RESENHA DE “O BAILE DO JUDEU” 1 (Inglês de Sousa) Raphael ...
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<strong>RESENHA</strong> <strong>DE</strong> <strong>“O</strong> <strong>BAILE</strong> <strong>DO</strong> JU<strong>DE</strong>U” 1 (<strong>Inglês</strong> <strong>de</strong> <strong>Sousa</strong>)<br />
<strong>Raphael</strong> Camara 2<br />
Publicada em 1893, a obra Contos Amazônicos, do escritor paraense <strong>Inglês</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Sousa</strong>, possui aspectos regionalistas, apresentando o modo <strong>de</strong> vida e o imaginário do<br />
povo amazonense. Geralmente colocada em segundo plano pela crítica literária, ela é<br />
constituída <strong>de</strong> diversas narrativas que são contadas como se fossem “causos”<br />
partilhados entre seus narradores, incorporando mitos e lendas amazônicas ao campo<br />
literário, mesclados a fatos históricos e a uma ampla <strong>de</strong>scrição física e social da região.<br />
<strong>“O</strong> Baile do Ju<strong>de</strong>u”, sétimo conto da obra, é um amálgama <strong>de</strong> diferentes<br />
superstições e crendices populares. Narrado em terceira pessoa, trata <strong>de</strong> um baile,<br />
oferecido pelo personagem <strong>de</strong>scrito apenas como “o Ju<strong>de</strong>u” em sua casa. Ele convidou<br />
as famílias mais importantes das redon<strong>de</strong>zas, com exceção do juiz <strong>de</strong> direito, “por<br />
medo <strong>de</strong> se meter com a justiça” (SOUSA, 2004, p. 103), e nem qualquer pessoa que<br />
estivesse envolvida com o sacerdócio cristão, pela certeza <strong>de</strong> que estes “o mandariam<br />
pentear macacos” (IBID., p. 103). Nota-se que o narrador, apesar <strong>de</strong> onisciente, adota<br />
um tom crítico em relação aos fatos narrados, conduzindo o leitor a <strong>de</strong>terminadas<br />
conjecturas:<br />
Era <strong>de</strong> supor que ninguém acudisse ao convite do homem que havia<br />
pregado as bentas mãos e os pés <strong>de</strong> Nosso Senhor Jesus-Cristo numa<br />
cruz, mas, às oito horas da noite daquele famoso dia, a casa do Ju<strong>de</strong>u,<br />
que fica na rua da frente, a umas <strong>de</strong>z braças, quando muito, da<br />
barranca do rio, já não podia conter o povo que lhe entrava pela porta<br />
a<strong>de</strong>ntro. (IBID., p. 103. Grifo meu)<br />
Mesmo as pessoas mais humil<strong>de</strong>s, que não haviam sido convidadas,<br />
amontoavam-se na frente da casa, movidas pela curiosida<strong>de</strong>. Já os convidados eram<br />
atraídos pela fartura oferecida pelo Ju<strong>de</strong>u, a<strong>de</strong>ntrando alegremente no “covil” <strong>de</strong> um<br />
inimigo da Igreja. Além disso, os três músicos que acompanhavam as missas da Igreja<br />
aos domingos é que estavam animando o baile, utilizando os mesmos instrumentos<br />
com que tocavam nas cerimônias religiosas. Aceitaram o convite simplesmente pelo<br />
1<br />
SOUSA, <strong>Inglês</strong> <strong>de</strong>. Contos Amazônicos. Edição preparada por Sylvia Perlingeiro Paixão – 3ª edição. São<br />
Paulo: Martins Fontes, 2004.<br />
2<br />
Graduando do Curso <strong>de</strong> Letras da UERJ, bolsista voluntário <strong>de</strong> Iniciação Científica e membro do Grupo<br />
<strong>de</strong> Pesquisa <strong>“O</strong> Medo como Prazer Estético”, sob a orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ).
“amor ao dinheiro” (IBID., p. 105), praticando, aos olhos do narrador, uma gran<strong>de</strong><br />
heresia.<br />
Percebe-se que o narrador reprova a atitu<strong>de</strong> hipócrita do povo, não só por ter<br />
aceitado o convite do Ju<strong>de</strong>u, mas também pela gulodice <strong>de</strong>smedida, pela ostentação e<br />
por buscar o prazer gratuito, em <strong>de</strong>trimento das próprias convicções religiosas. Do<br />
ponto <strong>de</strong> vista do narrador, a figura do Ju<strong>de</strong>u é agourenta e medonha, ligada ao mal<br />
absoluto, porque sua etnia foi responsável pela perversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crucificar Jesus. Essa<br />
crença, aliás, é recorrente ao longo da história oci<strong>de</strong>ntal, e sobrevive, em certas<br />
regiões, até hoje. Todos aqueles que acabam por compactuar com ele seriam<br />
con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes em relação a esse ato diabólico, <strong>de</strong>vendo, portanto, ser advertidos –<br />
ou punidos.<br />
Essa reprovação do narrador, em relação às atitu<strong>de</strong>s dos convidados, prenuncia<br />
que algo sinistro irá ocorrer. E ele revela, <strong>de</strong> imediato, o severo castigo recebido por<br />
dois músicos, um ano após a festivida<strong>de</strong>: um morreu afogado e outro foi preso por<br />
quatro meses. E é enfático ao citar o <strong>de</strong>stino do terceiro músico: “o Penaforte que se<br />
acautele!” (IBID., p. 105). O anúncio das punições acaba por criar expectativa no leitor,<br />
instigando-o a avançar em sua leitura para <strong>de</strong>scobrir quais teriam sido as outras<br />
consequências nefastas do baile.<br />
Entre os convidados, <strong>de</strong>staca-se D. Mariquinhas, a “rainha do baile” (IBID., p.<br />
106): mulher alta, gorda e encantadora, rosada como uma portuguesa, possuidora <strong>de</strong><br />
olhos pretos e <strong>de</strong> um sorriso faceiro, que instigava e seduzia todos os presentes; fora<br />
ao baile adornada por todo tipo <strong>de</strong> jóias e usando um vestido digno da nobreza. Ela<br />
tinha pouco tempo <strong>de</strong> casada com o coronel Bento <strong>de</strong> Arruda, homem rico, viúvo e<br />
sem filhos – casamento que havia <strong>de</strong>ixado furioso Lulu Valente, rapaz um tanto<br />
brincalhão, que sempre cobiçara D. Mariquinhas. Ao que parece, o jovem preten<strong>de</strong>nte<br />
não fora correspondido porque era pobre, filho <strong>de</strong> uma simples professora.<br />
A construção narrativa do espaço físico é também digna <strong>de</strong> nota. Como nos<br />
<strong>de</strong>mais contos do livro, a natureza amazônica cria uma atmosfera insólita e a<strong>de</strong>quada<br />
para a irrupção do mal, pois era um ano <strong>de</strong> cheias, e as águas do rio haviam engolido a<br />
praia e subiam a ribanceira, inundando a rua e ameaçando “com um abismo <strong>de</strong> vinte<br />
pés <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> os incautos transeuntes que se aproximavam do barranco” (IBID.<br />
p. 104), próximo à casa do Ju<strong>de</strong>u.
No auge da festa, às onze horas da noite, surge<br />
(...) um sujeito baixo, feio, <strong>de</strong> casacão comprido e chapéu <strong>de</strong>sabado,<br />
que não <strong>de</strong>ixava ver o rosto, escondido também pela gola levantada do<br />
casaco. Foi direto a D. Mariquinhas, <strong>de</strong>u-lhe a mão, tirando-a para uma<br />
contradança que ia começar. (IBID., p. 107)<br />
O sujeito maltrapilho acaba se tornando a atração do baile, causando risos e<br />
exclamações gerais. Os convidados achavam que tudo não passava <strong>de</strong> uma troça,<br />
tamanho o atrevimento do grotesco <strong>de</strong>sconhecido ao tirar uma senhora <strong>de</strong> classe para<br />
dançar. A própria Dona Mariquinhas exibia um largo sorriso quando a música começou<br />
e até mesmo seu marido achava graça da situação, <strong>de</strong>sconfiando que talvez o estranho<br />
indivíduo fosse Lulu Valente, “um bom moço, apesar <strong>de</strong> português” (IBID. p. 108).<br />
O sujeito conduzia uma dança bizarra, com passos <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nados, saltos e<br />
trejeitos sinistros, além <strong>de</strong> “guinchos estúrdios” (IBID., p. 108) enquanto segurava a<br />
dama “nuns quase-abraços lascivos” (IBID., p. 107), <strong>de</strong>monstrando muito entusiasmo.<br />
No meio da dança, a própria dona Mariquinhas começou a <strong>de</strong>sfalecer <strong>de</strong> cansaço,<br />
parando imediatamente <strong>de</strong> rir.<br />
Os músicos ficaram muito alvoroçados com o caso insólito e com os aplausos<br />
dos convidados, fazendo uma balbúrdia geral com o som estri<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>sconexo <strong>de</strong><br />
seus instrumentos, <strong>de</strong>stroçando os ouvidos e superexcitando os nervos <strong>de</strong> todos, que<br />
já pareciam estar sob uma espécie <strong>de</strong> encanto ou possessão. Novos espectadores<br />
chegavam e o povo se acotovelava para assistir o acontecimento, rindo cada vez mais<br />
e soltando ruidosas exclamações, enquanto dona Mariquinhas parecia já não<br />
experimentar qualquer prazer naquela dança <strong>de</strong>senfreada, e soltava gemidos surdos,<br />
abafados pelos “grunhidos sinistramente burlescos” (IBID. p. 109), dados pelo sujeito<br />
<strong>de</strong> chapéu <strong>de</strong>sabado.<br />
Foi quando os músicos resolveram, após tocar seis vezes uma quadrilha, lançar<br />
mão da melodia varsoviana, que recebeu aplausos gerais. Os pares que ainda<br />
dançavam se retiraram do centro do salão para melhor apreciar o <strong>de</strong>sconhecido, que<br />
estreitou a dama em seu peito côncavo e rompeu numa valsa vertiginosa, enquanto<br />
que a moça<br />
(...) não sentiu mais o soalho sob os pés, milhares <strong>de</strong> luzes ofuscavamlhe<br />
a vista, tudo rodava em torno <strong>de</strong>la; o seu rosto exprimia uma
angústia suprema, em que alguns maliciosos sonharam ver um êxtase<br />
<strong>de</strong> amor. (IBID. p. 110)<br />
É possível supor que Dona Mariquinhas sentisse um prazer sexual com esta<br />
dança, pois há uma sugestão <strong>de</strong> que a angústia sentida pela dama na verda<strong>de</strong> fosse um<br />
êxtase causado pelo ato carnal. Afinal, o sujeito parece agir <strong>de</strong> modo libidinoso<br />
durante sua performance, o que reforça essa conjectura. Vale ressaltar também que o<br />
(possível) ato não possui qualquer tom romântico ou amoroso, mas sim aspectos <strong>de</strong><br />
uma cópula animalesca, sugerida pelos gemidos dados pela moça e pelos grunhidos<br />
sinistros do sujeito.<br />
No meio da assombrosa valsa, o <strong>de</strong>sconhecido acabou <strong>de</strong>ixando seu chapéu<br />
cair, e o coronel percebeu, com horror, que o sujeito tinha a cabeça furada, revelando<br />
ser um Boto, “ou o <strong>de</strong>mônio por ele” (IBID. p. 110), que possuía uma estranha e vaga<br />
semelhança com Lulu Valente. O monstro acaba arrastando Dona Mariquinhas pela<br />
porta afora, afastado pelo sinal da cruz feito por Bento <strong>de</strong> Arruda, e segue valsando<br />
até a ribanceira do rio, on<strong>de</strong> se atira com a <strong>de</strong>sgraçada moça, mergulhando com ela<br />
nas águas.<br />
“Des<strong>de</strong> essa vez ninguém quis voltar aos bailes do ju<strong>de</strong>u” (IBID., p. 110), diz o<br />
narrador. Essa foi a lição aprendida pelo povo que compareceu ao baile, para que<br />
nunca mais cometessem o erro <strong>de</strong> compactuarem com um servo do mal, caindo em<br />
<strong>de</strong>sregramentos ou em atos imorais. Mas, <strong>de</strong>ntre todos, Dona Mariquinhas foi a que<br />
recebeu a punição mais severa. Pagou com a morte por <strong>de</strong>spertar a luxúria e a cobiça<br />
dos presentes, por ostentar sua riqueza e por negar o amor <strong>de</strong> Lulu Valente em nome<br />
<strong>de</strong> um status social. Nota-se, portanto, que a crítica social está presente no conto,<br />
embora ele possua os elementos sobrenaturais como cerne.<br />
A figura mítica do boto sempre esteve, no imaginário popular, ligado à<br />
sensualida<strong>de</strong> e aos prazeres carnais. Capaz <strong>de</strong> se transformar em homem, ele surge <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ntro das águas, geralmente em noites <strong>de</strong> lua cheia, com o propósito <strong>de</strong> seduzir as<br />
jovens, buscando copular com elas. Como tem um furo na cabeça — marca que o<br />
torna reconhecido —, o boto anda sempre <strong>de</strong> chapéu, o que protege a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>moníaca. Sua aparição no conto é assaz interessante, pois se caracteriza pela<br />
aparência grotesca pela estranha performance, que inicialmente causam risos nos<br />
convidados. Conforme a dança vai se tornando mais frenética, nota-se que todos os
presentes entram numa espécie <strong>de</strong> feitiço, enquanto Dona Mariquinhas fica a mercê<br />
<strong>de</strong> seus <strong>de</strong>sejos e propósitos. Somente no final, quando sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é revelada, a<br />
comicida<strong>de</strong> da cena converte-se em horror.<br />
O que realmente surpreen<strong>de</strong> é o fato <strong>de</strong> que Lulu Valente, um pobre rapaz<br />
dado a brinca<strong>de</strong>iras, <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong> portuguesa, seja relacionado ao monstro.<br />
Vivendo entre a gente comum, ele é um ser diferenciado por pertencer a uma minoria<br />
vítima <strong>de</strong> preconceito naquela socieda<strong>de</strong>. Como monstro, ele cumpre seu papel <strong>de</strong><br />
advertir e castigar todos aqueles que transgri<strong>de</strong>m os valores éticos e morais,<br />
arrebatando para si o fruto negado: a moça mais formosa do baile.<br />
Sob a perspectiva da diferença, o boto / Lulu Valente está diretamente ligado à<br />
figura do Ju<strong>de</strong>u, pois ambos são corpos estranhos, violando a igualda<strong>de</strong> estética e<br />
social predominantes naquela região. Como os dois são figuras malignas, relacionadas<br />
ao <strong>de</strong>mônio e a tudo que é profano ou pecaminoso, eles completam-se mutuamente,<br />
já que partilham a aversão pelo catolicismo. O baile, portanto, é o momento perfeito<br />
para o surgimento do boto, não só porque não estaria presente nenhuma autorida<strong>de</strong><br />
religiosa, mas também porque a gulodice e os exageros também propiciaram a<br />
manifestação do mal.