Santos Oliveira “liberta-se” do PS - O Povo Famalicense
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22<br />
Tetraplégico famalicense<br />
Da cadeira de rodas para o livro<br />
Hélder Ferreira era um jovem empurra<strong>do</strong> para as artes. Um<br />
dia começou a sentir a perda de faculdades físicas e foi atira<strong>do</strong><br />
para uma cama <strong>do</strong> Hospital São João de Deus, Vila Nova de<br />
Famalicão, logo transferi<strong>do</strong> para o Hospital de S. João (Porto)<br />
onde lhe diagnosticaram estar tetraplégico, há seis anos, e<br />
“com pouco tempo de vida”. “Já passaram anos e eu estou por<br />
cá”, responde, teiman<strong>do</strong> em querer continuar um percurso sem<br />
vegetar dentro da sua imobilização, entre a cama e a cadeira<br />
de rodas.<br />
Embora resida com a esposa, Susana <strong>Santos</strong>, em Santa<br />
Maria de Arnoso, considera-se mais liga<strong>do</strong> a Santiago da Cruz<br />
onde tem muitos amigos. “A minha mulher é o meu grande<br />
braço direito, é com o seu dinamismo que impulsiona o meu<br />
dia-a-dia”. De facto, ele ouve tu<strong>do</strong> e apercebe-se da movida<br />
das visitas e de familiares e Susana é quem traduz as suas frases<br />
quase infantilmente hesitantes que só ela descodifica.<br />
Hélder é, entre tetraplégicos, um caso isola<strong>do</strong> porque, à paralisação<br />
<strong>do</strong>s seus membros, respondeu com o seu <strong>do</strong>mínio<br />
pela arte, crian<strong>do</strong> um livro a que chamou “Escreven<strong>do</strong> pensan<strong>do</strong><br />
(autobiografia)”, um retrato fidedigno <strong>do</strong> serviço de saúde no<br />
país, evocan<strong>do</strong> o contacto de técnicos e outros profissionais atentos<br />
hospitalares.<br />
É difícil, um jovem tetraplégico recuperar os senti<strong>do</strong>s cognitivos<br />
a partir da arte. No seu passa<strong>do</strong>, percorreu os melhores<br />
colégios como a Didáxis, Vale S. Cosme, ou o colégio das<br />
Caldinhas, manten<strong>do</strong> o estu<strong>do</strong> de violino na Artave ao longo de<br />
seis anos, desde 1997, ano em que colaborou na fundação <strong>do</strong><br />
grupo Os Eruditos que hoje se apresentam como Collegia<br />
Ensemble e actuam em eventos.<br />
Concretizou uma aspiração de sempre ao passar pela<br />
Artave, em 1990, marca<strong>do</strong> por estu<strong>do</strong>s com José Manuel David<br />
e outros maestros como Ernestt Scala ou Emídio César, sen<strong>do</strong><br />
dirigi<strong>do</strong> em orquestra por Leonar<strong>do</strong> Barros.<br />
No mesmo ano de 1997, Hélder Ferreira matriculou-se na<br />
Universidade de Nantes, França, para acabar o 12º ano. E<br />
como músico, em 2002, interpretou “Com Tempo e Poesia”,<br />
parte instrumental de um CD com Ivo Macha<strong>do</strong>, Carlos<br />
Carneiro e Rui Mesquita. Foi uma forte incursão pelas artes<br />
porque também veio a dedicar-se à viola d´arco. Depois foi<br />
carpinteiro. Tornou-se cozinheiro no exército, Vila Real e Porto,<br />
em 2000. Três anos depois estava <strong>do</strong>ente numa enfermidade<br />
que o imobilizou.<br />
Vítima de um AVC com “graves, múltiplas e irremediáveis<br />
lesões” e tetraplégico. As palavras são suas e, em vez de vegetar,<br />
encontrou na escrita um sóli<strong>do</strong> refúgio onde, por vezes,<br />
esconde “a tristeza de estar assim”. Tem um pensamento<br />
diário: “Um dia de cada vez”. Confia nas instituições umbilicais<br />
a quem recorreu com dignidade e espera o lançamento da au-<br />
tobiografia.<br />
“Foi muito difícil aceitar que estava preso a uma cama e que<br />
já não podia tocar e jogar à bola com os meus amigos. Ainda<br />
mais difícil foi aceitar que não podia falar nem fazer nada sozinho.<br />
Até aparecer o computa<strong>do</strong>r para que eu pudesse viajar<br />
e descobrir um mun<strong>do</strong> novo que é a escrita”. Susana traduz. E<br />
ele retoma o raciocínio. Como autor único e original desconhece-se<br />
se, pelo mun<strong>do</strong>, há mais tetraplégicos autores.<br />
Cremos que não. A sua autobiografia aguarda por ser editada.<br />
Para a edição foram contactadas as entidades que, de<br />
forma mais directa, acompanham o seu novo esta<strong>do</strong> de autor.<br />
A Associação para Tetraplégicos, a Associação Portuguesa de<br />
Paralisia Cerebral <strong>do</strong> Porto, Centro Hospitalar <strong>do</strong> Médio Ave,<br />
Hospital de S. João, Dar as Mãos, Engenho, Junta de<br />
Freguesia de Santiago da Cruz e Câmara Municipal de Vila<br />
Nova de Famalicão, propostas a aguardar celeridade e resposta<br />
eficaz.<br />
Quan<strong>do</strong> ficou paralítico veio a descobrir que podia fazer um<br />
esforço entre mãos para ligar-se a um computa<strong>do</strong>r através de<br />
um auxiliar para o écran, o “switch”, um rato a permitir ter acesso<br />
ao programa “the grid”, onde escreve. Brotou em pouco<br />
tempo a sua autobiografia. Esconde os originais mas já<br />
começou um romance intitula<strong>do</strong> “Vidas cruzadas por laços familiares”.<br />
Não fala comummente mas é capaz de ouvir uma agulha<br />
a cair no chão.<br />
COITADINHO<br />
Para termos uma ideia da transformação a que foi sujeito,<br />
Hélder Alexandre Reis Ferreira demora minutos para gravar<br />
uma frase no computa<strong>do</strong>r mas escreve-a e tem ajuda familiar<br />
para uma ida à fisioterapia ou à terapia da fala, seu encargo<br />
com maior preocupação. To<strong>do</strong>s o tratam bem quan<strong>do</strong> acede na<br />
cadeira de rodas.<br />
Seis anos após a sentença médica, ele teima em viver e escolheu<br />
uma forma peculiar para marcar a presença pela terra.<br />
Gabriel Garcia Marquez diz que não escreve para publicar, escreve<br />
como autor. Hélder Ferreira opta por uma concepção<br />
mais terrena, ao ter projectos para publicar e quer ver os seus<br />
livros nos escaparates. Ao contrário <strong>do</strong> escritor columbiano, ele<br />
quer ultrapassar o patamar da edição.<br />
“Foi a maneira que eu encontrei de dizer a toda a gente o<br />
que passa, uma pessoa como eu depende de toda a gente e<br />
não gosto de ser um coitadinho”. Melindra-se com temas mais<br />
banais e nunca esmoreceu o seu orgulho pessoal. E no meio<br />
<strong>do</strong> discurso vai sempre um reca<strong>do</strong>, assume-se irremediavelmente<br />
como deficiente e tenta dar o salto, agora, pela sua literatura.<br />
O primeiro livro é intimista, há poucas figuras de estilo e<br />
encara a sua escrita como solução e um mo<strong>do</strong> para preencher<br />
o tempo, sempre a contar os minutos.<br />
Susana Carvalho <strong>Santos</strong> é mulher para a frente, a reforma<br />
<strong>do</strong> mari<strong>do</strong> é escassa e trabalha para alargar o rendimento da<br />
casa, tem um horário que lhe permite acompanhar Hélder depois<br />
<strong>do</strong> almoço. Ele está prestes a comemorar o aniversário,<br />
nasceu a 1978-05-26 “a partir de Santiago da Cruz”, de onde<br />
foi para o Hospital São João de Deus. Acredita na vontade das<br />
instituições chamadas a intervir para o livro.<br />
Susana também lhe trata das burocracias mas Hélder<br />
Ferreira mantém-se como autor e não deixa alguém ler, consultar<br />
ou opinar sobre as suas páginas de escrita, agora concentradas<br />
num romance. O casal vive momentos de euforia<br />
mediante a eventual publicação <strong>do</strong> primeiro livro. E nem<br />
Susana consegue perscrutar umas palavras que sejam da<br />
próxima obra, um dia ele poderá terminá-la e dá-la a conhecer.<br />
Esta Sexta-Feira<br />
Dádiva de Sangue em Gavião<br />
A Associação de Da<strong>do</strong>res de Sangue de Vila Nova de<br />
Famalicão, vai promover esta sexta-feira (dia 1 de Maio, feria<strong>do</strong>)<br />
uma “dádiva de sangue” nas instalações da União<br />
Desportiva Bairrense em Gavião, com o apoio desta instituição<br />
e aberta à população em geral.<br />
De 28 de Abril a 4 de Maio de 2009<br />
ESCRITA<br />
Hélder escreve. É um escritor bem intenciona<strong>do</strong>, pronto. No<br />
entanto, mantém-se vivo, em primeiro lugar. Resistir a cada dia<br />
que passa, um atrás <strong>do</strong> outro, também o condiciona, os médicos<br />
enganaram-se nas previsões e em cada dia que acorda,<br />
satisfaz a sua volúpia de viver e de ter condições para a escrita.<br />
“Estou cá”, desafia.<br />
Ele sai-se com frases como esta: “Eu acho que descobri um<br />
gosto enorme para escrever e como o computa<strong>do</strong>r é a minha<br />
única liberdade, aproveito para correr pelos caminhos que a escrita<br />
me dá”. Não haven<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s sobre jovens tetraplégicos<br />
atira<strong>do</strong>s para o leito ou a cadeira de rodas, ele tem uma alternativa<br />
positiva para manter a chama a escrever.<br />
O écran <strong>do</strong> computa<strong>do</strong>r dá-lhe essa resposta. Falta agora<br />
saber até que ponto as instituições chamadas a intervir se interessam<br />
por um caso pessoal único no país e, quem sabe,<br />
único em muitos pontos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> também. São circunstâncias<br />
aleatórias e as próprias associações de tetraplégicos estão a<br />
dar os primeiros passos no tratamento e acompanhamento de<br />
casos especiais.<br />
O jovem escritor Hélder Ferreira não pede muito ao dedicarse<br />
à sua literatura. Fez propostas concretas às instituições para<br />
resolver a edição, em parceria. Mas é o primeiro a avisar que,<br />
pelos seus planos, não podem passar ondas de solidariedade<br />
nem movimentos de apoio de cariz popular ou intelectual .<br />
FILIPE OLIVEIRA<br />
A “colheita de sangue” será realizada entre as 09h00 e as<br />
12h30, pelo Instituto Português <strong>do</strong> Sangue e Centro de<br />
Histocompatibilidade <strong>do</strong> Norte, que fará recolha de amostras<br />
e inscrições de potenciais da<strong>do</strong>res de “medula óssea”.