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Traição conjugal: um desafio para a clínica

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TRAIÇÃO CONJUGAL, RELACIONAMENTO VIRTUAL E TERAPIA<br />

Isabel Cristina Gomes 1<br />

Lidia Levy 2<br />

Relato A.:<br />

PSICANALÍTICA DE CASAL<br />

Amanda e Antonio são casados há 08 anos. Possuem <strong>um</strong> casal de<br />

filhos; <strong>um</strong>a menina de 04 e <strong>um</strong> menino de 02 anos. Amanda busca a terapia de<br />

casal como último recurso <strong>para</strong> evitar a se<strong>para</strong>ção, pois relata que seu<br />

casamento está passando por <strong>um</strong>a grave crise. Segundo ela, a primeira traição<br />

ocorre quando Antonio, que tanto empenho fez <strong>para</strong> ela engravidar, das duas<br />

vezes, torna-se completamente distante da vida dela e dos filhos. A segunda<br />

traição é sentida diante da mentira, quando ela acredita que ele está<br />

trabalhando no computador e na verdade ele está se divertindo (jogando<br />

“paciência”). Finalmente, a traição vivida como a mais grave, pois detona <strong>um</strong>a<br />

crise com possibilidade de se<strong>para</strong>ção <strong>conjugal</strong>, foi quando o presenciou de<br />

madrugada acessando sites pornográficos (contendo exibições de mulheres<br />

nuas) e se masturbando.<br />

Relato B.:<br />

Bruna conhece Breno quando ele ainda era casado. Vivem <strong>um</strong>a relação<br />

“as escondidas” por <strong>um</strong> tempo até que Breno se se<strong>para</strong> e ambos vão morar<br />

juntos. Bruna tinha <strong>um</strong>a filha do primeiro casamento que se junta ao casal.<br />

Após 03 anos de vida em com<strong>um</strong> a família é acrescida pelo nascimento de <strong>um</strong><br />

filho, que segundo Breno, é o reconhecimento de que formam <strong>um</strong>a verdadeira<br />

família: o casal, a filha de Bruna e o filho de ambos. Breno também tem outros<br />

02 filhos do primeiro casamento, jovens adultos, que moram com a mãe. O<br />

casal vive bem por 15 anos, parecem eternos namorados até que Bruna<br />

descobre que o marido a trai com <strong>um</strong>a moça bem mais jovem, que ele<br />

conheceu n<strong>um</strong> “chat” de bate – papo na internet. Aqui é Breno quem procura<br />

terapia de casal apavorado com o fato da esposa pedir a se<strong>para</strong>ção.<br />

1 Universidade de São Paulo / Brasil . AIPCF. isagomes@ajato.com.br<br />

2 Pontifícia Universidade Católica Rio de Janeiro/Brasil. AIPCF. llevy@puc-rio.br<br />

1


Na primeira entrevista com o casal, Breno mostra-se muito arrependido<br />

e culpado pelo que havia feito. Relata que não mediu as conseqüências da<br />

“brincadeira” em que se meteu. Somente com a descoberta em flagrante da<br />

esposa, foi que Breno caiu em si e percebeu que estava sonhando acordado.<br />

Diante dessa constatação, alcançada nessa sessão, percebeu que havia algo<br />

na relação <strong>conjugal</strong> que talvez não o estivesse satisfazendo como antes, o que<br />

a esposa prontamente concordou. Contudo, é colocado nele todo o peso pelo<br />

possível desmoronamento do casamento, por ele ter traído virtualmente sua<br />

esposa.<br />

Apresentamos os dois relatos clínicos acima com a finalidade de discutir<br />

a questão da traição <strong>conjugal</strong> vista sob o prisma do “virtual”, destacando sua<br />

especificidade e o debate sobre a possibilidade de ser considerada traição ou<br />

não pelos cônjuges, na medida em que não envolve <strong>um</strong> terceiro real. Contudo,<br />

a entrada de <strong>um</strong> terceiro, seja real ou ficcional pode romper a simbiose do<br />

casal e suas idealizações, gerando <strong>um</strong>a crise, <strong>um</strong> mal entendido. Enfocaremos<br />

a traição virtual como <strong>um</strong> sintoma que aponta <strong>para</strong> <strong>um</strong> desinvestimento no<br />

<strong>conjugal</strong> e a demanda pela terapia psicanalítica de casal centrada nesse tipo<br />

de queixa.<br />

A construção de <strong>um</strong> laço <strong>conjugal</strong>, em alguns casos, corresponde ao<br />

preenchimento de lacunas afetivas primitivas de cada <strong>um</strong> dos parceiros. A<br />

simbiose se mantém sob forma de amor até que <strong>um</strong> terceiro surge <strong>para</strong> romper<br />

o equilíbrio estabelecido, advindo <strong>um</strong>a crise. Esse terceiro nos romances, nos<br />

filmes, nas histórias clássicas de traições conjugais era sempre encarnado por<br />

<strong>um</strong> personagem real, concreto, geralmente mais novo e bonito, fonte de ciúme<br />

e inveja <strong>para</strong> aquele que se sentia traído. E ainda o é em varias situações<br />

vividas sejam elas da literatura, do dia a dia ou da clinica de casais. Contudo,<br />

nesse texto enfatizaremos outros tipos de traições não tão óbvias e com<br />

terceiros não reais, apenas virtuais.<br />

RELACIONAMENTOS VIRTUAIS<br />

Após duas décadas de existência da internet, os relacionamentos<br />

virtuais deixaram de ser vistos por <strong>um</strong> ângulo patológico e de receber as<br />

críticas nocivas que carregavam no início. Com o passar do tempo e a<br />

divulgação do uso da internet <strong>para</strong> múltiplos fins, observou-se <strong>um</strong>a ampliação<br />

nos seus recursos relacionais, e o surgimento de estudos e pesquisas nessa<br />

2


área aponta que as relações virtuais, cada vez mais, apresentam as mesmas<br />

características dos relacionamentos reais, podendo também ser solidárias,<br />

profundas e intensas. (Nicolaci-da-Costa, 2005)<br />

Em se tratando de relacionamentos amorosos e internet, pesquisas<br />

brasileiras com sujeitos que freqüentavam salas de bate-papo mostraram que<br />

37% buscavam relacionamentos afetivo-sexuais; desses, 10,7% eram casados<br />

ou viviam maritalmente. (Civiletti e Pereira, 2002). Estudos mais recentes como<br />

Donnamaria e Terzis (2009) e Dela Coleta et all (2008), demonstram que a<br />

internet hoje é mais usada como <strong>um</strong>a forma de iniciar contato interpessoal e<br />

enfatizam a necessidade do contato real <strong>para</strong> a solidificação de <strong>um</strong><br />

relacionamento, demonstrando que fantasias podem até ser fomentadas no<br />

começo sendo dissipadas justamente pelos dados de conhecimento real do<br />

outro.<br />

Tisseron (2008) parte de <strong>um</strong>a compreensão psicanalítica do mundo das<br />

relações virtuais, destacando as regras e estratégias próprias a essa maneira<br />

particular de dinamismo interpessoal e social, cuja ênfase recai no visual e no<br />

imaginário. Embora afirme que a internet incita à manipulação e à mentira,<br />

definindo-a como <strong>um</strong> vasto mercado de identidades em busca de validação<br />

(pg.3), acaba também ponderando os aspectos positivos dela, quando é<br />

possível estabelecer afinidades <strong>para</strong> o surgimento de <strong>um</strong> grupo, propiciando<br />

assim a reprodução de <strong>um</strong>a sociabilidade interpessoal, nos moldes<br />

semelhantes aos do mundo real, livre dos empecilhos de distância e tempo.<br />

Ainda aponta que a relação do sujeito com o computador pode ser tanto de<br />

puro utilitarismo quanto <strong>um</strong>a fonte de prazer, <strong>um</strong> lugar onde busca se aliviar<br />

dos desprazeres, como <strong>um</strong>a via de escape ou negação da realidade <strong>para</strong> não<br />

sofrer (pg.142).<br />

O que podemos concluir do exposto sobre relacionamentos virtuais e<br />

traição <strong>conjugal</strong> é que há <strong>um</strong> amplo espectro que vai desde a busca por <strong>um</strong><br />

parceiro real até chegarmos a <strong>um</strong>a forma totalmente projetiva, defensiva e<br />

imaginária de se relacionar com <strong>um</strong> outro que não pode ser definido como<br />

OUTRO. Neste último caso, o indivíduo define a relação virtual como “<strong>um</strong>a<br />

brincadeira”, “<strong>um</strong> escape”.<br />

A traição se associa ao fato da mentira e isso leva a <strong>um</strong>a avaliação de<br />

caráter moral e ético. A traição sem mentira é traição? Há traição mesmo se o<br />

3


outro parceiro nunca descobre? Existe traição quando não houver <strong>um</strong> outro<br />

real e concreto? Alguns desses elementos compõem os arg<strong>um</strong>entos de<br />

cônjuges que ficam na defensiva frente seu acusador (outro do par), por<br />

exemplo, nas sessões de terapia de casal onde se colocam como vitima e<br />

algoz, que serão discutidos ao longo do trabalho.<br />

Nos dois relatos clínicos essas questões estão postas, já que<br />

adentramos ao campo das traições virtuais, não consideradas pelos cônjuges<br />

envolvidos como “verdadeiras traições”, mas que abalaram o casamento. Essa<br />

situação gera <strong>um</strong>a crise que desencadeia <strong>um</strong>a demanda por terapia de casal.<br />

E é nesse espaço terapêutico que o casal no encontro com outro terceiro - o<br />

terapeuta – buscará o entendimento necessário <strong>para</strong> o ocorrido.<br />

O ESPAÇO TERAPÊUTICO DO CASAL<br />

No caso A. são necessárias alg<strong>um</strong>as sessões <strong>para</strong> que ambos possam<br />

começar a refletir e se implicar na crise <strong>conjugal</strong>, ou seja, as atitudes de<br />

Antonio são analisadas dentro da dinâmica do casal e não intrapsiquicamente,<br />

já que estamos n<strong>um</strong> espaço compartilhado. O casal passa então n<strong>um</strong>a visão<br />

retrospectiva a buscar onde houve a “quebra”, a des (ilusão) da vida que<br />

tinham imaginado, já que reconheciam que haviam se casado por amor, que<br />

haviam decidido ter filhos. Porque não eram felizes com o que haviam<br />

escolhido? Questões intrapsíquicas e influências geracionais (modelos<br />

oriundos das famílias de origem de cada <strong>um</strong>) geravam fortes interferências a<br />

partir do momento que o casal se tornou <strong>um</strong>a família. É importante aqui<br />

lembrar que a entrada do terceiro/filho exige <strong>um</strong>a nova organização do par<br />

<strong>conjugal</strong> e da rotina familiar. Compartilhar <strong>conjugal</strong>idade e parentalidade tem se<br />

mostrado, na sociedade atual, <strong>um</strong>a tarefa complexa (Levy e Gomes, 2009)<br />

exigindo <strong>um</strong> mínimo de maturidade dos parceiros no sentido de se<br />

desprenderem do vinculo fusional estabelecido, das heranças transgeracionais,<br />

do lugar de filhos <strong>para</strong> ascenderem ao de genitores superando os restos<br />

edípicos, o que permitirá elaborar o sentimento de exclusão e,<br />

concomitantemente, a construção de <strong>um</strong>a identidade mais segura. Voltando ao<br />

caso A., após o nascimento dos filhos, a vida <strong>conjugal</strong> é deixada em segundo<br />

plano. Dentro do processo psicoterápico, ambos se implicam, reconhecem o<br />

distanciamento sexual e <strong>conjugal</strong> e percebem que, se Antonio buscou refúgio<br />

no computador, Amanda estava por demais apegada aos filhos, tendo<br />

4


substituído o parental pelo <strong>conjugal</strong>. A partir daí, o trabalho da terapia pôde ir<br />

além de focar a traição e movimentou-se no sentido de permitir <strong>um</strong>a<br />

compreensão mais profunda dos investimentos feitos e da recuperação do<br />

<strong>conjugal</strong>.<br />

Em relação ao caso B., há <strong>um</strong>a pequena diferença, pois quem procura<br />

atendimento é justamente quem provoca a crise <strong>conjugal</strong>, ou seja, o próprio<br />

“traidor”. Breno, após a sessão inicial, traz a sua grande preocupação: tem<br />

medo de repetir o que vivenciou no casamento anterior. Frente à crise e ao<br />

desgaste no relacionamento passado, procurou alento n<strong>um</strong> novo<br />

relacionamento, quando se apaixonou por Bruna rompendo com <strong>um</strong> casamento<br />

de 17 anos, quase o mesmo tempo de vida em com<strong>um</strong> com a esposa atual.<br />

Ambos ass<strong>um</strong>em que durante anos alimentaram-se reciprocamente da fantasia<br />

de “amantes”, utilizando-se de vários jogos sensuais e sexuais, mesmo após o<br />

nascimento do filho. Entretanto, a chegada do filho caçula à adolescência<br />

coincidente com a menopausa da esposa e aposentadoria do marido, bem<br />

como o tornar-se avô, foram sentidos como empecilhos <strong>para</strong> a continuidade<br />

desse tipo de vínculo <strong>conjugal</strong>, gerando a crise. O casal se de<strong>para</strong> com fortes<br />

angústias depressivas, projetadas na idealização de <strong>um</strong> vínculo <strong>conjugal</strong> que<br />

os manteria <strong>para</strong> sempre na qualidade de “amantes sexuais perfeitos”. Ao<br />

longo da terapia reconhecem que a grande traição vivida foi a própria<br />

idealização da relação vivenciada por eles, que os fechou <strong>para</strong> <strong>um</strong> viver mais<br />

amplo e criativo, indicativo de crescimento e amadurecimento pessoal, do<br />

próprio casamento e social.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Nos fragmentos apresentados, observamos <strong>um</strong> desinvestimento<br />

gradativo da <strong>conjugal</strong>idade. Em ambos os casos, os homens não pretendiam<br />

transformar a relação virtual em <strong>um</strong>a relação real. Esse é mais <strong>um</strong> aspecto que<br />

comprova a natureza diferenciada do que se entende por traição virtual. Ao<br />

mesmo tempo em que o relacionamento virtual funcionava como <strong>um</strong>a recarga<br />

de auto-estima <strong>para</strong> Antonio e Breno, dava-lhes a sensação ilusória de que não<br />

estariam colocando seu casamento em risco. O espaço clínico contribuiu <strong>para</strong><br />

que cada <strong>um</strong> procurasse renovar com o parceiro as reservas narcísicas<br />

necessárias <strong>para</strong> a preservação da <strong>conjugal</strong>idade como fonte de prazer.<br />

5


Res<strong>um</strong>o:<br />

A simbiose característica do vínculo <strong>conjugal</strong>, quando esta corresponde ao<br />

preenchimento de lacunas afetivas primitivas de cada <strong>um</strong> dos parceiros, se<br />

mantém sob forma de amor até que <strong>um</strong> terceiro surge <strong>para</strong> romper o equilíbrio<br />

estabelecido, advindo <strong>um</strong>a crise. Esse terceiro nas histórias clássicas de<br />

traições conjugais era sempre encarnado por <strong>um</strong> personagem real, fonte de<br />

ciúme e inveja <strong>para</strong> aquele que se sentia traído. E ainda o é em varias<br />

situações vividas do dia a dia ou da clinica de casais. Entretanto, <strong>um</strong> fator novo<br />

surge com a inclusão dos relacionamentos virtuais cada vez mais presentes no<br />

mundo atual. Enfocaremos, por meio de dois relatos clínicos, a questão da<br />

traição <strong>conjugal</strong> vista sob o prisma do “virtual”, destacando sua especificidade e<br />

o debate sobre a possibilidade de ser considerada traição ou não pelos<br />

cônjuges. A traição virtual, enquanto <strong>um</strong> sintoma que aponta <strong>para</strong> <strong>um</strong><br />

desinvestimento no <strong>conjugal</strong>, tem provocado <strong>um</strong>a crescente demanda pela<br />

terapia psicanalítica de casal. Nos fragmentos analisados, a sensação de<br />

desamor e solidão que antes era compensada na fantasia por muitos<br />

indivíduos, encontrou no relacionamento virtual, <strong>um</strong> interlocutor. O espaço<br />

clínico permitiu aos parceiros <strong>um</strong>a compreensão aprofundada do significado<br />

desse tipo de “traição”.<br />

Referências<br />

Civiletti, M.V.P.; Pereira, R. Pulsações Contemporâneas do desejo: paixão e<br />

libido nas salas de bate-papo virtual. Psicologia Ciência e Profissão, Brasília, v.<br />

22 (1), mar., 2002.<br />

Dela Coleta et all. O Amor pode ser virtual? O relacionamento amoroso pela<br />

internet. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 2, p. 277- 285, 2008.<br />

Donnamaria, C.P; Terzis, A. Sobre a evolução de vínculos conjugais originados<br />

na internet. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v.61, n.3, p. 75- 86, 2009.<br />

Freud, S.. Um Tipo de Escolha de Objeto feita pelos Homens. (Contribuições à<br />

Psicologia do Amor I). In: Cinco Lições de Psicanálise, Leonardo da Vinci e<br />

6


Outros Trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1980 (Trabalho original publicado em<br />

1910), p.147-157. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas<br />

Completas de Sigmund Freud, XI).<br />

Levy, L., Gomes, I. C. O mal-estar e a complexidade da parentalidade<br />

contemporânea. Cadernos de Psicanálise, Rio de Janeiro, v.25, p. 217 – 238,<br />

2009.<br />

Nicolaci-da-Costa, A.M. Sociabilidade virtual: se<strong>para</strong>ndo o Joio do Trigo.<br />

Psicologia e Sociedade, v. 17 (2), p. 50-57, mai/ago, 2005.<br />

Tisseron, S. Virtuel, mon amour: penser, aimer, souffrir á l’ère des nouvelles<br />

technologies. Paris: Albin Michel, 2008.<br />

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