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SER E TER UM CORPO II Maria Beatriz Simões Rouco Para a ...

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<strong>SER</strong> E <strong>TER</strong> <strong>UM</strong> <strong>CORPO</strong> <strong>II</strong><br />

<strong>Maria</strong> <strong>Beatriz</strong> <strong>Simões</strong> <strong>Rouco</strong> 1<br />

<strong>Para</strong> a Psicanálise que constata as vicissitudes do ser e valoriza a<br />

qualidade da experiência subjetiva, ser e ter um corpo não são realizações<br />

garantidas. Mesmo assim ela necessita de uma concepção monista da ligação<br />

intrínseca corpo-mente para compreender as psicossomatoses. Freud (2001<br />

[1923b]) interligou-os propondo que do id emergiria um ego corporal com as<br />

tarefas de representar as demandas pulsionais; integrar a imagem do corpo; e<br />

basear toda atividade mental; e um superego formado a partir da identificação<br />

primária do bebê com seus pais, processo que gera a primeira distinção ser e<br />

ter (Freud, 2001 [1937-1938]: 301):<br />

“‘A criança tende a expressar a relação de objeto por meio da identificação: ‘Eu sou o<br />

objeto’. ‘Ter’ é posterior, ele recai no ‘ser’ após a perda do objeto. (...) ‘O seio é uma parte<br />

de mim, eu sou o seio.’ Depois: ‘Eu o tenho, quer dizer, eu não sou ele’...”<br />

Na identificação primária o objeto de amor não é reconhecido como<br />

diferente e independente do próprio ser. Ter o objeto ocorre depois da perda<br />

dessa relação fusional. Entre ser e ter um corpo ocorre o mesmo. A percepção<br />

de sua diferença decorre dos conflitos entre as demandas e limitações de<br />

nosso corpo e as exigências da realidade.<br />

Winnicott (1993 [1949]) também adota a opção monista para a questão<br />

corpo-mente, mas mostra como a integração psique-soma e mente também<br />

depende dos cuidados maternos. Na saúde, o ego emerge de um estado de<br />

não-integração não se distinguindo da mãe e não diferenciando ser e ter um<br />

corpo:<br />

Quando o psique-soma ou esquema corporal do indivíduo atravessa satisfatoriamente os<br />

estádios mais antigos do desenvolvimento, a mente não existe como entidade (...) não<br />

sendo mais que um caso especial do funcionamento do psique-soma. (...) [Porém], no<br />

estudo de um indivíduo em desenvolvimento [às vezes] se descobre que a mente está<br />

desenvolvendo uma falsa entidade e uma falsa localização.<br />

E essa falsa entidade constitui um falso-self que não habita o corpo-<br />

próprio, nem o reconhece, percebendo suas manifestações como externas a<br />

ele (Winnicott, 1982 [1960]). Três relações mãe-bebê promovem a integração<br />

psicossomática. A mãe sustentando a continuidade da existência do bebê<br />

1 Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo


favorece o processo de integração no tempo e no espaço. Seus cuidados<br />

desencadeiam o processo de personalização pela elaboração imaginativa dos<br />

sentimentos corporais. A apresentação do objeto pela mãe em sintonia com o<br />

gesto espontâneo do bebê inaugura a relação criativa dele com o outro o que<br />

estimula a emergência das funções intelectuais como expressão de seu ser<br />

autêntico (Winnicott, 1982 [1962]). O verdadeiro self do bebê se desenvolve<br />

então desde a vida pré-natal só se integrando no estágio da preocupação como<br />

um self total. Nesse processo o bebê tem as experiências de ‘Eu’, ‘Eu sou’ e<br />

‘Eu sou só. O ‘Eu” é uma experiência episódica sem um sentimento contínuo<br />

de ser. O que já acontece no estágio ‘Eu sou’, só que o bebê é ainda “tosco,<br />

indefeso, vulnerável e potencialmente paranoide”. A experiência ‘Eu sou só’ é<br />

própria do self total e se acompanha da percepção da existência contínua e<br />

separada da mãe. Só então o bebê não sendo a mãe, tem sua mãe (Winnicott,<br />

1982 [1958]), distingue ser e ter um corpo, e tem experiências de id como ‘o<br />

que foi isso que eu fiz?’ Quando o ambiente é desorganizado, a mente se<br />

diferencia precocemente do psique-soma para discriminar, memorizar e<br />

catalogar os detalhes das situações invasoras, constituindo um falso-self<br />

defensivo que sufoca o desenvolvimento do verdadeiro-self. O falso-self não é<br />

seu corpo criativo, mas pode ser seu corpo defensivo, já que as emoções<br />

também tem um poder integrador (Winnicott, 1982 [1960]).<br />

Gaddini (1982) diferenciou fantasia inconsciente no corpo e fantasia<br />

inconsciente sobre o corpo. A primeira ocorre no nível somático no estágio da<br />

não integração psíquica, quando começa a formação de núcleos de ego<br />

corporal que se aglutinam por meio do que o bebê sente no contato corpo a<br />

corpo com a mãe. Já a fantasia sobre o corpo depende da elaboração psíquica<br />

da imagem dele só possível com a integração do ego corporal. No estágio da<br />

não-integração o bebê é sua mãe-ambiente. Sua falta leva-o a imitá-la para sê-<br />

la tentando conter a insuportável angústia de perda-do-self. No mericismo o<br />

bebê rumina amamentando-se onipotentemente. Gaddini (op. cit.) define a não-<br />

integração como a primeira organização funcional do self, seguida pela<br />

organização imagética do ego corporal e pela organização verbal.<br />

Ohki (2004) distingue doença psicossomática (dermatites, hipertensão<br />

asma, doenças gastro-intestinais,) de somatização (histeria, hipocondria, delírio<br />

somático) porque ela é uma manifestação deficitária devida a trauma precoce


no estágio de não-integração. O eu incapaz de elaborar imaginativamente suas<br />

vivências, produz fantasias no corpo (imitação) devida a angústias de<br />

liquefação e derramamento dos fragmentos não-integrados. Nesse caso não se<br />

aplicam a análise de conteúdo e de mecanismos de defesa contra conflito<br />

psíquico. Ela é válida apenas para a somatização que resulta de processo<br />

regressivo que se expressa por fantasias sobre o corpo, motivadas por<br />

angústias de desintegração e aniquilamento do self.<br />

Exemplifico os conceitos expostos descrevendo dois casos clínicos por<br />

mim analisados. Um paciente paranóico era um ser defensivo que sobrevivia<br />

alerta para proteger seu verdadeiro self incomunicado. Seu falso self integrava-<br />

se precariamente por meio do ódio à ‘vizinha’, a única autora do mal-estar que<br />

ele sentia. Uma vez criada, a vizinha precisava ser descoberta. Depois de<br />

conter por anos meu mal-estar pelo fato dele urinar no chão do sanitário<br />

finalmente pedi-lhe que tivesse mais cuidado. Em seguida ele foi operado para<br />

estancar uma hemorragia devida à perfuração de uma úlcera estomacal.<br />

Retomando a análise, eu afirmei a relação entre meu pedido e sua hemorragia.<br />

Ele negou qualquer relação, mas associou o buraco que fizera no estômago<br />

com o buraco que seu pai fizera em sua própria cabeça. Daí relembrou como<br />

após seu suicídio, todos os irmãos, menos ele, foram encaminhados por<br />

parentes. Só na juventude ele foi convidado a morar com quem iria pagar-lhe<br />

os estudos, mas logo foi expulso dessa casa por sujar o banheiro. Segundo<br />

Winnicott (1993 [1954]), o paciente inconscientemente manejou a situação para<br />

reproduzir seu trauma com a esperança de que alguém se responsabilizasse<br />

pelo mal que sofreu. A análise progrediu depois desse episódio. Passou a<br />

contar seus pesadelos com casas escuras, sem teto e com a chuva escorrendo<br />

pelas paredes semi-destruídas que revelavam sua angústia de liquefação e<br />

perda do self. Descobri que ele vivia num apartamento nu e dormia no chão<br />

segurando um martelo para revidar os barulhos feitos pela ‘vizinha’. Minha<br />

compreensão de seu desamparo, de sua angústia, de sua insônia – pois tinha<br />

que conscientemente criar e sustentar uma divisória que mantivesse a vizinha<br />

má do outro lado dela - não era ‘oficialmente’ admitida por ele, mas favoreceu a<br />

retomada do processo integração, que foi concretamente encenado por meio<br />

da atividade de revestir e decorar o apartamento. A mudança de seu ser para<br />

dentro de seu corpo foi encenada pela instalação nele de um aquário e por seu


entusiasmo em identificar os peixes mortíferos para separá-los dos pacíficos e<br />

assim garantir a sobrevivência desses. Feito isso, acabou por descobrir que o<br />

insuportável “barulho que a vizinha fazia à noite de propósito para acordá-lo”<br />

era produzido por seus próprios roncos.<br />

Uma mulher não vista por sua mãe desorganizada e nervosa passou a<br />

infância obediente e retraída. Teve inclusive que viver em casa de estranhos<br />

em outra cidade para cumprir o desejo materno de destaque numa carreira que<br />

exige preparo precoce. Na adolescência mudou radicalmente de atitude com<br />

conhecidos e familiares, explodindo com quem atingisse seu amor próprio, e<br />

transferiu sua submissão para seu objeto de amor. Porém não se confundindo<br />

com ele, já que conquistara certa integração egóica, temia perdê-lo e assim<br />

renunciava em questões importantes para sua realização pessoal. Procurou<br />

ajuda por temer que seus recorrentes surtos hipocondríacos levassem-na a<br />

perdê-lo. Na análise começou a entender que esses surtos seguiam episódios<br />

de submissão amorosa. A baixa na auto-estima produzia regressão egóica e<br />

somatizações hipocodriacamente interpretadas. Ou seja, a angústia de<br />

desintegração de seu self era imaginativamente elaborada como fantasias<br />

sobre seu corpo. <strong>Para</strong> isso contribuía também sua dificuldade de distinguir<br />

entre sensações físicas e sentimentos também decorrente da falha de<br />

maternagem. Começou a perceber que ao se olhar no espelho via um corpo,<br />

mas não via uma pessoa; de que não era amadurecida como os outros; a se<br />

envergonhar de sua dependência e incontinência afetivas; e passou a lutar<br />

para ser menos reativa e para afirmar seu verdadeiro self.<br />

O primeiro exemplo mostra como num caso grave de não integração<br />

psicossomática o ser reativo não habita seu corpo e não reconhece suas<br />

expressões, vivendo-as paranoicamente como exteriores a ele. A gravidade do<br />

trauma sofrido levou esse homem a ser incapaz de se relacionar sexualmente.<br />

Á noite, sua tensão sexual explodia o frágil e falso continente psíquico<br />

defensivo e irrompia o delírio paranóico de ser invadido pela vizinha. A re-<br />

traumatização do paciente revelou uma doença psicossomática assintomática<br />

que realizou no corpo a fantasia de identificação com seu pai. A segunda<br />

paciente conquistou melhor integração psicossomática e era capaz de ao vivo<br />

enfrentar o outro, explodindo com quem atingisse seu amor próprio. Mas<br />

quando sufocava sua raiva com o objeto amado, por ser ainda muito


dependente afetivamente dele, começava um processo regressivo de<br />

somatização e desintegração interna de sua frágil organização egóica que<br />

produzia sensações vividas persecutoriamente como fantasia hipocondríaca<br />

sobre o corpo. Dessa forma penso ter exemplificado a ligação intrínseca entre<br />

ser e ter um corpo e a importância desses e dos demais conceitos<br />

psicanalíticos apresentados para aprimorar a compreensão do paciente,<br />

diferenciando e analisando melhor casos de doença psicossomática e<br />

somatização como o objetivo de facilitar o processo de integração mente-corpo.<br />

Resumen<br />

A simples sobrevivência não garante ao indivíduo ser e ter um corpo,<br />

pois eles exigem um processo de integração psicossomática bem sucedido que<br />

quando falta (não-integração) ou quando é precário (desintegração) produzem<br />

somatizações, as quais exigem para compreendê-las uma concepção<br />

psicanalítica monista que afirme a inextricável ligação corpo-mente. <strong>Para</strong><br />

esclarecer essa colocação, percorre-se um caminho teórico que parte do<br />

conceito de ego corporal de Freud, passa pela teoria da integração<br />

psicossomática de Winnicott e desemboca na diferença por ele estabelecida<br />

entre não-integração e desintegração psicossomáticas. Baseando-se nessa<br />

distinção, Gaddini diferencia fantasia no corpo e fantasia sobre o corpo, e Ohki<br />

diferencia doença psicossomática de somatização. Um caso de paranoia<br />

mostra como a doença psicossomática que decorre da não-integração psíquica<br />

expressa uma fantasia no corpo. Um caso de hipocondria mostra como a<br />

ameaça de desintegração de um ego frágil produz somatização que suscita<br />

fantasia sobre o corpo. Os relatos clínicos mostram também como o trabalho<br />

psicanalítico orientado por essas concepções promove a recuperação da<br />

saudável integração psicossomática. Descritores: psicossomática, ego<br />

corporal, transtornos do desenvolvimento, paranoia, hipocondria<br />

Referências bibliográficas<br />

Freud, S. (2001 [1923b]). El yo y el ello. Obras completas, XIX. B. Aires: Amorrortu Eds.<br />

______ (2001 [1937-1938]). Escritos breves. Obras completas, XX<strong>II</strong>I. B. Aires: Amorrortu Eds.<br />

Gaddini, E (1982). Early defensive fantasies and the psychoanalytical process. Int. J. Psycho-<br />

Anal., 63: 379.<br />

Ohki, Y (2004). Somatização e Doença Psicossomática: Parte I – Um ponto de vista<br />

psicanalítico. Revista Portuguesa de Psicanálise, 25, 133-154.


Winnicott, D.W. (1982 [1958). A capacidade para estar só. In O ambiente e os processos de<br />

maturação. Porto Alegre: Artes Médicas: cap. 2.<br />

______(1982 [1960]). A distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In O ambiente<br />

e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas: cap. 12.<br />

______ (1982 [1962]). A integração do ego no desenvolvimento da criança. In O ambiente e os<br />

processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas: cap. 4.<br />

______ (1993 [1949]). A mente e sua relação com o psique-soma. In Textos Selecionados:<br />

Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, cap. 19.<br />

______(1993 [1954]). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão dentro do setting<br />

psicanalítico. In Textos Selecionados: Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro:<br />

Francisco Alves, cap. 22.

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