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O TRÁGICO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA: UM DESTINO DO QUAL ...

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O <strong>TRÁGICO</strong> <strong>NA</strong> <strong>CLÍNICA</strong> PSICA<strong>NA</strong>LÍTICA: <strong>UM</strong> <strong>DESTINO</strong> <strong>DO</strong> <strong>QUAL</strong> NÃO SE<br />

PODE ESCAPAR<br />

Halanderson Raymisson da Silva Pereira 1<br />

Melissa Andrea Vieira de Medeiros 2<br />

RES<strong>UM</strong>O: Este trabalho empreende algumas reflexões e discussões sobre os<br />

elementos trágicos constituintes do psiquismo humano, a partir do referencial teórico<br />

psicanalítico em interface com as releituras sobre a tragédia grega. O trágico surge<br />

no setting clínico como inerente a vida e relações dos pacientes, trazendo<br />

paradoxalmente sofrimento e um prazer oculto e enigmático, que convém<br />

desvendar. Nas reconstruções de suas histórias é feito um convite para que se<br />

posicionem frente ao desejo velado, no entanto, nesse encontro não é pretendido<br />

uma cura na acepção médica, eliminando os sintomas ou a causa do sofrimento,<br />

mas sim simbolizar e elaborar outro caminho além do que fora traçado como um<br />

destino trágico.<br />

O nascimento da tragédia, ou melhor, o período de seu maior florescimento e<br />

fecundidade situam-se na Grécia no século V a. C. Contudo, mesmo que o seu<br />

período áureo tenha durado apenas um século, ainda continua sendo visitada por<br />

inúmeras áreas de conhecimento humano, onde descrevem alguns elementos do<br />

trágico como inerentes a certos tipos de experiências da existência humana.<br />

Na busca da essência humana, a psicanálise encontrou na arte grega uma<br />

possibilidade de acessar os conteúdos que desvelassem o que há de mais íntimo no<br />

homem. Por meio de Édipo, Antígona e outros referenciais trágicos, esse constructo<br />

teórico recria uma acepção de homem, agora um homem psicanalítico, como um ser<br />

que vive em conflito, na busca da realização de um desejo trágico, impossível de se<br />

consumar plenamente.<br />

O trágico do desejo impossível dá ao sujeito uma condição de ser desejante,<br />

capaz de realizar inúmeras façanhas bem como de se tornar vítima terrivelmente<br />

voluntária de seu próprio desejo. Eis um desafio para clínica psicanalítica, que<br />

1 Psicólogo clínico formado pela Universidade Federal de Rondônia – UNIR.<br />

2 Professora Doutora Melissa Andrea Vieira de Medeiros, docente do Departamento de Psicologia da UNIR.


diferentemente do modelo médico não objetiva uma cura, mas é “[...] um efeito<br />

secundário da análise que o analista pode esperar” (Nasio, 1999, p. 169).<br />

O <strong>TRÁGICO</strong> E O GOZO <strong>NA</strong> <strong>CLÍNICA</strong> PSICA<strong>NA</strong>LÍTICA<br />

A psicanálise em sua essência tem por objetivo buscar, por meio da escuta, a<br />

verdade que cada sujeito leva consigo, a verdade inconsciente do desejo, impossível<br />

de ser realizado plenamente, mas que sempre está em busca do objeto para sempre<br />

perdido e essa busca foi empreendida por Édipo até as últimas consequências.<br />

Mezan (2002) aponta para esse herói freudiano como aquele que retirou o véu do<br />

enigma da condição humana, desvelando o segredo trágico da sua verdade, mas<br />

que ao mesmo passo lhe proporcionou outro caminho.<br />

O constructo psicanalítico, por sua vez, empreende uma busca contínua pela<br />

interioridade do sujeito, de sua subjetividade, indicando que toda sua ação está<br />

pautada dentro de uma realidade psíquica construída por ele, convidando-o a<br />

assumir a responsabilidade pelas produções do seu inconsciente.<br />

Entretanto, para além da trama trágica inerente a história dos heróis trágicos<br />

há um gozo que convém desvendar e explorar, pois o “[...] trágico tanto pende para<br />

o lado do desejo – fundamenta-se então numa perda, para se desligar - quanto para<br />

o lado do gozo - fundamenta-se numa perda para ir além da morte. Há um a tragédia<br />

do desejo, mas há também um gozo trágico”. (Guyomard, 1996, p.19-20).<br />

De acordo com Guyomard (1996) o ponto absolutista do desejo é aquele em<br />

que o sujeito deixa de demandar: ele deseja. Essa é uma construção trágica<br />

vivenciada por Édipo e Antígona, mas é na figura da heroína que Lacan chega a<br />

compreensão de uma tragédia do desejo puro, ancorada em uma discussão na<br />

década de 60 em torno de uma ética que circunscreve a psicanálise.<br />

O desejo enquanto bem, acarreta uma série de implicações que dirigem para<br />

uma revisitação necessária no discernimento entre o bem e o mal. Guyomard (1976)<br />

vê na psicanálise uma recusa a aceitar o modelo desses termos na moral civilizada,<br />

porém ela não se isenta, e até mesmo sente-se obrigada, a reintroduzi-lo em sua<br />

ética sob a penalidade de incorrer em uma “confusão”. Ainda segundo o autor,<br />

Lacan segue esse propósito na releitura de Antígona, destacando três teorias a<br />

partir do texto de Sófocles: uma teoria do desejo, que é a teoria do sujeito; uma<br />

teoria da análise, resumindo a dimensão trágica da experiência analítica; e uma<br />

teoria ética – conduzida por esse bem denominado desejo – do fim (e dos fins) da<br />

análise, bem como das passagens que ela supõe.


A questão do desejo na psicanálise, no entanto, demanda uma ética, que está<br />

intimamente relacionada a verdade do inconsciente, uma verdade que não<br />

corresponde a um simplório balanço entre o bem e o mal. No seminário 7, no texto<br />

os Paradoxos da ética, Lacan (1960) ensina que a ética consiste fundamentalmente<br />

em um “[...] juízo sobre nossa ação, exceto que ela só tem importância na medida<br />

em que a ação nela implicada comporta também ou é reputada comportar, um<br />

juízo, mesmo que implícito. A presença do juízo dos dois lados é essencial a<br />

estrutura” (p. 373).<br />

O psicanalista francês entende a análise como algo que se coloca como<br />

medida da ação do analista, que se propõe a escutar a reconstrução da história do<br />

próprio analisando, na tentativa de evocar a responsabilidade deste último sobre o<br />

gozo obtido pelo sintoma. E para falar da relação com o desejo que a habita, Lacan<br />

tomou o suporte da tragédia, que o dirigiu a ética da análise não como uma mera<br />

ordenação em direção ao serviço dos supostos bens. “Ela implica, propriamente<br />

falando, a dimensão que se expressa na que se chama de experiência trágica da<br />

vida” (Lacan, 1960, p. 376).<br />

A dimensão trágica, na clínica lacaniana, assume um lugar cujas ações se<br />

inscrevem, onde somos convidados a nos orientar em relação aos valores. A relação<br />

da ação com o desejo que a habita na dimensão trágica, conforme Lacan, é exercida<br />

no sentido de um triunfo da morte, como destaca nesse trecho: “Ensinei-lhes a<br />

retificar – triunfo do ser para-a-morte, formulando no me phynai de Édipo, onde<br />

figura esse me a negação idêntica à entrada do sujeito, no suporte do significante.<br />

Esse é o caráter fundamental de toda ação trágica” (Lacan, 1960, p. 376).<br />

Antígona possui esse caráter de triunfo do ser para-a-morte, mesmo, segundo<br />

Guyomard (1996) ela tendo suscitado tanto uma “confusão” entre a vida e a morte,<br />

quanto entre a lei e o incesto. Ao colocar a questão de quem pertence sua vida e<br />

quem pode decidir sobre sua morte, a heroína deixa problematicamente margens<br />

para compreensão de uma morte voluntária e para além dessa realidade “[...]<br />

coloca-se a do auto-engendramento do sujeito, por ele mesmo numa família<br />

incestuosa, e do começo devido ao outro” (Guyomard, 1996, p. 32).<br />

O destino da personagem se vê amarrado ao seu desejo, que não é qualquer<br />

desejo, pois existem desejos conscientes e inconscientes, muitos deles irrealizáveis.<br />

O nome indestrutível do desejo de Antígona se refere a um corte no significante,<br />

uma corte na humanidade da heroína, que como todo ser falante tem o poder de<br />

dizer não, como bem destaca Guyomard, porém essa posição não se configura de


modo tão simples. O desejo indestrutível a corrói, a lança ao mesmo instante a<br />

possibilidade de sua castração, a um a afirmação de sua onipotência para além da<br />

morte ou ao reconhecimento de suas limitações.<br />

O desejo da personagem Antígona está ligado a uma ritualização e<br />

reatualização do desejo de sua mãe Jocasta, mãe e esposa de Édipo. Ora, voltamos<br />

para a tragédia dos Labdácias, o trágico do incesto. Contudo, Antígona quebra essa<br />

trama incestuosa e proibida, rompendo com a transmissão da vida, apegando-se<br />

alienante e libertadoramente a morte de Polinices, não deixando de expressar seu<br />

desejo incestuoso. Eis o perigo do materno. “A morte de Antígona marca a<br />

impossibilidade na vida de uma saída” (Guyomard, 1996, p 55).<br />

Édipo e Antígona são recorridos para respaldar a formulação da teoria do<br />

sujeito, do seu desejo. Como destacado na história dos dois personagens, o desejo<br />

é que estrutura o ser humano, manifestando-se de forma voraz, insaciável e<br />

incompleta. O desejo se encontra dentro de uma cadeia metonímica que se<br />

relaciona com algo para além da demanda. “É na medida em que a demanda está<br />

para aquém de si mesma, que ao se articular com o significante, ela demanda<br />

sempre outra coisa” (Lacan, 1960, p. 353). É no mais além do princípio do prazer<br />

freudiano, no espaço da repetição, que está o germe do desejo trágico do psiquismo<br />

humano.<br />

ALG<strong>UM</strong>AS PONTUAÇÕES<br />

A tragédia grega anuncia a queda de um mundo ilusório de segurança e<br />

felicidade, onde o abismo da desgraça é ineludível. (Lesky, 1976). Há nela, porém,<br />

além da dimensão trágica, uma tensão entre o apolíneo e o dionisíaco que nos<br />

aponta outra concepção de homem, que mesmo diante de um destino inevitável,<br />

ainda consegue se insurgir contra o divino, ressignificando, assim, as escolhas que<br />

faz.<br />

A psicanálise, por sua vez, alimenta-se da Tragédia. A própria experiência<br />

analítica está situada em uma ordem trágica, pois o sujeito falante não conseguirá<br />

superar sua castração e mesmo que deseje incessantemente não terá o desejo<br />

plenamente realizado, chegando assim ao gozo absoluto, puro e mortífero. Está<br />

fadado a buscar ininterruptamente o objeto de gozo para sempre perdido.<br />

A forma como o sujeito se posiciona subjetivamente diante de sua própria<br />

castração é que irá nortear as relações e escolhas que estabelecerá ao longo de sua<br />

vida. Todavia, o encontro ou mesmo ensaio da aproximação da verdade enigmática


e oculta do desejo do sujeito, nem sempre significa uma mudança radical do modo<br />

como ele estabelece suas relações, pois “quando alguém ama o seu sofrimento,<br />

quando não deseja curar-se, é incurável”. (Nasio, 1999, p. 166). Esse paradoxo se<br />

presentifica constantemente no ser desejante, cujo sofrimento reside em seus<br />

sintomas, mas que também deles consegue auferir um prazer, um refúgio, chegando<br />

a apegar-se em alguns casos ciosamente ao mal estar sentido.<br />

A ética psicanalítica, no entanto, propõe o acolhimento do sujeito em sua<br />

clínica, porém não objetiva responder às demandas do paciente. A condução da<br />

psicoterapia de orientação analítica, nesse sentido, segue os pressupostos da<br />

análise, ao tentar proporcionar o encontro do sujeito/paciente com o seu próprio<br />

desejo, convidando-o a assumir suas produções inconscientes.<br />

É na condição trágica do desejo irrealizável, que o sujeito se percebe<br />

enquanto ser desejante, que sempre está se reconstruindo, buscando relações que<br />

preencham suas lacunas. A impossibilidade de acesso ao gozo pleno, para além de<br />

algo inatingível, torna-se fecundo, criativo, impulsionando o sujeito psicanalítico a<br />

uma ininterrupta construção e redescoberta de si. Desejar é uma forma de proteger<br />

o “eu” dos imperativos mortíferos do gozo em sua acepção pura, não intermediada<br />

pelo falo, enquanto operador simbólico.<br />

Além de proteção, o desejo também suscita a busca de uma identidade pelo<br />

sujeito, de suas origens, cuja psicanálise sinaliza as limitações desse percurso,<br />

porém ao mesmo instante pontua a capacidade humana de se reinventar, dando<br />

outros destinos ao que estava inscrito com um destino trágico a se cumprir.<br />

REFERÊNCIAS<br />

Guyomard, P. (1996). O gozo do trágico: Antígona, Lacan e o desejo do analista. Rio<br />

de Janeiro: Zahar.<br />

Lacan, J. (1997). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise, 1959-1960 (A.<br />

Menezes, trad.). Rio de Janeiro: Zahar.<br />

Lesky, A. (1976). A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva.<br />

Nasio, J.D. (1999). Como trabalha um psicanalista. Rio de janeiro: Zahar.

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