ESCUTANDO LAURA: O DESAFIO DE TREINAR A ESCUTA ...
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<strong><strong>ESCUTA</strong>NDO</strong> <strong>LAURA</strong>: O <strong><strong>DE</strong>SAFIO</strong> <strong>DE</strong> <strong>TREINAR</strong> A <strong>ESCUTA</strong> PSICANALÍTICA<br />
Carmen Muratore 1<br />
Cristina Lessa Horta 2<br />
Letícia Orengo 3<br />
Fabiana Cargnelutti 4<br />
Leonardo Della Pasqua 5<br />
1 Psicóloga, membro aspirante da SPPA, membro efetivo e coordenadora do Comitê<br />
de Psicologia Clínica da SPRS e membro efetivo do CEP de PA.<br />
2 Psicóloga Clínica, Especialista em Psicoterapia de Crianças, Adolescentes e<br />
Famílias (SCSF-Pelotas), Mestre em Saúde e Comportamento (UCPel) membro<br />
aspirante da SPRS.<br />
3 Psicóloga, Especialista em Psicoterapia da infância e Adolescência pelo CEAPIA;<br />
membro efetivo da SPRGS.<br />
4 Psicóloga, psicoterapeuta em formação pelo Instituto deEnsino e Pesquisa em<br />
Psicoterapia ( IEPP) e membro efetivo da SPRS.<br />
5 Psicólogo e Psicanalista, com formação no Lo Spazio Psicoanalitico, Presidente da<br />
Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul.
RESUMO<br />
Este trabalho surgiu das discussões realizadas pelo Comitê de Psicologia<br />
Clínica da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul.<br />
Entendendo a importância e a complexidade de manter-se em atenção livre<br />
flutuante (Freud) ou em um estado mental “sem memória, sem desejo e sem<br />
necessidade de compreensão” (Bion) nas sessões de psicoterapia psicanalítica,<br />
surgiu entre os autores o desejo de exercitar a escuta. Para tal utilizou-se uma<br />
paciente da série televisiva In Treatment, por questões de sigilo. Apesar das<br />
limitações implícitas nesta escolha – ausência de impressões, reflexões, fantasias e<br />
lembranças do terapeuta em relação à paciente – optou-se por pensar este material<br />
como se a paciente estivesse em atendimento por cada membro do grupo,<br />
observando-se os pensamentos, emoções e reações dos participantes do comitê.<br />
O trabalho aconteceu em três tempos: assistiu-se os episódios em grupo, leu-<br />
se a transcrição dos episódios e elaborou-se este artigo. As impressões obtidas são<br />
apresentadas e discutidas à luz da teoria psicanalítica.<br />
A realização deste exercício clínico evidenciou o quanto é difícil alcançar o<br />
estado mental de reverie e paciência, como descritos por Bion, e a importância de<br />
seguir exercitando a escuta em busca deste ideal de aprimoramento do método<br />
psicanalítico.
<strong><strong>ESCUTA</strong>NDO</strong> <strong>LAURA</strong>: O <strong><strong>DE</strong>SAFIO</strong> <strong>DE</strong> <strong>TREINAR</strong> A <strong>ESCUTA</strong><br />
PSICANALÍTICA<br />
O desejo de escrever este trabalho surgiu após a realização da quinta edição<br />
dos Exercícios Clínicos, organizados pelo Comitê de Psicologia Clínica na<br />
Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul (SPRGS). A atividade consistia de<br />
dois encontros. No primeiro, um colega levava material clínico da primeira entrevista<br />
com o paciente para que, juntos, pudéssemos pensar a sessão e investigar as<br />
motivações, desejos, avaliar defesas, postular hipóteses. No segundo, discutíamos<br />
uma sessão mais tardia do processo, para podermos avaliar se nossas conjecturas<br />
levantadas no primeiro encontro seriam refutadas, confirmadas, ampliadas. Apesar<br />
da heterogeneidade do grupo quanto à experiência clínica, observamos que o tema<br />
relativo ao método terapêutico estava sempre em pauta.<br />
Atender pessoas no consultório é o sonho de boa parte dos terapeutas, sejam<br />
os mais jovens ou os mais treinados. Parece haver um fascínio nesta arte de escutar<br />
e entender os significados que emanam do inconsciente. Para muitos, há um certo<br />
glamour em imaginar-se sentado à poltrona, a ouvir e ouvir as associações livres<br />
dos pacientes, na tentativa de compreender a razão do sofrimento, o sentido dos<br />
sintomas, dos atos falhos, dos sonhos, de determinado comportamento ou padrão<br />
de relacionamento, e é claro, de aliviá-los. No entanto, à medida que tomamos<br />
contato com a teoria, com a técnica e iniciamos a prática psicoterápica, percebemos<br />
a complexidade existente em tal tarefa. Escutar e compreender, além de não serem<br />
tarefas fáceis, estão carregadas de angústias.
No artigo Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, no qual<br />
aborda questões referentes à técnica, Freud (1912) refere que uma boa parte destas<br />
recomendações poderia se resumir no que Bollas (2003) posteriormente denominou<br />
de par freudiano: a associação livre de ideias e a atenção flutuante. Para o grupo, a<br />
neutralidade possível (Eizirik, 1993) e acolhedora (Green, 2003) são também<br />
importantes. Trata-se de tarefas complexas e que precisam ser desenvolvidas.<br />
Para esta comunicação, utilizamos uma paciente da série televisiva In<br />
Treatment 6 : a Laura. Optamos por esta forma por questões éticas quanto ao sigilo<br />
do material de pacientes. Sabemos das restrições que implicam esta escolha:<br />
terapeuta e paciente são fictícios, de modo que não temos acesso a outras<br />
informações, tais como as impressões, reflexões, fantasias e lembranças do<br />
terapeuta em relação a esta paciente. Mesmo assim, utilizamos este material,<br />
procurando pensá-lo como se Laura fosse uma paciente que estivéssemos<br />
recebendo em atendimento. Desta forma, pudemos observar os nossos<br />
pensamentos, emoções e reações frente a ela.<br />
Organizamos o trabalho em três momentos distintos e consecutivos.<br />
Inicialmente assistimos juntos aos 5 primeiros episódios desta paciente, realizando<br />
interrupções na transmissão sempre que alguém desejasse comentar algo. As<br />
observações dos membros do comitê foram registradas a fim de que tivéssemos um<br />
acompanhamento da evolução da nossa escuta.<br />
A seguir, as sessões foram transcritas, lidas e discutidas pelo grupo.<br />
Novamente os comentários e as reações foram registradas.<br />
6 Rodrigo Garcia, HBO, 2008.
A última etapa resulta na escrita deste trabalho, tendo o grupo se reunido em<br />
diferentes momentos para a sua realização.<br />
Do primeiro tempo: Assistindo In Treatment<br />
Assistindo os episódios, tivemos diversas e diferentes reações. Oscilamos<br />
entre sentimentos de raiva, irritação e crítica ao jeito de Laura se apresentar:<br />
provocativa, desafiadora, impulsiva. Em outros momentos a percebíamos com muita<br />
fragilidade e vulnerabilidade.<br />
Várias hipóteses diagnósticas surgiram, prevalecendo as de histeria ou de<br />
transtorno borderline de personalidade. Acreditamos, no entanto, que os afetos<br />
prevalecentes foram de rejeição e irritação frente à paciente devido ao seu<br />
comportamento impulsivo, às atuações eróticas (envolvimento sexual com outros<br />
homens, inclusive outro paciente de seu terapeuta) e à insistente demanda de amor<br />
pelo terapeuta.<br />
Observamos que vários comentários tinham um caráter superegóico,<br />
recriminatório, ora relacionados às atitudes de Laura, ora dirigidos à Paul, o<br />
terapeuta, que fazia intervenções predominantemente dirigidas ao conteúdo<br />
manifesto e consciente da paciente. Pouco sabíamos da história de vida de Laura e<br />
já fazíamos inferências e interpretações. Foi apenas por volta do quarto e quinto<br />
episódios assistidos que ela falou sobre sua vida e relação com os pais.<br />
Neste primeiro tempo acreditamos ter reagido emocional e defensivamente à<br />
problemática psicológica da paciente. A quantidade de explicações, de hipóteses<br />
diagnósticas e de comentários acusatórios em relação a Laura levou-nos a pensar<br />
que não conseguiamos nos manter em estado de reverie e paciência. Este estado,
de acordo com Bion (1970), consiste em manter-se sem a aflitiva necessidade de<br />
encontrar explicações, interpretações e diagnósticos que fechem nossa mente para<br />
escutar o desconhecido, suportando ainda a fragmentação e desorganização dos<br />
conteúdos apresentados. É possível que tenhamos sido invadidos pela angústia<br />
frente à situação nova e desconhecida. O fato é que, assim como o terapeuta, nós<br />
também não conseguimos manter, durante este primeiro momento, o silêncio<br />
necessário para podermos escutar inconscientemente o material apresentado pela<br />
paciente (Bollas, 2003).<br />
Do segundo tempo: Construindo a nossa Laura<br />
À medida que fomos ouvindo a história de Laura fomos ficando irritados com<br />
Paul e nos identificando com a Laura vítima, abandonada, abusada e novamente<br />
abandonada por um terapeuta que não a compreendia.<br />
Percebemos a existência de assuntos recorrentes: morte, abandono,<br />
desamparo e desinvestimento. Em mais de um episódio ela chegou chorando,<br />
trouxe temas como abuso sexual, vida sexual promíscua, transferência erótica (Paul<br />
como centro da sua vida), cenas no banheiro (vômito, urina, vaso sanitário<br />
entupido), decisões impulsivas e abruptas, como aceitar casar em uma sessão e<br />
romper o relacionamento em outra.<br />
Em diferentes momentos a paciente pareceu sentir-se abandonada também<br />
pelo terapeuta, chegando a verbalizações do tipo: “Sinto como se eu tivesse vindo<br />
para cá numa escuridão e estivesse voltando para casa numa escuridão maior<br />
ainda”.
Outro tema recorrente foi a relação com o noivo, pois havia a possibilidade de<br />
casar-se. No entanto esta era uma ideia que a assustava muito e vinha associada a<br />
uma fantasia de morrer.<br />
Em mais de uma sessão Laura enfatizou que Paul não saia de sua cabeça,<br />
que era um pensamento invasivo. Numa das sessões referiu-se ao pai como<br />
“fumaça tóxica”, levando-nos a pensar que esta experiência estava sendo revivida<br />
na transferência. No entanto, o terapeuta da série não levou em conta este<br />
fenômeno universal das relações humanas.<br />
A 4ª sessão inicia com Paul imaginando a cena erótica descrita por Laura<br />
entre ela e outro paciente seu. O terapeuta se desconecta do que ela está dizendo,<br />
prendendo-se à sua imaginação. Ela, por sua vez, num processo regressivo, lembra<br />
do “cheiro da torta de queijo” que sua mãe fazia. Cheiro envolvente, mas também<br />
intoxicante e acompanhado de lembranças de desamparo e de abandono, devido à<br />
morte da mãe.<br />
Conjecturamos que Laura persegue o cheiro da mãe, em busca de algo que a<br />
constitua enquanto ser humano, de um investimento libidinal. O cheiro da mãe como<br />
resquício da relação fusional com o objeto. Sair da relação dual está ligado à morte.<br />
Ela parece funcionar em um nível primitivo. Casar poderia ser o caminho em direção<br />
à triangulação?<br />
Na quinta sessão o tema da morte surge novamente, mas acompanhado de<br />
outra temática: quem é Laura efetivamente? Uma médica anestesista de verdade ou<br />
uma farsa? O relato da situação clínica de quase morte vivida por uma paciente que<br />
estava sob seus cuidados revela e desvela questões. A própria Laura atribui sua
falha ao fato de não conseguir pensar e se focar em outro interesse que não seja<br />
Paul, seu terapeuta. Inferimos que este fato demonstra a presença deste objeto<br />
interno intoxicante, como a fumaça e os cheiros, que no entanto, mantiveram Laura<br />
colabada numa identificação totalitária com objetos que não favoreceram a<br />
constituição de uma identidade madura e discriminada, onde pudesse vir a ocupar-<br />
se e a preocupar-se pelos outros. Segue enredada no temor ao desamparo e à<br />
solidão, e na aflitiva busca de sentir-se viva, amada e reconhecida como alguém<br />
única e peculiar. Está demasiadamente ocupada com sua sobrevivência para poder,<br />
genuinamente, ocupar- se com o outro.<br />
Embora não fosse objetivo deste trabalho criticar a atuação do terapeuta da<br />
série, para nós ficou evidente que os entraves existentes, o sentimento de<br />
abandono, de não acolhida da paciente em relação ao terapeuta deram-se não<br />
porque este não aceitou concreta e objetivamente suas investidas afetivas, mas<br />
porque, ao manter-se preso à escuta do consciente da paciente, ele não conseguiu<br />
sonhá-la. E, como propõe Ogden (2005), aquilo que não pode ser sonhado não pode<br />
ser acessado psiquicamente. Mantém-se inconsciente e manifesta-se através de<br />
atuações, como parece ter acontecido com Laura.<br />
Do terceiro tempo: Discussão<br />
Nos encontros para a realização deste artigo ficou claro que muitas das<br />
reações estiveram relacionadas ao fato de termos nos defrontado com um terapeuta<br />
focado em uma escuta não analítica. Entendemos que os impasses ocorridos neste<br />
tratamento foram uma consequência da impossibilidade de Paul em ouvir o
inconsciente da paciente e de poder auxiliá-la a livrar-se das “fumaças tóxicas” que a<br />
perseguiam.<br />
O exercício proposto permitiu que não apenas ouvíssemos, mas<br />
escutássemos e sonhássemos Laura. Durante as discussões, assuntos paralelos,<br />
aparentemente sem relação com a atividade proposta, atravessaram o grupo. No<br />
entanto, parece-nos claro que foram de grande importância para que chegássemos<br />
a este desfecho. Houve um consenso quanto à ideia de que é importante ter “tempo<br />
para perder”. Este é um elemento necessário para a criação de um ambiente<br />
emocional propício ao pensamento livremente flutuante (Ogden, 2005). Citando<br />
Ogden (2005, p. 1273): “...é uma pena quando (...) não conseguimos ‘desperdiçar’<br />
tempo. Um importante modo de pensar, sentir e aprender são perdidos”.<br />
CONCLUSÕES<br />
Certamente não existe uma única Laura. Concordamos com muitos dos<br />
aspectos discutidos, mas cada um pôde escutar e sonhar uma Laura diferente.<br />
Assim, habilidades importantes para a clínica psicanalítica foram exercitadas e<br />
esperamos contribuir para o reconhecimento da importância da escuta do<br />
inconsciente.<br />
Embora ao nos colocarmos no lugar do terapeuta de Laura estivéssemos<br />
ocupando uma posição privilegiada - não estavámos sob o fogo cruzado do encontro<br />
dos inconscientes - entendemos que este foi um importante exercício. Temos como<br />
propósito manter este espaço de reflexão e estudos para a realização da desafiante<br />
tarefa de fazer clínica com qualidade. O valor de um grupo de estudos é inestimável
e com este temos, também, o propósito de exercitar a capacidade de manter a<br />
atenção livre e flutuante na tarefa da escuta analítica, sem a aflita necessidade de<br />
encontrar explicação, razão ou interpretação.
REFERÊNCIAS<br />
Bion W.R. (1970). Atenção e Interpretação. Rio de Janeiro: Imago.<br />
Bollas C. (2003). Abandonar o habitual: a derrota da psicanálise freudiana. In: Green<br />
A. (org.). Psicanálise Contemporânea (pp. 275-290). Rio de Janeiro: Imago.<br />
Eizirik C.L. (1993). Entre a escuta e a interpretação: um estudo evolutivo da<br />
Neutralidade psicanalítica. Revista de Psicanálise 1(1):20-42.<br />
Freud S.(1912) Novas recomendações ao médicos que exercem psicanálise. In:<br />
Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu editores.<br />
Ogden T.H. (2005). On psychoanalytic supervision. International Journal of<br />
Psychoanalysis 86:1265-80.