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Ana Lúcia Merege | Ars Nova<br />
1000 Universos<br />
centro histórico. Esperou anunciarem a partida e <strong>de</strong>sceu<br />
precipitadamente, com o pretexto <strong>de</strong> ter esquecido uma bolsa no<br />
restaurante. Ainda ouviu a voz <strong>de</strong> Marcello chamando-o <strong>de</strong> volta<br />
enquanto atravessava correndo a Porta <strong>de</strong> San Giovanni. Sem tomar<br />
fôlego, percorreu as ruas até o Palazzo, on<strong>de</strong>, para sua surpresa, a<br />
corte já dançava ao som das canções <strong>de</strong> Landini.<br />
- Renzo! – Memmi correu ao seu encontro, o rosto lívido. – O<br />
que faz aqui? A Lua está quase...<br />
- O jovem é benvindo! – trovejou o po<strong>de</strong>stà. Sua expressão,<br />
antes cheia <strong>de</strong> bonomia, estava contraída pela ira, acentuando a<br />
pali<strong>de</strong>z fantasmagórica das faces.<br />
- Ele veio por sua vonta<strong>de</strong> – afirmou. – Agora, está a meu<br />
serviço... assim como você, Mestre Lippo.<br />
Contrafeito, o pintor se afastou. Renzo subiu ao estrado e<br />
pegou o saltério, pondo-se a acompanhar o grupo <strong>de</strong> adolescentes.<br />
E, como na noite anterior, a música se apossou <strong>de</strong>le. Ou mais<br />
que isso: o possuiu. A cada nota do saltério, a cada sílaba entoada, a<br />
sensação era a <strong>de</strong> mergulhar mais e mais numa espécie <strong>de</strong> vácuo,<br />
um <strong>de</strong>svão perdido no tempo, on<strong>de</strong> a matéria se transmutava em<br />
som e luz. Maravilhado, ele se voltou para os convivas e constatou<br />
que também se transfiguravam, alguns se tornando indistintos<br />
como à chegada, outros conservando <strong>de</strong>finidas as formas que,<br />
contudo, perdiam a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>. Assim estavam os músicos, bem<br />
como Memmi; assim estava o po<strong>de</strong>stà, cujo manto brilhava envolto<br />
em fosforescência. Seu corpo era tão transparente que se podia ver<br />
através – e foi <strong>de</strong>sse jeito, contemplando seu novo protetor, que<br />
Renzo viu um homem surgir à porta da sala.<br />
- O que está acontecendo? – bradou, avançando por entre os<br />
dançarinos. Renzo precisou piscar para reconhecê-lo. Era Marcello,<br />
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