Borralheira, ou o Sapatinho de Vidro (por Charles Perrault)
Borralheira, ou o Sapatinho de Vidro (por Charles Perrault)
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<strong>Borralheira</strong>, <strong>ou</strong> o <strong>Sapatinho</strong> <strong>de</strong> <strong>Vidro</strong> (<strong>por</strong> <strong>Charles</strong> <strong>Perrault</strong>)<br />
Texto<br />
Era uma vez um gentil-homem que <strong>de</strong>spos<strong>ou</strong> em segundas núpcias a mais altaneira e<br />
orgulhosa mulher jamais vista. Ela tinha duas filhas com o seu tipo <strong>de</strong> carácter, em tudo<br />
semelhantes à mãe. Pelo seu lado, o marido tinha uma jovem filha duma doçura e bonda<strong>de</strong><br />
sem exemplo; no que saía à sua mãe, que fora a melhor pessoa no mundo.<br />
Mal as bodas tinham terminado, já a madrasta dava largas ao seu mau humor. Não podia<br />
su<strong>por</strong>tar as boas qualida<strong>de</strong>s da jovem, as quais evi<strong>de</strong>nciavam quão as suas próprias filhas<br />
eram odiosas. Encarreg<strong>ou</strong>-a das mais vis ocupações da casa: lavar a l<strong>ou</strong>ça e as escadas,<br />
esfregar o quarto da dama e os das meninas suas filhas. Ela dormia no topo da casa, numa<br />
reles enxerga <strong>de</strong> palha no sótão, enquanto que as irmãs tinham quartos assoalhados com<br />
camas da última moda e espelhos on<strong>de</strong> se podiam ver dos pés à cabeça. A pobre moça sofria<br />
tudo com paciência e não <strong>ou</strong>sava queixar-se ao pai, o qual lhe teria ralhado <strong>por</strong>que a mulher o<br />
dominava completamente.<br />
Quando ela terminava os seus <strong>de</strong>veres, costumava ir para o canto da chaminé e aí sentar-se<br />
nas cinzas, do que resultava que em casa lhe chamavam normalmente Cucinzento; mas a mais<br />
nova, que não era tão mal educada como a <strong>ou</strong>tra, chamava-lhe <strong>Borralheira</strong>. Seja como for,<br />
<strong>Borralheira</strong>, com os seus reles trapos, não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ser cem vezes mais bonita que as irmãs<br />
magnificamente vestidas.<br />
Suce<strong>de</strong>u que o filho do rei <strong>de</strong>u um baile para o qual convid<strong>ou</strong> todas as pessoas <strong>de</strong><br />
qualida<strong>de</strong>; também as nossas damas foram convidadas, dado serem conhecidas no país. Ei-las<br />
bem sentadas e ocupadas a escolher as r<strong>ou</strong>pas e os chapéus que lhes assentavam melhor; nova<br />
provação para <strong>Borralheira</strong>, visto ser ela a passar a ferro a r<strong>ou</strong>pa das irmãs e a engomar os<br />
punhos. Não falavam senão da maneira como iriam vestidas. «Eu», disse a mais velha, «irei<br />
com o meu vestido <strong>de</strong> veludo encarnado e o meu ornamento <strong>de</strong> Inglaterra». «Pois eu», disse a<br />
mais nova, «levarei apenas a minha saia usual, mas em compensação <strong>por</strong>ei o meu casaco com<br />
flores <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro e o meu cinturão <strong>de</strong> diamantes, que não é dos mais indiferentes». Mand<strong>ou</strong>-se<br />
chamar uma boa cabeleireira para lhes levantar duplas ma<strong>de</strong>ixas e mand<strong>ou</strong>-se comprar<br />
pequenos recortes <strong>de</strong> veludo preto para lhes colar nos rostos. Elas chamaram a <strong>Borralheira</strong><br />
para lhe pedir opinião, pois tinha bom gosto. A <strong>Borralheira</strong> aconselh<strong>ou</strong>-as com a melhor boa<br />
vonta<strong>de</strong> e ofereceu-se mesmo para as pentear, o que elas aceitaram.
Enquanto as penteava, elas diziam-lhe: «<strong>Borralheira</strong>, não gostarias <strong>de</strong> ir ao baile?».<br />
«Infelizmente, vocês estão a fazer troça <strong>de</strong> mim; um tal baile não é para mim». «Tens razão;<br />
muito ririam as pessoas se vissem um Cucinzento ir ao baile».<br />
Qualquer <strong>ou</strong>tra tê-las-ia penteado mal; mas <strong>Borralheira</strong> era boa e pente<strong>ou</strong>-as perfeitamente<br />
bem. Passaram quase dois dias sem comer, tal era a alegria que as acometia. Romperam-se<br />
mais <strong>de</strong> uma dúzia <strong>de</strong> cordões à força <strong>de</strong> apertá-los para reduzir a cintura e elas não saíam da<br />
frente do espelho.<br />
Cheg<strong>ou</strong> enfim o feliz dia. Partiram e <strong>Borralheira</strong> seguiu-as com os olhos tanto quanto<br />
pô<strong>de</strong>; <strong>de</strong>pois, quando <strong>de</strong>ix<strong>ou</strong> <strong>de</strong> vê-las, <strong>de</strong>sat<strong>ou</strong> a chorar. A madrinha, ao vê-la assim toda<br />
chorosa, pergunt<strong>ou</strong>-lhe o que tinha. «Eu queria muito… eu queria muito…» Chorava tanto<br />
que não conseguia terminar a frase. A madrinha, que era fada, disse-lhe: «Tu querias muito ir<br />
ao baile, não é verda<strong>de</strong>?» «Sim, é isso», disse a <strong>Borralheira</strong> com um suspiro. «Muito bem,<br />
vais ser uma boa menina?», disse a madrinha, «eu arranjo maneira <strong>de</strong> ires». Lev<strong>ou</strong>-a ao quarto<br />
e disse-lhe: «Vai ao jardim e traz-me uma abóbora». <strong>Borralheira</strong> foi imediatamente apanhar a<br />
mais bela abóbora que encontr<strong>ou</strong> e lev<strong>ou</strong>-a à madrinha, embora não percebesse como é que<br />
essa abóbora po<strong>de</strong>ria fazê-la ir ao baile. A madrinha esvazi<strong>ou</strong>-a, <strong>de</strong>ixando apenas a casca,<br />
após o que lhe bateu com a sua varinha; ao que a abóbora se transform<strong>ou</strong> num coche todo<br />
d<strong>ou</strong>rado.<br />
Depois a madrinha foi ver à ratoeira, on<strong>de</strong> encontr<strong>ou</strong> seis ratos ainda vivos. Disse à<br />
<strong>Borralheira</strong> que levantasse um p<strong>ou</strong>co o arame da ratoeira e <strong>de</strong>u uma pancada com a varinha<br />
em cada rato que saía, transformando-os um a um, instantaneamente, em belos cavalos, o que<br />
perfez uma bela atrelagem <strong>de</strong> seis cavalos dum bonito cinzento <strong>de</strong> rato malhado.<br />
E como a madrinha estava sem saber como arranjaria um cocheiro, a <strong>Borralheira</strong> disse:<br />
«V<strong>ou</strong> ver se não haverá alguma ratazana na ratoeira gran<strong>de</strong>; po<strong>de</strong>ríamos fazer <strong>de</strong>la um<br />
cocheiro». «Tens razão», disse a madrinha, «vai ver». A <strong>Borralheira</strong> tr<strong>ou</strong>xe-lhe a ratoeira<br />
gran<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> havia três gran<strong>de</strong>s ratazanas. A fada escolheu uma das três <strong>por</strong> causa da sua<br />
imponente barba; tendo-a tocado, a ratazana transform<strong>ou</strong>-se num gran<strong>de</strong> cocheiro dotado <strong>de</strong><br />
um dos mais belos bigo<strong>de</strong>s jamais vistos.<br />
Depois a madrinha disse-lhe: «Vai ao jardim, on<strong>de</strong> encontrarás seis lagartos atrás do<br />
regador; traz-mos». Mal ela lhos tr<strong>ou</strong>xe, a madrinha torn<strong>ou</strong>-os em seis lacaios, os quais<br />
subiram imediatamente para a traseira do coche com as suas r<strong>ou</strong>pas <strong>de</strong> cores brilhantes e aí se<br />
mantiveram como se nunca tivessem feito <strong>ou</strong>tra coisa na vida.<br />
Então a fada disse à <strong>Borralheira</strong>: «Muito bem, já tens com que ir ao baile; estás contente?»<br />
«Est<strong>ou</strong>, mas v<strong>ou</strong> assim com as minhas r<strong>ou</strong>pas sórdidas?» A madrinha limit<strong>ou</strong>-se a tocá-la com
a varinha; instantaneamente as suas r<strong>ou</strong>pas foram transformadas em tecido <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro e prata<br />
polvilhado <strong>de</strong> pedras preciosas. Seguidamente, <strong>de</strong>u-lhe um par <strong>de</strong> sapatos <strong>de</strong> vidro, os mais<br />
bonitos no mundo. Quando ela fic<strong>ou</strong> assim arranjada, subiu para o coche; mas a madrinha<br />
recomend<strong>ou</strong>-lhe acima <strong>de</strong> tudo que não <strong>de</strong>ixasse passar a meia-noite, advertindo-a <strong>de</strong> que se<br />
ficasse no baile mais um momento que fosse o seu coche se tornaria em abóbora, os cavalos<br />
em ratos, os lacaios em lagartos e que as suas velhas r<strong>ou</strong>pas reverteriam à forma primeira.<br />
Ela prometeu à madrinha que não <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> sair do baile antes da meia-noite. E aí vai ela,<br />
não se tendo em si <strong>de</strong> alegria. O filho do rei, a quem foram avisar da chegada duma gran<strong>de</strong><br />
princesa <strong>de</strong>sconhecida, correu a recebê-la. Deu-lhe a mão à saída do coche e conduziu-a à sala<br />
on<strong>de</strong> estavam todos reunidos. Então fez-se um gran<strong>de</strong> silêncio; as pessoas pararam <strong>de</strong> dançar<br />
e os violinos <strong>de</strong>ixaram <strong>de</strong> tocar, estando todos absortos na contemplação a gran<strong>de</strong> beleza<br />
<strong>de</strong>sta <strong>de</strong>sconhecida. Ouvia-se apenas um rumor: «Ah, como ela é bela!» O próprio rei, apesar<br />
<strong>de</strong> muito velho, não parava <strong>de</strong> olhar para ela e <strong>de</strong> dizer baixinho à rainha que há muito tempo<br />
que não via uma pessoa tão bela e amável. Todas as damas consi<strong>de</strong>ravam atentamente o seu<br />
penteado e indumentária para no dia seguinte terem algo semelhante, se conseguissem<br />
encontrar tecidos suficientemente belos e artífices suficientemente hábeis.<br />
O filho do rei coloc<strong>ou</strong>-a no lugar mais honroso e logo lhe tom<strong>ou</strong> a mão para a levar a<br />
dançar. Ela danç<strong>ou</strong> com tanta graça que todos a admiraram ainda mais. Foram trazidos<br />
magníficos comes e bebes nos quais o jovem príncipe nem toc<strong>ou</strong>, <strong>de</strong> tão ocupado que estava a<br />
consi<strong>de</strong>rá-la. Ela foi sentar-se perto das irmãs e <strong>de</strong>sfez-se em cortesias: partilh<strong>ou</strong> com elas as<br />
laranjas e limões que o príncipe lhe havia dado, o que muito as espant<strong>ou</strong>, visto que não a<br />
reconheciam.<br />
Quando assim conversavam, a <strong>Borralheira</strong> <strong>ou</strong>viu tocar as onze horas e três quartos;<br />
imediatamente fez uma gran<strong>de</strong> reverência a todos e foi-se o mais rapidamente possível. Mal<br />
cheg<strong>ou</strong> a casa foi ter com a madrinha e, após ter-lhe agra<strong>de</strong>cido, disse-lhe que gostaria muito<br />
<strong>de</strong> voltar ao baile no dia seguinte <strong>por</strong>que o filho do rei lho tinha pedido. Enquanto ela contava<br />
à madrinha tudo o que se passara no baile, as duas irmãs bateram à <strong>por</strong>ta. <strong>Borralheira</strong> foi<br />
abrir-lhes. «Como <strong>de</strong>moraram a vir!» disse-lhes a bocejar, a esfregar os olhos e a espreguiçar-<br />
se como se tivesse acabado <strong>de</strong> acordar; no entanto, não tinha tido vonta<strong>de</strong> nenhuma <strong>de</strong> dormir<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que elas tinham partido. «Se tivesses vindo ao baile», disse-lhe uma das irmãs, «não te<br />
terias aborrecido: veio lá a mais bela princesa, a mais bela que se possa ver; fez-nos mil<br />
cortesias e <strong>de</strong>u-nos laranjas e limões».<br />
A <strong>Borralheira</strong> não se tinha em si <strong>de</strong> alegria: pergunt<strong>ou</strong>-lhes o nome da tal princesa, mas<br />
elas respon<strong>de</strong>ram-lhe que ninguém a conhecia, que o filho do rei estava muito cabisbaixo e
que daria tudo para saber quem ela era. A <strong>Borralheira</strong> sorriu e disse-lhes: «Ela era então muito<br />
bela? Meu Deus, suas felizardas, acham que também eu po<strong>de</strong>ria vê-la? Olhe, Menina Javotte,<br />
empreste-me o seu vestido amarelo <strong>de</strong> trazer <strong>por</strong> casa». «Francamente», disse a Menina<br />
Javotte, «é claro que sim! emprestar o meu vestido a um horrível Cucinzento, seria preciso<br />
que eu estivesse doida». A <strong>Borralheira</strong> já esperava esta recusa e não se im<strong>por</strong>t<strong>ou</strong> nada; na<br />
realida<strong>de</strong> teria ficado muito embaraçada se a irmã tivesse aceite emprestar-lhe o vestido.<br />
No dia seguinte as duas irmãs foram ao baile e a <strong>Borralheira</strong> também, mas ainda melhor<br />
arranjada que da primeira vez. O filho do rei manteve-se sempre perto <strong>de</strong>la e não par<strong>ou</strong> <strong>de</strong> lhe<br />
dizer coisas doces; a jovem, que não se aborrecia nada, esqueceu-se do que a madrinha lhe<br />
tinha recomendado, <strong>de</strong> modo que <strong>ou</strong>viu tocar a primeira badalada da meia-noite quando<br />
pensava serem ainda onze horas. Levant<strong>ou</strong>-se e fugiu tão lestamente como uma corça. O<br />
príncipe seguiu-a mas não conseguiu apanhá-la; ela <strong>de</strong>ix<strong>ou</strong> cair um dos seus sapatos <strong>de</strong> vidro,<br />
que o príncipe recolheu cuidadosamente. <strong>Borralheira</strong> cheg<strong>ou</strong> a casa sem fôlego, sem coche,<br />
sem lacaios e com a sua velha r<strong>ou</strong>pa vestida, só lhe restando da sua magnificência um dos<br />
sapatinhos, igual àquele que tinha <strong>de</strong>ixado cair. Perguntaram aos guardas da <strong>por</strong>ta do palácio<br />
se tinham visto sair uma princesa, ao que eles respon<strong>de</strong>ram não ter visto sair ninguém a não<br />
ser uma jovem muito mal vestida que tinha mais ar <strong>de</strong> camponesa que <strong>de</strong> uma dama.<br />
Quando as duas irmãs voltaram do baile, a <strong>Borralheira</strong> pergunt<strong>ou</strong>-lhes <strong>de</strong> novo se se<br />
tinham tornado a divertir e se a bela dama lá estava. Disseram-lhe que sim, mas que ela tinha<br />
fugido mal havia tocado a meia-noite e tão rapidamente que tinha <strong>de</strong>ixado cair um dos seus<br />
sapatos <strong>de</strong> vidro, os mais bonitos do mundo; e que o filho do rei havia recolhido o sapato e<br />
tinha ficado a olhar para ele durante todo o resto do baile, estando certamente muito<br />
apaixonado pela bela jovem a quem pertencia o sapatinho.<br />
Elas diziam a verda<strong>de</strong>, <strong>por</strong>que p<strong>ou</strong>co tempo <strong>de</strong>pois o filho do rei fez publicar a toques <strong>de</strong><br />
trompa que <strong>de</strong>sposaria aquela cujo pé se ajustasse bem ao sapato. Deram-no a experimentar às<br />
princesas, <strong>de</strong>pois às duquesas e a toda a corte, mas <strong>de</strong>bal<strong>de</strong>. Tr<strong>ou</strong>xeram-no à casa das duas<br />
irmãs, que fizeram todo o possível para fazer entrar o pé no sapato sem no entanto o<br />
conseguirem. A <strong>Borralheira</strong>, que as olhava e havia reconhecido o seu sapato, disse a rir:<br />
«Quem sabe se não me estaria bom». As irmãs <strong>de</strong>sataram a rir e a fazer troça <strong>de</strong>la. Mas o<br />
gentil-homem que fazia experimentar o sapato, tendo-a olhado atentamente e achado muito<br />
bela, disse que era justo e que ele tinha or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> experimentar o sapato a todas as donzelas.<br />
Fez a <strong>Borralheira</strong> sentar-se e, aproximando o sapato do seu pé, viu que entrava sem<br />
dificulda<strong>de</strong> e se lhe ajustava como um mol<strong>de</strong> <strong>de</strong> cera. O espanto das duas irmãs foi gran<strong>de</strong>; e<br />
maior ainda quando a <strong>Borralheira</strong> tir<strong>ou</strong> do bolso o <strong>ou</strong>tro sapato, que calç<strong>ou</strong> no <strong>ou</strong>tro pé. Nesse
momento cheg<strong>ou</strong> a madrinha, que, dando um golpe <strong>de</strong> varinha nas r<strong>ou</strong>pas da <strong>Borralheira</strong>, fê-<br />
las ficar ainda mais magníficas que todas as anteriores.<br />
Então as duas irmãs reconheceram nela a belda<strong>de</strong> que haviam visto no baile. Deitaram-se-<br />
lhe aos pés a pedir perdão <strong>por</strong> todos os maus-tratos que lhe haviam infligido. A <strong>Borralheira</strong><br />
levant<strong>ou</strong>-as e disse-lhes, beijando-as, que lhes perdoava <strong>de</strong> bom grado e que lhes pedia que<br />
gostassem sempre <strong>de</strong>la. Levaram-na ao príncipe vestida tal como estava. Ele ach<strong>ou</strong>-a ainda<br />
mais bela que antes e <strong>de</strong>spos<strong>ou</strong>-a p<strong>ou</strong>cos dias <strong>de</strong>pois. A <strong>Borralheira</strong>, que era tão boa quanto<br />
bela, fez as irmãs virem viver para o palácio e cas<strong>ou</strong>-as no próprio dia com dois gran<strong>de</strong>s<br />
senhores da corte.<br />
MORALIDADE:<br />
A beleza é para o sexo fraco um raro tes<strong>ou</strong>ro, que nunca nos cansamos <strong>de</strong> admirar; mas<br />
aquilo a que se chama graciosida<strong>de</strong> é sem preço e é bem mais valioso. Foi isto que a madrinha<br />
conce<strong>de</strong>u à <strong>Borralheira</strong> ao educá-la e instrui-la, tanto e tão bem que <strong>de</strong>la fez uma rainha.<br />
Belas, este dom vale mais do que estar-se bem penteada; para se pren<strong>de</strong>r um coração e<br />
conquistá-lo, a graciosida<strong>de</strong> é o verda<strong>de</strong>iro dom das fadas: sem ela nada se po<strong>de</strong>, com ela tudo<br />
se consegue.<br />
OUTRA MORALIDADE:<br />
É sem dúvida uma gran<strong>de</strong> vantagem ter espírito e coragem, uma boa nascença e bom<br />
senso, assim como <strong>ou</strong>tros talentos semelhantes, <strong>de</strong> que se recebe do Céu uma quota-parte;<br />
mas, tendo-se embora tais talentos, não conseguirá fazê-los valer para obter sucesso na vida<br />
quem não tiver padrinhos <strong>ou</strong> madrinhas. *<br />
* Traduzido do original francês publicado na recolha intitulada Histoires <strong>ou</strong> contes du temps passé, Avec <strong>de</strong>s<br />
moralités (1ª edição: Paris, 1697).
Aschenputtel (pelos Irmãos Grimm)<br />
Texto<br />
A mulher <strong>de</strong> um rico homem fic<strong>ou</strong> doente e, sentindo que o fim estava próximo,<br />
cham<strong>ou</strong> a sua única filha à beira da cama e disse-lhe: «Minha querida, sê boa e<br />
piedosa, que o bom Deus ficará sempre do teu lado e eu não te per<strong>de</strong>rei <strong>de</strong> vista lá do<br />
céu e estarei sempre perto <strong>de</strong> ti». Logo a seguir, fech<strong>ou</strong> os olhos e partiu. A menina<br />
pass<strong>ou</strong> a ir todos os dias à campa da mãe e todos os dias chorava e era boa e piedosa.<br />
Quando cheg<strong>ou</strong> o Inverno, a neve esten<strong>de</strong>u o seu lençol branco sobre a campa e,<br />
quando o sol da Primavera a volt<strong>ou</strong> a <strong>de</strong>sencobrir, o homem cas<strong>ou</strong>-se com <strong>ou</strong>tra<br />
mulher.<br />
Esta mulher tinha trazido consigo duas filhas que tinham feições alvas e bonitas,<br />
mas corações negros e vis. Foram tempos difíceis para a pobre enteada. «Mas será<br />
que esta gansa tola também tem <strong>de</strong> se sentar connosco à mesa?», diziam elas. «Quem<br />
quer pão, que faça <strong>por</strong> ganhá-lo: fora daqui com a servente <strong>de</strong> cozinha!» Ficaram-lhe<br />
com as r<strong>ou</strong>pas mais bonitas, vestiram-lhe uma velha bata cinzenta e <strong>de</strong>ram-lhe socas<br />
<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. «Olhem só para a princesa altiva, tão limpinha que ela está!» exclamaram<br />
elas, rindo, e levaram-na para a cozinha. Ela tinha que trabalhar duramente <strong>de</strong> manhã<br />
à noite, levantar-se antes do nascer do dia, carregar água, acen<strong>de</strong>r o fogo, cozinhar e<br />
lavar. Como se não bastasse, as irmãs pregavam-lhe as piores partidas, troçavam <strong>de</strong>la<br />
e atiravam ervilhas e lentilhas para as cinzas para que ela tivesse <strong>de</strong> se pôr <strong>ou</strong>tra vez a<br />
separá-las. À noite, morta <strong>de</strong> cansaço, não tinha cama on<strong>de</strong> dormir e não lhe restava<br />
senão <strong>de</strong>itar-se junto à lareira, sobre as cinzas. E como andava <strong>por</strong> isso sempre suja e<br />
cheia <strong>de</strong> pó, as <strong>ou</strong>tras passaram a chamar-lhe <strong>Borralheira</strong>.<br />
Aconteceu uma vez que o pai queria ir à feira e pergunt<strong>ou</strong> às duas enteadas o que<br />
havia <strong>de</strong> lhes trazer <strong>de</strong> lá. «Belas r<strong>ou</strong>pas», disse uma. «Pérolas e pedras preciosas»,<br />
disse a <strong>ou</strong>tra. «Então e tu, <strong>Borralheira</strong>, pergunt<strong>ou</strong> ele, o que queres que te traga?».<br />
«Pai, o primeiro ramo que lhe acertar no chapéu a caminho <strong>de</strong> casa, arranque-o e<br />
traga-mo». E assim ele compr<strong>ou</strong> belas r<strong>ou</strong>pas, pérolas e pedras preciosas para as<br />
enteadas e, no caminho <strong>de</strong> regresso a casa, ao passar <strong>por</strong> um arbusto ver<strong>de</strong>, um ramo<br />
<strong>de</strong> avelaneira acert<strong>ou</strong>-lhe na cabeça e fez-lhe cair o chapéu. Ele arranc<strong>ou</strong> o ramo e<br />
lev<strong>ou</strong>-o consigo. Ao chegar a casa, <strong>de</strong>u às enteadas o que elas lhe tinham pedido e a<br />
<strong>Borralheira</strong> o ramo <strong>de</strong> avelaneira. <strong>Borralheira</strong> agra<strong>de</strong>ceu-lhe, correu para a campa da
mãe e plant<strong>ou</strong> o ramo <strong>de</strong> avelaneira sobre aquela, chorando tanto, que as lágrimas, ao<br />
caírem sobre ele, o regaram. E o ramo cresceu e torn<strong>ou</strong>-se numa bela árvore.<br />
<strong>Borralheira</strong> ia à campa três vezes <strong>por</strong> dia, chorava e rezava, e todas as vezes surgia da<br />
árvore um pássaro branco, e quando ela formulava um <strong>de</strong>sejo, o pássaro atirava-lhe<br />
para as mãos o que ela tinha <strong>de</strong>sejado.<br />
Suce<strong>de</strong>u, no entanto, que o rei estava a organizar uma gran<strong>de</strong> festa que <strong>de</strong>veria<br />
durar três dias e para a qual todas as jovens moças do reino estavam convidadas, para<br />
que o seu filho pu<strong>de</strong>sse escolher uma noiva. Ao <strong>ou</strong>virem dizer que também elas iriam<br />
à festa, as duas enteadas ficaram encantadas, chamaram a <strong>Borralheira</strong> e disseram-lhe:<br />
«Escova-nos o cabelo, engraxa-nos os sapatos e aperta-nos os cintos, <strong>de</strong>pressa, que<br />
nós vamos ao casamento no palácio do rei». A <strong>Borralheira</strong> obe<strong>de</strong>ceu, mas chorando,<br />
<strong>por</strong>que também ela gostaria <strong>de</strong> ir ao baile e foi pedir à madrasta para ir também.<br />
«<strong>Borralheira</strong>, respon<strong>de</strong>u-lhe ela, tu, que andas sempre suja e cheia <strong>de</strong> pó, queres ir ao<br />
casamento? Nem sequer tens r<strong>ou</strong>pas nem sapatos e ainda queres dançar!» Mas como<br />
<strong>Borralheira</strong> continuava a insistir, ela acab<strong>ou</strong> <strong>por</strong> dizer: «Atirei-te um prato <strong>de</strong> lentilhas<br />
para as cinzas. Se conseguires separar as lentilhas em duas horas, <strong>de</strong>ixo-te ir». A<br />
menina foi ao jardim pela <strong>por</strong>ta das traseiras e cham<strong>ou</strong>: «Ó mansos pombos, ó alvas<br />
rolas, pássaros todos <strong>de</strong>ste céu, vin<strong>de</strong> e ajudai-me a separar: as boas para <strong>de</strong>ntro da<br />
panela, as más para fora da janela».<br />
E eis que pela janela da cozinha entraram duas pombas brancas e <strong>de</strong>pois entraram<br />
as rolas, até que todos os pássaros do céu entraram pipilando rumo às cinzas. E as<br />
pombas acenaram com a cabeça e começaram bic bic bic, e todos os <strong>ou</strong>tros fizeram<br />
também bic bic bic e juntaram todas as lentilhas boas num prato. Mal tinha passado<br />
uma hora e já eles tinham terminado a tarefa, voando <strong>de</strong>pois janela fora. Então a<br />
jovem peg<strong>ou</strong> no prato e lev<strong>ou</strong>-o à madrasta, sentindo-se muito contente <strong>por</strong>que<br />
acreditava que agora po<strong>de</strong>ria ir ao casamento. Mas a madrasta disse-lhe: «Não,<br />
<strong>Borralheira</strong>, não tens r<strong>ou</strong>pa para vestir e não sabes dançar: serias o bobo da festa».<br />
Quando esta <strong>de</strong>sat<strong>ou</strong> a chorar, disse-lhe a madrasta: «Se me conseguires separar dois<br />
pratos cheios <strong>de</strong> lentilhas das cinzas, po<strong>de</strong>s ir à festa» — pensando: Isto não consegue<br />
ninguém. Depois <strong>de</strong> a madrasta ter atirado os dois pratos cheios <strong>de</strong> lentilhas para as<br />
cinzas, a jovem foi ao jardim pela <strong>por</strong>ta das traseiras e cham<strong>ou</strong>: «Ó mansos pombos, ó<br />
alvas rolas, pássaros todos <strong>de</strong>ste céu, vin<strong>de</strong> e ajudai-me a separar: as boas para <strong>de</strong>ntro<br />
da panela, as más para fora da janela».
E eis que pela janela da cozinha entraram duas pombas brancas e <strong>de</strong>pois entraram<br />
as rolas, até que todos os pássaros do céu entraram pipilando rumo às cinzas. E as<br />
pombas acenaram com a cabeça e começaram bic bic bic, e todos os <strong>ou</strong>tros fizeram<br />
também bic bic bic e juntaram todas as lentilhas boas num prato. Mal tinha passado<br />
uma hora e já eles tinham terminado a tarefa, voando <strong>de</strong>pois janela fora. Então a<br />
jovem peg<strong>ou</strong> no prato e lev<strong>ou</strong>-o à madrasta, sentindo-se muito contente <strong>por</strong>que<br />
acreditava que agora po<strong>de</strong>ria ir ao casamento. Mas a madrasta disse: «Não te serviu<br />
<strong>de</strong> nada: não vens connosco <strong>por</strong>que não tens r<strong>ou</strong>pa para vestir e não sabes dançar,<br />
serias a nossa vergonha». Dito isto, vir<strong>ou</strong>-lhe costas e partiu apressadamente com as<br />
duas orgulhosas filhas.<br />
Não estando mais ninguém em casa, a <strong>Borralheira</strong> dirigiu-se à campa da mãe sob a<br />
avelaneira e pronunci<strong>ou</strong>: «Vibra e revibra, árvore sem data, atira sobre mim todo o<br />
<strong>ou</strong>ro e toda a prata».<br />
E o pássaro atir<strong>ou</strong>-lhe um vestido d<strong>ou</strong>rado e prateado e chinelas <strong>de</strong>bruadas a <strong>ou</strong>ro e<br />
prata. Ela vestiu o vestido o mais <strong>de</strong>pressa que pô<strong>de</strong> e correu para o casamento. As<br />
irmãs e a madrasta não a reconheceram e julgaram que se tratava <strong>de</strong> uma princesa <strong>de</strong><br />
<strong>ou</strong>tra terra, <strong>de</strong> tão bela que era no seu vestido d<strong>ou</strong>rado. Que se pu<strong>de</strong>sse tratar da<br />
<strong>Borralheira</strong> não lhes pass<strong>ou</strong> sequer pela cabeça, julgando que esta estava sentada em<br />
casa no meio da sujida<strong>de</strong> separando as lentilhas <strong>por</strong> entre as cinzas. O príncipe<br />
aproxim<strong>ou</strong>-se <strong>de</strong>la, tom<strong>ou</strong>-a pela mão e danç<strong>ou</strong> com ela. Ele não quis dançar com<br />
mais ninguém e <strong>por</strong> isso não a larg<strong>ou</strong> um momento e, quando alguém a vinha<br />
convidar, dizia: «Este é o meu par».<br />
Ela danç<strong>ou</strong> até à noite e <strong>de</strong>pois quis ir para casa. Mas o príncipe disse-lhe:<br />
«Também v<strong>ou</strong> contigo e faço-te companhia» — <strong>por</strong>que queria ver aon<strong>de</strong> é que ela<br />
pertencia. Mas ela escapuliu-se e salt<strong>ou</strong> para <strong>de</strong>ntro do pombal. O príncipe fic<strong>ou</strong> à<br />
espera até que o pai cheg<strong>ou</strong> e explic<strong>ou</strong>-lhe então que a jovem <strong>de</strong>sconhecida tinha<br />
saltado para <strong>de</strong>ntro do pombal. O velho homem pens<strong>ou</strong>: «Será que é a <strong>Borralheira</strong>?»,<br />
e tiveram <strong>de</strong> lhe levar um machado e uma picareta para que ele pu<strong>de</strong>sse partir o<br />
pombal em dois; mas não estava ninguém lá <strong>de</strong>ntro. E quando eles chegaram a casa,<br />
lá estava a <strong>Borralheira</strong> sentada sobre as cinzas na sua r<strong>ou</strong>pa suja, enquanto uma<br />
lamparina ténue ardia na chaminé, <strong>por</strong>que a <strong>Borralheira</strong> tinha saltado num ápice para<br />
trás do pombal e corrido para a avelaneira: aí tinha <strong>de</strong>spido as belas r<strong>ou</strong>pas,<br />
<strong>de</strong>positando-as na campa, e o pássaro voltara a levá-las, e ela voltara então a vestir a<br />
sua bata cinzenta e a sentar-se sobre as cinzas na cozinha.
No dia seguinte, quando a festa recomeç<strong>ou</strong> e os pais e as meias-irmãs já<br />
tinham partido, <strong>Borralheira</strong> dirigiu-se à avelaneira e pronunci<strong>ou</strong>: «Vibra e revibra,<br />
árvore sem data, atira sobre mim todo o <strong>ou</strong>ro e toda a prata».<br />
E o pássaro atir<strong>ou</strong>-lhe um vestido ainda mais sumptuoso do que o do dia anterior.<br />
E quando apareceu no casamento com aquele vestido, todos se pasmaram com a sua<br />
beleza. O príncipe, <strong>por</strong>ém, tinha esperado que ela viesse e tom<strong>ou</strong>-a logo pela mão e<br />
danç<strong>ou</strong> apenas com ela. Quando apareciam <strong>ou</strong>tros preten<strong>de</strong>ntes e a convidavam para<br />
dançar, ele dizia: «Este é o meu par».<br />
Chegada a noite, ela quis ir-se embora, e o príncipe foi atrás <strong>de</strong>la <strong>por</strong>que queria ver<br />
para que casa é que ela se dirigia; mas ela salt<strong>ou</strong> para longe <strong>de</strong>le rumo ao jardim nas<br />
traseiras da casa. Havia lá uma linda árvore alta, da qual pendiam as mais belas peras;<br />
ágil como um esquilo, <strong>Borralheira</strong> trep<strong>ou</strong> árvore acima <strong>por</strong> entre os ramos, e o<br />
príncipe não percebeu para on<strong>de</strong> é que ela tinha ido. Fic<strong>ou</strong> à espera até que o pai<br />
cheg<strong>ou</strong> e disse-lhe então: «A jovem <strong>de</strong>sconhecida escap<strong>ou</strong>-se-me e eu acho que ela<br />
salt<strong>ou</strong> para cima da pereira». O pai pens<strong>ou</strong>: «Será que é a <strong>Borralheira</strong>?», e fez com<br />
que lhe <strong>de</strong>ssem um machado e com ele <strong>de</strong>it<strong>ou</strong> a árvore abaixo, mas não estava lá<br />
ninguém. E quando foram à cozinha, lá estava a <strong>Borralheira</strong> sobre as cinzas, como<br />
sempre, <strong>por</strong>que tinha saltado do <strong>ou</strong>tro lado da árvore, <strong>de</strong>volvera as belas r<strong>ou</strong>pas ao<br />
pássaro da avelaneira e voltara a vestir a sua bata cinzenta.<br />
Ao terceiro dia, quando os pais e as irmãs já tinham partido, <strong>Borralheira</strong> dirigiu-se<br />
novamente à campa da mãe e à avelaneira e pronunci<strong>ou</strong>: «Vibra e revibra, árvore sem<br />
data, atira sobre mim todo o <strong>ou</strong>ro e toda a prata».<br />
E o pássaro atir<strong>ou</strong>-lhe um vestido tão magnífico e tão <strong>de</strong>slumbrante como nunca<br />
ninguém tinha alguma vez usado e as chinelas eram todas d<strong>ou</strong>radas. Quando ela<br />
cheg<strong>ou</strong> ao casamento, o palácio cal<strong>ou</strong>-se <strong>de</strong> maravilhamento. O príncipe não danç<strong>ou</strong><br />
com mais ninguém e, quando alguém a ia convidar, dizia: «Este é o meu par».<br />
Chegada a noite, a <strong>Borralheira</strong> quis ir-se embora e o príncipe quis acompanhá-la,<br />
mas ela escap<strong>ou</strong>-se-lhe tão <strong>de</strong>pressa que ele não a conseguiu apanhar. O príncipe,<br />
<strong>por</strong>ém, tinha pensado num estratagema e mandara untar as escadas com pez: a ele se<br />
<strong>de</strong>ix<strong>ou</strong> agarrar uma chinela da jovem enquanto esta fugia. O príncipe peg<strong>ou</strong> na<br />
chinela, que era pequena e graciosa e toda d<strong>ou</strong>rada. Na manhã seguinte, foi ter com o<br />
pai e disse-lhe: - Não casarei senão com aquela cujo pé c<strong>ou</strong>ber neste sapato d<strong>ou</strong>rado.<br />
As duas irmãs ficaram muito contentes com isso <strong>por</strong>que ambas tinham bonitos pés. A<br />
mais velha lev<strong>ou</strong> o sapato para o quarto para o experimentar e a mãe fic<strong>ou</strong> a assistir.
Mas o <strong>de</strong>do gran<strong>de</strong> do pé não lhe cabia no sapato, que lhe era <strong>de</strong>masiado pequeno, e a<br />
mãe esten<strong>de</strong>u-lhe então uma faca e disse: «Corta o <strong>de</strong>do: quando fores rainha, não<br />
precisarás <strong>de</strong> andar a pé». A filha cort<strong>ou</strong> o <strong>de</strong>do, forç<strong>ou</strong> o pé sapato <strong>de</strong>ntro, engoliu a<br />
dor e foi ter com o príncipe. E ele tom<strong>ou</strong>-a então como noiva, mont<strong>ou</strong>-a no cavalo e<br />
juntos partiram. Mas tinham <strong>de</strong> passar pela campa, e na avelaneira estavam poisadas<br />
duas pombas, que arrulharam:<br />
«Cucurrucu, cucurrucato, olha o sangue no sapato. O sapato é pequeno para o<br />
<strong>de</strong>do. A noiva certa ainda é um segredo».<br />
E ele olh<strong>ou</strong> para o pé <strong>de</strong>la e viu como o sangue brotava do sapato. Deu meia volta<br />
com o cavalo, lev<strong>ou</strong> a noiva falsa <strong>de</strong> regresso a casa e disse que aquela não era a<br />
noiva certa e a <strong>ou</strong>tra irmã <strong>de</strong>veria calçar o sapato. Então esta lev<strong>ou</strong> o sapato para o<br />
quarto para o experimentar e os <strong>de</strong>dos c<strong>ou</strong>beram sem problema, mas o calcanhar era<br />
gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais. A mãe esten<strong>de</strong>u-lhe então uma faca e disse: «Corta um pedaço do<br />
calcanhar: quando fores rainha, não precisarás <strong>de</strong> andar a pé». A filha cort<strong>ou</strong> um<br />
pedaço do calcanhar, forç<strong>ou</strong> o pé sapato <strong>de</strong>ntro, engoliu a dor e foi ter com o príncipe.<br />
E ele tom<strong>ou</strong>-a então como noiva, mont<strong>ou</strong>-a no cavalo e juntos partiram. Ao passarem<br />
pela avelaneira, lá estavam poisadas as duas pombas, que arrulharam:<br />
«Cucurrucu, cucurrucato, olha o sangue no sapato. O sapato é pequeno para o<br />
calcanhar. A noiva certa ainda está <strong>por</strong> encontrar».<br />
E ele olh<strong>ou</strong> para o pé <strong>de</strong>la e viu como o sangue brotava do sapato e manchava<br />
<strong>de</strong> vermelho as meias brancas. Deu meia volta com o cavalo e lev<strong>ou</strong> a noiva falsa <strong>de</strong><br />
regresso a casa. «Esta também não é a noiva certa», disse ele. «Não ten<strong>de</strong>s mais<br />
nenhuma filha?» Não, respon<strong>de</strong>u o homem. «Só da minha falecida mulher é que há<br />
uma serventezinha <strong>de</strong> cozinha, suja como o borralho: é impossível que seja ela a<br />
noiva». O príncipe quis que ele a chamasse, mas a mãe respon<strong>de</strong>u: «Ai não, ela é<br />
<strong>de</strong>masiado suja, não é apresentável!» Mas o príncipe insistiu em vê-la e eles tiveram<br />
<strong>de</strong> chamar <strong>Borralheira</strong>. Ela lav<strong>ou</strong> primeiro as mãos e a cara e <strong>de</strong>pois foi e dirigiu-se <strong>de</strong><br />
cabeça inclinada para o príncipe, o qual lhe esten<strong>de</strong>u o sapato d<strong>ou</strong>rado. Ela sent<strong>ou</strong>-se<br />
então num banquinho, <strong>de</strong>scalç<strong>ou</strong> a pesada soca <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e enfi<strong>ou</strong> o pé na chinela,<br />
que se lhe ajust<strong>ou</strong> como uma luva. E quando ela se ergueu, o príncipe pô<strong>de</strong> olhá-la na<br />
cara e reconheceu a bela jovem com quem dançara e disse: «É esta a noiva certa!» A<br />
madrasta e as irmãs ficaram horrorizadas e pálidas <strong>de</strong> raiva: mas ele mont<strong>ou</strong> a<br />
<strong>Borralheira</strong> no cavalo e juntos partiram. Ao passarem pela avelaneira, arrulharam as<br />
duas pombas:
«Cucurrucu, cucurrucato, não há sangue no sapato. O sapato encontr<strong>ou</strong> o seu pé. A<br />
noiva certa já se sabe quem é».<br />
E ao pronunciarem estas palavras, <strong>de</strong>sceram da árvore e foram colocar-se aos<br />
ombros <strong>de</strong> <strong>Borralheira</strong>, uma à direita, a <strong>ou</strong>tra à esquerda, e lá se <strong>de</strong>ixaram ficar<br />
poisadas.<br />
No dia em que o casamento com o príncipe <strong>de</strong>via ser celebrado, as duas irmãs<br />
falsas apareceram, <strong>de</strong>sejando cair nas boas graças da <strong>Borralheira</strong> e tirar proveito da<br />
sua boa fortuna. Quando o casal <strong>de</strong> noivos ia a entrar na igreja, lá se pôs a mais velha<br />
do seu lado direito e a mais nova do seu lado esquerdo. Então as pombas foram e<br />
arrancaram-lhes um olho a cada uma. Mais tar<strong>de</strong>, quando o casal saía da igreja, a mais<br />
velha estava à esquerda e a mais nova à direita. Então as pombas arrancaram-lhes a<br />
ambas o <strong>ou</strong>tro olho. E assim, pela sua malda<strong>de</strong> e falsida<strong>de</strong>, as duas irmãs foram<br />
con<strong>de</strong>nadas à cegueira até ao fim dos seus dias. 1<br />
Tradução <strong>de</strong> Teresa Aica Bairos.<br />
1 Traduzido do original alemão a partir <strong>de</strong> Brü<strong>de</strong>r Grimm, Kin<strong>de</strong>r- und Hausmärchen. edição Heinz<br />
Rölleke. Stuttgart: Reclam, 2003. Conto nº 21.
Mil e Uma Peles (pelos Irmãos Grimm)<br />
Texto<br />
Era uma vez um rei que tinha uma esposa <strong>de</strong> cabelos d<strong>ou</strong>rados e era tão bela, que<br />
nunca igual se vira à face da Terra. Suce<strong>de</strong>u que ela fic<strong>ou</strong> doente e, sentindo que o<br />
fim estava próximo, cham<strong>ou</strong> o rei até si e disse-lhe: «Se após a minha morte quiseres<br />
casar <strong>de</strong> novo, não tomes <strong>por</strong> esposa mulher que não seja tão bela como eu e cujos<br />
cabelos não sejam d<strong>ou</strong>rados como estes: terás <strong>de</strong> mo prometer». Após o rei lho ter<br />
prometido, ela fech<strong>ou</strong> os olhos e morreu.<br />
Longo tempo fic<strong>ou</strong> o rei inconsolável e não pens<strong>ou</strong> sequer em arranjar uma<br />
segunda mulher. Até que finalmente os conselheiros lhe disseram: «Não há<br />
alternativa, o rei tem <strong>de</strong> se casar novamente para que possamos ter uma rainha».<br />
Foram então enviados mensageiros para os quatro cantos do mundo em busca <strong>de</strong> uma<br />
noiva que igualasse em beleza a beleza da rainha falecida. Mas como ela não havia<br />
nenhuma no mundo inteiro e, mesmo que h<strong>ou</strong>vesse, nunca teria cabelos d<strong>ou</strong>rados<br />
como aqueles. E os mensageiros regressaram assim ao reino <strong>de</strong> mãos a abanar.<br />
Ora o rei tinha uma filha que era tão bela como a falecida mãe e cujos cabelos<br />
eram d<strong>ou</strong>rados como os <strong>de</strong>la. Quando já era mais crescida, o rei fit<strong>ou</strong>-a um dia e viu<br />
que em tudo se assemelhava à falecida esposa, e prov<strong>ou</strong> <strong>de</strong> súbito um amor violento<br />
<strong>por</strong> ela. Disse então aos conselheiros: «Quero casar com a minha filha pois ela é o<br />
retrato da minha falecida mulher e não consigo encontrar mulher alguma que d<strong>ou</strong>tra<br />
forma se lhe assemelhe». Ao escutarem isto, os conselheiros ficaram chocados e<br />
respon<strong>de</strong>ram: «Deus proibiu que um pai casasse com uma filha. De tal pecado não<br />
po<strong>de</strong>rá advir bem algum e o reino será arrastado para a perdição». Mais chocada ainda<br />
fic<strong>ou</strong> a filha ao saber da <strong>de</strong>cisão do pai, mas teve esperança <strong>de</strong> o conseguir <strong>de</strong>mover<br />
<strong>de</strong> tal propósito. Disse-lhe então: «Antes <strong>de</strong> satisfazer o vosso <strong>de</strong>sejo, terei <strong>de</strong> ter três<br />
vestidos, um tão d<strong>ou</strong>rado como o sol, <strong>ou</strong>tro tão prateado como a lua e <strong>ou</strong>tro tão<br />
brilhante como as estrelas. Além disso, <strong>de</strong>sejo ainda um manto <strong>de</strong> c<strong>ou</strong>ro <strong>de</strong> mil e uma<br />
peles diferentes, e cada tipo <strong>de</strong> animal do nosso reino <strong>de</strong>verá contribuir com um<br />
pedaço da sua pele». Ela pensava, <strong>por</strong>ém: «Isto é completamente impossível e hei-<strong>de</strong><br />
conseguir assim dissuadir o meu pai dos seus maus intentos». Mas o rei não <strong>de</strong>sistiu e<br />
as mais habilidosas donzelas do reino tiveram <strong>de</strong> tecer os três vestidos, um tão<br />
d<strong>ou</strong>rado como o sol, <strong>ou</strong>tro tão prateado como a lua e <strong>ou</strong>tro tão brilhante como as
estrelas. E os caçadores tiveram <strong>de</strong> apanhar animais <strong>de</strong> todos os tipos que existiam no<br />
reino e arrancar-lhes um pedaço da pele, e <strong>de</strong> tais pedaços se fez um manto <strong>de</strong> mil e<br />
uma peles. Finalmente, quando tudo estava pronto, o rei mand<strong>ou</strong> vir o manto,<br />
esten<strong>de</strong>u-o à sua frente e disse: «O casamento será amanhã».<br />
Quando a princesa viu que não havia qualquer esperança <strong>de</strong> conseguir <strong>de</strong>mover o<br />
pai, <strong>de</strong>cidiu fugir. De noite, enquanto tudo dormia, levant<strong>ou</strong>-se e peg<strong>ou</strong> em três dos<br />
seus tes<strong>ou</strong>ros, um anel d<strong>ou</strong>rado, uma pequena roca d<strong>ou</strong>rada e um pequena dobad<strong>ou</strong>ra<br />
d<strong>ou</strong>rada. Enfi<strong>ou</strong> os três vestidos <strong>de</strong> sol, lua e estrelas numa casca <strong>de</strong> noz, vestiu o<br />
manto das mil e uma peles e com fuligem enegreceu cara e mãos. Depois l<strong>ou</strong>v<strong>ou</strong> a<br />
Deus e caminh<strong>ou</strong> toda a noite até chegar a uma gran<strong>de</strong> floresta. E, <strong>de</strong> cansada que<br />
estava, enfi<strong>ou</strong>-se numa árvore oca e adormeceu.<br />
O sol nasceu e ela dormia, e continuava ainda a dormir quando o sol já ia bem lá<br />
no alto. Aconteceu então que o rei a quem pertencia aquela floresta andava <strong>por</strong> ali à<br />
caça. Quando os seus cães chegaram à árvore, farejaram e farejaram, puseram-se a<br />
andar à volta <strong>de</strong>la e a ladrar. Disse então o rei aos caçadores: «Vejam lá que animal<br />
selvagem é que ali se escon<strong>de</strong>». Os caçadores obe<strong>de</strong>ceram à or<strong>de</strong>m e, ao voltarem,<br />
disseram: «É um estranho animal o que está na árvore oca. Nunca tínhamos visto tal<br />
coisa: tem uma pele feita <strong>de</strong> mil peles diferentes, mas está <strong>de</strong>itado a dormir». Disse o<br />
rei: «Vejam lá se o conseguem apanhar vivo, <strong>de</strong>pois atem-no à carruagem e tragam-<br />
no». Quando os caçadores agarraram a jovem, esta acord<strong>ou</strong> apavorada e suplic<strong>ou</strong>:<br />
«S<strong>ou</strong> uma pobre criança abandonada <strong>por</strong> pai e mãe, ten<strong>de</strong> pieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> mim e levai-me<br />
convosco». Respon<strong>de</strong>ram eles: «Mil-e-Uma-Peles, tu serves na cozinha, vem<br />
connosco e po<strong>de</strong>rás varrer as cinzas». E meteram-na então na carruagem e levaram-na<br />
para o palácio real. Uma vez lá, indicaram-lhe um vão sob as escadas on<strong>de</strong> nunca<br />
entrava a luz do dia e disseram: «Aqui po<strong>de</strong>rás viver e dormir, Bicho Peludo». Depois<br />
foi levada para a cozinha on<strong>de</strong> carreg<strong>ou</strong> água e lenha, atiç<strong>ou</strong> o fogo, <strong>de</strong>pen<strong>ou</strong> as aves,<br />
escolheu os legumes, varreu as cinzas e fez todo o trabalho sujo.<br />
E assim se <strong>de</strong>u que Mil-e-Uma-Peles foi obrigada a viver longo tempo em gran<strong>de</strong><br />
miséria. Ai, bela princesa, o que haveria <strong>de</strong> te suce<strong>de</strong>r! Aconteceu certa vez, <strong>por</strong>ém,<br />
que no palácio se celebrava uma gran<strong>de</strong> festa e ela disse então ao cozinheiro: «Posso<br />
ir um bocadinho lá acima espreitar? Eu fico do lado <strong>de</strong> fora da <strong>por</strong>ta». O cozinheiro<br />
respon<strong>de</strong>u: «Po<strong>de</strong>s, vai lá, mas tens <strong>de</strong> estar <strong>de</strong> volta daqui a meia hora para varrer as<br />
cinzas». Ela peg<strong>ou</strong> então na sua lamparina, foi ao vão, tir<strong>ou</strong> o manto <strong>de</strong> pele, lav<strong>ou</strong> a<br />
fuligem das mãos e da cara, e toda a sua beleza veio ao <strong>de</strong> cima. Depois abriu a casca
<strong>de</strong> noz e tir<strong>ou</strong> <strong>de</strong> lá o vestido que brilhava como o sol. Uma vez pronta, subiu as<br />
escadas até à festa, e todos abriram caminho à sua passagem pois ninguém a conhecia<br />
e pensaram que ela não podia senão ser uma princesa. O rei, <strong>por</strong>ém, acorreu na sua<br />
direcção, esten<strong>de</strong>u-lhe a mão e danç<strong>ou</strong> com ela, pensando com o coração: «Nunca os<br />
meus olhos viram mulher tão bela». Terminada a dança, ela fez uma vénia e, quando<br />
o rei volt<strong>ou</strong> a olhar em volta, ela tinha <strong>de</strong>saparecido e ninguém sabia para on<strong>de</strong>. Os<br />
guardas que estavam em frente ao palácio foram chamados e interrogados, mas<br />
ninguém a vira.<br />
Ela, no entanto, tinha corrido para o seu vão, <strong>de</strong>spira à pressa o vestido, sujara<br />
mãos e cara, vestira o manto <strong>de</strong> peles e era <strong>de</strong> novo Mil-e-Uma-Peles. Ao entrar na<br />
cozinha, preparando-se para <strong>de</strong>sempenhar as suas tarefas e varrer as cinzas, o<br />
cozinheiro disse-lhe: «Deixa isso para amanhã e faz-me aí a sopa para o rei, que eu<br />
também quero ir lá acima dar uma espreita<strong>de</strong>la. Mas não me <strong>de</strong>ixes cair nenhum<br />
cabelo lá <strong>de</strong>ntro, <strong>ou</strong> ficas sem comer daqui em diante». E o cozinheiro lá se foi,<br />
enquanto Mil-e-Uma-Peles fic<strong>ou</strong> a cozinhar a sopa para o rei, e fez a melhor sopa <strong>de</strong><br />
pão que sabia fazer e, quando tinha terminado, foi ao vão buscar o seu anel d<strong>ou</strong>rado e<br />
<strong>de</strong>it<strong>ou</strong>-o no prato em que a sopa ia ser servida. Quando o baile termin<strong>ou</strong>, o rei<br />
mand<strong>ou</strong> vir a sopa e comeu-a e s<strong>ou</strong>be-lhe tão bem que ach<strong>ou</strong> que nunca tinha comido<br />
sopa melhor. Ao chegar ao fundo do prato, <strong>por</strong>ém, viu o anel d<strong>ou</strong>rado e não<br />
conseguiu perceber como é que ele tinha ido ali parar. Mand<strong>ou</strong> então chamar o<br />
cozinheiro. O cozinheiro assust<strong>ou</strong>-se ao escutar a or<strong>de</strong>m e disse a Mil-e-Uma-Peles:<br />
«Com certeza <strong>de</strong>ixaste cair algum cabelo na sopa. Se for verda<strong>de</strong>, apanhas uma sova».<br />
Ao chegar junto do rei, este pergunt<strong>ou</strong>-lhe quem é que tinha feito a sopa. Respon<strong>de</strong>u o<br />
cozinheiro: «Fui eu». Mas retorquiu o rei: «Isso não é verda<strong>de</strong>, <strong>por</strong>que ela foi<br />
cozinhada <strong>de</strong> maneira muito diferente e muito melhor do que a tua». Respon<strong>de</strong>u ele:<br />
«Tenho <strong>de</strong> admitir que não fui eu quem fez a sopa, mas a Maria Peluda». Disse ele:<br />
«Vai e manda-a vir cá».<br />
Quando Mil-e-Uma-Peles cheg<strong>ou</strong>, pergunt<strong>ou</strong> o rei: «Quem és tu?» «S<strong>ou</strong> uma<br />
pobre criança sem pai nem mãe». Ele pergunt<strong>ou</strong>: «Para que serves aqui no meu<br />
palácio?» Respon<strong>de</strong>u ela: «Não sirvo para nada, a não ser para me atirarem botas à<br />
cabeça». Ele pergunt<strong>ou</strong> ainda: «On<strong>de</strong> é que arranjaste o anel que estava na sopa?»<br />
Respon<strong>de</strong>u ela: «Não sei nada <strong>de</strong> nenhum anel». E o rei não conseguiu <strong>de</strong>scobrir nada<br />
e teve <strong>de</strong> a mandar embora.
Passado algum tempo h<strong>ou</strong>ve nova festa e, como da vez anterior, Mil-e-Uma-Peles<br />
volt<strong>ou</strong> a pedir autorização ao cozinheiro para ir espreitar. Respon<strong>de</strong>u ele: «Sim, mas<br />
está <strong>de</strong> volta daqui a meia hora e faz-me a sopa <strong>de</strong> pão <strong>de</strong> que o rei gosta tanto». Ela<br />
correu então para o vão, lav<strong>ou</strong>-se num ápice, tir<strong>ou</strong> da noz o vestido que era tão<br />
prateado como a lua e vestiu-o. Depois subiu para a festa e era como uma princesa, o<br />
rei acorreu na sua direcção e fic<strong>ou</strong> contente <strong>de</strong> revê-la e, uma vez que a dança estava a<br />
começar, dançaram juntos. Quando a dança termin<strong>ou</strong>, <strong>por</strong>ém, ela volt<strong>ou</strong> a <strong>de</strong>saparecer<br />
tão <strong>de</strong>pressa que o rei não conseguiu perceber para on<strong>de</strong> é que ela tinha ido. Ela<br />
correu para o vão e torn<strong>ou</strong> a fazer-se <strong>de</strong> criaturinha peluda e foi para a cozinha para<br />
fazer a sopa <strong>de</strong> pão. Enquanto o cozinheiro estava lá em cima, foi buscar a roca<br />
d<strong>ou</strong>rada e <strong>de</strong>it<strong>ou</strong>-a no prato <strong>de</strong> forma a que a sopa a cobrisse. A sopa foi <strong>de</strong>pois<br />
levada ao rei, que a comeu, e s<strong>ou</strong>be-lhe tão bem como da <strong>ou</strong>tra vez, e mand<strong>ou</strong> chamar<br />
o cozinheiro, que teve <strong>de</strong> voltar a confessar que tinha sido Mil-e-Uma-Peles a<br />
cozinhar a sopa. Mil-e-Uma-Peles foi novamente falar com o rei, mas respon<strong>de</strong>u que<br />
só servia para lhe atirarem com botas à cabeça e que não sabia nada <strong>de</strong> nenhuma roca.<br />
Quando o rei organiz<strong>ou</strong> uma festa pela terceira vez, tudo se <strong>de</strong>u como na vez<br />
anterior. O cozinheiro disse: «És uma bruxa, Peludinha, e metes sempre alguma coisa<br />
na sopa para ela ficar tão boa e saber melhor ao rei do que aquilo que eu cozinho».<br />
Mas como ela lhe pediu muito, ele <strong>de</strong>ix<strong>ou</strong>-a ir lá acima à hora <strong>de</strong>terminada. Ela vestiu<br />
então o vestido que brilhava como as estrelas e com ele entr<strong>ou</strong> no salão. O rei volt<strong>ou</strong> a<br />
dançar com a bela jovem e ach<strong>ou</strong> que nunca ela parecera tão bela. E enquanto<br />
dançava, enfi<strong>ou</strong>-lhe no <strong>de</strong>do um anel d<strong>ou</strong>rado sem que ela se apercebesse, tendo dado<br />
or<strong>de</strong>ns para que a dança fosse especialmente longa. Quando esta termin<strong>ou</strong>, ele quis<br />
segurar-lhe nas mãos com firmeza, mas ela libert<strong>ou</strong>-se e correu tão rapidamente que<br />
<strong>de</strong>sapareceu perante os olhos <strong>de</strong> toda a gente. Correu o mais que pô<strong>de</strong> até ao vão das<br />
escadas, mas, <strong>por</strong> se haver <strong>de</strong>morado muito e permanecido no baile mais <strong>de</strong> meia<br />
hora, não conseguiu <strong>de</strong>spir o belo vestido e limit<strong>ou</strong>-se a pôr <strong>por</strong> cima o manto <strong>de</strong><br />
peles, e com a pressa também não se conseguiu cobrir <strong>de</strong> fuligem <strong>por</strong> completo, um<br />
<strong>de</strong>do permanecendo alvo. Mil-e-Uma-Peles correu para a cozinha, fez a sopa <strong>de</strong> pão<br />
para o rei e, quando o cozinheiro se ausent<strong>ou</strong>, <strong>de</strong>it<strong>ou</strong> a dobad<strong>ou</strong>ra d<strong>ou</strong>rada para <strong>de</strong>ntro<br />
do prato. O rei, ao encontrar a dobad<strong>ou</strong>ra no fundo do prato, mand<strong>ou</strong> chamar Mil-e-<br />
Uma-Peles e repar<strong>ou</strong> no <strong>de</strong>do alvo e no anel que lhe enfiara no <strong>de</strong>do durante o baile.<br />
Agarr<strong>ou</strong>-lhe a mão com força e, quando esta se tent<strong>ou</strong> libertar para fugir, o manto <strong>de</strong><br />
peles abriu-se ligeiramente e o vestido <strong>de</strong> estrelas <strong>de</strong>rram<strong>ou</strong> para fora o seu brilho. O
Pele <strong>de</strong> Burro (<strong>por</strong> <strong>Charles</strong> <strong>Perrault</strong>)<br />
Texto<br />
Era uma vez um rei, o maior sobre a Terra, amável na paz e terrível na guerra,<br />
incomparável senão consigo mesmo. Os vizinhos temiam-no, os seus estados estavam<br />
calmos e <strong>por</strong> todas as partes via-se florir, à sombra das suas palmas, as virtu<strong>de</strong>s e as<br />
belas-artes.<br />
A sua amável meta<strong>de</strong>, companheira fiel, era tão formosa e bela, dotada dum<br />
espírito tão aquiescente e doce, que com ela ele era ainda menos feliz rei que feliz<br />
esposo. Do seu terno e casto himeneu cheio <strong>de</strong> doçura e concórdia havia nascido uma<br />
filha com tantas virtu<strong>de</strong>s que ele facilmente se consolava <strong>de</strong> não ter mais ampla<br />
linhagem.<br />
No seu vasto e rico palácio tudo era magnífico, em todo o lado formigava uma<br />
gran<strong>de</strong> abundância <strong>de</strong> cortesãos e valetes; havia nas suas cavalariças cavalos gran<strong>de</strong>s<br />
e pequenos <strong>de</strong> todas as maneiras, cobertos <strong>de</strong> belas capas duras <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro e <strong>de</strong> bordados.<br />
Mas o que surpreendia toda a gente ao entrar era que no lugar mais em vista um<br />
mestre burro exibia as suas gran<strong>de</strong>s orelhas. Esta injustiça surpreen<strong>de</strong>-vos, mas<br />
quando s<strong>ou</strong>ber<strong>de</strong>s das suas virtu<strong>de</strong>s sem igual, não achareis que a honra fosse<br />
<strong>de</strong>masiado gran<strong>de</strong>.<br />
A natureza form<strong>ou</strong>-o <strong>de</strong> tal modo que nunca fazia <strong>por</strong>caria, mas antes belos<br />
escudos ao sol e luíses <strong>de</strong> todas as maneiras, que todas as manhãs lhe iam recolher à<br />
l<strong>ou</strong>ra liteira.<br />
Ora o Céu — que <strong>por</strong> vezes se cansa <strong>de</strong> fazer os homens contentes, que sempre<br />
junta às suas graças alguma <strong>de</strong>sgraça, tal como a chuva ao bom tempo — permitiu<br />
que uma áspera doença subitamente atacasse os dias radiosos da rainha. Em todo o<br />
lado se busca socorro, mas nem a Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina nem os charlatães na moda<br />
pu<strong>de</strong>ram, todos juntos, fazer estacar o incêndio que a febre acendia à medida que<br />
aumentava.<br />
Chegada à sua última hora, diz ela ao rei seu esposo: «Aceite <strong>por</strong> favor que antes<br />
que morra eu exija algo <strong>de</strong> si; se algum dia viesse a ter vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> casar <strong>de</strong> novo<br />
quando eu já não estiver cá...». «Ah», disse o rei, «esses cuidados são supérfluos,<br />
nunca na minha vida em tal pensarei, esteja <strong>de</strong>scansada quanto a isso». «Acredito<br />
bem, a julgar pelo seu amor veemente; mas, para ter a certeza, quero a sua promessa,
mitigada no entanto <strong>por</strong> este tempero: se alguma vez encontrar uma mulher mais bem<br />
feita e mais sagaz que eu, po<strong>de</strong> francamente dar-lhe a sua fé e casar-se com ela». A<br />
confiança da rainha nos seus charmes faziam-na encarar tal promessa como uma jura,<br />
obtida com habilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> não casar-se mais. O príncipe jur<strong>ou</strong> pois, com os olhos<br />
marejados <strong>de</strong> lágrimas, tudo o que a rainha quis. A rainha morreu entre os seus braços<br />
e jamais um marido fez tanto pranto. Ao <strong>ou</strong>vi-lo soluçar noite e dia, julg<strong>ou</strong>-se que o<br />
seu luto não duraria muito e que ele chorava os seus <strong>de</strong>funtos amores como um<br />
homem apressado que quer <strong>de</strong>spachar o assunto.<br />
Não se enganavam. Ao fim <strong>de</strong> alguns meses ele quis começar a fazer uma nova<br />
escolha; mas a escolha não era fácil, era preciso ser fiel à promessa e que, <strong>por</strong>tanto, a<br />
nova noiva fosse mais atraente e cheia <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s que a que acabava <strong>de</strong> ser metida<br />
no monumento. Nem a corte fértil em belezas, nem o campo, nem a cida<strong>de</strong>, nem os<br />
reinos em redor aon<strong>de</strong> se foi procurar pu<strong>de</strong>ram fornecer uma tal mulher. Só a infanta<br />
era mais bela e possuía ainda ternos atractivos <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>funta carecia. O próprio rei<br />
disto se <strong>de</strong>u conta e, ar<strong>de</strong>ndo dum amor extremo, concluiu l<strong>ou</strong>camente que <strong>por</strong> tal<br />
razão <strong>de</strong>via <strong>de</strong>sposá-la. Encontr<strong>ou</strong> mesmo um casuísta que julg<strong>ou</strong> que o caso era<br />
apresentável. Mas a jovem princesa, triste <strong>de</strong> <strong>ou</strong>vir falar <strong>de</strong> tal amor, lamentava-se e<br />
chorava noite e dia.<br />
Com a alma cheia <strong>de</strong> mil <strong>de</strong>sgostos, ela foi ao encontro da madrinha, longe numa<br />
gruta remota ricamente estofada <strong>de</strong> madrepérola e <strong>de</strong> coral. Era uma admirável fada<br />
que na sua arte não tinha comparação. Não será preciso dizer-vos o que era uma fada<br />
nesses felizes tempos, pois tenho a certeza <strong>de</strong> que a vossa ama vo-lo terá dito <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os<br />
vossos ver<strong>de</strong>s anos.<br />
«Sei», disse ela ao ver a princesa, «o que vos traz aqui. Sei do vosso coração a<br />
profunda tristeza, mas comigo não precisais <strong>de</strong> vos preocupar mais. Nada po<strong>de</strong>rá<br />
prejudicar-vos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que vos <strong>de</strong>ixeis conduzir. O vosso pai quereria <strong>de</strong>sposar-vos, é<br />
verda<strong>de</strong>. Escutar o seu l<strong>ou</strong>co pedido seria um erro bem gran<strong>de</strong>, mas é possível recusá-<br />
lo sem o contradizer. Dizei-lhe que é preciso que ele vos dê, para contentar os vossos<br />
<strong>de</strong>sejos e antes que o vosso coração se abandone ao seu amor, um vestido que seja da<br />
cor do Tempo. Pese embora todo o seu po<strong>de</strong>r e toda a sua riqueza e mesmo se o Céu<br />
em tudo favorece os seus <strong>de</strong>sígnios, ele nunca po<strong>de</strong>rá realizar essa promessa».<br />
Logo a jovem princesa foi trémula dizê-lo ao seu pai apaixonado; o qual<br />
imediatamente fez <strong>ou</strong>vir aos alfaiates mais im<strong>por</strong>tantes que se não lhe fizessem, sem<br />
<strong>de</strong>masiada <strong>de</strong>longa, um vestido da cor do Tempo seriam enforcados.
Ainda o segundo dia não luzia e já lhe traziam o vestido <strong>de</strong>sejado; o mais belo azul<br />
do empíreo, não é verda<strong>de</strong>, quando este está ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s nuvens <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro,<br />
duma cor mais diáfana. A infanta, penetrada <strong>de</strong> alegria e <strong>de</strong> tristeza, não sabe o que<br />
dizer <strong>ou</strong> como fugir ao seu compromisso. Então diz-lhe a madrasta baixinho:<br />
«princesa, peça-lhe um que, mais brilhante e menos comum, seja da cor da lua. Ele<br />
não lho dará». Mal a princesa tinha feito o seu pedido, disse o rei ao seu bordador:<br />
«Que o astro da noite não tenha mais esplendor e que <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> quatro dias, sem falta,<br />
mo dêem».<br />
O rico vestido foi feito na data marcada, tal como o rei o havia especificado. Nos<br />
céus on<strong>de</strong> a noite <strong>de</strong>sdobr<strong>ou</strong> os seus véus, a própria lua é menos pomposa no seu<br />
vestido <strong>de</strong> prata, mesmo quando em seu máximo brilho, no meio do seu ciclo<br />
recorrente, faz empali<strong>de</strong>cer as estrelas.<br />
A princesa, admirando este vestido, estava prestes pronta a consentir; mas,<br />
inspirada pela madrinha, disse ao príncipe apaixonado: «Só estarei contente quando<br />
tiver um vestido ainda mais brilhante e que seja da cor do sol». O príncipe, que a<br />
amava dum amor ímpar, mand<strong>ou</strong> vir imediatamente um rico lapidador e encomend<strong>ou</strong>-<br />
lhe que a fizesse dum soberbo tecido <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro e <strong>de</strong> diamantes, dizendo-lhe que se ele<br />
não o satisfizesse convenientemente fá-lo-ia morrer no meio dos tormentos. O<br />
príncipe não teve que ter esse trabalho <strong>por</strong>que o obreiro industrioso mand<strong>ou</strong> trazer a<br />
obra preciosa ainda antes <strong>de</strong> a semana terminar. Esta era tão bela, viva e radiosa que o<br />
próprio l<strong>ou</strong>ro amante <strong>de</strong> Climena, quando se passeia no arco dos Céus no seu carro <strong>de</strong><br />
<strong>ou</strong>ro, não encan<strong>de</strong>ia os olhos com mais intenso brilho.<br />
A infanta, confundida com estes dons, não sabe mais o que respon<strong>de</strong>r ao seu pai e<br />
rei. Imediatamente, a madrinha toma-a pela mão e diz-lhe ao <strong>ou</strong>vido: «Não há que<br />
ficar a meio caminho. Serão todos estes presentes que vós recebeis uma assim tão<br />
gran<strong>de</strong> maravilha enquanto ele tiver o burro que sabemos a encher-lhe<br />
incessantemente a bolsa com escudos <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro? Pedi-lhe a pele <strong>de</strong>sse raro animal;<br />
sendo este a fonte <strong>de</strong> todos os seus recursos, <strong>ou</strong> muito me engano <strong>ou</strong> não a obtereis».<br />
Sendo embora esta fada muito sábia, ela ignorava ainda que o amor violento p<strong>ou</strong>co<br />
liga à prata e ao <strong>ou</strong>ro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que possa satisfazer-se. Galantemente, a pele foi<br />
concedida mal foi pedida.<br />
A infanta assust<strong>ou</strong>-se terrivelmente quando lhe tr<strong>ou</strong>xeram a pele e queix<strong>ou</strong>-se<br />
amargamente da sua sorte. Apareceu-lhe a madrinha, que lhe explic<strong>ou</strong> que quando se<br />
faz o bem nada se <strong>de</strong>ve recear. Impõe-se <strong>de</strong>ixar crer ao rei que ela está totalmente
disposta a sujeitar-se com ele à lei conjugal; mas ao mesmo tempo ela <strong>de</strong>verá partir,<br />
sozinha e bem disfarçada, para algum estado longínquo a fim <strong>de</strong> evitar um mal tão<br />
próximo e certo.<br />
«Eis», prosseguiu ela», uma arca on<strong>de</strong> vamos meter todos os vossos vestidos, o<br />
vosso espelho e produtos <strong>de</strong> beleza, assim como os vossos diamantes e rubis. D<strong>ou</strong>-vos<br />
ainda a minha varinha; se a levar<strong>de</strong>s na mão, a arca seguirá o vosso caminho<br />
escondida sob a terra. E se a quiser<strong>de</strong>s abrir, mal a varinha tenha tocado a terra, a arca<br />
abrir-se-á perante os vossos olhos. Para vos tornar irreconhecível, a pele do burro é<br />
uma máscara admirável. Escon<strong>de</strong>i-vos bem sob a pele, que ninguém acreditará —<br />
sendo tão feia — po<strong>de</strong>r escon<strong>de</strong>r algo <strong>de</strong> belo». Mal a princesa saía assim travestida<br />
da morada da sagaz fada, na frescura da manhã, já o príncipe, que se apronta para a<br />
festa do feliz casamento, vem a saber do seu funesto <strong>de</strong>stino. Não há casa, caminho<br />
<strong>ou</strong> avenida que não se pesquise prontamente, mas é em vão tanta agitação, dado<br />
ninguém adivinhar o que foi feito <strong>de</strong>la.<br />
Espalh<strong>ou</strong>-se em todo o lado um triste e negro <strong>de</strong>sgosto; afinal não há bodas, não há<br />
festa, não há tarte nem drageias. Desencorajadas, a maioria das damas da corte nem<br />
jantaram; mas foi sobretudo o padre que fic<strong>ou</strong> triste <strong>por</strong> almoçar tar<strong>de</strong> e não ter afinal<br />
tido oferendas.<br />
Entretanto a infanta seguia o seu caminho com a cara coberta <strong>de</strong> ignominiosa<br />
gordura. A todos os viandantes ela estendia a mão e tentava arranjar um lugar para<br />
servir, mas os menos <strong>de</strong>licados e os mais infelizes, vendo-a com tão mau aspecto e tão<br />
nojenta, não queriam escutar nem recolher em casa uma tão suja criatura.<br />
Ela foi pois bem longe, muito longe, ainda mais longe. Enfim, suce<strong>de</strong>u que numa<br />
quinta a dona da casa precisava duma serviçal que lavasse trapos sujos e a pocilga dos<br />
<strong>por</strong>cos. Instalaram-na num canto ao fundo da cozinha on<strong>de</strong> os criados, insolente<br />
escumalha, não faziam senão picá-la, contradizê-la e ralhar com ela. Já não sabiam<br />
mais que partida pregar-lhe, perseguiam-na sob todos os pretextos e ela era o alvo<br />
quotidiano <strong>de</strong> todas as suas graças e chistes.<br />
Aos domingos ela tinha um p<strong>ou</strong>co mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>scanso. Havendo cumprido as suas<br />
tarefas <strong>de</strong> manhã, entrava no quarto e, atrás da <strong>por</strong>ta fechada, <strong>de</strong>sencardia-se, abria a<br />
arca e or<strong>de</strong>nava os produtos <strong>de</strong> beleza. Perante o seu gran<strong>de</strong> espelho, contente e<br />
satisfeita, punha ora o vestido <strong>de</strong> lua, ora aquele no qual brilhava o fogo do sol, ora o<br />
belo vestido azul que todo o diáfano céu não conseguia igualar. Ficando triste apenas<br />
<strong>por</strong> a cauda dos vestidos não po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>senrolar-se no chão <strong>de</strong>masiado acanhado, ela
gostava <strong>de</strong> se ver assim jovem, vermelha e branca, cem vezes mais valente que<br />
qualquer <strong>ou</strong>tra; tal doce prazer sustinha-a e permitia-lhe chegar ao domingo seguinte.<br />
Quase me esquecia <strong>de</strong> dizer que nesta rica quinta se fazia criação <strong>de</strong> aves para um<br />
rei magnífico e po<strong>de</strong>roso. Aqui havia galinhas da Índia, galinhas <strong>de</strong> Água, galinhas <strong>de</strong><br />
Angola, alcatrazes, patos da Guiné e mil <strong>ou</strong>tros pássaros <strong>de</strong> bizarras maneiras, quase<br />
todos diferentes entre si, enchiam à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>z quintais inteiros. O filho do rei vinha<br />
frequentemente rep<strong>ou</strong>sar-se a este lugar aprazível com os senhores da corte, aqui<br />
bebendo água gelada, quando voltavam da caça. O seu ar era Real, a sua expressão<br />
marcial e propícia a fazer estremecer os mais orgulhosos batalhões. Pele <strong>de</strong> Burro viu-<br />
o <strong>de</strong> bem longe com ternura e reconheceu, <strong>por</strong> esta <strong>ou</strong>sadia, que sob a sua sujida<strong>de</strong> e<br />
andrajos batia ainda um coração <strong>de</strong> princesa.<br />
«Como ele tem um aspecto grandioso, tendo-o embora <strong>de</strong>scurado, e como é<br />
amável», dizia ela, «e que bem-aventurada será a bela a quem o seu coração esteja<br />
prometido! Eu estaria mais bem vestida com um vestido <strong>de</strong> nada, com o qual ele me<br />
tivesse honrado, do que com todos aqueles que possuo».<br />
Um dia o príncipe, errando sem <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> pátio em pátio na quinta, pass<strong>ou</strong> numa<br />
álea obscura on<strong>de</strong> ficava a humil<strong>de</strong> morada <strong>de</strong> Pele <strong>de</strong> Burro. Por acaso pôs um olho<br />
no buraco da fechadura. Sendo dia <strong>de</strong> festa, ela tinha-se arranjado ricamente e posto<br />
as soberbas r<strong>ou</strong>pas, tecidas <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro fino e gran<strong>de</strong>s diamantes, que rivalizavam com o<br />
sol na mais pura clarida<strong>de</strong>.<br />
O príncipe contempla-a com vagar e aquilo que vê dá-lhe tanto prazer que quase<br />
não consegue retomar o fôlego. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente dos vestidos, a beleza da cara, o<br />
seu belo perfil, a sua alva brancura, os seus traços finos, a sua frescura juvenil tocam-<br />
na cem vezes. Mas um certo ar <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za, mais ainda um pudor mo<strong>de</strong>sto e ajuizado<br />
— seguros testemunhos das belezas da sua alma — apo<strong>de</strong>raram-se <strong>de</strong> todo o seu<br />
coração.<br />
No calor do fogo que agora o trans<strong>por</strong>ta, ele esteve três vezes para <strong>de</strong>rrubar a<br />
<strong>por</strong>ta; mas, crendo ver uma divinda<strong>de</strong>, <strong>por</strong> três vezes o seu braço se <strong>de</strong>teve.<br />
Ele retira-se ao palácio, pensativo; lá suspira noite e dia. Não quer mais ir ao baile,<br />
embora se esteja no Carnaval. Detesta a caça, <strong>de</strong>testa a comédia, já não tem apetite e<br />
tudo lhe faz mal ao coração, sendo o fundo da sua doença uma triste e mortal<br />
langui<strong>de</strong>z.<br />
Inquire sobre quem era essa ninfa admirável que vivia num pátio ao fundo duma<br />
álea tenebrosa on<strong>de</strong> nada se vislumbra em pleno dia. É, dizem-lhe, Pele <strong>de</strong> Burro, a
qual nada tem <strong>de</strong> ninfa nem <strong>de</strong> bela e a quem chamam Pele <strong>de</strong> Burro <strong>por</strong> causa da<br />
pele que traz sobre o pescoço; ela é remédio eficaz para o amor, dado ser em suma o<br />
animal mais feio que se possa ver a seguir ao lobo. Po<strong>de</strong>m falar, ele não acredita; os<br />
traços que o amor inscreveu, ainda presentes na sua memória, não serão <strong>de</strong>la<br />
apagados.<br />
Entretanto a rainha sua mãe, <strong>de</strong> quem ele é filho único, chora e <strong>de</strong>sespera enquanto<br />
tenta em vão que ele <strong>de</strong>clare a causa do seu mal. Ele geme, chora e suspira; nada diz,<br />
a não ser que quer que Pele <strong>de</strong> Burro lhe faça um bolo com as próprias mãos. A mãe<br />
não sabe o que quer o filho dizer. «Céus! Minha Senhora», dizem-lhe, «essa Pele <strong>de</strong><br />
Burro é uma negra t<strong>ou</strong>peira, ainda mais feia e repelente que a mais suja servente». «E<br />
no entanto é preciso fazer-lha a vonta<strong>de</strong>», disse a rainha, «e é nisso apenas que<br />
<strong>de</strong>vemos todos pensar». A mãe amava-o tanto que lhe teria dado <strong>ou</strong>ro para comer se<br />
ele quisesse.<br />
Portanto Pele <strong>de</strong> Burro pega na farinha, que tinha feito peneirar <strong>de</strong> propósito para<br />
obter uma massa mais fina, assim como em sal, manteiga e ovos frescos e, para fazer<br />
bem o seu bolo, fecha-se no quarto. Primeiro limpa as mãos, braços e cara e põe um<br />
avental <strong>de</strong> prata, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ita mãos à obra. Diz-se que <strong>por</strong> trabalhar à pressa lhe caiu<br />
na massa um dos seus anéis <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor; mas aqueles que supostamente<br />
conhecem bem esta história asseguram que ela pôs lá o anel <strong>de</strong> propósito.<br />
Francamente, tal eu <strong>ou</strong>saria crer, estando seguro <strong>de</strong> que ela se <strong>de</strong>ra conta quando o<br />
príncipe havia abordado a sua <strong>por</strong>ta e a olhara pelo buraco da fechadura. Neste ponto<br />
a mulher é tão viva, o seu olhar tão certeiro, que não se po<strong>de</strong> observá-la um só<br />
momento sem que ela saiba que a vimos. Tenho também a certeza — e po<strong>de</strong>ria jurá-lo<br />
— <strong>de</strong> que ela não teve dúvida nenhuma <strong>de</strong> que o seu anel seria bem recebido pelo seu<br />
jovem amante.<br />
Jamais ninguém amass<strong>ou</strong> um tão apetitoso pitéu. O príncipe ach<strong>ou</strong>-o tão bom que<br />
foi <strong>por</strong> p<strong>ou</strong>co, tal era a sua fome gulosa, que não engoliu também o anel. Quando viu<br />
a esmeralda admirável do mesmo, assim como o estreito círculo <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro que marcava<br />
a forma do <strong>de</strong>do, o seu coração foi acometido duma alegria incrível e pô-lo<br />
instantaneamente sob a almofada. Dado o seu mal aumentar, os sagazes médicos<br />
cheios <strong>de</strong> experiência, vendo-o emaciar <strong>de</strong> dia para dia, julgaram todos pela sua<br />
gran<strong>de</strong> ciência que ele estava doente <strong>de</strong> amor. Como o casamento (<strong>por</strong> mais mal que<br />
<strong>de</strong>le se diga) é um remédio <strong>de</strong> escolha para tal doença, <strong>de</strong>cidiu-se casá-lo. Primeiro<br />
ele fez-se rogado, mas <strong>de</strong>pois disse: «Est<strong>ou</strong> <strong>de</strong> acordo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que me dêem em
casamento a pessoa a quem este anel sirva». Foi gran<strong>de</strong> a surpresa do rei e da rainha<br />
perante este pedido bizarro, mas ele estava tão mal que não <strong>ou</strong>saram dizer não.<br />
E assim começ<strong>ou</strong> a busca daquela a quem o anel <strong>de</strong>verá conferir,<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente do sangue, uma tão alta posição. Não há quem não queira vir<br />
apresentar o <strong>de</strong>do, nem quem queira ce<strong>de</strong>r o seu direito a tal.<br />
Tendo corrido o barulho <strong>de</strong> que para preten<strong>de</strong>r ao príncipe há que ter o <strong>de</strong>do<br />
<strong>de</strong>lgado, qualquer charlatão que queira ser bem recebido dirá agora que tem o segredo<br />
<strong>de</strong> tornar <strong>de</strong>dos finos. Uma tal, seguindo um capricho bizarro, raspa o <strong>de</strong>do como se<br />
fosse um rábano; <strong>ou</strong>tra corta ao seu um pedaço; <strong>ou</strong>tra aperta-o, crendo assim diminui-<br />
lo; <strong>ou</strong>tra ainda, usando uma certa água para o apequenar, faz cair-lhe a pele. Enfim,<br />
não há nada a que as damas não recorram para fazerem o seu <strong>de</strong>do ajustar-se ao anel.<br />
O teste foi inaugurado pelas jovens princesas, marquesas e duquesas; mas os seus<br />
<strong>de</strong>dos, embora <strong>de</strong>licados, eram <strong>de</strong>masiado grossos e não entravam. Também as<br />
con<strong>de</strong>ssas, as baronesas e <strong>de</strong>mais pessoas nobres apresentaram a mão, <strong>de</strong>bal<strong>de</strong>.<br />
Em seguida vieram as jovens <strong>de</strong> baixa extracção, cujos belos e pequenos <strong>de</strong>dos<br />
(<strong>por</strong>que há-as muito bem feitas) pareceram <strong>por</strong> vezes ajustarem-se ao anel. Mas este,<br />
sempre <strong>de</strong>masiado pequeno <strong>ou</strong> <strong>de</strong>masiado redondo, todas recusava com um <strong>de</strong>sdém<br />
quase igual.<br />
Foi preciso chegar, enfim, às criadas, cozinheiras, servas rústicas e guardadoras <strong>de</strong><br />
perus — numa palavra, a todo o rebotalho, cujas patas vermelhas e pretas esperavam,<br />
não menos que as mãos <strong>de</strong>licadas, um <strong>de</strong>stino feliz. Apresentaram-se muitas moças<br />
cujo <strong>de</strong>do, gran<strong>de</strong> e compacto, teria tão dificilmente passado no anel do príncipe<br />
como um cabo através duma agulha. Finalmente pens<strong>ou</strong>-se ter concluído, já que<br />
faltava apenas a pobre Pele <strong>de</strong> Burro lá no fundo da cozinha; mas como crer, dizia-se,<br />
que o Céu a <strong>de</strong>stinasse a reinar! O príncipe disse: «E <strong>por</strong>que não? Façam-na vir».<br />
Todos <strong>de</strong>sataram a rir, gritando: «O que é isto <strong>de</strong> fazer entrar aqui essa macaca suja!»<br />
Mas quando ela tir<strong>ou</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>baixo da pele negra uma mãozinha que parecia <strong>de</strong> marfim<br />
levemente tingido <strong>de</strong> púrpura, e o seu <strong>de</strong>dinho foi envolto à justa pelo anel fatal, a<br />
corte caiu numa surpresa insondável.<br />
Levaram-na imediatamente ao rei, mas ela pediu que antes <strong>de</strong> aparecer perante o<br />
seu amo e senhor lhe <strong>de</strong>ssem tempo <strong>de</strong> pôr um <strong>ou</strong>tro vestido. Em boa verda<strong>de</strong>, todos<br />
se preparavam para rir <strong>de</strong>sse vestido. Mas quando ela volt<strong>ou</strong> e atravess<strong>ou</strong> as salas com<br />
a sua r<strong>ou</strong>pa sumptuosa, cujas ricas belezas nunca haviam sido igualadas, então os seus<br />
charmes e graça divina ressaltaram dos seus amáveis cabelos l<strong>ou</strong>ros, em que se
misturavam diamantes, que faiscavam luz; dos seus olhos azuis — gran<strong>de</strong>s, doces,<br />
longos e cheios <strong>de</strong> orgulhosa Majesta<strong>de</strong> — que não olhavam nunca sem agradar e sem<br />
ferir; e, enfim, a sua cintura, tão <strong>de</strong>lgada e fina que po<strong>de</strong>ria ser abraçada <strong>por</strong> duas<br />
mãos. Por comparação, empali<strong>de</strong>ceram os encantos das damas da corte e dos seus<br />
ornamentos.<br />
Ro<strong>de</strong>ado pela alegria e barulho <strong>de</strong> toda a assembleia, o bom rei estava fora <strong>de</strong> si ao<br />
<strong>de</strong>scobrir na sua nora tantos atractivos; a rainha estava entontecida; e o príncipe, seu<br />
querido amante, com a alma preenchida <strong>de</strong> mil prazeres, sucumbia sob o peso do seu<br />
êxtase. Imediatamente cada um tom<strong>ou</strong> as medidas necessárias ao casamento. O rei<br />
convid<strong>ou</strong> todos os reis da vizinhança, os quais, diversamente ornados com paramentos<br />
brilhantes, <strong>de</strong>ixaram os seus estados para estarem presentes nesse gran<strong>de</strong> dia. Alguns<br />
chegaram dos climas da aurora, montados sobre gran<strong>de</strong>s elefantes; <strong>ou</strong>tros, vindos da<br />
costa m<strong>ou</strong>risca —sendo ainda mais pretos e feios — faziam medo às crianças. Enfim,<br />
chegam <strong>de</strong> todos os cantos do mundo e abundam na corte.<br />
Mas nenhum príncipe, nenhum Potentado aí apareceu com tanto brilho como o pai<br />
da noiva. Outrora apaixonado <strong>por</strong> ela, o tempo havia purificado os fogos que haviam<br />
abrasado a sua alma. Havia já banido qualquer <strong>de</strong>sejo criminoso e o p<strong>ou</strong>co que restava<br />
na sua alma <strong>de</strong>ssa odiosa chama só tornava mais vivo o seu amor paternal. Des<strong>de</strong> que<br />
ele a viu: «Bendito seja o Céu que permite que eu te reveja, minha querida filha»,<br />
disse ele, chorando <strong>de</strong> alegria e correndo a beijá-la ternamente. Todos se interessaram<br />
<strong>por</strong> esta sua felicida<strong>de</strong> e o futuro esposo fic<strong>ou</strong> muito contente em saber que se tornava<br />
o genro dum rei tão po<strong>de</strong>roso. Nesse momento cheg<strong>ou</strong> a madrinha, que cont<strong>ou</strong> toda a<br />
história e assim acab<strong>ou</strong> <strong>de</strong> elevar Pele <strong>de</strong> Burro à glória.<br />
Não custa ver que o objectivo <strong>de</strong>ste conto é ensinar à criança que mais vale ex<strong>por</strong>-<br />
se às maiores provações do que faltar ao seu <strong>de</strong>ver; que a virtu<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser árdua mas<br />
acaba sempre <strong>por</strong> prevalecer; que contra um l<strong>ou</strong>co amor e os seus fogosos acessos<br />
mesmo a mais forte razão é um fraco dique, não havendo tes<strong>ou</strong>ros tão ricos que um<br />
amante não seja <strong>de</strong>les pródigo; que água fresca e pão escuro chegam para alimentar<br />
uma jovem criatura <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que esta tenha belos vestidos; que não há fêmea sob o céu<br />
que não pense ser bela e que não imagine ainda <strong>por</strong> vezes que se a famosa rivalida<strong>de</strong><br />
das três belda<strong>de</strong>s se tivesse passado consigo, a maçã <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro teria sido sua.
O conto <strong>de</strong> Pele <strong>de</strong> Burro é difícil <strong>de</strong> crer, mas a sua memória permanecerá<br />
enquanto h<strong>ou</strong>ver no mundo crianças, mães e avós. 1<br />
1 Traduzido do original francês publicado pela primeira vez em Grisélidis, N<strong>ou</strong>velle avec le conte <strong>de</strong><br />
Peau d’Ane et celuy <strong>de</strong> S<strong>ou</strong>haits ridicules (Paris, 1694).
ei peg<strong>ou</strong> no manto e rasg<strong>ou</strong>-o. Nesse instante soltaram-se também os cabelos<br />
d<strong>ou</strong>rados e ei-la, a princesa em todo o seu esplendor, e já não tinha como se escon<strong>de</strong>r.<br />
E quando lav<strong>ou</strong> a fuligem e a cinza da cara, fic<strong>ou</strong> mais bela do que alguma vez se vira<br />
à face da Terra. Mas o rei disse: «Tu és a minha noiva amada e nunca mais nos<br />
separaremos um do <strong>ou</strong>tro». Depois disso, celebraram casamento e viveram felizes até<br />
ao fim dos seus dias. 1<br />
Tradução <strong>de</strong> Teresa Aica Bairos<br />
1 Brü<strong>de</strong>r Grimm, Kin<strong>de</strong>r- und Hausmärchen: Jubiläumsausgabe mit <strong>de</strong>n Originalanmerkungen <strong>de</strong>r<br />
Brü<strong>de</strong>r Grimm. 3 vols. 1982. Reimpressão, Stuttgart: Reclam, 1989. Conto nº 65.
A Boneca <strong>de</strong> Pau (variante <strong>por</strong>tuguesa)<br />
Texto<br />
Havia um rei e uma rainha que tinham uma filha muito boa, mas muito feia. Os<br />
pais envergonhavam-se <strong>de</strong> a levar aos bailes e a princesa vexava-se <strong>de</strong> se apresentar<br />
em público.<br />
Em certo dia foi o rei convidado com a sua família a assistir a um baile oferecido<br />
<strong>por</strong> <strong>ou</strong>tro rei, vizinho daquele, em honra dos anos do príncipe seu filho. Não aceitar o<br />
convite seria uma grave <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração e <strong>por</strong> isso o rei e a família viram-se forçados<br />
a ir ao baile. Quando o rei e a rainha fizeram a apresentação <strong>de</strong> sua filha ninguém<br />
h<strong>ou</strong>ve que não mor<strong>de</strong>sse os lábios para reprimir uma gargalhada. Os enfeites e os<br />
vestidos <strong>de</strong> gala tornavam a princesa ainda mais hedionda.<br />
Ora o príncipe, que fazia anos, era um formoso mancebo. As princesas convidadas<br />
a ir ao baile tornavam-se extremamente amáveis no intuito <strong>de</strong> captar um sorriso do<br />
belo príncipe; a nossa princesa, <strong>por</strong>ém, apesar da muita simpatia para com o príncipe,<br />
nem <strong>ou</strong>s<strong>ou</strong> para ele levantar os olhos. Dançaram toda a noite, com excepção da<br />
princesa feia que só danç<strong>ou</strong> com o pai uma vez. Despediram-se ao romper do sol,<br />
protestando a princesa, no íntimo da sua alma, não mais voltar a um baile.<br />
Adoeceu a rainha e antes <strong>de</strong> morrer, mas nos últimos momentos, cham<strong>ou</strong> para<br />
junto <strong>de</strong> si a filha e disse-lhe: guarda esta varinha <strong>de</strong> condão e, quando precises <strong>de</strong><br />
alguma coisa, vale-te <strong>de</strong>la. Depois cham<strong>ou</strong> o marido e a este disse na presença da<br />
filha: se um dia resolveres casar, experimenta primeiro colocar na cabeça da tua noiva<br />
este lenço e só com ela casarás se o lenço lhe ficar bem.<br />
O rei recebeu da mão da rainha o lenço e prometeu sob juramento casar somente<br />
com a princesa em quem o lenço ficasse bem.<br />
Morreu a rainha e meses <strong>de</strong>pois tent<strong>ou</strong> o rei escolher esposa, mas <strong>de</strong> tantas que<br />
escolhia a nenhuma o lenço ficava bem. Começ<strong>ou</strong> o rei a andar triste. Pergunt<strong>ou</strong>-lhe a<br />
filha o motivo da sua tristeza e o rei respon<strong>de</strong>u: «Não encontro princesa em quem<br />
fique bem o lenço. Deixo <strong>de</strong> pensar em noiva», concluiu o rei angustiado, «<strong>por</strong> isso<br />
guarda o lenço que <strong>de</strong> nada me po<strong>de</strong> servir».<br />
A filha aceit<strong>ou</strong> o lenço, pô-lo na cabeça e fic<strong>ou</strong> logo transformada numa lindíssima<br />
jovem: era um verda<strong>de</strong>iro encanto. O rei not<strong>ou</strong> esta transformação e disse para a filha:<br />
«casarás comigo».
Não <strong>ou</strong>s<strong>ou</strong> a princesa repelir a proposta do pai, mas respon<strong>de</strong>u que casaria se lhe<br />
comprasse três prendas: um vestido <strong>de</strong> seda da cor do mar e <strong>de</strong> todos os peixes para o<br />
vestir no dia do seu casamento <strong>de</strong> manhã, <strong>ou</strong>tro da cor da terra e <strong>de</strong> todas as flores<br />
para o vestir no dia do seu casamento ao meio-dia, e <strong>ou</strong>tro da cor do céu, do sol, da<br />
lua e das estrelas para ir à igreja casar.<br />
O rei prometeu comprar os três vestidos e resolveu viajar pelo estrangeiro, on<strong>de</strong><br />
encontrasse a seda, que no seu reino não havia. Passado tempo, volt<strong>ou</strong> o rei com os<br />
três vestidos, cada um dos quais era um verda<strong>de</strong>iro primor. Gost<strong>ou</strong> a princesa dos<br />
vestidos e o rei começ<strong>ou</strong> a tratar os preparativos do casamento.<br />
Sem o rei saber, mand<strong>ou</strong> a princesa chamar um exímio artista <strong>de</strong> carpintaria e<br />
pergunt<strong>ou</strong>-lhe se podia em curto prazo fazer <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira uma boneca, on<strong>de</strong> ela<br />
c<strong>ou</strong>besse com os seus vestidos e mais r<strong>ou</strong>pa, boneca esta que <strong>de</strong>via adaptar-se<br />
perfeitamente ao seu corpo <strong>por</strong> forma que fingisse um fato completo. O carpinteiro<br />
comprometeu-se a fazer a obra, obrigando-se a guardar segredo, sob pena <strong>de</strong> morte.<br />
Apresent<strong>ou</strong> o artista a boneca feita e pronta. A ma<strong>de</strong>ira era tão bem preparada, que<br />
a boneca acomodava-se perfeitamente ao corpo da princesa, acompanhando-a em<br />
todos os movimentos, como se a matéria-prima gozasse <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> elasticida<strong>de</strong>.<br />
Gratific<strong>ou</strong> ela o trabalho do artista, meteu-se <strong>de</strong>ntro da boneca e fugiu do palácio,<br />
dirigindo-se para o palácio do rei seu vizinho, on<strong>de</strong> se ofereceu como criada. É<br />
evi<strong>de</strong>nte que a cara da princesa estava coberta pela cara <strong>de</strong> pau.<br />
Quando as criadas viram a cara horrenda da mulher que se oferecia <strong>por</strong> criada,<br />
puseram-se a rir e chamaram a rainha.<br />
«Queres servir?» pergunt<strong>ou</strong> a rainha.<br />
A criada respon<strong>de</strong>u parvamente.<br />
«Coitadinha! É idiota. Man<strong>de</strong>m-na para o quintal, on<strong>de</strong> há uma casinha <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong> vigiar as galinhas.<br />
E assim suce<strong>de</strong>u. Foi a Cara <strong>de</strong> Pau, nome que as criadas lhe aplicaram, recolhida<br />
na casinha que existia no quintal do palácio.<br />
Algum tempo <strong>de</strong>pois começ<strong>ou</strong>-se a falar numa gran<strong>de</strong> festa em próxima ermida,<br />
festa <strong>de</strong> que o príncipe era juiz. Toda a fidalguia se preparava para a festa e os criados<br />
do rei não cessavam <strong>de</strong> falar nela. A Cara <strong>de</strong> Pau cheg<strong>ou</strong> ao pé da rainha e pediu-lhe<br />
licença para ir ver a festa.<br />
«Vai, sim», respon<strong>de</strong>u a rir, «e po<strong>de</strong>s ir todos os dias, se quiseres».
A festa dur<strong>ou</strong> três dias. No primeiro dia, saiu a Cara <strong>de</strong> Pau e foi para o campo pôr-<br />
se à sombra <strong>de</strong> uma árvore. Às horas <strong>de</strong>stinadas, tir<strong>ou</strong> uma varinha <strong>de</strong> condão e disse:<br />
«Varinha <strong>de</strong> condão, pelo po<strong>de</strong>r que Deus te <strong>de</strong>u, apresenta-me aqui um coche, on<strong>de</strong><br />
possa ser trans<strong>por</strong>tada com o meu vestido da cor do mar e <strong>de</strong> todos os peixes.<br />
De repente apareceu um riquíssimo coche, on<strong>de</strong> ela entr<strong>ou</strong> maravilhosamente<br />
vestida. Rei, rainha e o príncipe ficaram maravilhados da formosura e da riqueza da<br />
<strong>de</strong>sconhecida. Toda a gente tinha nela os olhos fixos. O príncipe <strong>de</strong>sceu do seu lugar e<br />
foi oferecer o braço à <strong>de</strong>sconhecida, colocando-a ao lado <strong>de</strong> sua mãe. Convers<strong>ou</strong> o<br />
príncipe com a <strong>de</strong>sconhecida durante a festa e ofereceu-lhe um anel. Pergunt<strong>ou</strong>-lhe<br />
finalmente como se chamava e a dama respon<strong>de</strong>u: «Amanhã lhe respon<strong>de</strong>rei, espero<br />
voltar».<br />
No dia seguinte foi o príncipe mais cedo para a capela. A Cara <strong>de</strong> Pau, à sombra da<br />
árvore, esper<strong>ou</strong> a melhor ocasião <strong>de</strong> se apresentar na capela. «Varinha <strong>de</strong> condão,<br />
pelo po<strong>de</strong>r que Deus te <strong>de</strong>u, apresenta-me aqui um coche, mais rico que o <strong>de</strong> ontem,<br />
on<strong>de</strong> possa ir à festa com o meu vestido da cor do campo e <strong>de</strong> todas as flores.<br />
Apresent<strong>ou</strong>-se um coche muito mais rico do que o primeiro, on<strong>de</strong> a princesa<br />
embarc<strong>ou</strong> e dirigiu-se para a capela. Logo o príncipe lhe foi oferecer o braço e foi<br />
colocá-la ao lado da rainha. Se da primeira vez se apresent<strong>ou</strong> formosa e rica, muito<br />
mais <strong>de</strong>sta vez. O príncipe ofereceu-lhe a corrente do seu relógio e pergunt<strong>ou</strong>-lhe<br />
como se chamava. A dama respon<strong>de</strong>u: «amanhã lhe respon<strong>de</strong>rei».<br />
No terceiro e último dia apresent<strong>ou</strong>-se a dama com um vestido da cor do céu, do<br />
sol, da lua e das estrelas, que a todos maravilh<strong>ou</strong>. Parecia um anjo em seu trono <strong>de</strong><br />
safiras. Ofereceu-lhe o príncipe o seu relógio e pergunt<strong>ou</strong>-lhe como se chamava e ela<br />
respon<strong>de</strong>u: «logo respondo».<br />
Não se atrevia o príncipe a afastar-se do lado da princesa, mas como o rei o<br />
chamasse, a dama aproveit<strong>ou</strong> a ocasião e <strong>de</strong>sapareceu. Quando o príncipe volt<strong>ou</strong> e<br />
não viu a <strong>de</strong>sconhecida fic<strong>ou</strong> muito triste e tristeza foi ela que no dia seguinte não se<br />
levant<strong>ou</strong> da cama. Foram chamados os médicos do palácio que se confessaram<br />
impotentes para <strong>de</strong>belar o mal do príncipe. O rei instava com o filho que tomasse<br />
caldos, a rainha não se tirava do pé do leito do enfermo e pedia-lhe <strong>de</strong> mãos postas<br />
que comesse; mas o príncipe parecia estranho a tudo o que o ro<strong>de</strong>ava, pensando<br />
constantemente na <strong>de</strong>sconhecida.<br />
Uma tar<strong>de</strong> entr<strong>ou</strong> a Cara <strong>de</strong> Pau na cozinha e disse: «sei fazer uns bolinhos com<br />
farinha, ovos e açúcar que <strong>de</strong>vem fazer muito bem ao senhor príncipe».
«Cala-te, parva, não po<strong>de</strong>s negar que és idiota», respon<strong>de</strong>ram-lhe as criadas.<br />
Entr<strong>ou</strong> a rainha, a quem a Cara <strong>de</strong> Pau repetiu que sabia fazer uns bolos com ovos,<br />
farinha e açúcar que <strong>de</strong>viam fazer bem ao príncipe.<br />
«Vai fazer os bolos», disse a rainha, mandando entregar à parva os bolos, os ovos e<br />
o açúcar.<br />
A parva saiu e volt<strong>ou</strong>, passado tempo, com três bolos. «Olhe, senhora rainha,<br />
cheiram muito bem».<br />
A rainha peg<strong>ou</strong> nos bolos e foi instar com o filho que os provasse.<br />
«Não posso, minha mãe».<br />
«Experimenta ao menos, filho!»<br />
O príncipe partiu um bolo e sent<strong>ou</strong>-se imediatamente na cama com os olhos<br />
espantados. «Quem tr<strong>ou</strong>xe estes bolos, minha mãe? Dentro vejo o anel, a corrente e o<br />
relógio que ofereci à <strong>de</strong>sconhecida.<br />
«Olha, filho, foi a Cara <strong>de</strong> Pau que tr<strong>ou</strong>xe os bolos».<br />
«Man<strong>de</strong>-a chamar».<br />
Apareceu a Cara <strong>de</strong> Pau.<br />
«Quem te <strong>de</strong>u estes bolos? Conheces quem os fez?»<br />
«Conheço».<br />
«Quem é? On<strong>de</strong> está?»<br />
«Aqui», respon<strong>de</strong>u a Cara <strong>de</strong> Pau dando um solavanco na vestidura e mostrando-se<br />
cheia <strong>de</strong> beleza e <strong>de</strong> formosura.<br />
O príncipe <strong>de</strong>u um grito e foi cair aos pés da princesa.<br />
No dia seguinte h<strong>ou</strong>ve gran<strong>de</strong>s festas; cas<strong>ou</strong> o príncipe com a princesa. H<strong>ou</strong>ve<br />
muitos filhos <strong>de</strong>ste casamento e todos foram muito felizes.<br />
Bendito e l<strong>ou</strong>vado, meu conto acabado. 1<br />
1 Transcrito, com ligeiros ajustamentos ortográficos e <strong>de</strong> pontuação, a partir <strong>de</strong> Francisco Xavier<br />
Ataí<strong>de</strong> <strong>de</strong> Oliveira, Contos Tradicionais do Algarve. 2ª edição. Vol. 1. Lisboa: Vega.
A <strong>Borralheira</strong> Corsa (variante corsa)<br />
Texto<br />
A <strong>Borralheira</strong> corsa, v<strong>ou</strong>-ta contar.<br />
Havia um homem e uma mulher que tinham uma filhinha e esse homem tinha uma<br />
amante e abandon<strong>ou</strong> a sua mulher e a filha.<br />
Então, um dia, a amante disse à menina: «Olha, tu queres viver comigo? Vais ver<br />
como eu v<strong>ou</strong> gostar <strong>de</strong> ti! V<strong>ou</strong> pôr-te laçarotes, v<strong>ou</strong> pôr-te perfumes, v<strong>ou</strong> vestir-te<br />
bem! Vais ver como serás feliz comigo; bem vês que a tua mãe nem sequer usa belos<br />
vestidos!»<br />
Ela respon<strong>de</strong>u: «Sabes, eu est<strong>ou</strong> bem com a minha mãe».<br />
A <strong>ou</strong>tra disse: «Mas não! Olha como o teu vestido está velho, como estás rasgada!<br />
Sabes que mais? Mata-a, a tua mãe!»<br />
Ela pergunt<strong>ou</strong>: «E como é que a mato?»<br />
A <strong>ou</strong>tra disse: «Bem vês, pe<strong>de</strong>s-lhe que te escolha uns belos figos no baú, no baú<br />
há belos figos; e quando ela estiver a escolher os figos, tu <strong>de</strong>ixas cair a tampa e mata-<br />
la».<br />
Então, enquanto a mãe escolhia os figos, ela <strong>de</strong>ix<strong>ou</strong> cair a tampa e mat<strong>ou</strong>-a. E foi<br />
pelo meio! Cortada em duas! Então, a parte <strong>de</strong> cima torn<strong>ou</strong>-se uma santa e a <strong>de</strong> baixo<br />
uma vaca! E então, <strong>de</strong>pois, ela já não tinha mãe e a madrasta tom<strong>ou</strong>-a consigo. Em<br />
vez <strong>de</strong> lhe comprar belos vestidos, batia-lhe e fazia-a trabalhar. A pequena tinha <strong>de</strong>z<br />
anos. Ia à fonte, acartava água, lavava a r<strong>ou</strong>pa, enquanto as <strong>ou</strong>tras… enfim! Ela tinha<br />
as suas próprias filhas, que eram bem tratadas.<br />
Então, um dia a madrasta disse: «Bem, <strong>de</strong> castigo irás encher o cesto à fonte e, se<br />
não o tr<strong>ou</strong>xeres, apanhas».<br />
A mocinha peg<strong>ou</strong> no cesto e lev<strong>ou</strong>-o à fonte e meteu-o sob o fio <strong>de</strong> água,<br />
esperando que enchesse. E chorava, chorava! Então chega essa velhota, essa santa,<br />
que diz: «Porque choras?»<br />
Ela respon<strong>de</strong>: «A minha madrasta mand<strong>ou</strong>-me encher este cesto, mas ele não se<br />
enche».<br />
A <strong>ou</strong>tra respon<strong>de</strong>: «É claro que o cesto não po<strong>de</strong> encher, dado que tem buracos.<br />
Bem, penteia-me e arranja-me o cabelo, tira-me o que tenho na cabeça; tenho mesmo<br />
a impressão <strong>de</strong> ter piolhos. Aceitas pentear-me?»
«Sim!» Ela pente<strong>ou</strong>-a e fez-lhe tranças; a <strong>ou</strong>tra disse-lhe: «Toma o cesto e enche-o.<br />
E quando subires à estrada e <strong>ou</strong>vires cantar o galo, toca-te na testa».<br />
A mocinha obe<strong>de</strong>ceu e quando subia para a estrada o galo cant<strong>ou</strong>, ela toc<strong>ou</strong>-se na<br />
testa e saiu-lhe uma estrela <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro. Quando cheg<strong>ou</strong> a casa da madrasta, as <strong>ou</strong>tras<br />
estavam estupefactas. O cesto cheio e a estrela <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro! A madrasta pergunt<strong>ou</strong>:<br />
«Como fizeste?» E a irmã: «Eu também quero ir encher o cesto! Mãe, <strong>de</strong>ixa-me ir<br />
encher o cesto, estás a ver, ela tem uma estrela <strong>de</strong> <strong>ou</strong>ro e assim eu também terei uma».<br />
Desceu e pôs-se à espera que o cesto se enchesse, mas o cesto não se enchia. A<br />
mulher veio <strong>de</strong> novo e pergunt<strong>ou</strong>: «O que esperas?»<br />
Ela respon<strong>de</strong>u: «Que o cesto encha».<br />
«Pois bem, penteia-me e arranja-me o cabelo, limpa tudo o que tenho na cabeça e o<br />
teu cesto há-<strong>de</strong> encher-se».<br />
Ela respon<strong>de</strong>u: «Pois claro. Ia mesmo tocar na sua cabeça suja! Nem pensar, você<br />
mete-me nojo!»<br />
«Ai sim? Pois bem, pega no teu cesto e vai-te. E quando subires ali adiante,<br />
<strong>ou</strong>virás zurrar um burro e <strong>de</strong>ves tocar na orelha, verás como ficarás mudada».<br />
A mocinha peg<strong>ou</strong> no cesto vazio, <strong>ou</strong>viu zurrar o burro e disse: «Ela disse-me para<br />
tocar na orelha». Toc<strong>ou</strong> na orelha e saíram-lhe duas orelhas <strong>de</strong> burro! Cheg<strong>ou</strong> a casa<br />
da mãe a chorar: «A mim calharam-me duas orelhas <strong>de</strong> burro. A Borralhenta foi<br />
favorecida, mas eu… Mulher malvada, que não me favoreceu!»<br />
De modo que a <strong>Borralheira</strong> torn<strong>ou</strong> a apanhar. A filha da madrasta estava como<br />
uma burra, cortavam-lhe as orelhas vezes sem conta mas na manhã seguinte cresciam<br />
<strong>de</strong> novo, não <strong>de</strong>sapareciam».<br />
Então a madrasta disse: «Bom, amanhã vais lavar a r<strong>ou</strong>pa». Deu-lhe um cabaz<br />
cheio <strong>de</strong> todo o tipo <strong>de</strong> r<strong>ou</strong>pa e lençóis e acrescent<strong>ou</strong>: «Amanhã vais trazer isto tudo<br />
seco… lavado, seco e passado, senão…».<br />
E ela <strong>de</strong>sceu à fonte, tentava lavar e arranjar, lavava e chorava. Não tinha forças<br />
para lavar toda esta r<strong>ou</strong>pa! E vê chegar uma vaca que lhe diz: «Porque choras?»<br />
«Não consigo lavar toda esta r<strong>ou</strong>pa, lavá-la e secá-la e passá-la, não s<strong>ou</strong> capaz!»<br />
«Não te preocupes, v<strong>ou</strong>-te ajudar». E a vaca começ<strong>ou</strong> a lamber toda a r<strong>ou</strong>pa,<br />
dizendo: «Tu espalhas a r<strong>ou</strong>pa e eu lambo-a. Vais ver como fica limpa e passada. Vais<br />
levá-la impecável». E acrescent<strong>ou</strong>: «Na quinta-feira vão-me matar; na minha pança<br />
encontrarás três maçãs. A primeira comes, a segunda pões na janela e a terceira na<br />
mala, na mala».
Na quinta-feira a madrasta mat<strong>ou</strong>-a e disse: «Ah! Vai ser preciso lavar as tripas!»<br />
A irmã disse: «Também v<strong>ou</strong> <strong>de</strong>scer ajudá-la a lavar as tripas».<br />
Desceram as duas à fonte para lavar as tripas. <strong>Borralheira</strong> esvazi<strong>ou</strong> a pança e havia<br />
três maçãs, a <strong>ou</strong>tra fez o mesmo mas só recebeu <strong>por</strong>carias. Foi-se embora zangada,<br />
partiu, <strong>de</strong>ix<strong>ou</strong> <strong>Borralheira</strong> sozinha e subiu para casa da mãe a chorar e dizendo:<br />
«<strong>Borralheira</strong> teve três maçãs e eu apenas <strong>por</strong>carias!»<br />
Bom! Mais castigo!<br />
Ela fez o que lhe dissera a vaca. Pôs uma na janela, <strong>ou</strong>tra na mala e comeu a<br />
terceira. No sábado do final do mês ia haver baile. O príncipe tinha convidado toda a<br />
juventu<strong>de</strong> a ir dançar e aquelas também lá foram, a irmã da <strong>Borralheira</strong> toda bem<br />
posta mas com as orelhas <strong>de</strong> burro. Puseram-lhe um chapéu para as orelhas! A<br />
<strong>Borralheira</strong> fez todo o trabalho, prepar<strong>ou</strong> a irmã. Esta partiu. E a <strong>Borralheira</strong> fic<strong>ou</strong><br />
sozinha, chorava e dizia: «Eu fico com todo o trabalho, nunca tenho alegria, nunca<br />
v<strong>ou</strong> a lado nenhum!» De modo que cheg<strong>ou</strong> uma fada, que lhe disse: «Não chores!<br />
Queres ir ao baile? Pois bem, v<strong>ou</strong> dar-te, v<strong>ou</strong> enviar-te…»<br />
Vestiu-a e tudo e a <strong>Borralheira</strong> pô<strong>de</strong> assim ir ao baile. A fada tinha-lhe dito: «Mas<br />
cuidado! Volta cedo! Basta que chegues antes da meia-noite».<br />
A ela ninguém reconheceu. Danç<strong>ou</strong> sempre com o príncipe. Olhavam-na e diziam:<br />
«Mas quem é esta bela senhora, quem po<strong>de</strong> ser esta belda<strong>de</strong>?» Todas ciumentas!<br />
Quando <strong>por</strong> fim ela viu as horas, disse: «Santa Virgem!» Correu, correndo per<strong>de</strong>u<br />
um sapato, cheg<strong>ou</strong>, pôs o <strong>ou</strong>tro e a maçã na mala. Pôs-se no seu lugar, após o que elas<br />
chegaram. A irmã disse: «Bem, se tu visses, mãe! Cheg<strong>ou</strong> uma bela jovem melhor<br />
vestida que todas as restantes. Não sei don<strong>de</strong> ela saiu, tão bem vestida! O príncipe só<br />
dançava com ela e com nenhuma <strong>ou</strong>tra, só com ela!»<br />
De maneira que <strong>de</strong>pois, o príncipe encontr<strong>ou</strong> o sapato na escada, apanh<strong>ou</strong>-o,<br />
lembr<strong>ou</strong>-se da jovem e disse: «Aquela a quem este sapato servir, é ela; faço <strong>de</strong>la<br />
minha mulher!»<br />
Então ele dá a volta a todas as casas experimentando o sapato. Mas este não servia<br />
a ninguém, só à <strong>Borralheira</strong>. Então a mãe preparava a filha nas suas mais belas<br />
r<strong>ou</strong>pas, mas ele disse: «Não, <strong>de</strong>ixem-me dá-lo a experimentar àquela que está aqui, a<br />
tal <strong>Borralheira</strong>».<br />
Ela respon<strong>de</strong>u: «Ó! Acha que o sapato lhe vai servir a ela, a uma <strong>Borralheira</strong>, você<br />
não vê como ela é?»
Ele pôs-lhe o sapato e servia. Ele disse: «Sábado venho buscá-la e quero que ela<br />
esteja pronta».<br />
A madrasta, em vez <strong>de</strong> preparar a <strong>Borralheira</strong>, prepar<strong>ou</strong> a própria filha. Prepar<strong>ou</strong>-a<br />
sobre o divã, enquanto esperavam o príncipe, e fech<strong>ou</strong> a <strong>Borralheira</strong> num tonel. De<br />
modo que quando o príncipe cheg<strong>ou</strong>, disse: «On<strong>de</strong> está a minha prometida?»<br />
Ela respon<strong>de</strong>u: «Não a vê?»<br />
«Não, não é esta, <strong>por</strong>que ela tinha uma estrela na testa e esta não tem nenhuma!»<br />
Ela ripost<strong>ou</strong>: «Mas não, está enganado, é ela!»<br />
«Não!»<br />
A maçã posta na janela tinha-se tornado um galo, que disse: «<strong>Borralheira</strong> está<br />
fechada num tonel!»<br />
«Shô, shô!» (a enxotar o galo).<br />
O príncipe disse: «O que é? Você fech<strong>ou</strong>-a no tonel? O quê? A <strong>Borralheira</strong> está<br />
fechada no tonel? An<strong>de</strong>, dê-me as chaves antes que eu a man<strong>de</strong> para a prisão».<br />
Ele <strong>de</strong>sceu a procurá-la e encontr<strong>ou</strong>-a fechada no tonel. Ela saiu com o vestido que<br />
trazia na noite da festa e faltava o sapato. Foi buscá-lo à mala e calç<strong>ou</strong>-o.<br />
Ele <strong>de</strong>spos<strong>ou</strong>-a e lev<strong>ou</strong>-a consigo e pergunt<strong>ou</strong>-lhe: «Queres que eu a con<strong>de</strong>ne?»<br />
Ela respon<strong>de</strong>u: «Não, eu perdoo-lhes; tanto pior para elas se agiram mal. Quero que<br />
venham comigo!» Apesar <strong>de</strong> tudo, ela gostava da irmã. E pronto: lev<strong>ou</strong>-a consigo e<br />
casaram… Eis a <strong>Borralheira</strong> corsa!<br />
Texto recolhido em Agosto <strong>de</strong> 1981 na Córsega. 1<br />
1 Traduzido do francês, com ligeiras adaptações estilísticas e <strong>de</strong> pontuação, a partir <strong>de</strong> Mathée<br />
Giacomo-Marsellesi, “La Cendrillon corse et les pièges <strong>de</strong> l'oralité”. Cahiers <strong>de</strong> Littérature Orale 25<br />
(1989): 123–127