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Para designar uma historia falsa, uma fábula, uma narrativa de fatos ...

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O uso do mito na formação psicanalítica<br />

Brun, Gustavo Héctor<br />

No percurso extenso que inclui a análise pessoal, as supervisões e o estudo<br />

teórico, quem preten<strong>de</strong> ace<strong>de</strong>r à psicanálise fica atento aos estudos e<br />

exercícios que lhe permitam circular pelo psíquico com um conhecimento<br />

neutro, atento às tarefas que flexibilizam o ouvido e <strong>de</strong>ixam circular livremente<br />

a maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representações emergentes <strong>de</strong> seus pacientes; neste<br />

sentido, <strong>de</strong> tempos em tempos me pergunto quais mo<strong>de</strong>los po<strong>de</strong>m ser<br />

pertinentes à formação psicanalítica. Observo que temas essenciais po<strong>de</strong>m ser<br />

exemplificados pelo estudo do mito porque elementos fundamentais, arcaicos e<br />

complexos repetem-se, partindo da mitologia, na literatura, no cinema, no<br />

teatro e até nos <strong>de</strong>poimentos que os homens fazem <strong>de</strong> suas vivências<br />

quotidianas.<br />

O psíquico po<strong>de</strong> ser conhecido através <strong>de</strong> suas reapresentações, sejam<br />

estas materializadas na forma gráfica, mímica ou fônica, é por elas que<br />

inferimos os processos mentais, sejam suas manifestações conscientes ou<br />

não. É possível calcular que as representações gráficas tenham sido<br />

coexistentes com a origem do psíquico e junto à arte rupestre teríamos<br />

registros da vonta<strong>de</strong> do homem <strong>de</strong> representar por meio <strong>de</strong> símbolos. As<br />

pinturas das Covas <strong>de</strong> Altamira, <strong>de</strong> <strong>uma</strong> antiguida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quinze mil anos, é <strong>uma</strong><br />

composição complexa <strong>de</strong> realismo que chegou até nós entre tantos outros<br />

vestígios do psiquismo pré-histórico. Mas a riqueza dos elementos pré-<br />

históricos, ou seja, aqueles que são anteriores à escrita, não se restringe à<br />

representação gráfica, a <strong>historia</strong> mostra períodos em diferentes regiões do<br />

mundo e em diversas épocas em que as composições da linguagem,<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do <strong>de</strong>senho ou da escrita fonológica, foram o meio <strong>de</strong><br />

representação da complexida<strong>de</strong> do psíquico. Mesmo não sendo possível<br />

calcular o momento em que surgiram esses primeiros elementos do que hoje<br />

<strong>de</strong>nominamos representações, no mito subsistem elaborações que se<br />

originaram na pré-história da cultura oci<strong>de</strong>ntal, reeditando elementos psíquicos


em conflito, cobrindo as fendas <strong>de</strong>ixadas pelos paradoxos originais aos quais<br />

os mitos retornam insistentemente.<br />

Nesse sentido, <strong>de</strong> Platão a Pascal, custodiando a continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

figura esférica, Jorge Luis Borges especulava se a história universal seria <strong>uma</strong><br />

“história da diversa entonação <strong>de</strong> <strong>uma</strong>s poucas metáforas”. Mas ainda antes da<br />

escrita amarrar o tempo com a história, o mito e a ação ritual já permitiam ao<br />

homem explorar sua potência representativa, consequentemente temos neles<br />

elementos para o estudo do psíquico nas fontes on<strong>de</strong> o conflito toma força pela<br />

primeira vez. É comum consi<strong>de</strong>rar as <strong>historia</strong>s que o homem conta nos seus<br />

contextos históricos específicos, mas pelas características da estrutura dos<br />

mitos, estes po<strong>de</strong>riam ser consi<strong>de</strong>rados um reservatório permanente para o<br />

estudo do psíquico, já que seus temas emergem daquilo que ficou como resto<br />

dos contrastes entre os atos e processos psíquicos que os antigos produziram.<br />

Como acontece com muitos termos utilizados na antiguida<strong>de</strong> e<br />

posteriormente resgatados em tentativas <strong>de</strong> reconhecer suas significações<br />

pertinentes a cada época, a palavra mito foi modificando seu sentido no<br />

<strong>de</strong>correr dos anos, e assim, na segunda meta<strong>de</strong> do século passado, o mito foi<br />

consi<strong>de</strong>rado um objeto com proprieda<strong>de</strong>s revalorizadas e cognoscíveis. Ainda<br />

hoje, seguindo a antiga tendência <strong>de</strong> fazer prevalecer a racionalida<strong>de</strong> sobre as<br />

outras manifestações psíquicas, ainda utilizamos a palavra mito para <strong><strong>de</strong>signar</strong><br />

<strong>uma</strong> <strong>historia</strong> <strong>falsa</strong>, <strong>uma</strong> <strong>fábula</strong>, <strong>uma</strong> <strong>narrativa</strong> <strong>de</strong> <strong>fatos</strong> fabulosos que não<br />

preten<strong>de</strong> atingir a verda<strong>de</strong> pelos caminhos da lógica razoável. No uso<br />

quotidiano não <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>mos esse termo do sentido ambíguo que lhe era<br />

atribuído no começo do século passado, sendo ora <strong>uma</strong> falsida<strong>de</strong>, ora <strong>uma</strong><br />

verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>stacando um valor que exce<strong>de</strong> o que a fala comprometida com o<br />

entendimento <strong>de</strong>veria transmitir. É apropriado lembrar essa é <strong>uma</strong> aproximação<br />

racional que herdamos da filosofia grega aristotélica.<br />

Na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> o mito foi questionado radicalmente, foi <strong>de</strong>limitado<br />

como objeto <strong>de</strong> estudos antropológicos e também, a partir da psicanálise, tem<br />

revalidado parte <strong>de</strong> sua função, recuperando relações que po<strong>de</strong>remos<br />

reconhecer enquanto escutamos nele <strong>uma</strong> <strong>historia</strong> que expressa um


conhecimento emaranhado sobre alg<strong>uma</strong> coisa. Freud encontrou na<br />

mensagem do mito a expressão do complexo neurótico. Na carta que escreveu<br />

a Fliess em outubro <strong>de</strong> 1897, i<strong>de</strong>ntificou a <strong>historia</strong> <strong>de</strong> seus afetos familiares à<br />

tragédia <strong>de</strong> Sófocles, enten<strong>de</strong>ndo ainda que cada pessoa presente na plateia<br />

<strong>de</strong> Antenas teria assistido a sua própria fantasia inconsciente. Tanto para o<br />

dramaturgo ateniense como para o neurologista do século XIX, o mito presente<br />

como um produto intelectual perene foi um recurso legítimo para produzir<br />

explicações do psíquico que se encontravam barradas pela explicação<br />

razoável. O ouvinte das histéricas aventurou-se em pensamentos quebrando o<br />

sentido do progresso científico racionalista, inverteu o movimento e num modo<br />

<strong>de</strong> regressão retornou à lenda grega que lhe mostrou <strong>uma</strong> constelação<br />

constituinte do psiquismo.<br />

Meio século <strong>de</strong>pois dois estudiosos pensaram o mito a partir <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los<br />

diferentes, o teólogo e pesquisador dos fundamentos culturais <strong>de</strong> oriente,<br />

Mircea Elia<strong>de</strong> e o antropólogo Clau<strong>de</strong> Lévi-Strauss <strong>de</strong>finiram estruturas para<br />

abordar seus enredos. Com esses autores, dois mo<strong>de</strong>los diferentes <strong>de</strong><br />

abordagem, não necessariamente antagônicos, surgiram facilitando a<br />

compreensão do mito como um complexo produto psicológico que não po<strong>de</strong><br />

ser reduzido totalmente à lógica das suas proposições.<br />

<strong>Para</strong> o antropólogo Lévi-Strauss, o mito é estudado a partir das<br />

referencias da linguagem que estrutura Saussure, “...o mito faz parte integrante<br />

da língua, é pela palavra que ele se nos dá a conhecer, ele provem do<br />

discurso.” p. 240. Consi<strong>de</strong>rando a diacronia e a sincronia da linguagem,<br />

acrescenta que o mito sempre fala <strong>de</strong> coisas dos antepassados, <strong>de</strong> um<br />

passado vivido faz muito tempo e que tem seu valor reatualizado; sendo assim<br />

histórico e não-histórico. Também analisa o mito <strong>de</strong> Édipo em toda sua<br />

extensão genealógica, <strong>de</strong> Laio a Antígonas e propõe <strong>uma</strong> tese na qual o mito é<br />

um objeto mais complexo que as outras expressões linguísticas. (Clau<strong>de</strong> Lèvi-<br />

Strauss, 2003, p. 242) e a partir <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ia propõe que sejam consi<strong>de</strong>rados os<br />

“Mitemas” como suas unida<strong>de</strong>s estruturais componentes do mito. <strong>Para</strong> o leitor<br />

<strong>de</strong> um mito ou para o analista, esses mitemas são unida<strong>de</strong>s constitutivas que<br />

quando relacionadas entre si, fornecem relações para elementos que <strong>de</strong> outro


modo ficariam inconscientes. A análise que Lacan faz do caso “O homem dos<br />

ratos” é um exemplo <strong>de</strong> como as fantasias neuróticas organizam-se no escuro<br />

e respon<strong>de</strong>m a <strong>uma</strong> lógica <strong>de</strong> repetição sincrônica observada por Lèvi-Strauss.<br />

O Teólogo Mircea Elía<strong>de</strong> também <strong>de</strong>fine o mito: primeiro como história<br />

<strong>de</strong> atos <strong>de</strong> entes não naturais. N<strong>uma</strong> segunda parte <strong>de</strong>staca que essas<br />

histórias são absolutamente verda<strong>de</strong>iras, no sentido <strong>de</strong> “verda<strong>de</strong>” que se<br />

<strong>de</strong>spren<strong>de</strong> da experiência <strong>de</strong> mundo e não no sentido lógico oci<strong>de</strong>ntal. Em<br />

terceiro lugar observa que todo mito se refere a <strong>uma</strong> criação <strong>de</strong> um afeto, <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> instituição, <strong>de</strong> alg<strong>uma</strong> coisa. Por último afirma que conhecer o mito <strong>de</strong><br />

origem das coisas é conhecer a coisa mesma, po<strong>de</strong>ndo-se assim manipular e<br />

<strong>de</strong> modos diversos, por cantos, rituais, ou iniciações o mito sempre po<strong>de</strong> ser<br />

revivido.<br />

Acompanho esses dois autores na clínica quotidiana, on<strong>de</strong> os mitos <strong>de</strong><br />

Cronos, <strong>de</strong> Eros, <strong>de</strong> Narciso, <strong>de</strong> Orestes e <strong>de</strong> Édipo se fazem presentes,<br />

revivem na voz <strong>de</strong> pessoas que sem serem helenistas ou teólogos, reproduzem<br />

conflitos antigos. Vejo também que é assim nas supervisões <strong>de</strong> colegas ou <strong>de</strong><br />

alunos estudantes e praticantes <strong>de</strong> psicologia, o que aumenta o interesse sobre<br />

o tema. Tanto o mito <strong>de</strong> “Totem e Tabu” que nos fala sobre a origem das<br />

instituições como os mitos antigos po<strong>de</strong>m ser submetidos à prova da estrutura.<br />

É nessas situações que po<strong>de</strong>mos perguntar sobre a atualida<strong>de</strong> do mito: existe<br />

Eros como pequeno <strong>de</strong>mônio no século XXI?<br />

Tentemos respon<strong>de</strong>r a partir da obra <strong>de</strong> Freud. Quando fala- se <strong>de</strong> amor<br />

<strong>de</strong> transferência, po<strong>de</strong>mos dizer que ele não é natural, pois <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fala e se funda sobre reproduções, reconstituições do passado<br />

do paciente sobre a pessoa do analista. Mas sabemos que é verda<strong>de</strong>iro porque<br />

funciona como um auxiliar da clínica. É um ente presente e insistente. Segundo<br />

o próprio Freud na cena da análise, é tão verda<strong>de</strong>iro quanto qualquer outra<br />

forma <strong>de</strong> amor.<br />

Na clínica contemporânea Eros fala da sua origem na queixa constante<br />

do amante que busca seu traço no amado, quem sofre um sintoma não <strong>de</strong>mora


em <strong>de</strong>scobrir sua relação com o psíquico e eis on<strong>de</strong> encontra as vias do<br />

erotismo. Quando <strong>uma</strong> análise progri<strong>de</strong>, o amor é questionado e conhece<br />

assim o Eros <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua origem, pelo que tem <strong>de</strong> bom, <strong>de</strong> belo e satisfatório,<br />

quanto pelo que vive <strong>de</strong> carência e sofrimentos, conhecer a origem do erótico<br />

nos permite trabalhar com a transferência como um auxiliar. A situação <strong>de</strong><br />

análise permite reviver um passado se consi<strong>de</strong>ramos que a língua na qual o<br />

paciente fala é um sistema atemporal, como o inconsciente que o <strong>de</strong>termina.<br />

Eros está vivo como <strong>de</strong>mônio e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o caso Dora vem contribuindo para a<br />

formação dos analistas.<br />

É conveniente retornar ao estudo da mitologia porque nela po<strong>de</strong>mos<br />

reconhecer os elementos fundamentais da constituição psíquica e<br />

especialmente a análise estrutural dos mitos nos permite enten<strong>de</strong>r a mobilida<strong>de</strong><br />

dos mitemas, os quais repetindo conflitos atemporais conseguem respeitar a<br />

singularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cada sujeito.<br />

Na atualida<strong>de</strong>, quando somente a novida<strong>de</strong> parece trazer a verda<strong>de</strong>,<br />

vale lembrar as últimas palavras <strong>de</strong> Clau<strong>de</strong> Lèvi Strauss ao fechar seu capítulo<br />

sobre a estrutura dos mitos: “Talvez <strong>de</strong>scobriremos um dia que a mesma lógica<br />

se produz no pensamento mítico e no pensamento científico, e que o homem<br />

pensou sempre do mesmo modo. O progresso – se é que então se possa<br />

aplicar o termo- não teria a consciência por palco, mas o mundo, on<strong>de</strong> <strong>uma</strong><br />

h<strong>uma</strong>nida<strong>de</strong> dotada <strong>de</strong> faculda<strong>de</strong>s constantes ter-se-ia encontrado, no <strong>de</strong>correr<br />

<strong>de</strong> sua longa história, continuamente às voltas com novos objetos” (Clau<strong>de</strong><br />

Lévi-Struss, p. 265).<br />

Resumo:<br />

Neste trabalho estuda-se a estrutura do mito a partir <strong>de</strong> autores como Clau<strong>de</strong><br />

Levi-Strauss e Mircea Elia<strong>de</strong> para pensar um contexto para o mito na formação<br />

psicanalítica. Avaliamos o mito como <strong>uma</strong> forma <strong>de</strong> representação pré-histórica<br />

que traz elementos estruturais para pensar as repetições que se apresentam<br />

no <strong>de</strong>correr dos séculos. A partir da Grécia antiga o mito permite nos<br />

questionar sobre o verda<strong>de</strong>iro e o falso em relação ao conhecimento, mas com


a obra <strong>de</strong> autores mo<strong>de</strong>rnos po<strong>de</strong>mos pensar nos elementos que estão<br />

presentes como <strong>uma</strong> matriz ou estrutura que representa, como um objeto da<br />

língua, elementos psíquicos permanentes em épocas e culturas diferentes. A<br />

modo <strong>de</strong> exemplo, a partir do conceito <strong>de</strong> Transferência pensamos a atualida<strong>de</strong><br />

do mito <strong>de</strong> Eros na clínica contemporânea.<br />

Bibliografía:<br />

Azevedo, Ana Vicentini <strong>de</strong>. (2004). Mito e Psicanálise. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora<br />

Zahar.<br />

Azoubel,Neto, David. (1993). Mito e psicanálise. Campinas, São Paulo: Editora<br />

Papirus.<br />

Lacan, J. (2008). O Mito individual do Neurótico. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Zahar.<br />

Lévi-Strauss, C. (2003). Antropologia Estrutural. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Edições<br />

Tempo Brasileiro.<br />

Elia<strong>de</strong>, Mircea. (2000) Mito e realida<strong>de</strong>. São Paulo: Editora Perspectiva.

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