretanto altamente improvável que eles sejam suscetíveis <strong>de</strong> qualquer espécie <strong>de</strong> solução.<br />

Em última análise, a Metafísica oscila entre o pleno reconhecimento da insolubilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> seus problemas e a aceitação passiva <strong>de</strong> soluções parciais, inspiradas no método<br />

<strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>.” Por isso recomenda a redução da <strong>Filosofia</strong> ao método analítico, “a fim<br />

<strong>de</strong> retirar do seu contexto os resíduos metafísicos que sobrevivem à Crítica mais <strong>de</strong>molidora”,<br />

sendo então a tarefa mais importante da <strong>Filosofia</strong> “esclarecer o mecanismo das<br />

operações construtivas para tornar explícitas as leis que regem a dinâmica interna do<br />

conhecimento”.<br />

A adoção do que ele chama <strong>de</strong> “técnica analítica”, porém, não significa estrita filiação<br />

ao positivismo lógico, con<strong>de</strong>nando Euríalo Canabrava “o equívoco <strong>de</strong> confundir<br />

todo movimento <strong>de</strong> idéias que procura inspirar-se em postulados científicos com o neopositivismo”,<br />

e se fez ele uso do instrumental crítico da logística na análise dos fatores<br />

psicológicos, esclarece que jamais preten<strong>de</strong>u “seguir as pegadas <strong>de</strong> Carnap, Reichenbach<br />

ou Tarski”, pois simplesmente aceitou que “o critério do acerto em Ciências e <strong>Filosofia</strong><br />

é a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus enunciados”, porquanto a <strong>Filosofia</strong> “orienta-se no sentido <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificar o próprio método especulativo com a linguagem”. Para ele, portanto, “o filósofo<br />

recorre à análise das estruturas lingüísticas a fim <strong>de</strong> lançar os alicerces das construções<br />

lógicas que, por sua vez, serviram <strong>de</strong> apoio à superestrutura das ciências matemáticas<br />

e naturais”.<br />

Todavia, para Euríalo Canabrava “a fundamentação científica da <strong>Filosofia</strong> não<br />

elimina os atributos estéticos da linguagem especulativa que veicula os traços marcantes<br />

da obra <strong>de</strong> arte associados aos requisitos puramente formais da construção sistemática”,<br />

cabendo à <strong>Filosofia</strong> “a tarefa <strong>de</strong> elaborar o método, mais uma vez como a Matemática,<br />

para construir estruturas”, pressupondo sua teoria arquitetônica do conhecimento “a<br />

<strong>de</strong>finição da <strong>Filosofia</strong> como método para a construção <strong>de</strong> estruturas”. Conclui então o<br />

pensador mineiro que “nada impe<strong>de</strong>, portanto, <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir a <strong>Filosofia</strong> como arquitetura <strong>de</strong><br />

idéias, cabendo ao pensador a difícil tarefa <strong>de</strong> apoiá-las em fundamentos racionais e<br />

empíricos que resistem à crítica <strong>de</strong>strutiva”, pois “ a <strong>Filosofia</strong> atinge a verda<strong>de</strong> através<br />

<strong>de</strong> sua conceituação metodológica”, constituindo, consoante a terminologia wittgenstei-<br />

54


niana, “um jogo com regras”.<br />

Autêntico guardião das idéias que adota, sua missão é <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa do “conceito <strong>de</strong><br />

<strong>Filosofia</strong> científica contra as tentativas <strong>de</strong> reduzir a ativida<strong>de</strong> especulativa ao mero exercício<br />

verbal ou à divagação inconsistente”, como <strong>de</strong>clara nos Ensaios Filosóficos<br />

(1957). Essa atitu<strong>de</strong> missionária explica-se pelo fato <strong>de</strong> que “nos países sem tradições<br />

em matéria <strong>de</strong> cultura, como o nosso, a tarefa do pensador consiste mais em <strong>de</strong>struir<br />

preconceitos ativos do que em criar propriamente idéias ou teorias”. Assim, para ele a<br />

finalida<strong>de</strong> da construção filosófica “é elaborar a metalinguagem apropriada para discorrer<br />

sobre o conhecimento científico, tomado como linguagem-objeto”, sendo a mais<br />

importante tarefa da <strong>Filosofia</strong> “estabelecer critérios formais e empíricos para a justificação<br />

da teoria científica”, substituindo então a Metafísica (“tipo <strong>de</strong> conhecimento incompleto”)<br />

pela ciência (“mais completo”). Nesse ponto, esclarece: "o que se procura afirmar,<br />

mesmo na hipótese <strong>de</strong> se concluir pela legitimida<strong>de</strong> do conhecimento ontológico<br />

ou metafísico, é o seu caráter incompleto relativamente ao conjunto <strong>de</strong> princípios e leis<br />

que se submetem ao teste da verificação experimental”. Seu propósito, é abrir caminho<br />

ao ensaio oposto à pretensão <strong>de</strong> subordinar a ciência à <strong>Filosofia</strong>, e que consiste “na fundamentação<br />

científica da <strong>Filosofia</strong>”.<br />

c) Os grupos logísticos<br />

Numa linha mais matemática do que filosófica, vêm sendo levados a efeito estudos<br />

<strong>de</strong> lógica simbólica, <strong>de</strong> modo especial no Departamento <strong>de</strong> Matemática da Faculda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, por iniciativa do Prof. E. Farah, no Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro graças às pesquisas <strong>de</strong> Constantino <strong>de</strong> Barros, em São José dos Campos, no<br />

ITA, por obra <strong>de</strong> Leônidas Hegenberg, e em Curitiba, no Departamento <strong>de</strong> Matemática<br />

da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> da Universida<strong>de</strong> do Paraná, sob a direção do Prof. Newton<br />

Carneiro Afonso da Costa.<br />

Newton C. A. da Costa (1929) é autor <strong>de</strong> uma Introdução aos Fundamentos da<br />

Matemática (1962), além <strong>de</strong> inumeráveis artigos publicados na “Revista Brasileira <strong>de</strong><br />

<strong>Filosofia</strong>” e em revistas especializadas no exterior. Consi<strong>de</strong>rando as principais correntes<br />

da filosofia da Matemática atual — logicismo, intuicionismo e formalismo — sugere<br />

ainda uma interpretação lingüística, da Matemática como sendo a única capaz <strong>de</strong> solucionar<br />

os problemas surgidos na sua fundamentação. Para o autor, porém, as correntes<br />

por ele <strong>de</strong>scritas não se mostram capazes <strong>de</strong> resolver os problemas levantados, voltando-se<br />

então para a semiótica: “Uma interpretação conveniente da Matemática <strong>de</strong>ve começar<br />

reconhecendo a incapacida<strong>de</strong> das concepções sintáticas e semânticas para interpretar<br />

e legitimar a diretriz real da perquirição matemática. Concepção apropriada da<br />

Matemática só po<strong>de</strong> ser concepção pragmática” e, para justificar essa tese, discorre<br />

Newton C. A. da Costa sobre a teoria lógica da linguagem, para concluir: “Matemática<br />

pura e semiótica pura não se diferenciam: i<strong>de</strong>ntificam-se inteiramente”.<br />

Daí o pensador paranaense <strong>de</strong>nominar teoria lógica da linguagem o estudo conjunto<br />

da semiótica e metassemiótica, em contraposição à teoria da linguagem no sentido<br />

comum, que abrange apenas a semiótica. Justifica ele a <strong>de</strong>nominação que adota mostrando<br />

que certas questões necessitam, além <strong>de</strong> um estudo lingüístico, um estudo filosófico,<br />

como, por exemplo, a escolha dos critérios justificativos dos juízos que expressam<br />

as leis sintáticas. Como Newton C. A. da Costa afirma que a filosofia da Matemática<br />

<strong>de</strong>ve <strong>de</strong>senvolver-se nos três planos semióticos (sintático, semântico e pragmático), para<br />

po<strong>de</strong>rem ser tratados todos os problemas relevantes para a fundamentação da Matemática,<br />

resulta então que “as ciências são corpos lingüísticos e qualquer tentativa <strong>de</strong> retalhá-<br />

55


los carece <strong>de</strong> fundamento”, compondo o esquema seguinte:<br />

Metassemiótica = filosofia da linguagem<br />

sintática<br />

Pura semântica<br />

Teoria da linguagem Semiótica pragmática<br />

Aplicada lingüística tradicional<br />

teoria da ciência<br />

Se o logístico <strong>de</strong> Curitiba se entremostra aberto a uma possível historização do<br />

formalismo lógico-matemático, posição inteiramente “fechada” é <strong>de</strong> Leônidas Hegenberg<br />

(1925), haurida em Karl Popper, por sinal alucinadamente anti-historicista, como<br />

se nota na Introdução à <strong>Filosofia</strong> das Ciências (1965), do pensador paranaense. Não<br />

obstante esse livro vir preencher uma lacuna na bibliografia filosófica brasileira, teve<br />

ele o condão <strong>de</strong> frustrar filósofos, epistemólogos e lógicos, os primeiros vendo falta <strong>de</strong><br />

preparo especulativo, os segundos falta <strong>de</strong> informação em Ciências Biológicas e os últimos<br />

falta <strong>de</strong> rigor formal. Seja como for, porém Leônidas Hegenberg é um dos mais<br />

ativos divulgadores das correntes filosóficas <strong>de</strong>rivantes do positivismo lógico e da <strong>Filosofia</strong><br />

analítica, como comprovam suas recensões, sempre lúcidas, que a “Revista Brasileira<br />

<strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>” vem publicando, estando sendo aguardada com viva expectativa sua<br />

anunciada Lógica Matemática.<br />

2 - CULTURALISMO E HISTORICISMO<br />

a) Miguel Reale<br />

Das mais relevantes é a tendência filosófica <strong>de</strong>nominada ‘culturalismo’, pelo fato<br />

<strong>de</strong> o tema fundamental da reflexão ser a cultura, na acepção <strong>de</strong> processo autônomo <strong>de</strong><br />

criação especificamente humano e no qual os valores humanos adquirem sentido. A<br />

principal figura <strong>de</strong>ssa tendência é Miguel Reale (1910), em cujo pensamento, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />

suas obras da mocida<strong>de</strong> até aos seus mais recentes escritos, há uma nota ou diretriz dominante<br />

e que é a postulação <strong>de</strong> uma filosofia do concreto infensa às fórmulas vazias ou<br />

às formas abstratas, capaz <strong>de</strong> integrar o homem e as coisas numa unida<strong>de</strong> orgânica. Essa<br />

aspiração <strong>de</strong> concretitu<strong>de</strong> revela-se em múltipos sentidos, notadamente no que se refere<br />

à sua gnosiologia, a qual evolui <strong>de</strong> um realismo crítico um tanto vago, exposto em trabalhos<br />

juvenis (Estado Mo<strong>de</strong>rno, 1934), para um criticismo ontognosiológico que acaba<br />

por apresentar-se, em toda sua plenitu<strong>de</strong>, como historicismo ontognosiológico (Horizontes<br />

do Direito e da História, 1956, e Pluralismo e Liberda<strong>de</strong>, 1963).<br />

Miguel Reale rejeita tanto a tese clássica da subordinação do sujeito ao objeto<br />

como a doutrina oposta <strong>de</strong> Kant, que converte o homem em “legislador da natureza”:<br />

para o pensador paulista, sujeito e objeto são termos que se correlacionam e se implicam,<br />

exigindo-se reciprocamente. Se nenhum <strong>de</strong>les po<strong>de</strong> ser reduzido ao outro, nenhum<br />

<strong>de</strong>les po<strong>de</strong> ser pensado sem o outro, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> resulta serem ambos somente compreensíveis<br />

como momentos <strong>de</strong> um processo dialético <strong>de</strong> implicação e polarida<strong>de</strong>. Por tais mo-<br />

56


tivos, afirma Miguel Reale, a gnosiologia é, em última análise, uma ontognosiologia<br />

<strong>de</strong>stinada a indagar das condições transcen<strong>de</strong>ntais do conhecimento tanto do ponto <strong>de</strong><br />

vista do sujeito (gnosiologia) como do ponto <strong>de</strong> vista do objeto (ontologia, no sentido<br />

que Nicolai Hartmann dá a este vocábulo).<br />

Todavia, ontognosiologia e historicismo se entrelaçam no pensamento realeano,<br />

resultando daí um historicismo ontognosiológico superador do divórcio, <strong>de</strong> fonte kantiana,<br />

entre experiência gnosiológica e experiência ética: “A polarida<strong>de</strong> quer no plano<br />

gnosiológico, quer no plano ético, resolve-se num processo dialético unitário <strong>de</strong> implicação<br />

e polarida<strong>de</strong>: a análise fenomenológica do ato cognitivo ou da ação prática revelanos<br />

a polarida<strong>de</strong> entre teoria e prática, como termos que se correlacionam, e é tal implicação<br />

que condiciona, transcen<strong>de</strong>ntalmente, a unida<strong>de</strong> dialética do espírito, como tal<br />

incompatível com o divórcio feito por Kant entre a instância teorética e a instância prática,<br />

É através da dialética da polarida<strong>de</strong> que será possível restabelecer a co-implicação<br />

entre ‘experiência gnosiológica ética’, reclamada pela unida<strong>de</strong> fundamental do espírito”,<br />

consoante se lê em sua <strong>Filosofia</strong> do Direito (4ª ed., 1965). Desse modo, estabelece-se<br />

uma correlação essencial entre ambas as mencionadas experiências, entre Natureza e<br />

Espírito, entre “ser” e “<strong>de</strong>ver ser”, sustentando Miguel Reale que o valor opera quer<br />

como “categoria lógica” peculiar à compreensão do mundo ético, quer como “categoria<br />

<strong>de</strong>ontológica” ou diretora do processo histórico: é essa ambivalência do valor e a sua<br />

historicida<strong>de</strong> que asseguram a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma filosofia do concreto.<br />

Contudo, importa observar que o historicismo ontognosiológico <strong>de</strong> Miguel Reale<br />

não assume uma atitu<strong>de</strong> agnóstica perante os problemas metafísicos, pois, a seu ver, se<br />

nada po<strong>de</strong>mos dizer do Absoluto em si, no entanto, tudo o que se <strong>de</strong>senrola no âmbito<br />

ontognosiológico (que coinci<strong>de</strong>, no fundo, com o âmbito da experiência histórica) é<br />

condicionado pelo Absoluto, pressuposto, conseqüentemente, como condição transcen<strong>de</strong>ntal<br />

<strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> da “experiência total do homem”. Além disso, em seu “historicismo<br />

axiológico” há um valor fundante que é o próprio homem na universalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

seu “<strong>de</strong>ver ser”: “o ser do homem é o seu <strong>de</strong>ver ser”, sendo “a pessoa humana a fonte<br />

<strong>de</strong> todos os valores”. Ética e ontognosiologia, <strong>de</strong>ssa maneira, se correlacionam na unida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um processo em que a categoria da “totalida<strong>de</strong>” se dialetiza com a “singularida<strong>de</strong>”<br />

<strong>de</strong> seus elementos componentes.<br />

Por isso, em Pluralismo e Liberda<strong>de</strong>, pô<strong>de</strong> afirmar que “a <strong>Filosofia</strong> é a meditação<br />

sobre o que no homem se mostra capaz <strong>de</strong> significação universal”, <strong>de</strong>vendo-se aos<br />

gregos sua <strong>de</strong>scoberta e que consiste em “pensar o pensamento, resolvendo-o na congruência<br />

do conceito e da palavra, na busca do princípio, do eidos, do que é essencial a<br />

cada homem e ao cosmos, como base do entendimento e da comunicação entre os homens”.<br />

Isto porque é no plano das construções filosóficas que ocorre aquela ativida<strong>de</strong><br />

humana, racional, que supera o imediatamente dado “pela integração dos casos particulares<br />

em formas abstratas, em sínteses que só aparentemente se <strong>de</strong>sligam das coisas significadas,<br />

porque, na realida<strong>de</strong>, as compreen<strong>de</strong>m em seus valores essenciais, na sua coerência<br />

íntima e necessitante”.<br />

Por isso também “a <strong>Filosofia</strong> é, igualmente, síntese e unida<strong>de</strong>. Não síntese amorfa<br />

e indiferençada, mas síntese orgânica e <strong>de</strong> processus, unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m, na qual se<br />

preserva a cada parte componente a sua posição específica e própria; nem o todo importa<br />

em absorção ou em predomínio avassalador, mas representa a co-implicação harmônica<br />

<strong>de</strong> peculiarida<strong>de</strong>s intocáveis. A <strong>Filosofia</strong> é racionalida<strong>de</strong>, e é racionalida<strong>de</strong> até<br />

mesmo quando o filósofo põe em realce o papel fundamental das forças emocionais e<br />

intuitivas. Porque a <strong>Filosofia</strong> é também linguagem, pelo menos uma tentativa <strong>de</strong> expressão<br />

rigorosa, tradução em verbo ou em símbolos daquilo que a experiência oferece <strong>de</strong><br />

essencial e duradouro”. Não obstante ser próprio da <strong>Filosofia</strong> “elaborar uma cosmovi-<br />

57


são, ou seja, uma compreensão geral do universo e da vida”, para Miguel Reale “a universalida<strong>de</strong><br />

da <strong>Filosofia</strong> está antes nos problemas do que nas soluções”. Mesmo assim,<br />

“é necessário se lembre que se a <strong>Filosofia</strong> é universal, nem por isso <strong>de</strong>ixa o filósofo <strong>de</strong><br />

receber as influências do meio em que vive, o qual condiciona tanto o conteúdo i<strong>de</strong>ológico<br />

quanto as formas expressionais”.<br />

b) Cruz Costa<br />

Historicismo e pragmatismo confluem no pensamento <strong>de</strong> Cruz Costa (1904), o<br />

mais significativo estudioso da história das idéias no Brasil, caracterizado por um seu<br />

antigo discípulo como “filosofante extravagante e esquisito, que não se propõe nenhuma<br />

construção sistemática”, constituindo sua contribuição num ceticismo sui generis que<br />

não alimenta a sua dúvida em crença, mas a sua crença em dúvida. O que faz a dúvida<br />

<strong>de</strong> Cruz Costa é a crença e o seu apego ao concreto, ao histórico, ao humano, já que a<br />

seu ver, a <strong>Filosofia</strong> como “sistema” é a cristalização <strong>de</strong> um processo que não se interrompe:<br />

é portanto o fenecimento e a morte, recomendando então que dissolver a <strong>Filosofia</strong><br />

como sistema, é mergulhá-la no concreto e torná-la viva e humana.<br />

Assim, o primeiro postulado da filosofia <strong>de</strong> Cruz Costa é esse reiterado apelo às<br />

exigências do humano. O segundo postulado é que o humano é, em todas as suas manifestações,<br />

totalmente histórico, e a História é o único caminho para a compreensão a<strong>de</strong>quada<br />

<strong>de</strong> seu significado. A <strong>Filosofia</strong> como história foi a meta alcançada por Cruz Costa<br />

na sua longa peregrinação pelos livros <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, e é neste ponto que se po<strong>de</strong> vislumbrar<br />

o problema <strong>de</strong> suas predileções filosóficas e das influências que informam e enformam<br />

seu pensamento. Em primeiro lugar, o i<strong>de</strong>alismo histórico <strong>de</strong> Brunschvicg, formulando<br />

a <strong>Filosofia</strong> como a autoconsciência <strong>de</strong> seu passado histórico, e o materialismo<br />

dialético <strong>de</strong> Marx, dando consistência a essa visão histórica pela interpretação econômico-social<br />

<strong>de</strong>sse i<strong>de</strong>alismo. Em seguida, Espinosa, como o i<strong>de</strong>al para a solução monista<br />

das contradições fundamentais, Hegel e Platão, filósofos todos muito mais próximos do<br />

<strong>de</strong>vir histórico do que as sistemáticas filosofias perenes que esquadrinham a realida<strong>de</strong>,<br />

estacando o curso do processo espiritual. Em último lugar, Dilthey, Unamuno e Ortega<br />

y Gasset.<br />

É nessa ambiência que Cruz Costa vai fundamentar a sua posição traduzindo influências<br />

sem dúvida, mas terminando <strong>de</strong>finitivamente uma etapa, pela inauguração <strong>de</strong><br />

um novo caminho, menos ambicioso, mas muito mais ao contato <strong>de</strong> nossas possibilida<strong>de</strong>s<br />

filosóficas. A <strong>Filosofia</strong> no Brasil <strong>de</strong>verá ser, a partir do catedrático jubilado da Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> São Paulo, antes <strong>de</strong> mais nada a consciência <strong>de</strong> seu passado, iluminado à<br />

distância pela verda<strong>de</strong>ira curva <strong>de</strong> suas vicissitu<strong>de</strong>s. Isto é, sendo a <strong>Filosofia</strong> uma ativida<strong>de</strong><br />

vital inseparável da existência e dos problemas da vida, é necessário filosofar sobre<br />

o Brasil, vestindo as idéias com os músculos, o sangue, os nervos da realida<strong>de</strong> presenciada<br />

e aprendida: explicar a sua gênese, analisar a sua natureza, prever as suas diretrizes.<br />

Em suma, é preciso ligarmos a nossa ativida<strong>de</strong> mental aos <strong>de</strong>stinos da nossa História,<br />

porquanto “para que o pensamento não seja mera fantasia sem proveito — como<br />

dizia el-Rei D. Duarte — é mister que não perca contato com a História, com os problemas<br />

reais da vida”.<br />

Por isso pô<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r à pergunta: que pensa da <strong>Filosofia</strong>? nestes termos: “Talvez<br />

nada, talvez tanta coisa que não consigo expressar. Julgo, creio julgar, que a <strong>Filosofia</strong><br />

não é ciência. É uma atitu<strong>de</strong> em face da vida, do mundo; um conhecimento incessantemente<br />

renovado e a se renovar, no que vai gran<strong>de</strong>za e, ao mesmo tempo, miséria <strong>de</strong><br />

sua condição. Com o fra<strong>de</strong> dominicano Maydieu, penso — eu que tão afastado ando do<br />

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pensamento e dos ensinamentos da Igreja — que a aquisição do filósofo é muito pobre<br />

mas permite coor<strong>de</strong>nar muita riqueza. Investigação interminável sobre os problemas do<br />

espírito ou da inteligência, a <strong>Filosofia</strong>, no meu parecer, é abstração que não se per<strong>de</strong> no<br />

abstracionismo. Por certo é a abstração o essencial, talvez, <strong>de</strong> sua tarefa. Mas, por <strong>de</strong>trás<br />

<strong>de</strong>ssas abstrações, <strong>de</strong>sses esquemas, que são produtos <strong>de</strong>ssa única luz que nos po<strong>de</strong><br />

conduzir pela estrada da vida e que é a razão, o que há é o homem na sua aventura. Aventura<br />

que não é apenas aventura do espírito, mas engajamento total no fluir concreto<br />

da existência histórica — história que não é cemitério, mas movimento, ação.” Nesse<br />

mesmo <strong>de</strong>poimento afirma Cruz Costa: “Não me sinto atraído pelo ‘especulativismo’, e<br />

isso, creio, <strong>de</strong>vo-o talvez às minhas origens lusitanas. Não creio ainda que a <strong>Filosofia</strong> se<br />

resuma num mero jogo contemplativo. Ela tem sido e é transformadora do mundo.<br />

Mais: as filosofias não se confun<strong>de</strong>m, a meu ver, com as escolásticas, escolásticas que<br />

são, no dizer <strong>de</strong> Masson-Oursel, pedagogias das ortodoxias.” É o estribilho que reaparece<br />

no Panorama da História da <strong>Filosofia</strong> no Brasil (1960), ao afirmar que, afinal <strong>de</strong><br />

contas, a reflexão filosófica em nosso país “não termina na contemplação do mundo.<br />

Vai além. Ela exige a sua transformação”.<br />

c) Os marxistas<br />

Para um crítico do evolver das idéias sociais e filosóficas, Leandro Kon<strong>de</strong>r, inexiste<br />

no Brasil uma tradição <strong>de</strong> estudos marxistas, porquanto a subestimação da teoria é<br />

uma <strong>de</strong>corrência do sectarismo e do praticismo dos seguidores do marxismo no País,<br />

apontando “o baixo nível teórico do nosso marxismo”. Mesmo assim, algumas figuras<br />

se esforçaram por emergir <strong>de</strong>sses porões, como Astrojildo Pereira (1893-1965), a quem<br />

se <strong>de</strong>vem as primeiras abordagens do fenômeno artístico, do modo especial literário, do<br />

ponto <strong>de</strong> vista diamático. Por outro lado, em Crítica Impura (1963) tem ocasião <strong>de</strong> afirmar<br />

que “o marxismo não é somente um tremendo fermento i<strong>de</strong>ológico, mas igualmente<br />

um guia incomparável <strong>de</strong> investigação e aproximação da verda<strong>de</strong>”. Daí para ele<br />

ser a <strong>Filosofia</strong> marxista “a legítima her<strong>de</strong>ira cultural da <strong>Filosofia</strong> materialista do século<br />

XVIII, e her<strong>de</strong>ira que não apenas recolheu o ilustre legado mas ainda o acresceu e enriqueceu<br />

enormemente, <strong>de</strong>purando-o, <strong>de</strong>sdobrando-o e <strong>de</strong>senvolvendo-o em plano mais<br />

alto, mais vasto e mais fecundo, ou seja, realizando por sua vez uma nova e mais po<strong>de</strong>rosa<br />

revolução i<strong>de</strong>ológica, que exprimia e exprime um novo conteúdo <strong>de</strong> classe”. Para<br />

Astrojildo Pereira, em suma, o marxismo não escraviza, liberta: “Só o marxismo liberta<br />

realmente o espírito, porque só o marxismo liberta o homem <strong>de</strong> toda espécie <strong>de</strong> escravidão<br />

— seja a escravidão <strong>de</strong> base (econômica e política), seja a escravidão conseqüente<br />

(cultural e moral).”<br />

Contudo, on<strong>de</strong> o marxismo se apresenta mais sistematizado é na obra <strong>de</strong> Caio<br />

Prado Júnior (1907), tendo publicado seu primeiro livro <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> em 1952: Dialética<br />

do Conhecimento. Nesse livro, seguindo rigorosamente a “ortodoxia” do materialismo<br />

histórico e dialético da versão soviética, concebe os conceitos a partir do cérebro humano,<br />

materialisticamente, “como reflexos das coisas reais, em lugar <strong>de</strong> conceber as coisas<br />

reais como reflexo <strong>de</strong>ste ou daquele grau do conceito absoluto”. Não sendo essa forma<br />

da dialética do conceito senão o reflexo consciente do movimento dialético do mundo<br />

real, inclui Caio Prado Júnior na dialética também a teoria do conhecimento, já que o<br />

pensar dialético é tão somente o reflexo do movimento que reina em toda a natureza<br />

mediante as oposições.<br />

Para o pensador marxista <strong>de</strong> São Paulo, portanto, o conhecimento é concebido<br />

realisticamente, pois é a matéria que <strong>de</strong>termina a consciência, ou seja, não é o sujeito<br />

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quem engendra o objeto, mas é este que subsiste in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do sujeito, consistindo<br />

o conhecimento no fato <strong>de</strong> que existem no espírito “cópias”, reflexos da matéria.<br />

Isto é: o homem capta a natureza das coisas através dos fenômenos. Assim, Lógica e<br />

Psicologia se vinculam: “a dialética do conhecimento já conta com base segura <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento,<br />

e reatando a gran<strong>de</strong> tradição da <strong>Filosofia</strong> mo<strong>de</strong>rna, rearticulará novamente<br />

a Psicologia e a Lógica, chegando assim à compreensão das operações segundo<br />

as quais se <strong>de</strong>senrola o pensamento”. Extremando este ponto <strong>de</strong> vista, Caio Prado Júnior<br />

não vacila em afirmar que, no futuro, a dialética <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> ser uma lógica “para se tornar<br />

simplesmente o conhecimento da função orgânica do pensamento. Psicologia em<br />

suma”.<br />

Nas Notas Introdutórias à Lógica Dialética (1959) propõe-se Caio Prado Júnior<br />

<strong>de</strong>monstrar a natureza funcional das formas lógicas, isto é, “a maneira pela qual as formas<br />

lógicas <strong>de</strong>sempenham sua função expressiva do pensamento, bem como do conhecimento<br />

que se elabora pelo pensamento”. É essa, a seu ver, a posição dialética diante<br />

da lógica, que lhe permite apresentar algumas indicações relativamente à maneira <strong>de</strong><br />

orientar e conduzir a indagação e pesquisa científica da ativida<strong>de</strong> do pensamento, naquilo<br />

que diz respeito à sua função elaboradora do conhecimento e as suas relações com as<br />

formas lógicas em que a mesma ativida<strong>de</strong> se exprime e exterioriza”, partindo porém <strong>de</strong><br />

uma base experimental e científica, ou seja, a partir da Psicologia como ciência, pois<br />

seu objetivo é situar o ponto <strong>de</strong> partida da pesquisa lógica tendo em vista a “função e<br />

ativida<strong>de</strong> pensante”. Daí <strong>de</strong>nominar a dialética <strong>de</strong> nova lógica, filha e legítima expressão<br />

da ciência mo<strong>de</strong>rna e, por isso mesmo, em condições <strong>de</strong> ser utilizada “conscientemente<br />

e com rigor na elaboração da ciência em geral”, entendida a ciência como “a investigação<br />

empírica e o <strong>de</strong>scobrimento <strong>de</strong> leis objetivas, uma e outra embasadas no método<br />

dialético, isto é, na forma <strong>de</strong> estudar e compreen<strong>de</strong>r o universo como uma totalida<strong>de</strong><br />

em processo”. Desta maneira, a natureza e o objeto da lógica surgem como lídima<br />

acepção científica, amparados por métodos científicos e não como rol e sistematização<br />

<strong>de</strong> normas formais e intuitivas do pensamento discursivo, ocupando a lógica uma posição<br />

relevante no campo da pesquisa e elaboração científicas. “Isto porque — afirma<br />

Caio Padro Júnior — a análise do progresso cognitivo representará o termo <strong>de</strong> ligação e<br />

entrosamento da lógica em disciplinas afins já constituídas em bases científicas e dispondo<br />

<strong>de</strong> métodos e procedimentos científicos <strong>de</strong> elaboração que se esten<strong>de</strong>rão assim<br />

naturalmente à lógica.”<br />

Marxista convicto e, ao mesmo tempo, convicto adversário do PCB não obstante<br />

ter sido um dos seus fundadores, é o médico pernambucano Leôncio Basbaum (1907)<br />

que, em sua obra principal Sociologia do Materialismo: Introdução à História da <strong>Filosofia</strong><br />

(1959) <strong>de</strong>nuncia o dogmatismo dos dirigentes comunistas brasileiros que chegam<br />

“por vezes a atingir o ridículo”, pois os mentores do PCB controlavam os “contrabandos<br />

i<strong>de</strong>ológicos” proibindo “aos seus membros trabalhos teóricos originais”, o que explica a<br />

indigência do marxismo no pensamento nacional. Contra isso rebelou-se Leôncio Basbaum<br />

ao conceber e executar sua obra na linha <strong>de</strong> uma história social das idéias e sob o<br />

alento metodológico <strong>de</strong> que não existe um “pensar em geral”, já que cada ser <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado<br />

tipo pensa <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um mundo <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminado tipo, para cumprir uma função<br />

<strong>de</strong> vida <strong>de</strong>terminada.<br />

De acordo com este ponto <strong>de</strong> vista Leôncio Basbaum vê a <strong>Filosofia</strong> como “concretização<br />

<strong>de</strong> um espírito ou <strong>de</strong> uma idéia que surge como conseqüência das necessida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> uma época ou <strong>de</strong> uma classe, em geral ambas as coisas. Ela se encarrega <strong>de</strong> justificar<br />

esse espírito pela experimentação ou pela razão, no sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar a verda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sse conceito. É seu papel, ainda, difundi-lo e propagá-lo”. Daí a <strong>Filosofia</strong> não ser<br />

para ele pura abstração, um <strong>de</strong>rivativo, uma “fuga” das preocupações ou da rotina <strong>de</strong><br />

60


cada dia, mas um instrumento <strong>de</strong> ação e pesquisa do pensamento a serviço do homem,<br />

porquanto “<strong>de</strong>vemos repelir qualquer idéia <strong>de</strong> que a <strong>Filosofia</strong> seja um quadro exposto à<br />

contemplação passiva do homem, ou, mesmo, um entorpecente para mergulhá-lo em<br />

doces sonhos etéreos enquanto esquece a realida<strong>de</strong> da vida e o muito que há a fazer <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>la”. Isto é: “a <strong>Filosofia</strong> é, antes <strong>de</strong> mais nada, em primeiro lugar, e acima <strong>de</strong> tudo,<br />

uma arma, uma ferramenta, um instrumento <strong>de</strong> ação com a ajuda do qual o homem conhece<br />

a natureza e busca o conforto físico e espiritual para a vida”. Portanto, nenhuma<br />

<strong>Filosofia</strong> terá valida<strong>de</strong> se não estiver ligada às preocupações <strong>de</strong> uma época e só terá o<br />

nome <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> se nascer ou renascer sob o impulso dos acontecimentos exteriores,<br />

condicionada pelas condições históricas que compreen<strong>de</strong>m “as formas da vida econômica,<br />

social e política da época”, resultando assim “uma correlação íntima e profunda<br />

entre as duas coisas: o pensador e sua época”.<br />

Por isso “a <strong>Filosofia</strong> caminha paralelamente à História, isto é, a primeira sofre<br />

seus altos e baixos no <strong>de</strong>curso da sua evolução, acompanhando passo a passo a evolução<br />

da segunda”, sendo ambas — <strong>Filosofia</strong> e História — ativida<strong>de</strong>s sociais humanas que<br />

não são porém simples produto do livre-arbítrio já que “existe entre o homem e a vida<br />

social uma estreita correlação, um profundo entrelaçamento, pelo qual atuam um sobre<br />

o outro, modificando-se reciprocamente”. Desta maneira, a <strong>Filosofia</strong> não é apenas um<br />

instrumento para a compreensão do mundo e interpretação dos seus fenômenos. É, também,<br />

um instrumento <strong>de</strong> ação e uma arma política, e, como tal, tem sido utilizada, em<br />

todos os tempos, conscientes ou inconscientemente”, o que explica por que “todos os<br />

doutrinadores políticos buscam uma base filosófica para a ação”.<br />

Claro está que, <strong>de</strong> acordo com Leôncio Basbaum, a <strong>Filosofia</strong>, por si só, não po<strong>de</strong><br />

resolver os problemas “que afetam <strong>de</strong> modo geral a humanida<strong>de</strong> inteira”, sendo ela porém<br />

“indispensável para compreen<strong>de</strong>r o Universo e seus problemas, sejam estes físicos<br />

ou sociais. Não obstante traduzir o sentir, o pensar e o agir do homem, é evi<strong>de</strong>nte que<br />

este não se alimenta <strong>de</strong> filosofia: “mas, sem dúvida nenhuma, com a ajuda da filosofia”,<br />

resultante que é “dos combates sociais do homem, ou dos grupos humanos, dos meios<br />

<strong>de</strong> vida, do modo <strong>de</strong> produção, da técnica, das relações sociais, das relações <strong>de</strong> classe. É<br />

o resultado da infra-estrutura das socieda<strong>de</strong>s, e, ao mesmo tempo, age sobre essa infraestrutura”.<br />

Em suma: “por toda a História, encontramos a técnica e as conseqüentes relações<br />

sociais <strong>de</strong> produção influenciando o <strong>de</strong>senvolvimento da Ciência, da História e,<br />

portanto, da <strong>Filosofia</strong>”. Com isto, revela-se o pensador pernambucano a<strong>de</strong>pto <strong>de</strong> um<br />

marxismo “aberto” sem intenções revisionistas, contrário a qualquer dogmatismo e, ao<br />

mesmo tempo, fiel ao espírito do humanismo diamático.<br />

d) Álvaro Vieira Pinto<br />

Corrente afim ao historicismo pragmático <strong>de</strong> Cruz Costa, e impregnada <strong>de</strong> marxismo,<br />

é o chamado isebismo (da sigla ISEB, isto é, Instituto Superior <strong>de</strong> Estudos Brasileiros,<br />

que se propunha uma interpretação original da realida<strong>de</strong> nacional em face do<br />

fenômeno que assume caráter dominante nas manifestações da vida brasileira: o fenômeno<br />

do <strong>de</strong>senvolvimento), cuja figura mais representativa, no plano filosófico, é Álvaro<br />

Vieira Pinto (1909) que hoje se encontra transterrado na Checoslováquia <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

ter perdido a cátedra e os direitos políticos.<br />

Tendo esboçado um programa na aula inaugural dos cursos do ISEB em 1956,<br />

publicada sob o título I<strong>de</strong>ologia e Desenvolvimento, que representa uma verda<strong>de</strong>ira<br />

“suma” do pensamento isebiano, formulou em quatro proposições logicamente concatenadas<br />

o programa teórico que, <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>senvolveu, em 1960, nos dois alentados tomos<br />

61


<strong>de</strong> Consciência e Realida<strong>de</strong> Nacional. São elas: a) sem i<strong>de</strong>ologia do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

não há <strong>de</strong>senvolvimento nacional; b) a i<strong>de</strong>ologia do <strong>de</strong>senvolvimento tem, necessariamente,<br />

<strong>de</strong> ser fenômeno <strong>de</strong> massas; c) o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento é função da consciência<br />

das massas; d) a i<strong>de</strong>ologia do <strong>de</strong>senvolvimento tem <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r da consciência<br />

das massas. Como se vê, a reflexão <strong>de</strong> Vieira Pinto gira, <strong>de</strong> início, em torno dos conceitos<br />

centrais <strong>de</strong> “i<strong>de</strong>ologia” e “consciência”, já que, a seu ver, o <strong>de</strong>senvolvimento é uma<br />

realida<strong>de</strong> que obe<strong>de</strong>ce a causantes ou condicionantes i<strong>de</strong>ológicos e conscienciais. Com<br />

isto sua obra encerra um primeiro ciclo <strong>de</strong> interpretações não só sociológicas mas especificamente<br />

filosóficas do processo <strong>de</strong> mudança, em rápida aceleração, da socieda<strong>de</strong><br />

brasileira.<br />

Todavia, parece fora <strong>de</strong> dúvida que não empreen<strong>de</strong> Vieira Pinto uma pesquisa<br />

mas propõe uma interpretação; a “realida<strong>de</strong> nacional” não é, em nenhum momento da<br />

sua obra, objeto, que se procura reconstituir nas suas componentes específicas — históricas,<br />

enconômicas, sócio-culturais, políticas mas é um dado supostamente conhecido,<br />

do qual se oferece a única interpretação que se crê válida, o que levou Lima Vaz a afirmar<br />

que “não estamos diante <strong>de</strong> uma obra aporêtica, indagadora, mas <strong>de</strong> uma obra tética,<br />

<strong>de</strong>finidora”, porquanto “na verda<strong>de</strong>, a intenção <strong>de</strong> Vieira Pinto é oferecer-nos uma<br />

ontologia dialética da ‘realida<strong>de</strong> nacional’ e esta surge, conseqüentemente, aos seus<br />

olhos, com as características <strong>de</strong> um dado primordial que não <strong>de</strong>ve ser questionado em si<br />

mesmo”.<br />

Partindo <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> nacional que se <strong>de</strong>fine, implicitamente, pelo seu status<br />

<strong>de</strong> sub<strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong> alienação colonial, tenta o autor, consoante Lima Vaz,<br />

construir uma i<strong>de</strong>ologia do <strong>de</strong>senvolvimento do País em termos da dialética “consciência-realida<strong>de</strong>”,<br />

a partir da concepção materialista da “consciência-reflexo”. Com efeito,<br />

na “introdução” <strong>de</strong> sua obra principal o autor, embora recusando-se a abordar o tema<br />

geral das relações entre a consciência e o ser, reconhece a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma opção<br />

preliminar diante do problema ontológico da natureza da consciência; e, efetivamente,<br />

opta por uma concepção da primazia da objetivida<strong>de</strong> ou do ser sobre a consciência, mas<br />

inflectindo-a <strong>de</strong>cididamente no sentido da teoria materialista da consciência-reflexo.<br />

Desta maneira, toda a construção <strong>de</strong> Vieira Pinto assenta na distinção fundamental<br />

entre “consciência ingênua” e “consciência crítica”, como formas inautêntica e autêntica<br />

em face da realida<strong>de</strong> nacional, aparecendo a primeira como alienada com relação<br />

às condições objetivas do processo <strong>de</strong> que participa, ao passo que a segunda é a forma<br />

<strong>de</strong> consciência possível <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado momento do processo segundo o seu conteúdo<br />

real. Daí afirmar ele que, como tal, a “consciência crítica” é a autêntica consciência<br />

histórica <strong>de</strong> uma época ou <strong>de</strong> uma clara situação histórica, <strong>de</strong>finindo então a consciência<br />

alienada ou ingênua “aquela que não tem consciência dos fatores e condições que a <strong>de</strong>terminam”,<br />

e a consciência crítica “aquela que tem clara consciência dos fatores e condições<br />

que a <strong>de</strong>terminam”, constituindo-se em formas fundamentais <strong>de</strong> consciência na<br />

compreensão do processo histórico em face da “realida<strong>de</strong> nacional”. Naturalmente essa<br />

posição é discutível e foi, inclusive, discutida, <strong>de</strong> modo especial por Lima Vaz numa<br />

nota crítica publicada na revista Síntese (n.° 14, 1962) e por Gérard Lebrun em outra<br />

nota crítica na Revista Brasiliense (n.° 44, 1962). Mas, seja como for, tem Vieira Pinto<br />

assegurado seu lugar na história do pensamento brasileiro, marcando o aparecimento <strong>de</strong><br />

sua obra um momento importante na evolução da filosofia praticada entre nós, principalmente<br />

por sua intenção participadora e militante.<br />

62


3 - IDEALISMO E EXISTENCIALISMO<br />

a) Renato Cirell Czerna<br />

O vocábulo “i<strong>de</strong>alismo” <strong>de</strong>fine, genericamente, os diversos sistemas mo<strong>de</strong>rnos<br />

que reduzem o ser ao pensamento, as “coisas” ao espírito, ou seja, é a concepção <strong>de</strong><br />

acordo com a qual verda<strong>de</strong>iramente real é apenas o ser espiritual e i<strong>de</strong>al. Essa submissão<br />

aos po<strong>de</strong>res do espírito oferecida pela persistente tradição hegeliana que se renova<br />

no começo do século XX com contribuições originais, especialmente na Itália, Alemanha<br />

e Inglaterra, acaba por impor-se contra o positivismo então imperante. Com o novo<br />

i<strong>de</strong>alismo é reafirmada a origem espiritual <strong>de</strong> toda a realida<strong>de</strong> empiricamente <strong>de</strong>terminada,<br />

restabelecendo-se assim o primado do pensamento ou do i<strong>de</strong>al. Mas o “pensamento”,<br />

ao qual esse i<strong>de</strong>alismo outorga o primado, é ele mesmo “prática”: não é o pensamento<br />

que, fixo em esquemas irreformáveis, contempla imóvel o seu objeto, à maneira<br />

do velho intelectualismo, mas o pensamento que se faz no dinamismo da vida e da História.<br />

No Brasil o pensador que, talvez, ostenta a formação mais rigorosamente i<strong>de</strong>alista,<br />

haurida em Kant e Hegel e seus epígonos <strong>de</strong> ontem e <strong>de</strong> hoje, é Renato Cirell Czerna<br />

(1922). Numa primeira fase <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong> especulativa nota-se nítida influência <strong>de</strong><br />

certas correntes neokantianas, e <strong>de</strong> autores como Bruno Bauch ou Fritz Medicus, consoante<br />

se po<strong>de</strong> observar nos ensaios enfeixados em Natureza e Espírito (1949) ou em alguns<br />

dos estudos <strong>de</strong>pois reunidos nos Ensaios <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> Jurídica e Social (1965), nos<br />

quais procura fugir da total i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e da absoluta imanência, através <strong>de</strong> uma “objetivida<strong>de</strong><br />

lógica e ética funcional”, característica <strong>de</strong> certo i<strong>de</strong>alismo crítico. Todavia, a<br />

partir <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> Como Conceito e Como História (1950) já se faz sentir o primeiro<br />

contato com problemas e idéias <strong>de</strong> cunho mais acentuadamente neo-hegeliano (especialmente<br />

as que caracterizam o neo-hegelismo italiano). A influência direta do historicismo<br />

italiano e, sobretudo, do atualismo <strong>de</strong> Gentile se intensifica posteriormente, po<strong>de</strong>ndo<br />

ser observado <strong>de</strong> modo especial em suas idéias filosófico-jurídicas (por exemplo,<br />

em A <strong>Filosofia</strong> Jurídica <strong>de</strong> Bene<strong>de</strong>tto Croce, 1955), já que, quanto à realida<strong>de</strong> jurídica,<br />

no enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Renato Cirell Czerna, a solução i<strong>de</strong>alista permanece, em gran<strong>de</strong> parte,<br />

válida, assumindo sua posição, neste ponto, o cunho <strong>de</strong> um historicista amplamente “coletivista”.<br />

Mas, a realida<strong>de</strong> jurídica é uma realida<strong>de</strong> “provisória”, um momento no todo<br />

como processo do Absoluto, e é quanto a esse “todo” que o problema do i<strong>de</strong>alismo e <strong>de</strong><br />

sua concepção do universo se põe, globalmente. Quanto a este problema, Renato Cirell<br />

Czerna, que atravessou uma fase <strong>de</strong> “ortodoxia” atualista (porém, na chamada “es-<br />

querda” gentileana), sente, mais tar<strong>de</strong>, que o i<strong>de</strong>alismo está em crise, embora afirme, a<br />

partir <strong>de</strong> um certo esquema historiográfico, a necessida<strong>de</strong> imprescindível <strong>de</strong> mantê-lo<br />

como etapa do processo histórico-filosófico, a ser atravessada, para que se possa fundamentar<br />

uma problemática teoricamente válida, o que invalida os “saltos” laterais ou<br />

os “abandonos” precipitados, somente possíveis “se, havendo penetrado totalmente o<br />

sentido e o significado da posição em apreço, e permaneça, que possa vir a significar<br />

uma válida reivindicação posterior”, pois o que “justifica” os superamentos não é o tempo<br />

cronológico, mas o transcen<strong>de</strong>ntal, “ou seja, o que ultrapassa um momento, porque o<br />

supera enquanto esgota, especulativamente, os seus elementos <strong>de</strong>terminando (pondo-se)<br />

como explicação <strong>de</strong> todos os motivos <strong>de</strong> um problema ou <strong>de</strong> um sistema”.<br />

Em virtu<strong>de</strong> disso, o “como” sair, coerentemente, da experiência i<strong>de</strong>alista, constitui<br />

o ponto <strong>de</strong> divergência <strong>de</strong> Renato Cirell Czerna com relação a antigos gentileanos,<br />

63


como Ugo Spirito, Felice Battaglia ou Michele Fe<strong>de</strong>rico Sciacca. Nessa or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> pesquisas<br />

é que se situam alguns dos estudos reunidos no livro <strong>de</strong> 1965. Polemizando sobretudo<br />

contra a tendência <strong>de</strong> certos ex-i<strong>de</strong>alistas <strong>de</strong>, através da insatisfação <strong>de</strong>ixada<br />

pela solução imanentista, voltar à “transcendência” (à transcendência pela imanência),<br />

Renato Cirell Czerna ten<strong>de</strong> a acentuar a inesgotabilida<strong>de</strong> do “pensamento pensante” da<br />

subjetivida<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>ntal, remontando à “condição absoluta anterior”, “irracionalida<strong>de</strong>”<br />

anterior que consiste em pôr a racionalização como processo, numa posição que<br />

lembra a do segundo Schelling, mas que, na explicitação e racionalização condicionante<br />

do processo dialético infinito do espírito, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> conter elementos <strong>de</strong> origem hegeliana:<br />

“para nós — diz — o que transcen<strong>de</strong> o ato, o que é inesgotável ao seu processo,<br />

não é algo <strong>de</strong> exterior e posterior, a que ele não chega agora, mas a fonte à qual não<br />

volta. — Nós não caminhamos para o futuro, ultrapassamos a divinda<strong>de</strong> que nos é anterior”;<br />

e “a autoconsciência transcen<strong>de</strong>ntal remete à sua inobjetivável condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>.<br />

Mas isso não po<strong>de</strong> significar remeter a uma instância transcen<strong>de</strong>nte, e por isso<br />

objetiva, exatamente em virtu<strong>de</strong> da afirmação <strong>de</strong> inobjetivida<strong>de</strong> da condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong><br />

do ato, como tal, a subjetivida<strong>de</strong> que põe é o inefável, que porém, vive <strong>de</strong>sse processo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>smisterificação, e se explicita em objetivações perenemente ultrapassadas.<br />

Na negativida<strong>de</strong> do Absoluto (que se nega como objetivação, é a negação do instaurante<br />

como Absoluto) está a condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> da infinitu<strong>de</strong> do processo”. Partindo <strong>de</strong><br />

uma exigência <strong>de</strong> rigor metodológico, com referência à superação do impasse i<strong>de</strong>alista,<br />

Renato Cirell Czerna tenta chegar, neste contexto, a uma nova posição metafísica <strong>de</strong><br />

cunho panteístico sui generis que, se <strong>de</strong> um lado expressa a fundamental tendência monista<br />

do filósofo paulista, <strong>de</strong> outro lado é conseqüência puramente formal, a partir da<br />

valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> certas premissas infra-sistemáticas rigorosamente <strong>de</strong>senvolvidas e animadas<br />

por certo espírito polêmico.<br />

b) Vicente Ferreira da Silva<br />

Naturalmente o i<strong>de</strong>alismo absoluto <strong>de</strong> origem hegeliana ou <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>rivações<br />

não resolve o problema da pessoa humana mas, por assim dizer, é “engolido” por ele<br />

por entendê-lo como manifestação empírica e efêmera. Contra essa <strong>de</strong>glutinação do<br />

existente se volta o existencialismo, que é a manifestação <strong>de</strong> revolta da pessoa contra as<br />

forças absorventes do i<strong>de</strong>alismo. Essa revolta, porém, não é apenas contra o hegelianismo<br />

e sua prole, como também contra a razão, já que a pessoa humana, na sua irredutível<br />

unida<strong>de</strong> e originalida<strong>de</strong>, quer emergir <strong>de</strong> todas as superestruturas i<strong>de</strong>ais, que a obliteram,<br />

com sua liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão do próprio <strong>de</strong>stino. Também emerge, sem nenhuma<br />

presunção <strong>de</strong> absolutida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> infinida<strong>de</strong>, com o reconhecimento <strong>de</strong> sua finitu<strong>de</strong>, reconhecendo-se<br />

limitado, “situado” num ambiente particular, com a morte que a cada momento<br />

o insidia. Do conflito entre a exasperada afirmação da liberda<strong>de</strong> e o sentido inelutável<br />

da necessida<strong>de</strong> e da morte nasce o tom trágico que reveste o existencialismo,<br />

tomado <strong>de</strong> frêmitos <strong>de</strong> rebelião orgulhosa e <strong>de</strong> arrepios angustiantes do nada.<br />

O mais importante filósofo existencialista brasileiro é Vicente Ferreira da Silva<br />

(1916-1963), tendo passado antes pela Logística (é autor do primeiro livro brasileiro<br />

sobre o assunto: Elementos <strong>de</strong> Lógica Matemática, 1940), entendida especialmente como<br />

instrumento <strong>de</strong> pesquisa filosófica, assumindo uma atitu<strong>de</strong> bastante análoga à dos<br />

filósofos analíticos hodiernos e influenciado enormemente por Bertrand Russell e pelo<br />

Círculo <strong>de</strong> Viena, constituindo-se, consoante a observação <strong>de</strong> Newton C. A. da Costa,<br />

“<strong>de</strong>ntro da história da Lógica entre nós, em radiosa luz, algo isolada e que cedo se apagou<br />

por se ter voltado para questões <strong>de</strong> natureza totalmente diversa”. Toda sua medita-<br />

64


ção está reunida nas Obras Completas (1.° vol., 1964, 2.° vol., 1966), editadas pelo Instituto<br />

Brasileiro <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>.<br />

O ponto <strong>de</strong> partida da crença filosófica <strong>de</strong> Vicente Ferreira da Silva está vinculado<br />

à doutrina da Dialética Transcen<strong>de</strong>ntal kantiana, que coloca o mundo não como<br />

correlato objetivo <strong>de</strong> um ato do conhecimento transcen<strong>de</strong>nte, mas como <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> uma<br />

experiência infinita. Esta tese torna impossível qualquer filosofia do objeto em <strong>de</strong>trimento<br />

<strong>de</strong> uma filosofia do sujeito. O objetivo da reflexão filosófica é, portanto, sempre<br />

e unicamente, a ação humana em sua dialética interna e em seus <strong>de</strong>senvolvimentos. Por<br />

isso as ciências do espírito, a antropologia filosófica e a ontologia existencial completam<br />

o quadro das disciplinas propriamente filosóficas. Isto porque qualquer possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> uma representação naturalística do real, baseada nas categorias do objeto, é limitada<br />

pela redução contínua dos objetos ao plano transcen<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> sua possibilida<strong>de</strong>. Daí<br />

também eliminar qualquer oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma concepção vitalista, <strong>de</strong> tipo bergsônico,<br />

ficando assim a liberda<strong>de</strong> entendida como única fundação para uma elucidação do sentido<br />

último do real: “a <strong>Filosofia</strong>, como queria Fichte, é uma extenuada análise do conteúdo<br />

infinito da liberda<strong>de</strong> humana”.<br />

Desta maneira, a referência da existência finita a um po<strong>de</strong>r finito irracional <strong>de</strong>sempenha<br />

um papel central na antropologia do filósofo brasileiro. Ou seja: partindo da<br />

última fase <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger, interpretando-a e continuando-a num sentido positivo, achava<br />

Vicente Ferreira da Silva que era preciso superar o antropocentrismo na <strong>Filosofia</strong> e que<br />

era necessário enten<strong>de</strong>r o homem como ec-sistência, isto é, em seu habitar-ec-stático na<br />

proximida<strong>de</strong> do Ser e, com isso, em sua <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> um processo transcen<strong>de</strong>ntalepocal.<br />

Dissera ele: “Assistimos neste momento histórico a uma rotação da especulação<br />

filosófica do plano da iniciativa subjetiva e antropocêntrica para uma nova dimensão ecstático-transcen<strong>de</strong>nte,<br />

isto é, para a dimensão dos po<strong>de</strong>res projetivos <strong>de</strong>svelantes. O<br />

domínio do Ser confun<strong>de</strong>-se com esta região <strong>de</strong> iniciativas superiores, com esta vida<br />

poética em si e por si, que tem na palavra e no mito uma <strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> revelação.”<br />

É <strong>de</strong> Schelling que o pranteado filósofo <strong>de</strong>rivou, explicitamente, a tese que a<br />

consciência tem a sua evolução <strong>de</strong>terminada em tudo e por tudo pelas forças teogônicas:<br />

os <strong>de</strong>uses são as verda<strong>de</strong>iras forças plasmadoras da cultura e da História. E o estudo do<br />

segundo Hei<strong>de</strong>gger fortaleceu a sua opinião da causalida<strong>de</strong> primordial do fato religioso<br />

na configuração do orbe cultural. Em consonância com o conhecido enunciado hei<strong>de</strong>ggeriano<br />

da “diferença ontológica” entre o ente e o ser, a totalida<strong>de</strong> do ente, ou melhor, a<br />

totalida<strong>de</strong> das possibilida<strong>de</strong>s ou <strong>de</strong>sempenhos históricos são <strong>de</strong>svelados pelo projeto<br />

básico <strong>de</strong> uma cultura. Ou seja: o ser é para Hei<strong>de</strong>gger, essencialmente, projeto. O ente,<br />

pelo contrário, são as coisas e as possibilida<strong>de</strong>s franqueadas e abertas pelo esboço projetivo<br />

original.<br />

Na linha <strong>de</strong>ssas consi<strong>de</strong>rações, o homem, com toda a sua realida<strong>de</strong> externa e interna,<br />

passa a ser um ente entre outros, um ente obnoxium totalmente configurado pelo<br />

po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>s-fechante do ser. Nas palavras da Carta Sobre o Humanismo, <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger,<br />

entendia Vicente Ferreira da Silva que o homem não é o Senhor do Ser, mas sim o pastor<br />

do ente. Cabe ao homem pastorear os <strong>de</strong>sempenhos e oportunida<strong>de</strong>s consignados<br />

pelos <strong>de</strong>uses. Daí o ocorrer próprio do projeto <strong>de</strong> confundir com a parúsia ou irrupção<br />

do divino (do Deus ou dos <strong>de</strong>uses) na área da História. Por isso pô<strong>de</strong> afirmar Lima Vaz<br />

que “os traços fundamentais do pensamento <strong>de</strong> Vicente Ferreira da Silva distribuem-se<br />

entre uma aguda crítica da cultura antropocêntrica do Oci<strong>de</strong>nte (<strong>de</strong> que o marxismo é,<br />

talvez, o último capítulo), e a proposição <strong>de</strong> uma nova via <strong>de</strong> acesso às fontes ordinárias<br />

do ser, que permita a superação <strong>de</strong> um ciclo cultural já agora irremediavelmente abandonado<br />

ao dilaceramento dos seus absurdos”.<br />

65


Assim, o pensamento <strong>de</strong> Vicente Ferreira da Silva envolve um historicismo <strong>de</strong><br />

base e um radical antiintelectualismo, parecendo dominado, ainda na linha hei<strong>de</strong>ggeriana,<br />

pelo mais profundo pessimismo: uma experiência do ser que seja abandono à mercê<br />

do processo mitológico não é só a perda <strong>de</strong> qualquer sentido para a vida humana — é o<br />

<strong>de</strong>samparo e a perda da própria essência do homem, ou seja, “o sujeito humano [...] subjaz<br />

à negativida<strong>de</strong> e habita no interior do nada”. Com isto, o existencialismo do radical<br />

“atiramento” hei<strong>de</strong>ggeriano termina assim no i<strong>de</strong>alismo fantástico <strong>de</strong> um mundo mágico.<br />

É o i<strong>de</strong>alismo crepuscular do Mito, implícito na meditação vicentina que até à sua<br />

morte tentara ele apresentar uma transcrição “pulsional” e volitiva das filosofias <strong>de</strong> Schelling<br />

e <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger. Todavia, a escala entis para Vicente Ferreira da Silva era essencialmente<br />

um plexo passional, um sistema <strong>de</strong> “pontos <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>”, sistema suscitado<br />

pelo Ser, entendido agora como uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> fascinação onímoda, pois, a seu ver, o<br />

que realmente irrompe com o <strong>de</strong>bruçar-se dos <strong>de</strong>uses é um tipo cordial <strong>de</strong> ser, uma ordo<br />

amoris: o acontecer do projeto é uma polarização do querer, é uma modalida<strong>de</strong> histórica<br />

do querer, um tipo <strong>de</strong> coração. Daí não ser fora <strong>de</strong> propósito afirmar que o pensamento<br />

do filósofo tragicamente arrebatado à vida tinha por meta uma philosophia cordis, buscando<br />

a pessoa íntima ou profunda na esfera da cordialida<strong>de</strong>.<br />

c) Gerd A. Bornheim<br />

Na mesma linha hei<strong>de</strong>ggeriana encontra-se o pensador gaúcho Gerd A. Bornheim<br />

(1929) que, em seu principal livro filosófico, Motivação Básica e Atitu<strong>de</strong> Originante<br />

do Filosofar (1961) propõe-se estudar — e revelar — o comportamento originante<br />

do filosofar e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esclarecer a problemática que tal comportamento<br />

implica. Isto porque a atitu<strong>de</strong> inicial do filósofo é que <strong>de</strong>termina o caráter último <strong>de</strong> sua<br />

filosofia, ou seja, aquele específico comportamento que leva o homem a ocupar-se da<br />

<strong>Filosofia</strong>. Como se vê, tem em vista ele um estudo da consciência filosófica <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua<br />

etapa ingênua até ao <strong>de</strong>spertar para o problema do sentido da realida<strong>de</strong>.<br />

Todavia, no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ste esquema é flagrante sua posição antihistoricista.<br />

Por exemplo: “A legitimida<strong>de</strong> da <strong>Filosofia</strong> não po<strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cer a uma pesquisa<br />

reduzida ao estritamente histórico”, já que “por mais que se busque causas históricas<br />

para explicar a gênese do pensamento filosófico, por mais ricas que sejam as conclusões<br />

alcançadas nesse domínio, sempre sobrará um resíduo irredutível e, por assim<br />

dizer, refratário à explicação causal: sempre cairemos na necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aludir a um<br />

‘milagre grego’. Por isso “não há ciência, não há intuição, não há amor que possa fazer<br />

um indivíduo compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> maneira absoluta um outro indivíduo, seja pessoa ou fato<br />

cultural, histórico”.<br />

Na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seu ponto <strong>de</strong> vista argumenta Gerd A. Bornheim: “Procurando estudar<br />

Espinosa como um conjunto lógico <strong>de</strong> <strong>de</strong>duções ou a partir <strong>de</strong> tudo o que condiciona,<br />

historicamente, o seu pensamento, po<strong>de</strong>rei compreen<strong>de</strong>r tudo — exceto Espinosa:<br />

a alma <strong>de</strong> seu pensamento me permanecerá inacessível. Neste sentido, po<strong>de</strong>mos dizer<br />

que a <strong>Filosofia</strong> não é a História da <strong>Filosofia</strong>, mas o filosofar, <strong>de</strong>ste filosofar que radica<br />

em uma resolução própria <strong>de</strong> todo autêntico filósofo, e que é da or<strong>de</strong>m da eternida<strong>de</strong>.”<br />

Daí aduzir o autor: “Se isto é certo, <strong>de</strong>vemos afirmar que a <strong>Filosofia</strong> não se faz a partir<br />

da exteriorida<strong>de</strong>, ou <strong>de</strong> um comportamento exterior, abstrato, mas a partir da interiorida<strong>de</strong>.”<br />

Em suma: “não se filosofa simplesmente porque se está situado <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma<br />

cultura à qual pertence a <strong>Filosofia</strong>”, e sim “a <strong>Filosofia</strong> é uma ocupação do homem que<br />

encontra nele seu ponto <strong>de</strong> partida, como também seu ponto <strong>de</strong> chegada”.<br />

Para Gerd A. Bornheim, portanto, a História é impotente para resolver o proble-<br />

66


ma da origem do filosofar, embora seja onipotente em relação ao problema da origem<br />

da <strong>Filosofia</strong>. Com isto, contrapondo-se aos supostos historicistas faz, implicitamente,<br />

uma distinção rigorosa entre historicismo e historicida<strong>de</strong>, no sentido em que Hei<strong>de</strong>gger<br />

toma este segundo vocábulo, já que a seu ver a <strong>de</strong>ficiência básica do historicismo radica<br />

em permanecer excessivamente metafísico, no sentido, <strong>de</strong> que a compreensão da verda<strong>de</strong><br />

permanece metafisicamente <strong>de</strong>terminada, embora (ou por isso mesmo) inverta o seu<br />

sentido. Não querendo comprometer-se com uma <strong>Filosofia</strong> da História, afirma que é a<br />

partir da historicida<strong>de</strong> do homem que se po<strong>de</strong> atingir uma compreensão da História,<br />

abertura para o histórico suposta pela problemática proposta pela Motivação Básica e<br />

Atitu<strong>de</strong> Originante do Filosofar, pois a abertura ao ser implica também abertura para o<br />

histórico. Desta maneira, “o homem não é a medida do homem” mas sim o ser, “medida<br />

do homem e do filosofar”. Daí também sua peremptória afirmação conclusiva: “Compreen<strong>de</strong>-se,<br />

então, que uma filosofia que se proponha, por exemplo, a reforma ou a<br />

transformação do mundo, no sentido <strong>de</strong> substituir o co-conhecimento pelas exigências<br />

da praxis ou então, <strong>de</strong>sgostada diante da insuficiência do conhecimento racional, quiser<br />

substituí-lo pela vida do sentimento — compreen<strong>de</strong>-se que tal filosofia, na medida em<br />

que obe<strong>de</strong>ce a tais supostos, se falsifique como <strong>Filosofia</strong>, solapando os próprios fundamentos<br />

<strong>de</strong>sta modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> intelectual.” Quer dizer, com uma só cajadada<br />

hei<strong>de</strong>ggeriana liquida os coelhos marxistas e diltheyano...<br />

4 - NEOTOMISMO E ESPIRITUALISMO CRISTÃO<br />

a) A reconstrução metafísica<br />

Uma visão do conjunto das tendências filosóficas até aqui expostas permite verificar<br />

que a nota prevalente das correntes do pensamento brasileiro contemporâneo é o<br />

imanentismo, isto é, o Absoluto é encerrado nos limites do ato humano, contido na realida<strong>de</strong><br />

mundana e terrena e no evolver infinito da História, sem fazer nenhum apelo ao<br />

Princípio transcen<strong>de</strong>nte, ao qual olhava a Metafísica do passado, preparando a a<strong>de</strong>são<br />

do crente no Deus da religião cristã. Descrendo da realida<strong>de</strong> divina e ultramumdana,<br />

celebra a <strong>Filosofia</strong> atual o reino do homem sobre a Terra.<br />

Contudo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os gran<strong>de</strong>s sistemas i<strong>de</strong>alistas do começo do século XIX até à<br />

<strong>Filosofia</strong> recente, em meio às mais diversas formas imanentistas, a vetusta estrutura<br />

teológica do mundo moral e i<strong>de</strong>al fôra <strong>de</strong> certo modo conservada, acreditando-se po<strong>de</strong>r<br />

reconstruir o Absoluto no homem, mantendo o vigor da norma moral, fundando a distinção<br />

entre o bem e o mal, continuando, em suma, a reconhecer os valores sobre os<br />

quais é regido o consórcio humano a partir dos quais a vida e a História adquirem um<br />

sentido. E tudo isso ocorria na plenitu<strong>de</strong> hegemônica do positivismo, do evolucionismo,<br />

do materialismo, do existencialismo, do analiticismo. E com os existencialistas ocorre o<br />

supremo ato <strong>de</strong> ímpia e impiedosa sincerida<strong>de</strong> ao reconhecer a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> divinizar<br />

o homem, presa <strong>de</strong> irreparável finitu<strong>de</strong>. Como conseqüência, abre-se diante do<br />

existente humano a <strong>de</strong>sesperante perspectiva do nada: <strong>de</strong>samparado do Absoluto, não<br />

po<strong>de</strong>ndo tornar-se por sua vez Absoluto, o homem per<strong>de</strong> o sentido <strong>de</strong> si mesmo, das<br />

coisas e da socieda<strong>de</strong>, per<strong>de</strong>ndo-se assim na universal insignificância e absurdida<strong>de</strong>.<br />

Se o existencialismo, como afirma Sartre, não é senão o esforço para tirar todas<br />

as conseqüências <strong>de</strong> uma posição atéia coerente, <strong>de</strong>ssas conseqüências tragicamente<br />

experienciadas, o pensamento contemporâneo é induzido a sair para encontrar, em ou-<br />

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tros fundamentos, o sentido da vida e da realida<strong>de</strong>. Tocado o fundo do imanentismo, é<br />

natural que a própria <strong>Filosofia</strong> seja solicitada a reapresentar-se o problema do Transcen<strong>de</strong>nte,<br />

do Absoluto, <strong>de</strong> Deus. Isto ocorre no espiritualismo cristão, e prossegue sem solução<br />

<strong>de</strong> continuida<strong>de</strong>, no neotomismo, respostas da espiritualida<strong>de</strong> hodierna ao <strong>de</strong>safio<br />

das postulações imanentistas.<br />

b) Neotomismo<br />

A mais persistente presença <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> pensamento na <strong>Filosofia</strong> praticada no<br />

Brasil é a escolástica, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Colônia, passando pelo Império e pervivendo na República,<br />

com os altos e baixos da própria história <strong>de</strong>ssa tendência especulativa. Nos dias atuais<br />

essa tradição se apresenta sob a forma do chamado “neotomismo”, movimento <strong>de</strong><br />

retorno às doutrinas <strong>de</strong> Santo Tomás <strong>de</strong> Aquino no seio da cultura católica, iniciado pela<br />

encíclica Aeterni Patris, <strong>de</strong> Leão XIII, publicada a 4 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1879. Consiste este<br />

movimento na <strong>de</strong>fesa polêmica das teses filosóficas tomistas contra as diferentes direções<br />

da <strong>Filosofia</strong> contemporânea, e, indiretamente, na reelaboração e na mo<strong>de</strong>rnização<br />

<strong>de</strong> tais teses, <strong>de</strong> acordo com o lema vetera novis augere (aumentar com as novas as coisas<br />

antigas), isto é, o neotomismo aceita, em geral, a problemática da <strong>Filosofia</strong> contemporânea,<br />

reconduzindo-a, porém, à sistemática tomista.<br />

O neotomismo no Brasil cresce dia a dia, seja pelas cátedras cativas que possui<br />

nas seis Universida<strong>de</strong>s Católicas, seja pela já mencionada tradição que vem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />

idos coloniais, o que levou Cruz Costa a dizer que “o neotomismo encontrou, como era<br />

<strong>de</strong> esperar, campo fácil para fácil vitória”. O principal neotomista brasileiro é Leonel<br />

Franca (1893-1948), ilustre jesuíta a quem se <strong>de</strong>vem notáveis trabalhos <strong>de</strong> História da<br />

<strong>Filosofia</strong>.<br />

De acordo com Lima Vaz, “o tomismo <strong>de</strong> Leonel Franca era aberto aos estímulos<br />

das correntes mais progressivas do tomismo europeu, sendo notória a sua simpatia<br />

pelo pensamento <strong>de</strong> um A. D. Sertillanges ou <strong>de</strong> um Joseph Marechal”. Nesse sentido,<br />

Leonel Franca parece optar por aquela ala <strong>de</strong> neotomistas que, em face da <strong>Filosofia</strong> mo<strong>de</strong>rna,<br />

“pensa <strong>de</strong>ver assumir uma atitu<strong>de</strong> menos polêmica e mais compreensiva”, pois<br />

“nem tudo é para rejeitar <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Descartes”, como se lê em suas Noções <strong>de</strong> História<br />

da <strong>Filosofia</strong> (17ª ed., 1964). Isto porque a “fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>, não tanto à letra quanto ao espírito<br />

<strong>de</strong> Santo Tomás impõe o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> repensar as questões mo<strong>de</strong>rnas em função <strong>de</strong> sua<br />

problemática atual. Importa prolongar as linhas do pensamento tomista numa fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />

que não seja repetição simples, mas assimilação orgânica e vital, isto é, progressiva e<br />

adaptada a exigências novas e ineludíveis do pensamento humano em marcha”. Para<br />

Leonel Franca, “a inteligência humana não progri<strong>de</strong> nem se enriquece senão no contraste<br />

das discussões”.<br />

Nesse contraste das discussões procura o pranteado inaciano orientar-se para a<br />

verda<strong>de</strong>, distinguindo o que, a seu ver, são “os <strong>de</strong>svios multiformes do caminho único e<br />

certo”, discernindo “o sistema verda<strong>de</strong>iro dos errôneos”, reconhecendo entre as filosofias,<br />

a “<strong>Filosofia</strong>” que, no caso, é a tomista. Três são as or<strong>de</strong>ns que propiciam a consecução<br />

<strong>de</strong>sse supremo objetivo: a or<strong>de</strong>m especulativa, a or<strong>de</strong>m prática e a or<strong>de</strong>m histórica:<br />

“O critério, teórico e racional, é a evidência. A luz, ressalta nas trevas pela sua própria<br />

clarida<strong>de</strong>. A verda<strong>de</strong> distingue-se do erro pelo brilho <strong>de</strong> seu esplendor. Todo o sistema<br />

radicalmente falso ou se funda imediatamente na contradição ou se envolve mais tar<strong>de</strong><br />

nas malhas <strong>de</strong> suas teias inextrincáveis. As inteligências afeitas à reflexão e disciplinadas<br />

por uma lógica severa e sã po<strong>de</strong>rão sem gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sfiando as conclusões<br />

das premissas ou remontando dos conseqüentes aos antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>svendar o sofisma e<br />

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pôr a <strong>de</strong>scoberto o erro atraiçoado pelo absurdo <strong>de</strong> suas próprias afirmações. O segundo<br />

critério é prático. Menos rigoroso que o prece<strong>de</strong>nte, porém, não raro, <strong>de</strong> uso mais fácil e<br />

pronto baseia-se nas conseqüências morais dos sistemas filosóficos. Toda interpretação<br />

sintética do universo, no domínio especulativo, comporta no campo da ação uma série<br />

<strong>de</strong> aplicações práticas, um sistema moral, que, <strong>de</strong>senvolvido, cedo ou tar<strong>de</strong> pela lógica<br />

irresistível dos fatos, atesta o valor das idéias <strong>de</strong> que <strong>de</strong>riva, como a qualida<strong>de</strong> dos frutos<br />

abona a árvore que os produziu. Qualquer filosofia que logicamente importe a <strong>de</strong>struição<br />

do direito e da moral, a extinção da virtu<strong>de</strong> e do heroísmo, a dissolução da família<br />

e da socieda<strong>de</strong> não é verda<strong>de</strong>ira. Só o erro po<strong>de</strong> ser imoral nas suas conseqüências,<br />

como só a verda<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser contrastada pela prática na universalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas aplicações.<br />

— De or<strong>de</strong>m histórica é o terceiro critério. A <strong>Filosofia</strong> e as filosofias não evolvem<br />

do mesmo modo no tempo. A <strong>Filosofia</strong>, como rio majestoso, progri<strong>de</strong> com segurança e<br />

lentidão, avolumando incessantemente as suas águas no curso dos séculos. As filosofias<br />

aparecem como torrentes tumultuosas e temporárias, que, rolando <strong>de</strong>sapo<strong>de</strong>radamente<br />

os seus cachões pelo íngreme das encostas, arrasam e <strong>de</strong>stroem quanto se lhes opõe à<br />

passagem turbulenta. Fora <strong>de</strong> metáfora, a doutrina verda<strong>de</strong>ira é perene e progressiva;<br />

perene nos seus princípios fundamentais, certos e in<strong>de</strong>strutíveis, progressista nas conclusões<br />

que <strong>de</strong>les se po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>rivar, na extensão mais ampla <strong>de</strong> suas conseqüências, nas<br />

suas aplicações a novos objetos <strong>de</strong> estudo. Os sistemas falsos, pelo contrário, privados<br />

da seiva que dá vida ao pensamento, <strong>de</strong>finham com o tempo e acabam na negação <strong>de</strong> si<br />

mesmos, no ceticismo universal. Se alguns voltam, como o materialismo, com uma periodicida<strong>de</strong><br />

que aparenta tradição, é que revivem no homem as mesmas paixões e as<br />

mesmas fraquezas que lhes <strong>de</strong>ram a primeira origem. Mas a revivescência é efêmera, e<br />

<strong>de</strong> perto a segue uma segunda ruína semelhante à primeira. O erro apaga-se <strong>de</strong> novo e<br />

<strong>de</strong> novo se aniquila.”<br />

Mas, é como “filósofo culturalista cristão” (como o <strong>de</strong>finiu P. Messeguer) que<br />

Leonel Franca mais se impõe na História da <strong>Filosofia</strong> no Brasil, afirmando por sua vez<br />

Lima Vaz que A Crise do Mundo Mo<strong>de</strong>rno (1941) “é, sem dúvida, o mais bem sucedido<br />

ensaio brasileiro no campo da filosofia da cultura”. Para o jesuíta gaúcho “todo o progresso<br />

material revelou-se incapaz <strong>de</strong> satisfazer às exigências profundas da nossa natureza.<br />

É a lição mais trágica que nos dá o mundo contemporâneo inquieto e convulsionado.<br />

Em face do aperfeiçoamento maravilhoso dos meios, esquecemos o fim. E nesta<br />

subversão metafísica dos valores manifesta-se um dos sintomas mais alarmantes <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência...<br />

Urge, pois, restituir à nossa civilização periclitante as forças interiores que<br />

asseguram a todo esforço social a sua vitalida<strong>de</strong>”. Tal força encontra-se no cristianismo,<br />

que “tem as dimensões da História humana. Para todas as eras e em todos os problemas,<br />

Cristo é a luz da vida. As agonias do mundo contemporâneo hão <strong>de</strong> encontrar numa<br />

meditação mais profunda das suas palavras que não passam, uma resposta pacificadora.<br />

E uma cristanda<strong>de</strong> nova, cuja estrutura mal nos é dado entrever, mas cujos sinais precursores<br />

repontam em toda parte, po<strong>de</strong>rá congregar uma humanida<strong>de</strong> melhor numa fase<br />

mais elevada <strong>de</strong> sua penosa ascensão espiritual”.<br />

O discípulo que melhor compreen<strong>de</strong>u o que Leonel Franca entendia por cristanda<strong>de</strong><br />

nova foi o jesuíta Henrique Cláudio <strong>de</strong> Lima Vaz (1921), a mais relevante cerebração<br />

do atual neotomismo brasileiro e que segue a linha francesa dos filhos <strong>de</strong> Santo<br />

Inácio, especialmente Pierre Bigo, ao assimilar marxismo e humanismo e propugnar<br />

pelo estilhaçamento do presente status quo da socieda<strong>de</strong> em que vive, presa <strong>de</strong> privilégios<br />

estamentais em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> ignara massa espoliada. Isto se nota especialmente<br />

em dois <strong>de</strong> seus trabalhos, “Moral, socieda<strong>de</strong> e nação” (Revista Brasileira <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>,<br />

fasc. 53, 1964) e “A gran<strong>de</strong> mensagem <strong>de</strong> S. S. João XXIII” (Síntese, n.° 18, 1963),<br />

on<strong>de</strong> insere Lima Vaz a dimensão moral na estrutura do grupo humano na perspectiva<br />

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da comunicação das consciências, mostrando como, na articulação essencial da pessoa e<br />

da socieda<strong>de</strong> através da mediação do bem comum, o processo <strong>de</strong> socialização, que é a<br />

comunicação especificamente humana, julgado, pelo critério da personalização, adquire<br />

a sua significação <strong>de</strong> valor, na dimensão moral do reconhecimento das liberda<strong>de</strong>s.<br />

Além <strong>de</strong> pensador engajado, Lima Vaz é também o melhor intérprete da <strong>Filosofia</strong><br />

atual no Brasil, como se po<strong>de</strong> comprovar com seu notável complemento às últimas<br />

edições das Noções <strong>de</strong> História da <strong>Filosofia</strong>, <strong>de</strong> Leonel Franca. Da importância do pensamento<br />

vaziano é suficiente lembrar que, não obstante jamais ter publicado um só livro<br />

(seus importantes ensaios estão ainda dispersos em revistas especializadas, sendo urgente<br />

sua reunião), foi apresentada uma tese <strong>de</strong> habilitação à docência-livre na ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong><br />

<strong>Filosofia</strong> da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Minas Gerais, tendo por tema o pensamento <strong>de</strong> Lima Vaz:<br />

Ética e História (1965), <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Pedro Paulo Cristóvão dos Santos.<br />

c) Espiritualismo cristão<br />

Na reconstrução metafísica operada pela <strong>Filosofia</strong> contemporânea o principal<br />

papel, ao lado do neotomismo, é representado em França pela chamada Philosophie <strong>de</strong><br />

l’Esprit e, na Itália, pelo chamado Movimento di Gallarate, constituindo as alas teísticas<br />

e cristãs do existencialismo e do i<strong>de</strong>alismo respectivamente, on<strong>de</strong> são <strong>de</strong>batidos os problemas<br />

mais agudos da hodiernida<strong>de</strong>. Se diverso é o tom mental dos espiritualistas cristãos<br />

em face da diversida<strong>de</strong> da proveniência filosófica <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong> seus seguidores,<br />

todos concordam na fundamental aspiração cristã que move o esforço especulativo comum<br />

na órbita do princípio: multiplicida<strong>de</strong> das almas e transcendência do Espírito Absoluto<br />

que, no seu ato criador, rege a i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong> do mundo e funda a eticida<strong>de</strong> do ser.<br />

Nessa tendência especulativa se insere o pensamento <strong>de</strong> Ernani Maria Fiori (1915), particularmente<br />

em sua principal obra filosófica: Abstração Metafísica e Experiência Trancen<strong>de</strong>ntal<br />

(1963 ).<br />

No ensaio citado parece fora <strong>de</strong> dúvida ter o pensador gaúcho superado a originária<br />

inspiração tomista <strong>de</strong> seu pensamento, agora mais agostiniano, mais na linha do<br />

espiritualismo francês e <strong>de</strong>ntro do clima hegeliano, repensando os temas metafísicos<br />

com a fenomenologia e o existencialismo, numa tentativa <strong>de</strong> abrir caminho para <strong>de</strong>marcar<br />

a condição primeira da Metafísica. Nesse sentido, é <strong>de</strong> opinião Ernani Maria Fiori<br />

que não é a partir do conhecimento dos seres que se chega a pensar no ser, já que a seu<br />

ver consiste toda a Metafísica “pensar os seres no ser”, porquanto “a experiência original<br />

do ser, como espírito, é, em nós, originária do discurso metafísico”. Isto porque “ser<br />

não é uma forma <strong>de</strong>terminada, mas plenitu<strong>de</strong> superadora <strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>terminações. O<br />

ser não se objetiva, os seres objetivam-se no ser. Pensar o ser é pensar no ser. Na interiorida<strong>de</strong><br />

do eu transcen<strong>de</strong>ntal faz-se presente o ser em sua interiorida<strong>de</strong>. Nisto consiste o<br />

pensar essencial, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> nasce o pensamento e on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> a reflexão metafísica”.<br />

Para Ernani Maria Fiori “a <strong>Filosofia</strong> é vocação e risco do Homo viator. A <strong>de</strong>usa<br />

acolhe Parmêni<strong>de</strong>s com afeto, toma-lhe a mão direita em sua mão, mas não o conduz até<br />

ao ‘coração imperturbável da verda<strong>de</strong>’, indica-lhe, apenas, a via <strong>de</strong> acesso — via que,<br />

segundo Beaufret, <strong>de</strong>ve ser entendida ‘menos no sentido <strong>de</strong> caminho do que no sentido<br />

ativo <strong>de</strong> marcha a efetuar’”. Sugerindo um itinerário ao invés <strong>de</strong> indicar um caminho<br />

prévio ao caminhar, ensaia ele filosofar, uma vez que a “<strong>Filosofia</strong> não tem método, é<br />

‘método’, é ir sempre adiante no caminho, até ao <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro termo, on<strong>de</strong> termina a <strong>Filosofia</strong>,<br />

mas não acaba o filosofar. Começo e termo coinci<strong>de</strong>m no ‘fundamento’, que funda,<br />

internamente, todos os momentos do filosofar. Pensar no ser é situar-se no ‘fundamento’<br />

”, já que “na ontologia o ser é a vida do pensar”. Busca do fundamento fundante<br />

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da Metafísica, é na “reflexão” que encontra a consciência do fundamento. Por isso conclui<br />

que “a força transcen<strong>de</strong>ntalizante da abstração metafísica lhe advém da idéia <strong>de</strong> ser.<br />

Esta é experiência do espírito que, dialeticamente, se transcen<strong>de</strong>, buscando igualar-se à<br />

sua transcen<strong>de</strong>ntalida<strong>de</strong>. A idéia <strong>de</strong> infinito, na experiência transcen<strong>de</strong>ntal, necessita,<br />

concretamente, a afirmação da Transcendência”. Todavia, “a reflexão filosófica não<br />

conclui: é movimento do espírito que, incessantemente, se intimiza e aprofunda no mistério<br />

ontológico. É volta constante às origens, on<strong>de</strong> o ser se auto<strong>de</strong>svela em sua pureza<br />

ingênita. A verda<strong>de</strong> do ser não é conclusão, mas princípio do pensamento. Não é o pensamento<br />

que julga a verda<strong>de</strong>; é a verda<strong>de</strong> que julga o pensamento”.<br />

Este é o legado especulativo <strong>de</strong> Ernani Maria Fiori, uma das raras vocações metafísicas<br />

no Brasil e que se encontra presentemente no Chile.<br />

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Bibliografia<br />

NOTA: Neste sumário rol biográfico são arroladas apenas as obras gerais e panorâmicas<br />

(excluídos os trabalhos publicados em revistas), pois não teria cabimento reunir aqui<br />

todas as monografias que tratam individualmente os pensadores brasileiros, certas épocas<br />

históricas ou as várias tendências especulativas. Contudo, adverte-se que a principal<br />

fonte foi a Revista Brasileira <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, notadamente para a redação do capítulo referente<br />

aos pensadores contemporâneos.<br />

1 - Andra<strong>de</strong>, Almir <strong>de</strong>. Pequena Enciclopédia <strong>de</strong> Conhecimentos Gerais, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1964. “A <strong>Filosofia</strong><br />

no Brasil”, vol. II1, págs. 448-466.<br />

2 - Augusto, Paulo. Preciso <strong>de</strong> História da <strong>Filosofia</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1938. “Cultores da <strong>Filosofia</strong> no<br />

Brasil”, págs. 226-265.<br />

3 - Bezerra, Alci<strong>de</strong>s. Achegas à História da <strong>Filosofia</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1930, “Sílvio Romero”, págs. 43-<br />

46; “A <strong>Filosofia</strong> na fase colonial”, págs. 67-102; “Vicente Licínio Cardoso”, págs. 175-197.<br />

4 - Brasil, Etienne. <strong>Filosofia</strong>, 2ª ed., Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1923. Terceira parte, cap. XI, “<strong>Filosofia</strong> no Brasil”,<br />

págs. 295-307.<br />

5 - Cruz Costa. A <strong>Filosofia</strong> no Brasil, Porto Alegre, 1945.<br />

6 - Cruz Costa. O Pensamento Brasileiro, São Paulo, 1946.<br />

7 - Cruz Costa. Contribuição à História das Idéias no Brasil, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1956. Tradução norteamericana,<br />

1964.<br />

8 - Cruz Costa. Panorama da História da <strong>Filosofia</strong> no Brasil, São Paulo, 1960. Trad. mexicana, 1957;<br />

trad. russa, 1960; trad. norte-americana, 1962.<br />

9 - Dynnik, M. A. et al. História <strong>de</strong> la <strong>Filosofia</strong> (trad. do russo), México, 1962. Tomo IV, cap. VI, “Brasil”,<br />

págs. 354-364; tomo V, cap. XX, “Brasil”, págs. 653-657, cuja redação é <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Jacob Bazárian.<br />

10 - Francovich, Guilhermo. Filósofos Brasileños, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1939; Buenos Aires, 1943. Trad. brasileira,<br />

com prefácio <strong>de</strong> Cruz Costa, Filósofos Brasileiros, São Paulo, 1947.<br />

11 - Franca, Leonel. Noções <strong>de</strong> História da <strong>Filosofia</strong>, 17ª ed., Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1964. “A <strong>Filosofia</strong> no Brasil”,<br />

págs. 259-326; esta edição é acrescida <strong>de</strong> um suplemento, <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Henrique Vaz: “O Pensamento<br />

Filosófico no Brasil <strong>de</strong> Hoje”, págs. 343-377.<br />

12 - Hirschberger, Johannes. História da <strong>Filosofia</strong> Contemporânea, São Paulo, 1963. Apêndice <strong>de</strong> Geraldo<br />

Pinheiro Machado: “A <strong>Filosofia</strong> no Brasil”, págs. 223-317.<br />

13 - Isodi, Francisco e Santos, Getúlio <strong>de</strong> Paula. História da <strong>Filosofia</strong>, São Paulo, 1928. “A <strong>Filosofia</strong> no<br />

Brasil”, págs. 243-5.<br />

14 - Jaguaribe, Hélio. A <strong>Filosofia</strong> no Brasil, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1957.<br />

15 - Leão, Laurindo. História da <strong>Filosofia</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2 vols., 1929 e 1932. Insere os pensadores<br />

brasileiros nos capítulos correspon<strong>de</strong>ntes às correntes européias às quais eles se filiam.<br />

16 - Mérou, Martim Garcia. El Brasil Intelectual, Buenos Aires, 1900. “La <strong>Filosofia</strong> en el Brasil”, págs.<br />

51-64; Tobias Barreto, págs. 65-82; Sílvio Romero, págs. 83-96.<br />

17 - Padovani, Humberto e Castagnola, Luís. História da <strong>Filosofia</strong>, 6ª ed., São Paulo, 1964. “O Pensamento<br />

Filosófico no Brasil”, págs. 465-529.<br />

72


18 - Reale, Miguel. Horizontes do Direito e da História, São Paulo, II parte, “Aspectos do Pensamento<br />

Jurídico Nacional”: Avelar Brotero, págs. 195-224; Escola do Recife, págs. 225-233; Sílvio Romero,<br />

págs. 234- 243; Rui Barbosa, págs. 244-268.<br />

19 - Reale, Miguel. Momentos Decisivos e Olvidados do Pensamento Brasileiro, Porto Alegre, 1957.<br />

20 - Reale, Miguel. “A <strong>Filosofia</strong> no Brasil”, in Anais do III Congresso Nacional <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, São Paulo,<br />

1959, págs. 9-15.<br />

21 - Reale, Miguel. <strong>Filosofia</strong> em São Paulo, São Paulo, 1962.<br />

22 - Robledo, Antonio Gómez. La <strong>Filosofia</strong> en el Brasil, México, 1946.<br />

23 - Romero, Sílvio. A <strong>Filosofia</strong>, no Brasil, Porto Alegre, 1878.<br />

24 - Romero, Sílvio. Obras Filosóficas, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1966. Reúne em dois tomos, a obra anteriormente<br />

citada a Doutrina contra Doutrina, Ensaio <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> do Direito e outros trabalhos, especialmente <strong>de</strong><br />

história das idéias no Brasil.<br />

25 - Santos, Theobaldo Miranda. Manual <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, 13ª ed., São Paulo. 1964. Parte VIII, cap. VIII, “A<br />

<strong>Filosofia</strong> no Brasil”, págs. 483-492.<br />

26 - Serrano, Jônatas. História da <strong>Filosofia</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1944. Cap. IX, “A <strong>Filosofia</strong> na Brasil”, págs.<br />

195-225.<br />

27 - Sciacca, Michele Fe<strong>de</strong>rico. História da <strong>Filosofia</strong>, São Paulo, 1962. Tomo III, apêndice <strong>de</strong> Luís <strong>Washington</strong><br />

<strong>Vita</strong>: “A <strong>Filosofia</strong> no Brasil”, págs. 339-394.<br />

28 - Teles, Antonio Xavier. Introdução ao Estudo da <strong>Filosofia</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1961. “A <strong>Filosofia</strong> no<br />

Brasil”, págs. 37-40.<br />

29 - <strong>Vita</strong>, Luís <strong>Washington</strong>. A <strong>Filosofia</strong> no Brasil, São Paulo, 1950.<br />

30 - <strong>Vita</strong>, Luís <strong>Washington</strong>. O Mito <strong>de</strong> Hefestos, São Paulo, 1959. “A <strong>Filosofia</strong> no Brasil”, págs. 51-116.<br />

31 - <strong>Vita</strong>, Luís <strong>Washington</strong>. Monólogos & Diálogos, São Paulo, 1964, “Panorama da <strong>Filosofia</strong> no Brasil”,<br />

págs. 103-160.<br />

32 - <strong>Vita</strong>, Luís <strong>Washington</strong>. Escôrço da <strong>Filosofia</strong> no Brasil, Coimbra, 1964.<br />

73


Apêndice<br />

O Autor<br />

Luís <strong>Washington</strong> <strong>Vita</strong> trilhava um caminho quase agreste no panorama da cultura<br />

brasileira. No domínio da crítica filosófica, sua atuação marcava um importante exercício<br />

da inteligência. Entretanto, não quis a Vida prolongar a expansão <strong>de</strong> idéias do jovem<br />

filósofo. A 28 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1968, faleceu vítima <strong>de</strong> morte súbita.<br />

Nascido em São Paulo a 23 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1921, <strong>Washington</strong> <strong>Vita</strong> aí se bacharelou<br />

e se licenciou em <strong>Filosofia</strong>, doutorando-se ainda em Direito na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />

Paulo. Suas ocupações profissionais: Procurador-Chefe <strong>de</strong> Procuradoria da Municipalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> São Paulo (aposentado), Secretário Executivo do Instituto “Roberto Simonsen”,<br />

Professor <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong> na Fundação Escola <strong>de</strong> Sociologia e Política <strong>de</strong> São Paulo. Foi<br />

membro fundador do Instituto Brasileiro <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, on<strong>de</strong> exerceu a secretaria da<br />

‘‘Revista Brasileira <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>”. Atuou em diversos congressos nacionais, interamericanos<br />

e internacionais <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>, com várias viagens <strong>de</strong> estudos à América Latina, à<br />

Europa, ao Canadá e aos Estados Unidos. Foi também professor visitante na Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Panamá, tornando-se membro honorário das Universida<strong>de</strong>s Nacionais da Argentina.<br />

A Editora Globo sente profundo pesar por não entregar ao Autor mais esta obra<br />

que, estamos certos, em muito contribuirá para o estudante brasileiro <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>. Fica<br />

inscrita na bibliografia nacional como obra póstuma <strong>de</strong> quem ainda muito po<strong>de</strong>ria ter<br />

publicado. Aos 47 anos, <strong>de</strong>ixou, além do presente livro, os seguintes: "QUE É FILO-<br />

SOFIA”, São Paulo, DESA/USP, 1965; "TENDÊNCIAS DO PENSAMENTO ESTÉ-<br />

TICO CONTEMPORANEO NO BRASIL", Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização Brasileira,<br />

1967; “TRÍPTICO DE IDÉIAS”, São Paulo, Grijalbo, 1967; "ANTOLOGIA DO PEN-<br />

SAMENTO SOCIAL E POLÍTICO NO BRASIL”, <strong>Washington</strong>/São Paulo, União Pan-<br />

Americana, Grijalbo, 1968; "PEQUENA HISTÓRIA DA FILOSOFIA”, São Paulo,<br />

Edição Saraiva, 1968; "INTRODUÇÃO À FILOSOFIA”, 2ª edição, São Paulo, Edições<br />

Melhoramentos, 1964; "ALBERTO SALES IDEÓLOGO DA REPÚBLICA”, São Paulo,<br />

Cia. Editora Nacional, 1964 — e inúmeros artigos sobre temas filosóficos, publicados<br />

aqui e no exterior.<br />

* * *<br />

74


Por Wilson Chagas<br />

LUÍS WASHINGTON VITA<br />

O principal mérito <strong>de</strong> LUÍS WASHINGTON VITA, como historiador da <strong>Filosofia</strong><br />

no Brasil, resi<strong>de</strong> na sua compreensão da historicida<strong>de</strong> própria do nosso pensamento,<br />

e na exigência <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir-lhe os contornos em termos <strong>de</strong> História da Cultura. A <strong>Filosofia</strong><br />

como processo <strong>de</strong> autoconsciência <strong>de</strong> uma nação em marcha, que busca realizar seus<br />

próprios <strong>de</strong>stinos, e sabe não po<strong>de</strong>r prescindir, para isso, do universal. Eis o enfoque<br />

superior que o culturalista <strong>de</strong> São Paulo dá à história das idéias no Brasil. Po<strong>de</strong>-se dizer<br />

que, através <strong>de</strong>le, a partir da década <strong>de</strong> 50, o Brasil toma consciência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino a<br />

realizar, como tarefa filosófica.<br />

Atento à floração das idéias, ao <strong>de</strong>bate i<strong>de</strong>ológico, dá largo espaço, em suas resenhas<br />

para a “Revista Brasileira <strong>de</strong> <strong>Filosofia</strong>”, a tada espécie <strong>de</strong> livros on<strong>de</strong> a inteligência<br />

brasileira se mira, por assim dizer, no gran<strong>de</strong> espelho do mundo, e enfrenta a<br />

problemática da realida<strong>de</strong> nacional. Por isso mesmo se po<strong>de</strong>ria apontar o que há <strong>de</strong> lacunoso<br />

e até dispersivo, por vezes, na sua ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crítico e historiador das idéias: é<br />

que o crítico e analista procura valorizar, ao máximo, o esforço dos nossos “filosofantes”,<br />

guardando-se <strong>de</strong> julgá-los sem primeiro lhes dar a palavra até o fim. O que explica<br />

inclusive as longas citações que costuma fazer dos livros que critica.<br />

Procura, pois, WASHINGTON VITA, antes <strong>de</strong> mais nada, retratar o pensamento<br />

brasileiro, <strong>de</strong> modo a ser fiel à imagem que se reflete na multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tendências e<br />

perspectivas do nosso processo histórico. Como que procura “resumir”, a propósito <strong>de</strong><br />

cada livro, <strong>de</strong> cada etapa do nosso <strong>de</strong>senvolvimento mental, a direção das idéias, o <strong>de</strong>stino<br />

da cultura em nosso País — e perscrutar a nossa possível contribuição no plano<br />

filosófico universal. Espírito, neste sentido, mais receptivo do que criador — e por isso<br />

incansável na paráfrase dos textos, que acolhe e incorpora, com generosida<strong>de</strong>, ao próprio<br />

pensamento —, são inestimáveis os serviços que presta WASHINGTON VITA na<br />

quadra atual do processo filosófico brasileiro.<br />

Falta, no Brasil — faltou até agora — o exercício militante da crítica filosófica.<br />

Aliás, somente nesta década <strong>de</strong> 60 se po<strong>de</strong> dizer que a <strong>Filosofia</strong> adquire relevo especial<br />

em nosso País, pois contam-se por <strong>de</strong>zenas os títulos publicados, cada ano. Toda essa<br />

produção requer um exame atento, e uma consciência crítica vigilante, <strong>de</strong> modo a não<br />

apenas valorizar <strong>de</strong>vidamente o alcance <strong>de</strong> cada livro, em particular, como <strong>de</strong>scobrir os<br />

caminhos e as tendências que abrem livre curso no filosofar brasileiro. Um tal magistério<br />

crítico representa uma necessida<strong>de</strong>, em nosso País e precisamente na época atual.<br />

Sem essa tomada <strong>de</strong> consciência, o próprio esforço filosófico que entre nós se <strong>de</strong>senvolve<br />

não po<strong>de</strong>rá dar todo o rendimento <strong>de</strong> que é capaz.<br />

Pela sua inserção <strong>de</strong>cidida do pensamento brasileiro nos quadros do pensamento<br />

oci<strong>de</strong>ntal — o que, no plano da História Literatura, já fez, em obra escrita para ficar,<br />

OTTO MARIA CARPEAUX —, pelo esforço com que se <strong>de</strong>bruça, diariamente, sobre a<br />

produção das idéias filosóficas no Brasil, LUIZ WASHINGTON VITA é credor <strong>de</strong> todos<br />

nós. E certamente a sua ativida<strong>de</strong> incessante, generosa e humil<strong>de</strong> ao mesmo tempo,<br />

pressagia o aparecimento do crítico, <strong>de</strong> que precisamos, para elevar ao plano da consciência,<br />

na sua plenitu<strong>de</strong>, a atual produção filosófica brasileira. De certo modo, a labuta<br />

do Professor LUÍS WASHINGTON VITA prepara os caminhos para “a gran<strong>de</strong> obra<br />

analítica e profética do Brasil”, a que se referia anos atrás VAMIREH CHACON — a<br />

qual, como acrescentava, “constitui obra <strong>de</strong> geração, acima das forças <strong>de</strong> um pequeno<br />

grupo <strong>de</strong> homens”.<br />

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