16.04.2013 Views

Empoderamento e direitos no combate à pobreza - ActionAid Brasil

Empoderamento e direitos no combate à pobreza - ActionAid Brasil

Empoderamento e direitos no combate à pobreza - ActionAid Brasil

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>Empoderamento</strong><br />

e <strong>direitos</strong> <strong>no</strong><br />

<strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong><br />

O R G A N I Z A D O R E S<br />

Jorge O. Roma<strong>no</strong><br />

e Marta Antunes<br />

DEZEMBRO 2002


XXXX <strong>Empoderamento</strong> e <strong>direitos</strong> <strong>no</strong> <strong>combate</strong><br />

<strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>. — Rio de Janeiro : <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong><br />

116p. 25cm<br />

ISBN 85-XXXXX-XX-X<br />

1. Desenvolvimento, 2. Poder, 3. Pobreza<br />

I. Jorge O. Roma<strong>no</strong> – 1950, Marta Antunes – 1977<br />

<strong>Empoderamento</strong> e <strong>direitos</strong><br />

<strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong><br />

COPYRIGHT (C) 2002 BY ACTIONAID BRASIL<br />

<strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong><br />

Rua Corcovado, 252 – Jardim Botânico<br />

CEP 22460-050 Rio de Janeiro – RJ<br />

Tel.: +(21) 2540-5707 – Fax: +(21) 2540-5841<br />

Email: actionaid@actionaid.org.br<br />

Internet: www.actionaid.org.br<br />

COORDENAÇÃO EDITORIAL<br />

<strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong><br />

REVISÃO<br />

Clóvis Moraes<br />

TRADUÇÃO<br />

Glauce Arzua<br />

PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO<br />

Mais Programação Visual<br />

CAPA<br />

Arte sobre fotos de arquivo da <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong><br />

FOTOLITO<br />

Quadratin Artes Gráficas<br />

IMPRESSÃO<br />

Editora Lidador<br />

TIRAGEM<br />

500 exemplares<br />

CDD XXX.XXX<br />

O conteúdo desta publicação pode ser reproduzido, desde que citada a fonte.


Sumário<br />

Introdução ao debate sobre empoderamento<br />

e <strong>direitos</strong> <strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> ............................................................................... 5<br />

Jorge O. Roma<strong>no</strong> e Marta Antunes<br />

<strong>Empoderamento</strong>: recuperando a questão<br />

do poder <strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> ............................................................................... 9<br />

Jorge O. Roma<strong>no</strong><br />

Algumas considerações sobre estratégias<br />

de empoderamento e de <strong>direitos</strong> ............................................................................ 21<br />

Cecília Iorio<br />

Metodologias e ferramentas para implementar<br />

estratégias de empoderamento ............................................................................... 45<br />

Alberto Enríquez Villacorta e Marcos Rodríguez<br />

<strong>Empoderamento</strong>, teorias de desenvolvimento<br />

e desenvolvimento local na América Latina ....................................................... 67<br />

Enrique Gallichio<br />

O caminho do empoderamento: articulando as <strong>no</strong>ções<br />

de desenvolvimento, <strong>pobreza</strong> e empoderamento .......................................... 91<br />

Marta Antunes


Introdução ao debate<br />

sobre empoderamento<br />

e <strong>direitos</strong> <strong>no</strong> <strong>combate</strong><br />

<strong>à</strong> <strong>pobreza</strong><br />

5<br />

Jorge O. Roma<strong>no</strong> 1<br />

e Marta Antunes 2<br />

As abordagens de empoderamento e de <strong>direitos</strong> estão presentes nas estratégias<br />

e práticas de campo das ONGs que promovem um desenvolvimento alternativo, visando <strong>à</strong><br />

superação da <strong>pobreza</strong>.<br />

A <strong>no</strong>ção de empoderamento começa a ser utilizada na década dos 70, com os movimentos sociais<br />

e, posteriormente, passa a permear as práticas das ONGs. Nos últimos a<strong>no</strong>s, o conceito e a<br />

abordagem foram gradualmente apropriados pelas agências de cooperação e organizações financeiras<br />

multilaterais (como o Banco Mundial). Nesta apropriação o conceito e a abordagem sofreram<br />

um processo de despolitização – ou pasteurização – ao ser enfatizada sua dimensão instrumental<br />

e metodológica. Assim, junto com conceitos como capital social e capacidades, o empoderamento<br />

passa a ser um termo em disputa <strong>no</strong> campo ideológico de desenvolvimento.<br />

Por sua vez, <strong>no</strong>s últimos a<strong>no</strong>s, percebe-se que um número crescente de instituições da Sociedade<br />

Civil introduz em sua estratégia a abordagem baseada em <strong>direitos</strong>, a qual tem sua origem na<br />

luta pelo reconhecimento e promoção do conjunto de <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s (civis, políticos, econômicos,<br />

culturais, etc.). As próprias agências de cooperação e organizações financeiras multilaterais<br />

vêm progressivamente adotando esta <strong>no</strong>va conceitualização na formulação de suas<br />

políticas e estratégias. Dessa forma a <strong>no</strong>ção de <strong>direitos</strong> e a abordagem baseada em <strong>direitos</strong><br />

passam também a ser motivo de debate e disputa <strong>no</strong> campo de desenvolvimento, tal como ocorre<br />

<strong>no</strong> caso de empoderamento.<br />

No <strong>Brasil</strong> os fundamentos da abordagem baseada em <strong>direitos</strong> estão muito mais presentes <strong>no</strong>s<br />

debates sobre desenvolvimento e <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>, tanto <strong>no</strong> espaço governamental de políticas<br />

públicas, como entre os movimentos sociais, ONGs e o mundo acadêmico, devido <strong>à</strong> importância<br />

que têm assumido as análises de luta pela cidadania e de construção de <strong>direitos</strong> sociais.<br />

Por sua vez, as discussões que têm como enfoque o empoderamento são incipientes, estando<br />

associadas, principalmente, <strong>à</strong>s propostas de agências de cooperação. Entre os movimentos sociais,<br />

ONGs e a academia especializada nestes temas, além de desconhecimento existe, em geral, uma<br />

ampla margem de desconfiança, por conta do uso instrumental da abordagem feito por entidades<br />

como o Banco Mundial.<br />

1 Antopólogo, <strong>ActionAid</strong>/CPDA-UFRRJ, <strong>Brasil</strong>.<br />

2 Eco<strong>no</strong>mista, CPDA-UFRRJ, <strong>Brasil</strong>.


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Dentro do mundo das ONGs, a <strong>ActionAid</strong> é uma das que têm adotado uma estratégia centrada<br />

<strong>no</strong> diálogo entre as abordagens de <strong>direitos</strong> e de empoderamento. 3 Atuando <strong>no</strong> país desde 1999,<br />

em seu trabalho de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> a <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong> tem colocado a <strong>no</strong>ção de empoderamento<br />

como elemento central de sua estratégia. Esta tem sido implementada através de projetos<br />

de desenvolvimento local, de campanhas nacionais e do trabalho de advocacy <strong>no</strong>s níveis nacional,<br />

regional e local.<br />

Partindo do reconhecimento de que o <strong>Brasil</strong> é um dos países de maior desigualdade <strong>no</strong> mundo e<br />

que essa é a principal causa da <strong>pobreza</strong> e da exclusão social, a <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong> considera que para<br />

superar a <strong>pobreza</strong> se faz necessário promover a construção de um projeto crítico e alternativo de<br />

desenvolvimento fundado <strong>no</strong> empoderamento dos pobres e de seus representantes e aliados.<br />

O empoderamento dos pobres e das comunidades viria a ocorrer pela conquista plena dos <strong>direitos</strong><br />

de cidadania. Ou seja, da capacidade de um ator, individual ou coletivo, usar seus recursos econômicos,<br />

sociais, políticos e culturais para atuar com responsabilidade <strong>no</strong> espaço público na defesa<br />

de seus <strong>direitos</strong>, influenciando as ações do Estado na distribuição dos serviços e recursos públicos.<br />

Ao mesmo tempo, a <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong> considera que os movimentos sociais e as organizações<br />

populares são os principais agentes de transformação do Estado num instrumento para a erradicação<br />

da <strong>pobreza</strong> e da desigualdade <strong>no</strong> país. As ONGs e suas redes dariam suporte a estes atores. 4<br />

Atualmente, os projetos de desenvolvimento local promovidos pela <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong>, em parceria<br />

com ONGs e movimentos sociais, são levados a cabo em diversas microrregiões, que incluem<br />

desde favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo até as áreas rurais pobres do Nordeste. Ao mesmo<br />

tempo, a <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong> impulsiona e participa de três campanhas nacionais: Campanha<br />

Nacional pelo Direito <strong>à</strong> Educação, Campanha por um <strong>Brasil</strong> Livre de Transgênicos e Campanha de<br />

Comércio e Segurança Alimentar.<br />

Nos últimos a<strong>no</strong>s a <strong>ActionAid</strong> tem realizado um esforço de propiciar espaços de reflexão e debate<br />

que permitam o esclarecimento da abordagem de empoderamento e de <strong>direitos</strong>, que fundam sua<br />

estratégia, visando a ressaltar as possíveis sinergias entre as mesmas.<br />

Um dos espaços criados para essa reflexão e debate foi o seminário internacional Os Enfoques de<br />

<strong>Empoderamento</strong> e Direitos <strong>no</strong> Combate <strong>à</strong> Pobreza, realizado <strong>no</strong> Rio de Janeiro, <strong>no</strong>s dias 4 a 6 de<br />

setembro de 2002, e que congregou mais de 30 profissionais da entidade, assim como especialistas<br />

da América Latina, Europa, Ásia e África. 5<br />

O seminário, privilegiando a reflexão sobre empoderamento e sua prática na América Latina,<br />

procurou estabelecer pontos de divergência e convergência entre as abordagens de empoderamento<br />

e <strong>direitos</strong>; identificar nas experiências de trabalho as práticas e metodologias adotadas,<br />

ressaltando seus limites e potencialidades; e, finalmente, refletir acerca das implicações práticas e<br />

políticas de adotar essas abordagens <strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>.<br />

3 A organização, fundada <strong>no</strong> Rei<strong>no</strong> Unido em 1972, tem uma longa tradição de trabalho com desenvolvimento, envolvendo<br />

as populações pobres, movimentos sociais e organizações de base, em mais de 30 países na Ásia, na África e na<br />

América Latina e Caribe.<br />

4 <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong>. Estratégia Nacional, 2001-2003.<br />

5 O seminário e esta publicações foram possíveis de realizar graças ao apoio da <strong>ActionAid</strong> UK.<br />

6


— INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Assim, uma série de questões foi levantada como desafios para o debate entre os participantes:<br />

• O empoderamento praticado pelas ONGs é visto como um meio? Para quê? É um<br />

poder sobre recursos e ideologias que <strong>no</strong>s leva a situações de soma zero? Será<br />

que isso significa que as ONGs estão adotando uma abordagem instrumental?<br />

Ou que estão pensando o empoderamento como um objetivo (fim)? Um poder<br />

para? Um poder com? Um poder de dentro? Resultante de capacidades individuais,<br />

de ser e de se expressar? As ONGs estão adotando uma abordagem de<br />

processo? Em que nível as perspectivas de empoderamento e <strong>direitos</strong> são excludentes<br />

ou se reforçam nas práticas das ONGs?<br />

• Em que medida as práticas das ONGs têm seu foco <strong>no</strong> empoderamento de indivíduos<br />

ou de grupos? As ONGs estão colocando as pessoas ou os grupos <strong>no</strong><br />

centro do processo? São duas formas distintas? São complementares?<br />

• Quem empodera quem? Quais as vantagens e limites do empoderamento por<br />

ONGs, por movimentos sociais, pela atuação conjunta de ONGs e gover<strong>no</strong> e por<br />

agências multilaterais?<br />

• Em que medida estamos conscientes de que empoderamento é um processo<br />

relacional e conflituoso? Na prática, como as estratégias das ONGs estão lidando<br />

com essas relações conflituosas?<br />

• Quais as potencialidades e limites apresentados pelo empoderamento quando<br />

este é adotado como estratégia de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> <strong>no</strong>s campos da política,<br />

informação, cultura institucional, construção de capacidades e participação?<br />

• No seu trabalho, como as ONGs lidam com os limites da abordagem de empoderamento?<br />

O que significa perguntar, como se asseguram a continuidade e o<br />

aprofundamento das conquistas? Esta é uma abordagem de custos elevados?<br />

É possível adotá-la em programas de nível superior, de maior escala e mais complexos?<br />

Que procedimentos de mensuração, monitoramento e avaliação de dificuldades<br />

podem ser utilizados?<br />

• A abordagem de empoderamento é utilizada da mesma forma que a abordagem<br />

baseada em <strong>direitos</strong>? Quais as vantagens e limites de unificar as duas abordagens?<br />

• Em que medida a abordagem baseada em <strong>direitos</strong> lida com a necessidade de<br />

discutir poder e desenvolvimento <strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>? Como isso está sendo<br />

feito pelas ONGs?<br />

• Como, na prática, as ONGs superam os limites da abordagem baseada em <strong>direitos</strong>?<br />

Como lidar com a inadequação permanente da legislação como mecanismo<br />

de controle de poder? Como lidar com o gap existente entre a percepção dos<br />

<strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s básicos e as diferentes percepções de <strong>direitos</strong> <strong>no</strong>s vários<br />

contextos políticos e culturais? Como as ONGs lidam com o fato de a violação<br />

diária de <strong>direitos</strong> ter-se tornado algo tão comum?<br />

• Sabendo que exercer <strong>direitos</strong> econômicos, sociais e culturais é uma questão em<br />

confronto e que para estabelecer esses <strong>direitos</strong> as estruturas de poder têm de ser<br />

alteradas, como as ONGs estão lidando com isso em seu trabalho?<br />

7


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Para subsidiar o debate <strong>no</strong> seminário, foi elaborada uma série de textos e comunicações, os quais<br />

fazem parte desta coletânea.<br />

No primeiro ensaio, <strong>Empoderamento</strong>: recuperando a questão de poder <strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>,<br />

Jorge O. Roma<strong>no</strong> procura recuperar na utilização da <strong>no</strong>ção de empoderamento a importância das<br />

questões relativas <strong>à</strong> análise de poder, apagadas com a popularização dessa abordagem entre as<br />

agências de cooperação multilateral.<br />

Cecília Iorio, em Algumas considerações sobre estratégias de empoderamento e <strong>direitos</strong>, explora<br />

as dinâmicas das abordagens de empoderamento e <strong>direitos</strong> <strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>, buscando<br />

resgatar a conceitualização, contextualizar o debate e apontar fortalezas e fragilidades de ambas<br />

as abordagens.<br />

No texto seguinte, Algumas considerações sobre estratégias de empoderamento e de <strong>direitos</strong>,<br />

Alberto Enríquez Villacorta e Marcos Rodríguez buscam fazer um balanço crítico das metodologias<br />

e ferramentas utilizadas na América Latina, na implementação de estratégias de empoderamento.<br />

Para isso, partem de uma reflexão sobre o conceito de empoderamento, ressaltando<br />

suas semelhanças e diferenças com a abordagem baseada em <strong>direitos</strong>.<br />

Enrique Gallichio, em seu trabalho <strong>Empoderamento</strong>, teorias de desenvolvimento e desenvolvimento<br />

local na América Latina, foca sua atenção <strong>no</strong> mapeamento dos modelos de desenvolvimento<br />

adotados na América Latina e dos paradigmas que os sustentam. Dentre eles ressalta<br />

as concepções alternativas, em particular as que se sustentam <strong>no</strong> aportes de Pierre Bourdieu.<br />

O trabalho finaliza com uma proposta de abordagem para o desenvolvimento local, que ressalta<br />

a dimensão de poder.<br />

Finalmente, o ensaio O caminho do empoderamento: articulando as <strong>no</strong>ções de desenvolvimento,<br />

<strong>pobreza</strong> e empoderamento, de Marta Antunes, procura uma articulação teórica das <strong>no</strong>ções de<br />

desenvolvimento, <strong>pobreza</strong> e empoderamento, partindo das abordagens de Desenvolvimento como<br />

liberdade, de Amartya Sen, e de Rural livelihoods, de Robert Chambers, na forma como foram<br />

aplicadas – por autores como Bebbington – na América Latina.<br />

Assim, esta coletânea visa a trazer ao leitor brasileiro trabalhos que apontam para o uso da<br />

abordagem de empoderamento na América Latina e que enfatizam a importância e complexidade<br />

das questões de poder, buscando contribuir para o fortalecimento do diálogo entre esta abordagem<br />

e a baseada em <strong>direitos</strong>. Consideramos que nem a abordagem baseada em <strong>direitos</strong> nem a<br />

abordagem de empoderamento são suficientes em si mesmas, mas que ambas são necessárias<br />

e complementares. Principalmente quando temos como foco, <strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>, os processos<br />

de luta pela cidadania e de construção de sujeitos sociais.<br />

8


<strong>Empoderamento</strong>:<br />

recuperando a questão<br />

do poder <strong>no</strong> <strong>combate</strong><br />

<strong>à</strong> <strong>pobreza</strong><br />

9<br />

Jorge O. Roma<strong>no</strong> 1<br />

O empoderamento <strong>no</strong> debate ideológico<br />

sobre desenvolvimento<br />

O empoderamento é uma dentre as categorias e/ou abordagens – como, por exemplo, participação,<br />

descentralização, capital social, abordagem de <strong>direitos</strong> (rights-based approach) – que de forma<br />

explícita ou implícita está inserida <strong>no</strong> debate ideológico em tor<strong>no</strong> do desenvolvimento. Este debate<br />

tem sido polarizado <strong>no</strong>s últimos tempos entre os defensores de uma globalização regida pelo<br />

mercado (ou, dito de outra forma, pelo Império, pelo Consenso de Washington, pelo neoliberalismo)<br />

e os críticos que defendem que “a construção de um outro mundo é possível”.<br />

Essas categorias, originadas em sua maioria em discursos críticos ao desenvolvimento vigente,<br />

têm sido apropriadas e re-semantizadas <strong>no</strong>s discursos e nas práticas dominantes do mainstream,<br />

expressos principalmente através dos bancos e das agências de desenvolvimento multilaterais e<br />

bilaterais, dos gover<strong>no</strong>s e de diversas organizações da sociedade civil.<br />

Inevitavelmente, como em geral acontece, quando atores sociais com ideologias, enfoques e<br />

práticas muito diversas confluem num conjunto comum de conceitos, existe uma considerável<br />

falta de clareza e até confusão com o seu significado real. Ao mesmo tempo existe uma desconfiança<br />

– justificável pela experiência recente – entre os críticos do desenvolvimento dominante<br />

que usaram inicialmente essas idéias, sobre os perigos de cooptação, diluição e distorção das<br />

mesmas (Sen, G: 1997).<br />

Assim, para ONGs que têm <strong>no</strong> empoderamento um elemento central de sua estratégia de<br />

“<strong>combate</strong>r juntos a <strong>pobreza</strong>”, é fundamental enfrentar os problemas e limites que esta generalização<br />

do uso do conceito e da abordagem de empoderamento apresenta. 2 Isto é, ao final, do que<br />

estamos falando quando falamos de empoderamento?<br />

Um caminho para enfrentar essa confusão e desconfiança que apontava G. Sen é propiciar a<br />

reflexão conjunta e o debate, procurando clarificar <strong>no</strong>ssa abordagem de empoderamento, delimitar<br />

o uso do conceito e identificar seus limites e potencialidades a partir da <strong>no</strong>ssa experiência. As idéias e<br />

reflexões contidas neste texto procuram contribuir nesse caminho.<br />

1 Antropólogo, <strong>ActionAid</strong>/CPDA-UFRRJ, <strong>Brasil</strong>.<br />

2 Cabe ressaltar que um conjunto equivalente de problemas e limites, associados a este tipo de generalização de uso por atores<br />

diversos, ronda também a abordagem de rights based approach.


1. O que não entendemos<br />

por empoderamento<br />

— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

1.1. O empoderamento como transformismo (gattopardismo).<br />

<strong>Empoderamento</strong>, como comentamos inicialmente – junto com participação, descentralização,<br />

capital social e abordagem baseada em <strong>direitos</strong> (rights-based approach) – é um conceito e<br />

uma abordagem que tem sido re-apropriada pelo mainstream e que virou moda <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 90<br />

entre os atores do desenvolvimento. O conceito não só virou moda, mas também – o que é mais<br />

da<strong>no</strong>so – foi apropriado como uma forma de legitimação de práticas muito diversas, e não necessariamente<br />

“empoderadoras” como as propostas <strong>no</strong>s termos originais.<br />

Assim, o empoderamento invocado pelos bancos e agências de desenvolvimento multilaterais<br />

e bilaterais, por diversos gover<strong>no</strong>s e também por ONGs, com muita freqüência vem sendo<br />

usado principalmente como um instrumento de legitimação para eles continuarem fazendo, em<br />

essência, o que antes faziam. Agora com um <strong>no</strong>vo <strong>no</strong>me: empoderamento. Ou para controlar,<br />

dentro dos marcos por eles estabelecidos, o potencial de mudanças impresso originariamente<br />

nessas categorias e propostas i<strong>no</strong>vadoras. Situação típica de transformismo (gattopardismo): apropriar-se<br />

e desvirtuar o <strong>no</strong>vo, para garantir a continuidade das práticas dominantes. Adaptando-se<br />

aos <strong>no</strong>vos tempos, mudar “tudo” para não mudar nada.<br />

Num dos recentes informes do Banco Mundial sobre empoderamento e redução de<br />

<strong>pobreza</strong> (World Bank, 2002) são apresentadas, vestindo a roupagem <strong>no</strong>va do empoderamento,<br />

centenas de atividades e iniciativas apoiadas e promovidas pelo Banco.<br />

A proliferação de exemplos é deslumbrante. Assim, hoje, o Banco Mundial se apresentaria<br />

como quem mais promove o empoderamento <strong>no</strong> mundo. Porém, um conhecimento<br />

mais cuidadoso da prática e dos resultados reais desses mesmos exemplos pode<br />

questionar essa visão otimista da adoção e difusão da abordagem de empoderamento<br />

pelos bancos e agências multilaterais.<br />

Até onde, na grande maioria dos casos – como, por exemplo, em projetos de irrigação,<br />

difusão de telefonia ou de fundos de desenvolvimento social – não se continua fazendo<br />

em essência, ainda que de outro modo, o que se fazia? Isto é: roupagens <strong>no</strong>vas para<br />

ações velhas... Ou até onde o potencial de mudança das ações <strong>no</strong>vas tem sido limitado<br />

– ou anulado – pela prática e a cultura política e institucional dominantes na entidade<br />

e <strong>no</strong>s gover<strong>no</strong>s que promovem essas ações? Isto é: ações <strong>no</strong>vas aprisionadas em<br />

roupagens velhas...<br />

Entre as próprias ONGs, até onde a prestação ou promoção de serviços sociais básicos<br />

tem-se transformado, verdadeiramente, num meio de empoderamento e não um fim<br />

em si mesmo? Isto é, até onde, em alguns casos, a cultura institucional, os habitus dos<br />

seus funcionários, a correlação de forças intra-institucionais, os compromissos cristalizados<br />

com parceiros e comunidades e o peso da forma mais segura de obtenção de<br />

recursos financeiros (sponsorship) e sua dificuldade em consolidar “<strong>no</strong>vos produtos” –<br />

entre outros fatores – levam a que se reproduza a prestação e a promoção de serviços<br />

como um fim. E que o empoderamento, perigosamente, fique reduzido a um papel de<br />

legitimação dessa “prática assistencialista”.<br />

10


— EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA —<br />

1.2. Um empoderamento sem poder?<br />

Em várias das propostas que proliferaram com a generalização do uso do termo, modificou-se<br />

substancialmente a abordagem. Nelas tem sido colocada em segundo pla<strong>no</strong> a questão essencial<br />

da <strong>no</strong>ção e da abordagem de empoderamento. Isto é, a questão do poder. Mais precisamente, a<br />

mudança nas relações de poder existentes tem sido deslocada de seu papel central, virando uma<br />

questão implícita ou diluída entre os elementos que comporiam o empoderamento.<br />

Voltando ao relatório já mencionado do Banco Mundial, <strong>no</strong> balanço apresentado sobre<br />

a prática de empoderamento promovida pela instituição, vemos que a questão de mudanças<br />

nas relações de poder fica diluída na forma como são definidos os quatro elementos<br />

que comporiam a abordagem: acesso <strong>à</strong> informação, inclusão e participação,<br />

prestação de contas e capacidade organizacional local. Essa diluição também se manifesta<br />

na forma de definir as áreas onde os princípios do empoderamento se aplicam:<br />

acesso a serviços básicos, promoção da governança local, promoção da governança<br />

nacional, desenvolvimento de mercados em favor dos pobres, acesso <strong>à</strong> justiça e ajuda<br />

legal. Tanto <strong>no</strong>s elementos como nas áreas não se dá destaque ao poder, <strong>à</strong>s relações de<br />

poder existentes e <strong>à</strong>s que se pretende mudar. O “corpo” do empowerment do Banco<br />

Mundial tem ficado sem o seu coração...<br />

1.3. Um empoderamento neutro e sem conflitos?<br />

Na generalização do uso da abordagem de empoderamento, e em particular <strong>no</strong> promovido<br />

através de gover<strong>no</strong>s e de agências multilaterais, tem-se procurado despolitizar o processo de<br />

mudança impulsionado através dele. Nesse sentido, a questão tática de iniciar o processo a partir<br />

de um foco relativamente neutral inunda toda a estratégia. Essa suposta neutralidade, na prática,<br />

funciona como um limite ao processo de empoderamento. E a continuar se mantendo, vem a<br />

funcionar como um elemento importante <strong>no</strong> controle do processo de mudança pelo status quo.<br />

Fazendo parte dessa visão de neutralidade apresenta-se uma aversão aos conflitos. Procura-se<br />

tecnicizar os conflitos, tirando deles suas dimensões ideológicas e políticas, de forma a domesticá-los.<br />

Os conflitos perturbam o resultado esperado. A mudança procurada seria o fruto do progresso<br />

das relações sociais, do desenvolvimento das instituições e da superação das falhas do mercado.<br />

O empoderamento, nessa visão, seria um acelerador ponderado desse progresso. Uma técnica de<br />

administração e neutralização de conflitos. Busca-se reduzir os efeitos do empoderamento, <strong>no</strong><br />

melhor dos casos, aos de uma progressão aritmética e não potencializar suas possibilidades<br />

enquanto desencadeador de progressões geométricas. Com essa pasteurização do empoderamento,<br />

tem-se procurado eliminar seu caráter de fermento social.<br />

Não é de qualquer poder que estamos falando quando enfrentamos a <strong>pobreza</strong>. Estamos<br />

falando de situações caracterizadas por relações de dominação; situações onde existem – ainda que<br />

por vezes seja difícil delimitar claramente – atores que têm algum tipo de beneficio por ocupar<br />

posições dominantes. Estamos falando de relações de dominação que envolvem – voluntária ou<br />

involuntariamente – opressores e oprimidos. A abordagem de empoderamento não pode ser<br />

neutral nem ter aversão aos conflitos e a seus desdobramentos. O desdobramento dos conflitos<br />

significa que o processo de mudança, uma vez deslanchado, permeia e se infiltra em outras<br />

dimensões vividas pelas pessoas e grupos sociais. <strong>Empoderamento</strong> implica contágio, não assepsia.<br />

É fermento social: está mais para i<strong>no</strong>vação criativa que para evolução controlada.<br />

11


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Através do empoderamento se busca conscientemente quebrar, eliminar as relações de<br />

dominação que sustentam a <strong>pobreza</strong> e a tirania, ambas fontes de privação das liberdades substantivas.<br />

Com o empoderamento se procura <strong>combate</strong>r a ordem naturalizada ou institucionalizada<br />

dessa dominação (seja ela pessoal, grupal, nacional, internacional; seja ela econômica, política,<br />

cultural ou social) para construir relações e ordens mais justas e eqüitativas. O empoderamento<br />

implica em tomar partido (ou relembrando a antiga palavra de ordem: “compromisso”) pelos<br />

pobres e oprimidos e em estar preparado para lidar quase todo o tempo com conflitos.<br />

1.4. O empoderamento como dádiva<br />

Nas práticas de empoderamento das pessoas através de programas e projetos promovidas<br />

pelos gover<strong>no</strong>s, bancos e agências de desenvolvimento multilaterais e bilaterais é recorrente que<br />

esse conceito assuma caráter de uma dádiva, de algo que pode ser outorgado. Nesses casos o<br />

foco passa a ser a maior facilidade de acesso a recursos exter<strong>no</strong>s, bens ou serviços, secundarizando<br />

ou deixando de lado os processos de organização do grupo e de construção de auto-estima e<br />

confiança das pessoas. Ainda que a participação seja propalada, seu conteúdo fica estreito, reduzido<br />

a algumas consultas rápidas <strong>no</strong> inicio dos programas (Sen, G: 1997).<br />

O empoderamento não é algo que pode ser feito a alguém por uma outra pessoa. Os agentes<br />

de mudança exter<strong>no</strong>s podem ser necessários como catalisadores iniciais, mas o impulso do<br />

processo se explica pela extensão e a rapidez com que as pessoas e suas organizações se mudam<br />

a si mesmas. Nem o gover<strong>no</strong>, nem as agências (e nem as ONGs) empoderam as pessoas e as<br />

organizações; as pessoas e as organizações se empoderam a si mesmas. O que as políticas e as<br />

ações governamentais podem fazer é criar um ambiente favorável ou, opostamente, colocar<br />

barreiras ao processo de empoderamento (Sen, G: 1997).<br />

1.5. O empoderamento como uma técnica que se aprende em<br />

cursos (ou a pedagogização e a tecnicização do empoderamento)<br />

A generalização do uso do conceito e da abordagem veio acompanhada com uma redução<br />

da prática social e política do empoderamento a questões técnicas e instrumentais. Isto é, o<br />

empoderamento passou a ser considerado principalmente como uma técnica que compreende<br />

metodologias específicas e me<strong>no</strong>s como um complexo processo social e político.<br />

Esta redução – ou tecnicização do empoderamento – veio a solucionar o problema de sua<br />

difusão. Na grande maioria dos projetos e programas propiciados pelos bancos e agências de<br />

desenvolvimento multilaterais e bilaterais, gover<strong>no</strong>s e ONGs, a componente capacitação é uma<br />

das principais. Proliferaram cursos de capacitação ministrados por consultores – agora – enquanto<br />

especialistas em “metodologias participativas de empoderamento”. O empoderamento passou a<br />

ser ensinado em salas de aula, em detrimento da troca de experiências e da construção de respostas<br />

conjuntas em face de situações de dominação específicas. Isto é, se supervalorizaram os efeitos<br />

políticos da ação pedagógica em detrimento dos efeitos pedagógicos da ação política.<br />

12


— EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA —<br />

1.6. A superpolitização e a atomização do empoderamento<br />

Finalmente, gostaríamos de levantar dois riscos – opostos – que se apresentam na generalização<br />

e uso da abordagem do empoderamento. Os riscos da superpolitização e da atomização.<br />

Por um lado, as teorias mais antigas de empoderamento têm ig<strong>no</strong>rado, e até negado, o<br />

elemento individual desse processo, acreditando que o foco na auto<strong>no</strong>mia individual implicaria<br />

na atomização e na negação dos interesses e interações de grupo (Sen, G.: 1997). Ante esse<br />

perigo, se recomendava que a ênfase <strong>no</strong> trabalho fosse colocada <strong>no</strong>s grupos e suas organizações.<br />

Esta visão do empoderamento como um processo que diz respeito, basicamente, <strong>à</strong>s relações<br />

de poder entre grupos sociais e organizações veio ao encontro da orfandade paradigmática e<br />

política criada <strong>no</strong> final do século com a crise do marxismo e o fracasso do socialismo real e das<br />

revoluções nacionais-populares. Para um grande número de intelectuais, de agentes de desenvolvimento<br />

e de organizações “populares” – ou de esquerda –, o discurso e a prática do empoderamento<br />

passou a ser uma <strong>no</strong>va esperança na construção da revolução socialista ou antiimperialista.<br />

Esta legítima expectativa de mudança, porém, introduziu <strong>no</strong> trabalho de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong><br />

através do empoderamento o risco de sua superpolitização. Este risco implica na redução do<br />

empoderamento a um tipo de ação coletiva. Isto é, quando só dizem respeito ao trabalho de<br />

empoderamento as práticas e discursos políticos contestatórios, que tenham nas organizações ou<br />

movimentos seus atores quase exclusivos.<br />

Num pólo oposto, as propostas de empoderamento vêm sofrendo a influência das tentativas<br />

de despolitização, fragmentação e atomização das situações de dominação, propiciadas pelo<br />

avanço do neoliberalismo, das teorias que vaticinam o fim das ideologias e da supervalorização<br />

da individualidade. Para enfrentar a dominação assim caracterizada, a lógica da ação coletiva que<br />

se promove é aquela cuja racionalidade fica reduzida ao principio do interesse egoísta individual,<br />

excluindo outros princípios fundamentais, como os de solidariedade e de valores compartilhados.<br />

A identidade da pessoa – como um produto histórico, social e cultural – é secundarizada em<br />

função do interesse atomizado do indivíduo, enquanto produto do mercado.<br />

Em sua grande maioria, o empoderamento promovido pelos bancos e agências de desenvolvimento<br />

multilaterais e bilaterais e pelos gover<strong>no</strong>s tem-se sustentado numa expectativa de<br />

ação racional dos atores centrada <strong>no</strong> interesse individual. Esses interesses e preferências são<br />

vistos como propriedades dos indivíduos, não importando que sejam produto da interação<br />

grupal, da prática social e cultural. Invertem-se assim a expectativa e o caminho da mudança.<br />

Passa-se a se investir prioritariamente na mudança dos indivíduos, ou <strong>no</strong> máximo, das instituições.<br />

A mudança <strong>no</strong>s grupos e nas organizações seria, em última instância, um subproduto da agregação<br />

dessas mudanças atomizadas individuais. Dá-se um descompasso entre a ênfase colocada<br />

<strong>no</strong> empoderamento individual e institucional, em relação ao descaso <strong>no</strong> empoderamento grupal<br />

e das organizações.<br />

Para concluir, cabe reafirmar que o questionamento da superpolitização não implica em<br />

negar que o empoderamento através dos processos grupais pode vir a ser altamente efetivo tanto<br />

na mudança de estruturas que sustentam as situações de dominação como nas mudanças em<br />

nível individual, em termos de maior controle sobre recursos exter<strong>no</strong>s ou de maior auto<strong>no</strong>mia e<br />

autoridade na tomada de decisões. Por sua vez, o questionamento da atomização não implica em<br />

desconhecer que a mudança na consciência de dominação, ainda que catalisada em processos<br />

grupais, é profunda e intensamente pessoal e individual. Nem também em negar a importância<br />

da auto<strong>no</strong>mia individual através de lutar para fazer do pessoal algo político, como, por exemplo,<br />

o vem promovendo e construindo o movimento de mulheres (Sen, G. 1997).<br />

13


2. Enfrentando a<br />

questão do poder<br />

— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

A promoção de um <strong>no</strong>vo modelo de desenvolvimento que permita a expansão das liberdades<br />

substantivas e instrumentais das pessoas (Sen, A. 2001) e que tenha <strong>no</strong> empoderamento um<br />

caminho principal para a superação da <strong>pobreza</strong> e da tirania – enquanto seus principais obstáculos<br />

– necessita enfrentar a questão do poder.<br />

2.1. E o que é o poder?<br />

Entre os múltiplos debates sobre a questão do poder, tendo em vista <strong>no</strong>sso interesse em<br />

delimitar o conceito e a abordagem de empoderamento, e procurando não entrar demais na<br />

teoria, <strong>no</strong>s deteremos rapidamente em só duas grandes concepções sobre o poder.<br />

A primeira, inscrita na vertente do pluralismo <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong> da ciência política, vê o poder<br />

como capacidade de controle sobre algo ou alguém: “quando uma pessoa ou grupo é capaz de<br />

controlar de alguma forma as ações ou possibilidades de outros”. A idéia força é “poder sobre”.<br />

O “poder sobre” se apresenta como uma substância, finita, transferível, tomável: se alguém<br />

ganha poder, outros o perdem (isto é, um jogo de soma zero). Ele pode ser delegado (por exemplo,<br />

em representantes), ou tirado (por exemplo: das bases). Havendo uma reversão na relação de<br />

poder, as pessoas que atualmente têm o poder não apenas o perderão senão que o verão sendo<br />

usado contra elas (Iorio, 2002).<br />

A segunda concepção, que tem origem na visão de Foucault, não considera o poder como<br />

uma substância finita e que pode ser alocada a pessoas e grupos. O poder é relacional; constituído<br />

numa rede de relações sociais entre pessoas que têm algum grau de liberdade; e somente<br />

existe quando se usa. O poder está presente em todas as relações. Sem poder as relações não<br />

existiriam. Nesta concepção a resistência é uma forma de poder: onde há poder há resistência<br />

(Iorio, 2002).<br />

A partir da visão foucaultiana, se amplia a <strong>no</strong>ção de poder. O poder não é só “poder sobre”<br />

recursos (físicos, huma<strong>no</strong>s, financeiros) e idéias, crenças, valores e atitudes. É possível, e necessário,<br />

diferenciar outros tipos de exercício do poder. Por exemplo, o “poder para” fazer uma coisa (um<br />

poder generativo que cria possibilidades e ações); o “poder com” (que envolve um sentido de que<br />

o todo é maior que as partes, especialmente quando um grupo enfrenta os problemas de maneira<br />

conjunta, por exemplo, homens e mulheres questionando as relações de gênero); e o “poder de<br />

dentro”, isto é, a força espiritual que reside em cada um de nós, base da auto-aceitação e do<br />

auto-respeito, e que significa o respeito e a aceitação dos outros como iguais. Estes últimos tipos<br />

de poder – poder para, poder com e poder de dentro – não são finitos, podem crescer com o seu<br />

exercício (Iorio, 2002). Um grupo exercendo estes poderes não necessariamente reduz o poder<br />

dos outros, porém, de toda forma esse desenvolvimento implica mudanças nas relações.<br />

Em síntese, nas diversas sociedades, em todas as relações sociais é possível identificar o<br />

exercício de poder, seja qual for o tipo (poder sobre, poder para, poder com, poder de dentro...).<br />

Nas situações de <strong>pobreza</strong> confluem todos esses tipos de poder, mas de modo diferente segundo<br />

as especificidades dos contextos. Isto coloca o desafio de ter que identificar as relações de poder e os<br />

tipos de exercício de poder principais e secundários que caracterizam cada situação de <strong>pobreza</strong>.<br />

14


— EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA —<br />

2.2. A necessidade da análise das relações de poder<br />

<strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong><br />

O enfrentamento da <strong>pobreza</strong> através de uma abordagem de empoderamento requer, conseqüentemente,<br />

uma clara compreensão das relações de poder e dos tipos de exercício de poder<br />

principais e secundários que as conformam.<br />

A análise das relações de poder e das situações de dominação resultantes tem que estar<br />

constantemente em foco <strong>no</strong> trabalho de empoderamento, seja qual for o nível (pessoal ou grupal),<br />

o território (local, regional, nacional, global), a dimensão (social, política, econômica, cultural,<br />

ambiental) ou os objetivos (estratégicos ou organizacionais) que se privilegiem.<br />

No caso do trabalho em parceria entre ONGs e com organizações de base, a análise das<br />

relações de poder deve estar presente não só <strong>no</strong> diagnóstico inicial, mas também na construção<br />

conjunta da estratégia de ação; <strong>no</strong> planejamento participativo das ações; <strong>no</strong> acompanhamento<br />

cotidia<strong>no</strong> das atividades; <strong>no</strong>s exercícios de revisão e reflexão; e na avaliação final de resultados.<br />

Como também na própria avaliação organizacional de <strong>no</strong>ssa entidade.<br />

A análise das relações de poder e das situações de dominação resultantes implica em discutir<br />

e refletir, junto com os parceiros e as populações pobres, sobre questões que permitam dar conta<br />

de aspectos como:<br />

• Qual é o espaço social considerado <strong>no</strong> qual se manifestam as relações de poder?<br />

Por exemplo:<br />

– da família, da comunidade, da região etc.<br />

– do mercado, do Estado, da sociedade civil.<br />

• Que tipo de exercício de poder principal e secundário se manifesta nas<br />

diferentes relações?<br />

Por exemplo:<br />

– poder sobre, poder para, poder com, poder de dentro<br />

• Que forma de poder é predominante nessas relações?<br />

Por exemplo:<br />

– poder econômico, político, social, cultural, psicológico.<br />

• Que está em jogo nessas relações de poder?<br />

Por exemplo:<br />

– o acesso a recursos (ambientais; econômicos; político-institucionais; culturais; huma<strong>no</strong>s);<br />

– a transformação desses recursos em ativos; ou dito de outra forma, a produção, circulação,<br />

acumulação e uso de capitais específicos (ambiental, econômico, político, cultural, social);<br />

– questões de hierarquia e/ou prestígio.<br />

• Que campo específico essas relações de poder delimitam?<br />

Por exemplo:<br />

– campo das relações familiares de gênero;<br />

– campo da luta pela terra;<br />

– campo do desenvolvimento local;<br />

15


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

– campo das políticas nacionais de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>;<br />

– campo dos acordos nacionais de paz;<br />

– campo dos acordos internacionais de comércio agrícola.<br />

• Quais são os atores principais envolvidos nessas relações?<br />

No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo:<br />

– gover<strong>no</strong> municipal; agências específicas do gover<strong>no</strong> estadual ou federal presentes <strong>no</strong><br />

âmbito local; elites (fundiárias, financeiras, comerciais, industriais) locais e suas entidades<br />

de representação; moradores urba<strong>no</strong>s e suas associações; agricultores familiares e suas<br />

associações; ONGs.<br />

• Quem tem o poder? Ou em termos analíticos mais precisos: quem ocupa a posição<br />

de dominação e quais são os seus aliados <strong>no</strong> campo em consideração?<br />

No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo:<br />

– o gover<strong>no</strong> municipal e as elites locais e suas entidades de representação;<br />

– tendo como aliadas as agências do gover<strong>no</strong> estadual ou federal presentes <strong>no</strong> âmbito local.<br />

• Quem ocupa a posição de dominado e quem podem ser seus aliados?<br />

No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo:<br />

– moradores urba<strong>no</strong>s e suas associações; agricultores familiares e suas associações;<br />

– tendo como aliadas as ONGs.<br />

• Que compreensão têm os atores principais sobre a situação analisada?<br />

Isto é:<br />

– quem fala o que e de qual posição?<br />

– identificar e caracterizar os principais elementos do discurso dominante e suas variantes;<br />

– identificar até onde os principais elementos do discurso dominante estão presentes nas<br />

versões dos atores dominados (predomínio do “senso comum” ideológico);<br />

– identificar e caracterizar os principais elementos das versões críticas (presença do “bom<br />

senso” ou até de discursos contra-hegemônicos).<br />

• Como se exerce a dominação?<br />

Isto é, através:<br />

– da coerção (poder físico);<br />

– de leis, regimentos ou contratos (poder institucional);<br />

– e/ou dos costumes e da ideologia (poder simbólico).<br />

• Como se reproduz a situação de dominação?<br />

Por exemplo, <strong>no</strong> campo de luta pela terra, entre outros mecanismos, através:<br />

– do não reconhecimento da posse tradicional das comunidades camponesas como um<br />

direito de acesso <strong>à</strong> terra legítimo e legal;<br />

– da corrupção (grilagem) na titulação de terras pelos latifundiários;<br />

– do controle dos preços do mercado de terras;<br />

16


— EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA —<br />

– da implementação pelos latifundiários, em aliança com as elites comerciais locais, de mecanismos<br />

laborais e mercantis de apropriação de renda que limitem a possibilidade de<br />

acumulação por parte dos agricultores sem terra ou com pouca terra;<br />

– da formação de milícias privadas e/ou da fácil disponibilidade de uso da força pública para<br />

evitar ocupações de terra;<br />

– da matança seletiva de lideranças de sem-terra e/ou de seus aliados.<br />

• Quais são as formas de resistência?<br />

Isto é:<br />

– as estratégias são individuais ou existem estratégias grupais?;<br />

– resistência passiva, mobilização e conflito aberto.<br />

• Como está sendo e como pode vir a ser mudada a situação de dominação?<br />

Isto é:<br />

– que condições e oportunidades são necessárias para que essa mudança se efetive ou intensifique?<br />

Em particular, que alianças ou redes podem ser construídas?;<br />

– quais capacidades das pessoas e das organizações necessitam ser desenvolvidas?<br />

• Como podemos monitorar e avaliar as permanências e as mudanças nas<br />

relações de poder?<br />

Por exemplo, através de:<br />

– construir exercícios de revisão e reflexão;<br />

– estabelecer conjuntamente procedimentos e indicadores.<br />

A lista de questões que se acaba de discriminar não pretende ser exaustiva. Ao mesmo<br />

tempo, cabe ressaltar que não estamos sugerindo que todas elas tenham que ser respondidas <strong>no</strong><br />

trabalho das ONGs. As ONGs não são instituições de pesquisa. O objetivo da apresentação desta<br />

listagem é o de exemplificar o tipo de aspectos e questões que podem ser formuladas sobre as<br />

relações de poder. A escolha das questões e a linguagem a ser utilizada em sua formulação<br />

dependerão de cada caso.<br />

3. O que entendemos<br />

por empoderamento<br />

3.1. O empoderamento como abordagem e como processo<br />

Segundo <strong>no</strong>ssa perspectiva, o empoderamento é:<br />

• uma abordagem que coloca as pessoas e o poder <strong>no</strong> centro dos processos de desenvolvimento;<br />

• um processo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades assumem o controle de<br />

seus próprios assuntos, de sua própria vida e tomam consciência da sua habilidade e<br />

competência para produzir, criar e gerir.<br />

17


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

No <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>, a abordagem de empoderamento implica <strong>no</strong> desenvolvimento das<br />

capacidades (capabilities) das pessoas pobres e excluídas e de suas organizações para transformar as<br />

relações de poder que limitam o acesso e as relações em geral com o Estado, o mercado e a<br />

sociedade civil. 3 Assim, através do empoderamento visa-se a que essas pessoas pobres e excluídas<br />

venham a superar as principais fontes de privação das liberdades, possam construir e escolher<br />

<strong>no</strong>vas opções, possam implementar suas escolhas e se beneficiar delas.<br />

As capacidades (capabilities) são poderes para fazer ou deixar de fazer coisas. Assim, o<br />

conceito de capacidades não significa só as habilidades (abilities) das pessoas, mas também as<br />

oportunidades reais4 que essas pessoas têm de fazer o que querem fazer (Sen A, 1992).<br />

O empoderamento, enquanto desenvolvimento das capacidades das pessoas pobres e excluídas<br />

e suas organizações, é um processo relacional e conflituoso.<br />

• Relacional, <strong>no</strong> sentido de que sempre envolve vínculos com outros atores. Não dá para<br />

analisar e trabalhar <strong>no</strong> processo de empoderamento em termos atomizados individuais.<br />

Sempre temos que pensar <strong>no</strong> tecido de relações de poder nas quais o indivíduo, ou melhor,<br />

a pessoa está inserida.<br />

• Conflituoso, <strong>no</strong> sentido de que o empoderamento diz respeito a situações de dominação –<br />

explícitas ou implícitas – e <strong>à</strong> busca de mudanças nas relações de poder existentes. O empoderamento<br />

leva a mudanças tanto da posição individual como grupal nas relações de poder/<br />

dominação. Essas mudanças não ocorrem, em geral, sem conflitos de alguma ordem. Assim, <strong>no</strong><br />

trabalho de empoderamento, estamos lidando com a resolução – negociada ou não – de<br />

conflitos. A participação nesse processo não pode ser neutra. Ela implica assumir uma posição<br />

de aliado dos pobres e excluídos e, como tal, fazer parte dos conflitos que levam <strong>à</strong> modificação<br />

das relações de poder que mantêm a situação de dominação existente.<br />

3.2. As características da abordagem do empoderamento<br />

Além do seu caráter processual, a abordagem do empoderamento apresenta um conjunto<br />

não hierárquico e inter-relacionado de características (Shetty, s/d):<br />

• Holístico: o empoderamento implica numa abordagem geral e não num conjunto de inputs;<br />

não pode ser limitado <strong>à</strong>s <strong>no</strong>ções de atividades ou setores que se desenvolvem nas diferentes<br />

etapas de um projeto; é o resultado da sinergia entre o conjunto de atividades e ações.<br />

• Especificidade contextual: o empoderamento só pode ser definido em função de contextos<br />

locais específicos em termos sociais, culturais, econômicos, políticos e históricos.<br />

• Focalizado: o empoderamento diz respeito aos grupos excluídos e vulneráveis urba<strong>no</strong>s e rurais.<br />

• Estratégico: o empoderamento se refere a aspectos estratégicos que procuram atacar as<br />

causas estruturais e práticas da despossessão de poder (powerlessness).<br />

3 Agradeço a Nelson G. Delgado seus comentários sobre esta definição que levaram a reforçar nela a ênfase na transformação<br />

das relações com o Estado, o mercado e a sociedade civil.<br />

4 As oportunidades se referem <strong>à</strong>s limitações e possibilidades apresentadas pelas condições externas, entre as quais se destacam<br />

as relações de poder e as situações de dominação nas quais as pessoas, os grupos e as organizações estão inseridos.<br />

18


— EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA —<br />

• Democratização: <strong>no</strong> empoderamento o aspecto chave é a democratização e a participação<br />

(como meio e como fim).<br />

• Construto ideológico: o empoderamento depende da percepção que os indivíduos e os<br />

grupos tenham de si mesmos e de sua situação.<br />

• Sustentabilidade: o empoderamento diz respeito <strong>à</strong> auto-realização e <strong>à</strong> sustentabilidade<br />

das práticas.<br />

3. O empoderamento como estratégia de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong><br />

Nos discursos do mainstream, diluído em digressões sobre o progresso em termos econômicos,<br />

técnicos ou informacionais, cada vez mais se oculta a discussão das relações entre desenvolvimento<br />

e poder. Esse ocultamento não é sem conseqüências, já que dificulta identificar<br />

tanto a própria concepção de desenvolvimento como os entraves para a construção de um<br />

projeto alternativo.<br />

Desde a <strong>no</strong>ssa perspectiva, seguindo A. Sen, um projeto alternativo implica na promoção de<br />

um modelo de desenvolvimento que permita a expansão das liberdades substantivas e instrumentais<br />

das pessoas. 5 Ou seja, um projeto em aberto, orientado para as pessoas enquanto agentes<br />

e que respeita a diversidade humana e a liberdade de escolha. Nesse projeto a <strong>pobreza</strong> e a tirania<br />

são os principais entraves a serem enfrentados.<br />

Da mesma forma que se ocultam as relações entre poder e desenvolvimento, também se<br />

diluem as relações entre poder e <strong>pobreza</strong>. A <strong>pobreza</strong> constituída é perpetuada por relações de<br />

poder. A <strong>pobreza</strong> é um estado de desempoderamento.<br />

Ver a <strong>pobreza</strong> como um estado de desempoderamento tem como ponto de partida o pressuposto<br />

de que os indivíduos e os grupos pobres não têm poder suficiente para melhorar suas<br />

condições nem a sua posição nas relações de poder e dominação nas quais estão inseridos. Isto é<br />

particularmente destacável <strong>no</strong> caso dos grupos mais desempoderados e vulneráveis, isto é, das<br />

mulheres, dos idosos e das crianças.<br />

O empoderamento é um meio e um fim para a transformação das relações de poder existentes<br />

e para superar o estado de <strong>pobreza</strong>. É um meio de construção de um futuro possível, palpável,<br />

capaz de recuperar as esperanças da população e de mobilizar suas energias para a luta por<br />

<strong>direitos</strong> <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> local, nacional e internacional. Mas o empoderamento também é um fim,<br />

porque o poder está na essência da definição e da superação da <strong>pobreza</strong>. O empoderamento<br />

necessita constantemente ser re<strong>no</strong>vado para garantir que a correlação de forças não volte a<br />

reproduzir as relações de dominação que caracterizam a <strong>pobreza</strong>.<br />

Assim, as estratégias de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> inscrevem-se num processo essencialmente<br />

político, que precisa de atores capazes de alterar correlações de força em níveis macro, meso e<br />

micro articulados em tor<strong>no</strong> de temas e lutas comuns. Neste marco, o empoderamento é essencial.<br />

Atores com poder diferente são necessários como catalisadores <strong>no</strong> processo de empoderamento.<br />

Ao mesmo tempo, as características desses processos, suas potencialidades e limites, são<br />

5 As liberdades estão inter-relacionadas e podem se fortalecer umas <strong>à</strong>s outras. As liberdades políticas ajudam a promover a<br />

segurança econômica. As oportunidades sociais facilitam a participação econômica. As facilidades econômicas podem ajudar a<br />

gerar a abundância individual além de recursos públicos para serviços sociais (Sen, 2001).<br />

19


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

diversas em função do tipo de mediadores – por exemplo: movimentos sociais, ONGs, gover<strong>no</strong>s,<br />

agências multilaterais – que atuam como catalisadores.<br />

No <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>, o empoderamento dos pobres e de suas organizações se orienta<br />

para a conquista da cidadania, isto é, a conquista da plena capacidade de um ator – individual ou<br />

coletivo – de usar seus recursos econômicos, sociais, políticos e culturais para atuar com responsabilidade<br />

<strong>no</strong> espaço público na defesa de seus <strong>direitos</strong>, influenciando as ações dos gover<strong>no</strong>s na<br />

distribuição dos serviços e recursos.<br />

Os processos de transformação do Estado e de mudança social orientados para a superação<br />

da <strong>pobreza</strong> assentam na construção de redes e de amplas alianças dos movimentos sociais e das<br />

organizações populares <strong>no</strong> campo da sociedade civil. As ONGs vêm tendo um papel fundamental<br />

na construção e <strong>no</strong> suporte dessas redes e alianças.<br />

Finalmente, a adoção do empoderamento como estratégia central <strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong><br />

não é gratuita para uma ONG. Além de qualificar e enriquecer a compreensão de sua missão e<br />

valores, a adoção do empoderamento tem conseqüências significativas <strong>no</strong> campo de sua política<br />

institucional. Por exemplo, a importância do papel das ONGs na construção e suporte de redes e<br />

alianças <strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>, o fato de que o empoderamento não é um processo neutro e o<br />

reconhecimento do intenso debate ideológico <strong>no</strong> qual esta abordagem hoje está inserida<br />

obrigam-<strong>no</strong>s a posicionarmos claramente <strong>no</strong>ssa estratégia de <strong>combate</strong>rmos juntos a <strong>pobreza</strong>.<br />

Onde ela se situa e constrói alianças: em Davos ou em Porto Alegre?<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

ACTIONAID-BRASIL. Country Strategy Paper 2001-2003. Rio de Janeiro, 2000.<br />

ACTIONAID-LAC. Regional Strategy 2001-2003. Guatemala, 2000.<br />

IORIO, Cecília. Algumas considerações sobre estratégias de empoderamento<br />

e de <strong>direitos</strong>. Texto elaborado para a <strong>ActionAid</strong>, 2002.<br />

SEN, Gita. Empowerment as an approach to poverty. Pnud, 1997.<br />

SEN, Amartya. Inequality reexamined. Oxford University Press, 1992.<br />

. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo,<br />

Companhia das Letras, 2001.<br />

SHETTY, S. (s/d): Development projects in assessing empowerment, Occasional<br />

Paper Series Nº 3, New Delhi, Society for Participatory Research<br />

in Asia, (s/d).<br />

World Bank. Empowerment and poverty reduction: a soucerbook.<br />

Washington, PREM, 2001.<br />

20


Algumas considerações<br />

sobre estratégias de<br />

empoderamento e de<br />

<strong>direitos</strong><br />

21<br />

Cecília Iorio 1<br />

As desigualdades se verificam não apenas entre países, mas também dentro<br />

dos países entre grupos étnicos, entre regiões, entre gêneros.<br />

Em um cenário onde se ampliam e agudizam as situações de <strong>pobreza</strong>, uma variedade de<br />

atores do campo do desenvolvimento passaram a realizar revisões estratégicas de seus trabalhos.<br />

A busca de <strong>no</strong>vos paradigmas e conceitos que conduzam a um melhor entendimento das complexas<br />

questões que envolvem a <strong>pobreza</strong> e a sua superação, a busca de maior eficácia e eficiência <strong>no</strong><br />

<strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> são alguns elementos que em graus e combinações variadas orientam as<br />

discussões realizadas pelos distintos atores do campo do desenvolvimento.<br />

Este documento explora as dinâmicas de duas abordagens de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>: a perspectiva<br />

de empoderamento e a perspectiva baseada <strong>no</strong>s <strong>direitos</strong>. Buscamos resgatar a conceitualização,<br />

contextualizar o debate e apontar fortalezas e fragilidades de ambas as perspectivas. Este “Estado<br />

da Arte” visa a contribuir com a <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong> e LAC em seu processo de discussão de interna e<br />

de elaboração de positional paper.<br />

1. Histórico sobre o conceito<br />

de empoderamento<br />

Identificar a origem do conceito de empoderamento é uma tarefa que resulta inconclusiva. A origem<br />

do conceito é disputada tanto pelos movimentos feministas, como pelo movimento American<br />

Blacks, que <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 1960, movimentou o cenário político <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong> exigindo o fim do<br />

preconceito e da discriminação que marcavam a vida dos negros <strong>no</strong>s EUA.<br />

Contudo, é na interseção com gênero que o conceito de empoderamento se desenvolve<br />

tanto em nível teórico como instrumento de intervenção na realidade. Nos a<strong>no</strong>s 1970 e 1980,<br />

feministas e grupos de mulheres espalhadas pelo mundo desenvolveram um árduo trabalho de<br />

conceitualização e de implementação de estratégias de empoderamento, com o qual buscaram<br />

romper com as diferentes dinâmicas que condicionavam a existência e impediam a participação e<br />

a cidadania plena das mulheres.<br />

Nos a<strong>no</strong>s 1990 observa-se a expansão do uso deste conceito para outras áreas do debate<br />

sobre desenvolvimento, especialmente a partir das grandes conferências oficiais e paralelas<br />

mundiais, <strong>no</strong>tadamente Cairo e Beijing.<br />

1 Socióloga – <strong>Brasil</strong>.


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

O reconhecimento da necessidade de se empoderar as pessoas e grupos que vivem na <strong>pobreza</strong><br />

passa a ser percebido, com maior ou me<strong>no</strong>r ênfase, como uma condição para o sucesso de<br />

políticas, programas, ou mesmo projetos, por um amplo leque de organizações, representantes<br />

de diferentes perspectivas políticas, de diferentes tamanhos, capacidade de influência e natureza.<br />

A ampliação do uso do conceito e de estratégias de empoderamento coloca o desafio de<br />

embasar este conceito de forma que o seu uso não seja apenas uma moda <strong>no</strong> campo do desenvolvimento,<br />

mas sim produza mudanças nas práticas e políticas destes atores.<br />

O empoderamento dentro do movimento feminista. 2<br />

A abordagem instrumental – empoderamento como um resultado<br />

As primeiras conceitualizações sobre poder e empoderamento dentro do campo do desenvolvimento<br />

surgem <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 1970 principalmente dentro do movimento feminista, vinculado ao grupo<br />

conhecido como WID – Women In Development (Mulheres <strong>no</strong> Desenvolvimento). A conceitualização<br />

por elas usada reconhece sua origem nas ciências sociais, mais especificamente na ciência política<br />

– onde a idéia força é a de “poder sobre”. Nesta conceitualização, uma pessoa ou um grupo de<br />

pessoas é capaz de controlar de alguma forma as ações ou as possibilidades de outros (Dahl;<br />

Polsby). Esse controle sobre pode ser “evidente” através de, por exemplo, o uso da força física,<br />

mas também pode ser “oculto”, quando internalizado através de processos psicológicos. Ele pode<br />

ser muito sutil, levando a situações de “opressão internalizada” onde o uso de poder “evidente”<br />

não é mais necessário (ex.: o “bom” escravo).<br />

A partir desta perspectiva de poder a estratégia de empoderamento que prevalecia <strong>no</strong> WID<br />

era de que, para romperem a situação de dominação, as mulheres deveriam ser “empoderadas”<br />

de forma a conquistar espaço nas estruturas econômicas e políticas da sociedade e, dessa<br />

forma, vir a participar do processo de desenvolvimento. As mulheres deveriam conquistar e<br />

ocupar posições de poder.<br />

O poder sobre se apresenta como uma substância, transferível, “tomável” e finita, ou seja, se<br />

alguém ganha poder outros perdem. O poder sobre pode também ser delegado de uma pessoa a<br />

outra. A questão é que se ele pode ser delegado, ele também pode ser tirado.<br />

A perspectiva de empoderamento ancorada neste conceito de poder sobre representou intrinsecamente<br />

uma ameaça para os homens (e o temor dos homens foi um obstáculo para o empoderamento<br />

das mulheres). Nesta conceitualização de soma zero é fácil entender por que a resistência<br />

<strong>à</strong> idéia de empoderamento das mulheres. Subjaz a esta idéia que, havendo uma reversão<br />

da relação de poder, as pessoas que atualmente têm poder não apenas o perderão senão que<br />

verão esse poder sendo usado contra elas, ou melhor, contra eles.<br />

As estratégias de empoderamento dentro desta perspectiva não propõem mudanças estruturais<br />

nas relações de poder dentro de uma sociedade e nem questiona a forma como o poder é distribuído<br />

na sociedade. Não dá atenção a uma questão importante como ética e poder. 3<br />

2 Utilizamos para a analise desta parte um texto de Rowlands.<br />

3 Mas é importante perguntar: o empoderamento das mulheres deve necessariamente significar que os homens percam poder?<br />

Ou a perda de poder é algo que os homens devem necessariamente temer? As mesmas perguntas podem ser feitas em relação<br />

a qualquer grupo detentor de poder.<br />

22


— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —<br />

A abordagem processual ou generativa<br />

Em finais dos a<strong>no</strong>s 1970 e início dos 1980, <strong>no</strong>vos esforços analíticos apontam para <strong>no</strong>vas<br />

conceitualizações de poder. Focalizando em processos e não <strong>no</strong>s resultados, o poder pode assumir<br />

outras formas que, de maneira geral, podem ser descritas como poder para, poder com e poder<br />

de dentro, que levam <strong>à</strong> construção de outras perspectivas de empoderamento.<br />

Poder para não envolve necessariamente a dominação de alguém sobre outro, mas o poder<br />

é enfocado como um processo generativo que leva <strong>à</strong> realização de capacidades em outros<br />

(Hartsock). É o tipo de liderança que decorre do desejo de ver um grupo desenvolver suas capacidades,<br />

e onde não há necessariamente conflito de interesses.<br />

Foucault utiliza uma outra perspectiva de poder. Para ele o poder não é uma substância finita<br />

que pode ser alocada a pessoas ou grupos. Para Foucault, o poder é relacional, é algo que somente<br />

existe quando se usa, é constituído numa rede de relações sociais entre pessoas que têm algum<br />

grau mínimo de liberdade. Sem poder as relações não existiriam. Esta compreensão inclui a resistência<br />

como uma forma de poder (uma ação sobre outra ação), onde há poder há resistência.<br />

Foucault focaliza na micropolítica, <strong>no</strong> exercício do poder em pontos localizados e enraizados em<br />

redes sociais.<br />

Esta linha do movimento feminista constrói um modelo de poder tendo como base muito do<br />

modelo de Foucault, mas incorporando a análise das relações de gênero, o que incluiu a opressão<br />

internalizada percebida como sendo uma barreira ao exercício do poder por parte das mulheres e<br />

levando <strong>à</strong> manutenção das desigualdades com os homens.<br />

É importante diferenciar os vários tipos de exercício de poder. O poder sobre como controle<br />

que pode ser respondido com resistência ou aceitação. O poder para como um poder generativo<br />

ou produtivo que cria possibilidades e ações sem dominação. Pode-se também diferenciar o poder<br />

com, que envolve um sentido de que o todo é maior do que a soma das partes, especialmente<br />

quando um grupo enfrenta os problemas de maneira conjunta. A união faz a força. Muitas pessoas<br />

agindo juntas podem produzir mudanças mais facilmente. Há também o poder de dentro, que é<br />

a força espiritual que reside em cada um de nós e que <strong>no</strong>s faz huma<strong>no</strong>s – é a base da autoaceitação<br />

e do auto-respeito, que por sua vez significa o respeito e aceitação dos outros como<br />

iguais. Este poder pode permitir que uma pessoa mantenha uma posição ainda que a grande<br />

maioria possa estar contra.<br />

<strong>Empoderamento</strong> não é somente o resultado de se alcançar o poder sobre, mas pode ser<br />

também o desenvolvimento de poder para, poder com ou poder de dentro. Estes tipos de poder<br />

não são finitos (com princípio e fim), mas ele pode crescer com o seu exercício. Um grupo<br />

exercendo estes poderes não necessariamente reduz o poder dos outros.<br />

Nesta perspectiva de empoderamento, a compreensão da dominação está associada <strong>à</strong>s relações<br />

de poder, que são múltiplas e estão profundamente enraizadas em sistemas de redes sociais.<br />

O empoderamento de pessoas ou grupos nesta perspectiva não implica necessariamente a perda<br />

de poder de outros, embora implique mudanças que podem levar a que isso possa ocorrer.<br />

Então, temos várias possibilidades de empoderamento, processos que levam os grupos a<br />

posições de poder sobre, mas também a possibilidade de exercício de poder generativo. Como isto se<br />

relaciona com o processo histórico do empoderamento das mulheres?<br />

“Poder com”, “poder de dentro” ou “poder para” levam a uma conceitualização de empoderamento<br />

bastante diferente. Aqui a <strong>no</strong>ção de poder privilegia a capacidade do ser huma<strong>no</strong> de<br />

expressão e ação, a capacidade de realização do ser, sua liberdade de expressão.<br />

23


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Esta forma relacional de entender e de analisar a situação das mulheres conduziu a uma<br />

visão sobre o processo de dominação das mulheres que, ao invés de focalizar <strong>no</strong>s resultados,<br />

focaliza <strong>no</strong> processo. Aqui as possibilidades de exercício de poder focalizam as relações humanas<br />

e sociais. O movimento Gênero e Desenvolvimento (GAD) começa a abordar não apenas a natureza<br />

dos papéis das mulheres – como <strong>no</strong> WID – mas as interações desses papéis com os homens e,<br />

portanto, a dinâmica e estrutura das relações de gênero na sociedade. As mulheres não são donas<br />

de casa <strong>no</strong> vácuo, mas num contexto onde homens e outras mulheres esperam que ela se<br />

comporte como dona da casa. As relações de gênero passam a ser vistas como centrais aos<br />

processos e organizações sociais e, portanto, ao processo de desenvolvimento.<br />

Resumindo, a perspectiva do WID vê o empoderamento como um meio que deve levar as<br />

mulheres <strong>à</strong>s posições de poder, revertendo em benefícios sociais, econômicos e políticos para as<br />

mulheres. A perspectiva do GAD está mais vinculada a processos de mudança mais amplos, uma<br />

vez que entende que a mudança na situação subordinada das mulheres está vinculada a contextos<br />

mais amplos e requer mudanças econômicas, políticas e culturais. É importante salientar que as<br />

perspectivas de empoderamento acima descritas, embora façam parte da importante história do<br />

movimento feminista, são hoje de interesse de um amplo leque de movimentos sociais, organizações<br />

não-governamentais e outros atores do campo do desenvolvimento.<br />

2. Uma proposta<br />

de empoderamento<br />

Sumariamente descrevemos algumas conceitualizações – e suas conseqüências práticas – sobre<br />

poder que têm relevância <strong>no</strong> debate sobre empoderamento não apenas dentro do campo feminista.<br />

Mas a questão que permanece ainda é: são na verdade conceitualizações mutuamente excludentes?<br />

Colocando a questão em outros termos: é o “poder sobre” recursos (físicos, huma<strong>no</strong>s, financeiros)<br />

ou sobre ideologias (crenças, valores e atitudes) o que empodera, ou é o “poder para” ou<br />

“de dentro”, como habilidade, capacidade de ser ou de se expressar por si mesmo que conduz ao<br />

acesso e controle de meios necessários <strong>à</strong> existência? Ou seja, é o controle e poder sobre recursos<br />

exter<strong>no</strong>s ou é o processo de transformação interna que leva ao empoderamento das pessoas<br />

vivendo na <strong>pobreza</strong>?<br />

Parece-<strong>no</strong>s que as perspectivas, antes que excludentes, se reforçam mutuamente e estão<br />

intrinsecamente vinculadas (Gita Sen). O controle sobre recursos exter<strong>no</strong>s pode possibilitar a<br />

expressão (self-expression) e a ação das pessoas vivendo na <strong>pobreza</strong>, por outro lado, maior autoestima<br />

e autoconfiança (transformação interna) podem levar a vencer as barreiras externas <strong>no</strong><br />

acesso aos recursos. Não há garantia de que um processo leve inevitavelmente ao outro, mas<br />

existem numerosos exemplos, em diferentes partes do mundo, que apresentam resultados em<br />

ambas as direções. Qualquer que seja o processo, um verdadeiro processo de empoderamento<br />

deve envolver os dois elementos, uma vez que dificilmente um será sustentável sem o outro.<br />

Resgatando ambas as dimensões, empoderamento das pessoas vivendo na <strong>pobreza</strong> é um<br />

processo de obter acesso e controle sobre si e sobre os meios necessários para a sua existência.<br />

Assim sendo, o empoderamento é raramente um processo neutro. Precisamente porque a<br />

situação de <strong>pobreza</strong> e dominação vivenciada por milhões de pessoas tem base <strong>no</strong> poder de<br />

poucos sobre recursos e sobre as possibilidades de existência social de outros. O empoderamento<br />

deve implicar uma mudança nas relações de poder em favor das pessoas vivendo na <strong>pobreza</strong>.<br />

24


— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —<br />

Essa discussão se vincula <strong>à</strong> questão já anteriormente mencionada: é o empoderamento<br />

um jogo de soma zero?<br />

Não há uma resposta unívoca a esta pergunta, a resposta dependerá do contexto em que o<br />

processo de empoderamento aconteça, de quem faça a pergunta (ou dê a resposta) e da escala de<br />

tempo referido. Analisemos, por exemplo, o empoderamento que resulta de um processo de<br />

reforma agrária. O acesso <strong>à</strong> terra por grupos sem-terra pode produzir ganhadores e perdedores,<br />

dependendo de quem ganha e de quem “perde terra”. Mas se o detentor da terra teve um preço<br />

justo (segundo o mercado), seria possível considerar que os dois lados “ganharam”. Mas também<br />

a redistribuição da terra pode levar, por exemplo, a aumentos na produtividade e na oferta de<br />

produtos agrícolas ou ainda ao aumento de divisas de um país e <strong>à</strong> melhoria da eco<strong>no</strong>mia local.<br />

Neste nível, pode-se considerar que houve um benefício para o gover<strong>no</strong>, independente do ganho<br />

(ou perda) político que um processo de reforma agrária possa significar.<br />

A sociedade como um todo também pode vir a ser beneficiada com o aumento na produção<br />

agrícola e pela melhora <strong>no</strong>s níveis de segurança alimentar. Como vemos, uma perspectiva pode –<br />

ou não – ser compartilhada pelos diferentes atores do processo. Todavia, ao longo do tempo a<br />

percepção sobre essas transformações pode mudar. Se os beneficiados com acesso <strong>à</strong> terra não<br />

conseguem se manter <strong>no</strong> processo produtivo, a percepção pode mudar e o grupo passar a se<br />

considerar prejudicado pelo processo num segundo momento.<br />

Parece-<strong>no</strong>s que a perspectiva de análise baseada em soma zero pouco contribui para entender<br />

a complexidade que envolve o processo social de empoderamento de grupos sociais.<br />

Podemos fazer uma análise similar quando o que está em jogo é o empoderamento inter<strong>no</strong><br />

– auto-estima e capacidades. O processo de empoderamento aqui não significa inicialmente<br />

perda para outros, embora possa, em seu final, produzir perdas para alguém. Contudo, é importante<br />

perceber que a perda de poder nestes casos não é necessariamente prejudicial para quem<br />

perde. Existem inúmeros exemplos onde a mudança nas relações de gênero traz benefícios para<br />

os homens também. Por exemplo, quando uma mulher consegue estabelecer uma relação<br />

baseada <strong>no</strong> mútuo respeito e com responsabilidades compartilhadas, as melhoras atingem tanto<br />

a mulher quanto o homem. O marido perdeu o poder de impor sua vontade unilateralmente a<br />

sua mulher, mas aquele poder o tornava me<strong>no</strong>s huma<strong>no</strong> e diminuía suas próprias capacidades<br />

como resultado da sua relação violenta com sua mulher. Nesta mudança houve um ganho para<br />

ambos os lados.<br />

<strong>Empoderamento</strong> de pessoas ou de grupos?<br />

O empoderamento é um processo de grupos ou de indivíduos? Esta é outra questão a ser<br />

contemplada nas estratégias de empoderamento.<br />

Durante um período de tempo, muita ênfase foi dada ao grupo, ficando a importância do<br />

indivíduo secundarizada ou mesmo esquecida. Como ocorreu em outros processos políticos que<br />

buscaram a superação de desigualdades sociais, o indivíduo foi visto como a negação dos interesses<br />

e atividades de grupos sociais. Muitos exemplos existentes sobre empoderamento de grupos, em<br />

muitos países, têm-se mostrado efetivos e têm sido fundamentais para romper isolamentos e<br />

mudar a correlação de forças em favor dos excluídos. Contudo, as análises também mostram que<br />

o empoderamento deve levar a processos de mudança a nível individual, não apenas em termos<br />

de controle de recursos, mas também em termos de uma maior auto<strong>no</strong>mia e autoridade sobre as<br />

decisões que têm influência sobre a própria vida.<br />

25


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

A efetividade de estratégias de empoderamento para o <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> depende do grau<br />

em que estas duas dimensões se articulem na apreensão das causas que originam a <strong>pobreza</strong> do<br />

grupo e do indivíduo. Assim, processo de empoderamento deve responder a estes dois níveis, o<br />

individual e o coletivo.<br />

É importante, contudo, salientar que qualquer processo efetivo de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> e <strong>à</strong><br />

exclusão social que tenha como estratégia o empoderamento deve ser capaz de enfrentar as<br />

causas que dão origem <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> e <strong>à</strong> exclusão <strong>no</strong>s grupos sociais.<br />

A face da <strong>pobreza</strong> é grupal, ela afeta mulheres, favelados, sem-terra, grupos étnicos etc.<br />

Cada grupo é excluído ou pobre por motivos diferentes, embora esses motivos muitas vezes se<br />

justaponham. Os membros desempoderados de cada grupo tendem a estar na parte de baixo dos<br />

mercados, ou excluídos, ou inteiramente marginalizados do processo econômico e social. A <strong>pobreza</strong><br />

de grupos sociais tem freqüentemente histórias longas, onde fatores econômicos, sociais e culturais<br />

interagem, perpetuando a experiência de exclusão e de <strong>pobreza</strong>.<br />

Uma estratégia de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> que privilegia o empoderamento pode ser capaz de<br />

enfrentar a natureza multidimensional da <strong>pobreza</strong> melhor que outras estratégias pelo fato de<br />

colocar as pessoas vivendo na <strong>pobreza</strong> <strong>no</strong> centro da questão. Ela unifica os elementos que<br />

compõem a situação das pessoas vivendo na <strong>pobreza</strong> ao mesmo tempo em que resgata a dimensão<br />

ética do poder para um mundo sustentável em todos os sentidos.<br />

O empoderamento é uma perspectiva que coloca as pessoas <strong>no</strong> centro do processo de<br />

desenvolvimento. Pode parecer simples esta afirmação, mas ela muda radicalmente a perspectiva e a<br />

estrutura na qual o desenvolvimento costuma ser pensado. Apesar de ser uma questão em disputa,<br />

hoje prevalece uma compreensão que equaciona desenvolvimento como crescimento econômico<br />

– e por este caminho se construíram análises, abordagens, políticas e programas. Recolocar as<br />

pessoas e os grupos vivendo na <strong>pobreza</strong> ou excluídos <strong>no</strong> centro do processo de desenvolvimento<br />

significa colocar as instituições econômicas (mercados) e políticas a serviço destes grupos.<br />

Quem pode empoderar quem?<br />

Uma outra questão importante na elaboração de estratégias sobre empoderamento é: quem<br />

empodera quem?<br />

A afirmação de que o empoderamento não pode ser feito em <strong>no</strong>me das pessoas que necessitam<br />

ser empoderadas é um pressuposto de qualquer processo de empoderamento. Isto, <strong>no</strong> entanto,<br />

não significa dizer que as pessoas vivendo na <strong>pobreza</strong> devem sozinhas enfrentar este desafio.<br />

Atores ou agentes, em geral, são necessários em processos de empoderamento, intervindo como<br />

catalisadores destes processos. Uma tentativa de classificação pode identificar dois tipos de atores:<br />

• Agentes exter<strong>no</strong>s (como ONGs, agências de desenvolvimento, gover<strong>no</strong>s) podem contribuir na<br />

criação de um meio ambiente favorável ao empoderamento, ou bem agir como uma barreira.<br />

• O empoderamento pode ocorrer dentro do grupo, através de organizações de base, como<br />

são os movimentos sociais, onde o agente pode ser uma liderança interna ao grupo.<br />

Uma vez que a natureza e o papel do agente catalizador têm conseqüências sobre o processo<br />

de empoderamento, é interessante pensar também outra tipologia segundo o ator social protagonista<br />

da intervenção. Gita Sen propõe a seguinte tipologia:<br />

a. <strong>Empoderamento</strong> por ONGs<br />

b. <strong>Empoderamento</strong> por movimentos sociais<br />

26


— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —<br />

c. <strong>Empoderamento</strong> por ONGs e gover<strong>no</strong>s<br />

d. <strong>Empoderamento</strong> por multilaterais<br />

<strong>Empoderamento</strong> por ONGs<br />

As experiências onde as ONGs têm um papel catalisador têm sido as mais i<strong>no</strong>vadoras, flexíveis<br />

e onde o método de intervenção e o conteúdo são os mais adequados aos indivíduos, grupos e<br />

comunidades. A razão deste sucesso reside, com poucas exceções, <strong>no</strong> fato de que estas experiências<br />

começam pequenas, permanecem pequenas e próximas do grupo.<br />

Em geral, nesta combinação ONGs/grupos, geram-se interessantes comunidades e <strong>no</strong>vos<br />

experimentos de intervenção, seja em termos metodológicos, em termos de prestação de serviço<br />

ou de organização comunitária. Por outro lado, se identificam algumas dificuldades nestas<br />

experiências com relação a sua replicabilidade em outros contextos e/ou sua expansão. Elas têm a<br />

tendência de serem fechadas em si, por diversas razões: limitação de recursos huma<strong>no</strong>s e financeiros<br />

(limitação de profissionais qualificados, de lideranças do grupo), falta de capacidades<br />

específicas para os trabalhos de advocacy e lobby, infra-estrutura deficiente, defasagem de informações<br />

maiores e até princípios ou posicionamentos políticos.<br />

Este tipo de experiência tem apresentado algumas fraquezas <strong>no</strong> que diz respeito a sua capacidade<br />

de alterar duradouramente as condições de vida dos grupos/comunidades envolvidos, de<br />

ampliar sua base de intervenção ou de ser um modelo replicável em outros contextos. Análises<br />

apontam que estas fragilidades muitas vezes resultam do fechamento em si que marcam estas<br />

experiências, sua dificuldade de se relacionar com o gover<strong>no</strong> e políticos. Em geral, dado o contexto<br />

adverso (especialmente o contexto político) que circunda estas experiências, a ONG e/ou grupo<br />

buscam manter sua auto<strong>no</strong>mia a todo custo. E nas interações necessárias para melhorar a situação<br />

do grupo (com o gover<strong>no</strong>, as agências de desenvolvimento e políticos), a ONG e/ou grupo<br />

resistem, pois sabem que serão desafiados a negociar.<br />

<strong>Empoderamento</strong> por movimentos sociais<br />

O empoderamento que ocorre dentro do grupo, através de organizações de base ou movimentos<br />

sociais, onde o agente é inter<strong>no</strong> ao grupo, não vivencia este problema de fechamento em si.<br />

Ao contrário, a relação com agentes exter<strong>no</strong>s como o gover<strong>no</strong> – ainda que possa ser conflitiva –<br />

é uma de suas metas, uma vez que estes são vistos como responsáveis pelo status quo e como<br />

capazes de alterar a situação de <strong>pobreza</strong> em que vive o grupo. Quando obtêm sucesso, estes<br />

grupos ou movimentos sociais tendem a se estender e a se ampliar.<br />

Uma de suas fortalezas é que eles têm clareza dos pontos, das questões que realmente<br />

importam e interessam ao grupo. Vão direto ao centro das questões que perpetuam sua situação<br />

de <strong>pobreza</strong> e de falta de poder e trabalham para mudar e transformar a situação.<br />

Uma das fraquezas que se verifica nestas experiências é que o grupo, nesta atitude de<br />

contestação, de demanda por mudanças estruturais, aumenta sua vulnerabilidade <strong>à</strong> violência de<br />

seus oponentes, dos detentores do poder e dos recursos. Violência da qual o grupo raramente<br />

tem condições de se proteger e que recai especialmente sobre suas lideranças ou sobre os<br />

membros mais fracos e me<strong>no</strong>s empoderados do próprio grupo. No <strong>Brasil</strong> são muitos os exemplos.<br />

Eles vão desde os freqüentes assassinatos de lideranças de trabalhadores que lutam pela posse da<br />

terra e pela reforma agrária até os assalariados da zona canavieira do Nordeste (que quando<br />

27


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

reclamam salários atrasados ou a correta medição da cana cortada sofrem ameaças e até morte),<br />

passando pelas lideranças urbanas de favelas, que acabam constantemente ameaçadas pela<br />

polícia e por grupos de traficantes.<br />

<strong>Empoderamento</strong> por ONGs e gover<strong>no</strong>s<br />

Processos de empoderamento que combinam a ação de ONGs e gover<strong>no</strong> têm mostrado<br />

resultados interessantes em muitos casos. Este tipo de empoderamento resolve o problema de<br />

escala da intervenção, de impacto e também a questão da replicabilidade. Também apresenta<br />

como fortaleza o aumento da proteção do grupo, diminuindo a incidência de violência por parte<br />

de oligarquias e seus interesses.<br />

Mas na fortaleza deste tipo de experiência também reside sua maior fraqueza. Esta interação<br />

entre ONGs, comunidades e Estado se dá sob constante pressão por uma adaptação aos métodos<br />

e <strong>à</strong> agenda do gover<strong>no</strong>. E o perigo de cooptação ou de sucumbir <strong>à</strong>s pressões políticas e burocráticas<br />

do gover<strong>no</strong> está permanentemente presente tensionando as relações, podendo gerar desentendimento<br />

ou divisão entre ONG e grupo de base.<br />

<strong>Empoderamento</strong> por multilaterais<br />

O empoderamento proposto por agências multilaterais tem também pontos fortes e fracos.<br />

O reconhecimento de que o empoderamento é um elemento chave para romper o ciclo da <strong>pobreza</strong><br />

abre possibilidades para o desenho de políticas mais adequadas de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>, como<br />

também espaços de participação na elaboração e implantação dessas políticas que podem favorecer<br />

os grupos vivendo na <strong>pobreza</strong>.<br />

As fragilidades, <strong>no</strong> entanto, ainda são muitas para que o discurso e as intenções de mudança<br />

existentes em documentos de organismos como o Banco Mundial possam alterar a presente<br />

realidade de exclusão e de aumento da <strong>pobreza</strong>.<br />

O empoderamento ganha uma perspectiva funcional que pouco contribui para a agency das<br />

pessoas/comunidades vivendo situações de <strong>pobreza</strong>. O reconhecimento da necessidade de empoderamento<br />

dos “pobres” ganha sentido em um contexto marcado pela busca de eficiência de<br />

programas e projetos (o que não é razão para desmerecer a proposta, pois eficiência em programas<br />

de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> deveria ser a <strong>no</strong>rma e não exceção). Todavia, uma perspectiva instrumental<br />

de empoderamento dificilmente implicará o desenho de políticas e instrumentos que sejam capazes<br />

de empoderar os grupos em uma perspectiva sustentável, que considerem os constrangimentos<br />

existentes em níveis local, nacional e global que reforçam a situação de desempoderamento dos<br />

grupos vivendo em extrema <strong>pobreza</strong>.<br />

Uma perspectiva instrumental de empoderamento afasta a possibilidade de alterações políticas<br />

substantivas em favor dos pobres, ficando muitas vezes o empoderamento circunscrito aos programas<br />

e projetos de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> ou, quando muito, a alguma intervenção pontual <strong>no</strong> cenário<br />

nacional. Contudo, <strong>no</strong> âmbito político e das políticas macro (nacionais e internacionais), as regras que<br />

geram e perpetuam os mecanismos de exclusão social continuam fora do alcance destes grupos.<br />

A tipologia acima descrita pode ajudar a entender o papel e a contribuição potencial de<br />

agentes exter<strong>no</strong>s enquanto catalisadores de processos de empoderamento. Em última instância é<br />

importante ter presente que o empoderamento é algo que não pode ser feito em <strong>no</strong>me daqueles<br />

que devem ser empoderados. Processo de empoderamento precisa ter <strong>no</strong> centro as pessoas e<br />

grupos desempoderados, suas visões, aspirações e prioridades.<br />

28


— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —<br />

Os agentes exter<strong>no</strong>s podem contribuir de maneira fundamental para dar corpo a este processo,<br />

tornando acessíveis instituições e níveis de decisão política que na maioria dos casos estão inacessíveis<br />

a estes grupos, compartindo informações qualificadas, construindo alianças, apoiando a intervenção<br />

destes grupos, facilitando a sua presença em fóruns e redes, contribuindo para a construção<br />

da identidade e da representação política destes grupos e construindo uma visão compartilhada<br />

sobre o desenvolvimento. Além destas possibilidades e oportunidades de ação, o agente exter<strong>no</strong><br />

tem particular responsabilidade de construir uma relação e uma forma respeitosa de trabalhar<br />

com os grupos vivendo na <strong>pobreza</strong>. Abandonar o top-down approach, as soluções pensadas<br />

pelos experts conhecedores dos problemas sociais mundiais e se acercar <strong>à</strong> realidade do contexto<br />

local conhecendo os mecanismos locais de perpetuação da <strong>pobreza</strong> e da exclusão e vinculando-os<br />

com os mecanismos em nível macro são exigências para um efetivo trabalho de empoderamento.<br />

Algumas ONGs estão em excelente posição para liderar este processo.<br />

3. <strong>Empoderamento</strong> como estratégia<br />

de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong><br />

Como já foi afirmado, as pessoas empoderam-se a si mesmas. Entretanto, gover<strong>no</strong>s, ONGs e<br />

outros atores sociais podem desempenhar um papel vital tanto em bloquear estes processos<br />

quanto em criar um ambiente onde políticas, recursos financeiros e huma<strong>no</strong>s, informação, conhecimento,<br />

acesso a instituições e apoio para mudar a cultura institucional de atores importantes do<br />

campo do desenvolvimento possam impulsioná-los.<br />

No campo das políticas<br />

Em contexto onde existe democracia, um procedimento que contribui na criação de ambiente<br />

favorável é a mudança ou aprovação de <strong>no</strong>vas leis que apóiem as iniciativas dos excluídos e<br />

pobres. Estas leis podem cobrir um amplo espectro de questões, como discriminação, mudança<br />

na legislação civil sobre herança, sobre proteção de áreas comunais de acesso a recursos e sobre<br />

populações indígenas, ou ainda a introdução de <strong>no</strong>rmas que facilitem o acesso a crédito em<br />

bancos públicos, por exemplo. Nenhum destes mecanismos por si só constitui uma garantia de<br />

empoderamento, mas a existência deles sem dúvida remove barreiras – o que pode contribuir<br />

para que o grupo e as pessoas desempoderadas tenham acesso a recursos e possam desenvolver<br />

suas capacidades.<br />

Mas as leis por si só, e freqüentemente, não são suficientes, porque em todos os países do<br />

“Sul” são pobremente implementadas. Outros passos mais ativos precisam ser dados. É importante<br />

a promoção e implementação de processos participativos na gestão das políticas. Os gover<strong>no</strong>s devem<br />

assegurar canais para que os grupos e pessoas vivendo na <strong>pobreza</strong> possam fazer parte de instâncias<br />

de definição, implantação e monitoramento de políticas mais gerais (como orçamento participativo,<br />

conselhos de políticas sociais, segurança alimentar, previdência, conselhos de saúde, educação) e<br />

também dentro de programas de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> e <strong>à</strong> exclusão (mas não somente nestes<br />

espaços). A participação é um elemento constitutivo das estratégias de empoderamento. 4<br />

4 Analisaremos logo em seguida as limitações e dificuldades da participação.<br />

29


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

A descentralização de gover<strong>no</strong>s centrais pode pavimentar o caminho para uma maior participação<br />

de grupos sociais <strong>no</strong> nível local e, nesse sentido, atender melhor <strong>à</strong>s necessidades dos<br />

excluídos. Mas o processo de descentralização pode também ser feito sem o empoderamento dos<br />

excluídos. Isto é particularmente verdade em lugares onde existem oligarquias ou famílias com<br />

forte controle do poder local. Nestes casos, o processo de descentralização pode desempoderar<br />

ainda mais os excluídos.<br />

É importante analisar cuidadosamente a relação existente entre empoderamento e descentralização.<br />

Descentralização é um meio que serve a várias finalidades. Embora possam estar relacionados,<br />

empoderamento e descentralização não são sinônimos. A contribuição que um processo<br />

de descentralização pode fazer ao empoderamento de grupos e pessoas depende do contexto,<br />

das questões envolvidas (etnia, gênero, religião) na manutenção de processos de<br />

desempoderamento e de exclusão.<br />

No campo da informação<br />

Uma outra política em direção a remover barreiras e a viabilizar processos de empoderamento<br />

é promover o acesso <strong>à</strong> informação para as pessoas vivendo na <strong>pobreza</strong>. Informação é freqüentemente<br />

um dos recursos mais guardados e controlados em programas de desenvolvimento.<br />

Como é de conhecimento geral, o controle de informação ou a falta de transparência é o mecanismo<br />

mais usado pela corrupção. Ter controle sobre informações é um elemento fundamental<br />

para o empoderamento. Com informações as pessoas, os grupos, têm uma oportunidade de sair<br />

da condição de “beneficiário” para ser um agente ativo do processo.<br />

O controle sobre o conhecimento e a informação pode levar <strong>à</strong> mudança nas relações de poder<br />

e, portanto, estratégias de geração de conhecimentos e difusão de informações sobre os níveis<br />

locais, regionais e globais são fundamentais como mecanismos de empoderamento. Entretanto,<br />

conhecimento não é como uma laranja a ser colhida de uma árvore. Pelo contrário: é um elemento<br />

embebido <strong>no</strong> contexto social e ligado <strong>à</strong>s diferentes posições de poder. Metodologias de participação<br />

que têm como objetivo o empoderamento não devem assumir que os pobres e excluídos possuam<br />

a priori conhecimentos e capacidades analíticas de interpretação e análise da informação, independente<br />

do grau de educação ou capacitação, ou do lugar que ocupam na estrutura social local.<br />

Se bem que estas capacidades são fortalecidas pelo método participativo, a promoção de capacidades<br />

analíticas e de planejamento é um elemento fundamental dentro deste processo.<br />

Gover<strong>no</strong>s, agências multilaterais e ONGs, ao mesmo tempo em que podem disponibilizar e<br />

viabilizar o acesso livre <strong>à</strong> informação de variadas naturezas (sobre programas, gerenciamento,<br />

<strong>direitos</strong>, eco<strong>no</strong>mia etc.) que têm impacto sobre a <strong>pobreza</strong>, tem também como tarefa fundamental<br />

investir na construção de capacidades em nível local.<br />

No campo da cultura institucional<br />

O que tem permanecido como uma barreira para o empoderamento de grupos e pessoas é a<br />

prevalência de visões autoritárias, políticas feitas “de cima para baixo”, de pouca ou nenhuma<br />

prestação de contas, de posturas arrogantes, arbitrárias ou assistencialistas, por parte dos gover<strong>no</strong>s,<br />

de organizações privadas e também de alguns atores do campo do desenvolvimento. Esta talvez<br />

seja a mudança mais difícil de se realizar – mudança nas instituições e na cultura institucional<br />

destes atores. A cultura institucional dos grandes atores do desenvolvimento tem hoje um impacto<br />

brutal, e em geral negativo, <strong>no</strong>s processos de empoderamento dos grupos.<br />

30


— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —<br />

Apesar de haver movimentos que integram práticas participativas e burocracias governamentais,<br />

a maioria dos funcionários do gover<strong>no</strong> tem pouco entendimento e simpatia pelas técnicas<br />

participativas e ainda tendem a não acreditar na capacidade das pessoas que vivem na <strong>pobreza</strong> de<br />

pensar e propor políticas de desenvolvimento. A participação dos mais pobres é freqüentemente<br />

neutralizada pelos funcionários do gover<strong>no</strong> que operam em um contexto que desvaloriza as opiniões<br />

e contribuições, particularmente das mulheres, em assuntos públicos.<br />

Tomando como foco o gover<strong>no</strong>, muito ainda há para fazer. As mudanças nesta área devem<br />

ser precedidas de análises cuidadosas para se identificar onde estão os gargalos e nós procedendo a<br />

mudanças estratégicas ao invés de medidas confrontativas com o corpo funcional como um todo.<br />

A reorientação através de treinamento e introdução de <strong>no</strong>vos protocolos para os funcionários<br />

podem também se mostrar efetivas. O apoio de agentes exter<strong>no</strong>s se mostra fundamental para que<br />

estas mudanças ocorram. Em nível local este aspecto é ainda mais crucial. As ONGs que trabalham em<br />

parceria com gover<strong>no</strong>s devem desenvolver atividades e estratégias direcionadas a mudar a cultura<br />

institucional dos órgãos governamentais, visando a mudanças nas atitudes e práticas dos servidores<br />

públicos Um exemplo que tem tido sucesso <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> é a implantação do Programa de Proteção a<br />

Testemunhas, que deixa atividades de treinamento para policiais, entre outras ações, a cargo de<br />

ONGs de <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s. Este trabalho tem sido capaz de criar uma <strong>no</strong>va cultura dentro de<br />

setores da polícia.<br />

No campo da construção de capacidades: participação<br />

O tema da participação tem ganhado destacada relevância como mecanismo de empoderamento.<br />

Quase todas as instituições de estudo, pesquisa e apoio voltadas para a cooperação ao<br />

desenvolvimento têm produzido muitas análises sobre processos participativos. 5 Grande parte<br />

destas análises compõe-se de pesquisas de campo que relacionam os temas participação, cidadania,<br />

poder e políticas de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>. A abundância de material <strong>no</strong>s levou a dedicar algumas<br />

linhas a este tema.<br />

A crítica <strong>à</strong> performance da cooperação oficial e de seus programas motivou o surgimento de<br />

metodologias que rejeitavam as práticas de “cima pra baixo”. Muitos esforços foram consagrados a<br />

buscar caminhos alternativos que respeitassem o conhecimento e as experiências locais das pessoas<br />

que vivem na <strong>pobreza</strong> em sua luta pela cidadania. Estas metodologias introduziram práticas<br />

participativas que buscavam resgatar a centralidade dos grupos e das pessoas <strong>no</strong> processo de<br />

definir prioridades, encontrar soluções para os problemas e serem sujeitos de programas, projetos<br />

e políticas visando ao empoderamento das organizações de base e das comunidades.<br />

As metodologias participativas desenvolvidas por estudiosos como Freire, <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, e Chambers,<br />

na Inglaterra, tornaram-se a bíblia de ativistas e profissionais engajados em processos de desenvolvimento<br />

participativo e em desenvolverem estratégias de empoderamento em nível local.<br />

Algum tempo foi preciso até que participação se tornasse uma das palavras-chave para todos os<br />

atores do campo do desenvolvimento, inclusive instituições como o Banco Mundial, agências<br />

oficiais de cooperação e gover<strong>no</strong>s.<br />

Hoje o processo de empoderamento é visto como estreitamente relacionado ao de participação.<br />

Experiências em diversas partes do mundo têm mostrado que processos de participação possibilitam<br />

5 A participação aparece como um tema prioritário de pesquisa em instituições como IDS, University of Sussex , Centre for<br />

Development Studies, SWANSEA, University of Wales e Intrac.<br />

31


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

processos de empoderamento e que estas metodologias favorecem o estabelecimento de políticas<br />

e práticas de desenvolvimento que contemplam as necessidades das pessoas vivendo na <strong>pobreza</strong>.<br />

As metodologias participativas, como o PRA e suas variantes, que emergem <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 1980,<br />

são ainda hoje atuais. Têm o mérito, entre outros, de mudar o lócus do conhecimento, deslocando-o<br />

das instituições (do Estado, por exemplo) para as pessoas e organizações de base do local; de<br />

encorajar o desenvolvimento das capacidades do grupo local; de analisar sua situação; e de identificar<br />

problemas e soluções.<br />

As metodologias participativas são desenhadas para trazer os me<strong>no</strong>s privilegiados para dentro<br />

do processo de desenvolvimento. A inclusão assistida por comunicação verbal e visual é o pilar<br />

que Chambers considera vital para o empoderamento das pessoas e que pode provocar uma<br />

mudança fundamental em suas vidas. Chambers, e outros, estão conscientes de que não se trata<br />

de um processo simples. Contudo, crêem que os impedimentos e os obstáculos existentes <strong>no</strong><br />

processo podem ser ultrapassados pelos participantes com a ajuda de “facilitador/as”.<br />

A ênfase <strong>no</strong> local tem sido objeto de muitas análises que apontam que ela precisa ser complementada<br />

com uma análise das estruturas de poder, dos discursos e das práticas em nível nacional e<br />

global. Esta vinculação entre o micro e o macro tem-se mostrado muito necessária e é um dos elementos<br />

diferenciais (value added) que uma ONG internacional (ou agência de cooperação) pode aportar a<br />

processos de empoderamento de grupos, movimentos sociais e comunidades desempoderados.<br />

Constrangimentos de ordem política ou econômica, como programas de ajustes estruturais,<br />

também impedem mudanças apesar da participação. Aqui o apoio <strong>no</strong> desenvolvimento de estratégias<br />

que façam o vínculo entre questões macro e micro é também importante. O estabelecimento<br />

de alianças e redes Norte–Sul e a formação de redes globais são estratégias que tiram o processo<br />

de empoderamento da sua condição de processo localizado. Este é mais um importante espaço<br />

onde as ONGs internacionais podem desempenhar um papel de grande relevância.<br />

As metodologias participativas que visam ao empoderamento de grupos não devem subestimar<br />

a complexidade e a tenacidade das estruturas do poder local. É preciso estar atento <strong>à</strong> multidimensionalidade<br />

de fatores que produzem e reproduzem a exclusão e a <strong>pobreza</strong>. Discursos muitas vezes<br />

democráticos e de participação podem esconder as estruturas de poder local, tornando difícil a<br />

tarefa de estabelecer o empoderamento dos mais fragilizados dentro de grupos (mulheres, negros,<br />

índios etc.). A intervenção de ONGs é também importante para dar maior visibilidade a estes<br />

grupos mais vulneráveis e aumentar sua proteção contra a violência do Estado ou de oligarquias.<br />

Agentes exter<strong>no</strong>s como as ONGs internacionais podem contribuir em trabalhos de persuasão<br />

e discussão, bem como apoiar as ações de mobilização social dos grupos locais em nível local,<br />

nacional e internacional. A formação de alianças tanto interna (com instâncias nacionais do gover<strong>no</strong>,<br />

por exemplo) quanto externa (com outros grupos sociais locais ou internacionais com maior<br />

capacidade de influenciar o poder local) é um aspecto fundamental.<br />

Já mencionamos também a necessidade de investir na construção de capacidades que são<br />

importantes para possibilitar uma participação completa em todas as fases de desenvolvimento<br />

das políticas, programas e projetos. O apoio <strong>à</strong> construção de representação política de grupos<br />

vivendo na <strong>pobreza</strong> é também fundamental para que a participação se dê dentro de um marco<br />

civil e político e não se reduza <strong>à</strong> administração de problemas da <strong>pobreza</strong>.<br />

É importante evitar que os processos participativos sejam superficiais, feitos para satisfazer<br />

exigências de doadores e se reduzindo, na prática, a processos meramente consultivos. Muitos têm<br />

sido os casos (Uganda, Nigéria e Casaquistão, por exemplo) onde a elaboração dos PRCR tem<br />

resultado em consultas e não em participação.<br />

32


— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —<br />

Este elenco de questões aqui apresentado tem sido debatido por muitos pesquisadores e<br />

practitioners que buscam tanto entender melhor estes processos quanto aperfeiçoar as metodologias<br />

participativas. Aprofundar a análise sobre poder parece ser um caminho. Para alguns<br />

estudiosos, <strong>no</strong> marco atual das metodologias participativas, é fácil entender por que hoje elas,<br />

as abordagens participativas, são tão amplamente aceitáveis para tão variadas, diferentes e<br />

conflitantes organizações.<br />

Essas questões sobre participação servem de alerta para processos de empoderamento.<br />

Entretanto, é preciso ter claro que são conceitos diferentes. Enquanto empoderamento pode ser<br />

considerado um fim em si mesmo, participação é um meio para se atingir fins e esse fim pode ou não<br />

ser o empoderamento das pessoas excluídas e vivendo na <strong>pobreza</strong>. Se as metodologias participativas<br />

não ficarem limitadas ao nível micro e forem capazes de romper o isolamento de alguns grupos<br />

sociais, poderão impulsar processos de empoderamento fundamentais para mudar relações sociais,<br />

políticas e econômicas e criar identidades positivas para as pessoas que vivem na <strong>pobreza</strong>.<br />

Uma sociedade mais eqüitativa em termos de distribuição de poder na estrutura social é<br />

condição fundamental nas estratégias de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> e <strong>à</strong> exclusão nas sociedades lati<strong>no</strong>americanas.<br />

Diferentemente de alguns outros países na Ásia ou na África, <strong>no</strong>s países da América<br />

Latina – com poucas exceções – há recursos econômicos que podem ser redistribuídos e apropriados<br />

por grupos sociais hoje submergidos na <strong>pobreza</strong> e na exclusão, há processos de democratização<br />

que precisam ser aprofundados e há movimentos sociais que precisam ser ampliados e fortalecidos.<br />

Neste contexto, as estratégias de empoderamento são cruciais na luta pela inclusão social e<br />

econômica e para a cidadania na região.<br />

4. Criticas <strong>à</strong> estratégia de empoderamento<br />

Muitas experiências de desenvolvimento espalhadas pelo mundo têm mostrado que o empoderamento<br />

é uma perspectiva que toma seriamente o desafio da sustentabilidade das mudanças obtidas<br />

pelos grupos, comunidades. Quando as diferentes dimensões, aumento da auto-estima, do despertar<br />

da capacidade de ação dos grupos e pessoas e o acesso aos meios de vida, se conjugam e produzem<br />

<strong>no</strong> grupo, nas pessoas, mudanças em sua situação, o desafio que se coloca é como garantir a<br />

permanência e o aprofundamento destas conquistas.<br />

Poucas intervenções de desenvolvimento conseguem avançar <strong>no</strong> crucial elemento da sustentabilidade.<br />

Seja porque não há uma mudança nas relações de poder, seja porque ao terminar o<br />

apoio a experiência não conseguiu consolidar as bases para seguir adiante, seja porque o grupo<br />

não rompeu com o status de beneficiários e não alcançou a dimensão de ser também um propositor<br />

de políticas, 6 de programas, nem construiu alianças. Enfim: não se empoderou.<br />

Apesar de apresentar vantagens em relação a outras abordagens, a perspectiva do empoderamento<br />

parece complicada aos olhos de perspectivas mais pragmáticas. De modo geral, os malentendidos<br />

e críticas <strong>à</strong> perspectiva do empoderamento podem ser sumarizados em três aspectos:<br />

6 Mesmo <strong>no</strong> campo da relação entre ONGs do Norte e seus parceiros do Sul, o empoderamento dos parceiros deve ter efeitos.<br />

Os parceiros devem ser empoderados de forma que possam ser capazes de propor políticas, dialogar com os níveis de tomadas<br />

de decisão sobre suas perspectivas e necessidades. Deve haver a possibilidade de construção de uma visão compartilhada sobre<br />

métodos de trabalho, sobre prioridades, sobre políticas. Não havendo esta possibilidade, corremos o risco de repetir<br />

comportamentos que estamos cansados de criticar na cooperação oficial e multilateral.<br />

33


Custos<br />

— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Uma primeira crítica levantada é sobre o custo da perspectiva de empoderamento. Para alguns<br />

ela é muito custosa em termos de tempo e recursos. Sen rebate esta crítica lembrando que “os<br />

programas tradicionais de erradicação da <strong>pobreza</strong> são conhecidos pela sua ineficiência e desperdício<br />

de recursos precisamente porque as pessoas pobres não têm poder para exigir de burocratas,<br />

oficiais do gover<strong>no</strong> ou dos políticos uma prestação de contas dos fundos e recursos gastos em<br />

<strong>no</strong>me dos pobres”. Estes desperdícios e ineficiência dos milhões de recursos aplicados nestes<br />

programas são fortes razões instrumentais para se adotar a perspectiva de empoderamento que,<br />

se não é barata, leva a que os milhões de recursos destinados “aos pobres”, as políticas sociais,<br />

não sejam mal-empregados ou embolsados pela corrupção. 7<br />

Metodologia<br />

Uma segunda preocupação é sobre a metodologia. Para muitos as metodologias de empoderamento<br />

parecem muito complicadas para programas de larga escala. Exemplos também mostram<br />

que estas metodologias obtêm sucesso em programas grandes e se mostram efetivos. A questão<br />

da metodologia, na opinião de Sen, está mais ligada <strong>à</strong> questão de se mudar os paradigmas dos<br />

grandes programas. Ainda se observa que a orientação nestes projetos segue a lógica top-down,<br />

da expertise do corpo técnico.<br />

A questão não é que uma metodologia seja mais ou me<strong>no</strong>s complicada que a outra. As dificuldades<br />

estão em ambos os lados e se trata de fazer uma escolha: fazer os grupos e comunidades<br />

entenderem a lógica dos técnicos ou fazer os técnicos entenderem a lógica das comunidades.<br />

Parece-<strong>no</strong>s que até por uma questão de escala deveria ser mais fácil fazer um grupo de técnicos<br />

entenderem as necessidades e aspirações das comunidades. A não ser que a questão em jogo não<br />

seja a de metodologias, mas sim de poder. Ao se decidir por valorizar o conhecimento, por<br />

considerar a multidimensionalidade das necessidades das pessoas vivendo na <strong>pobreza</strong>, assim como<br />

suas capacidades, estaremos enfrentando metodologicamente os reais problemas, os reais desafios.<br />

Mensuração<br />

Uma terceira questão muito freqüente é: pode o empoderamento ser acuradamente mensurável<br />

de forma que programas com esta perspectiva possam ser avaliados? Para Sen esta questão não é mais<br />

ou me<strong>no</strong>s complexa que a que se pode fazer a qualquer outro indicador qualitativo. Indicadores<br />

objetivos como subjetivos têm sido usados por programas que adotam a perspectiva de empoderamento.<br />

Se os programas têm objetivos específicos como educação, crédito, saúde ou geração de<br />

renda, os standards padrões usuais de mensuração podem ser usados. Entretanto, estas medidas<br />

podem ser somente aproximações com relação <strong>à</strong> mensuração de processos de empoderamento de<br />

natureza mais qualitativa. É de particular importância que métodos de avaliação sejam construídos<br />

onde as respostas e o feedback sobre as preocupações das pessoas e das comunidades sejam avaliados.<br />

7 A perspectiva do empoderamento é importante em diferentes contextos políticos. Nos países lati<strong>no</strong>-america<strong>no</strong>s, onde a<br />

democracia foi restabelecida combinando mobilização social com processo orquestrado pelas elites, a chamada “transição por<br />

cima”, é fundamental assegurar o fortalecimento da sociedade civil para que haja governabilidade, para que a cidadania e a<br />

democracia finquem raízes sólidas. Tomar os processos políticos existentes nestes países como completos, acabados, é um erro<br />

não só de julgamento, mas sobretudo de análise. As situações da Argentina, Venezuela e Colômbia não deixam dúvida quanto<br />

<strong>à</strong>s fragilidades existentes na região.<br />

34


— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —<br />

5. Aproximações e distanciamentos<br />

com a abordagem baseada em <strong>direitos</strong><br />

Entre as abordagens <strong>no</strong> campo do desenvolvimento percebe-se, <strong>no</strong>s últimos a<strong>no</strong>s, que um<br />

número cada vez maior de instituições começa a utilizar a perspectiva baseada em <strong>direitos</strong> (based<br />

rights approach). Os <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s, tais como são conhecidos hoje, são o resultado de um<br />

processo longo de lutas e acordos sobre princípios e padrões legais e morais. No entanto, um<br />

momento fundamental em matéria de afirmação de <strong>direitos</strong> em nível global é a Conferencia<br />

Mundial da ONU realizada em Viena em 1993. Nela se afirmam a indivisibilidade e universalidade dos<br />

<strong>direitos</strong> civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dentro do conjunto dos <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s.<br />

É também de particular importância o Relatório de Desenvolvimento Huma<strong>no</strong> das Nações<br />

Unidas de 2000, que explora esta abordagem apontando que a perspectiva de desenvolvimento<br />

huma<strong>no</strong> deve ter como base os <strong>direitos</strong> que são, antes de tudo, complementares. O Banco Mundial<br />

parece estar também avançando nessa linha como estratégia para suas políticas, como indicam<br />

alguns de seus documentos mais recentes (setembro de 2000). Várias ONGs européias também<br />

estão trabalhando dentro desta perspectiva: na Inglaterra, Oxfam GB, Cafod, Christian Aid e Save<br />

the Children; na Alemanha, EED e PPM; na Holanda, Icco, Novib e Cordaid; e também grandes<br />

alianças como Oxfam Internacional e Save the Children Alliance (ver <strong>no</strong> anexo da p.41 a perspectiva<br />

da Oxfam Internacional).<br />

O conceito: perspectiva baseada <strong>no</strong>s <strong>direitos</strong><br />

A abordagem com base em <strong>direitos</strong> para o desenvolvimento é uma estrutura conceitual8 que<br />

assenta em padrões e operacionalização voltadas para a promoção e proteção dos <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s.<br />

Ela integra as <strong>no</strong>rmas, padrões e princípios do sistema internacional de <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s em<br />

pla<strong>no</strong>s, políticas e processos de desenvolvimento.<br />

As <strong>no</strong>rmas e standards são aqueles contidos <strong>no</strong> rico acervo de tratados e declarações internacionais.<br />

Os princípios incluem: igualdade, eqüidade, prestação de contas, empoderamento e<br />

participação. A perspectiva baseada em <strong>direitos</strong> se assenta <strong>no</strong>s seguintes elementos:<br />

• expressam ligação entre os <strong>direitos</strong><br />

• prestação de contas em sentido amplo (accountability)<br />

• empoderamento<br />

• participação<br />

• não discriminação e atenção a grupos vulneráveis.<br />

A definição de objetivos de desenvolvimento em termos de <strong>direitos</strong> específicos, como uma<br />

titulação legalmente exigível, é um elemento essencial da perspectiva baseada em <strong>direitos</strong>, assim<br />

como a criação de vínculos <strong>no</strong>rmativos e instrumentos que liguem os <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s em nível<br />

internacional, regional e nacional.<br />

8 Apesar de existirem variações na conceitualização da perspectiva baseada em <strong>direitos</strong>, de maneira geral todos estes atores<br />

reconhecem o ser huma<strong>no</strong> como o centro do processo de desenvolvimento. Na definição de Amartya Sen, a perspectiva dos<br />

<strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s engloba três importantes aspectos: 1. a intrínseca importância dos seres huma<strong>no</strong>s; 2. o seu papel<br />

conseqüência <strong>no</strong> desenvolvimento econômico; e 3. o seu papel construtivo, na gênese de valores e prioridades. Direitos<br />

huma<strong>no</strong>s têm valor intrínseco e também instrumental para o desenvolvimento. Desenvolvimento huma<strong>no</strong> requer <strong>direitos</strong><br />

huma<strong>no</strong>s <strong>no</strong> sentido de reconhecimento legal e político da liberdade das pessoas, bem como de seus <strong>direitos</strong> fundamentais.<br />

35


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

A conceitualização de <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s considera-os um múltiplo conjunto indivisível, interdependente<br />

e inter-relacionado de <strong>direitos</strong>: civil, político, econômico, cultural e social. Isto implica<br />

que a estrutura de <strong>direitos</strong> internacionalmente garantida cobre, por exemplo, saúde, educação,<br />

moradia, acesso <strong>à</strong> justiça, segurança pessoal e participação política.<br />

Segundo o relatório das Nações Unidas é inaceitável que sejam implementadas políticas,<br />

projetos ou atividades que tenham como efeito a violação de <strong>direitos</strong> ou que os <strong>direitos</strong> sirvam<br />

como base de negociação para o desenvolvimento (trocar <strong>direitos</strong> trabalhistas por acesso a investimento<br />

de capitais transnacionais em zonas francas tem sido uma política bastante freqüente em<br />

vários países de América Central). 9<br />

A intervenção desta perspectiva busca aumentar os níveis de prestação de contas, através do<br />

exercício de identificação de quais são os <strong>direitos</strong> existentes e acordados, quem são os titulares<br />

desses <strong>direitos</strong> (entitlements) e os correspondentes responsáveis por realizar e promover o acesso<br />

a estes <strong>direitos</strong>. A orientação adotada por muitos que estão trabalhando <strong>no</strong> campo dos <strong>direitos</strong><br />

tem sido a de identificar um amplo leque de relevantes atores que têm responsabilidade na<br />

promoção, provisão e proteção dos <strong>direitos</strong>, elencando neste rol gover<strong>no</strong>s, autoridades e organizações<br />

locais, companhias privadas e instituições e doadores internacionais.<br />

Um dos sentidos desta abordagem é a adoção dos atuais standards de <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s<br />

como um marco universal para se mensurar a promoção e progresso dos <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s em<br />

todas as partes do mundo, assim como para assegurar um patamar para a prestação de contas.<br />

Pela Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos, os Estados nacionais são os primeiros<br />

responsáveis por prover, assegurar e proteger <strong>direitos</strong>. A impossibilidade de realizar este conjunto<br />

de <strong>direitos</strong> por parte dos Estados nacionais implica que a comunidade internacional deve assegurar<br />

meios para garantir estes <strong>direitos</strong>.<br />

Pela Convenção Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Estado nacional<br />

também é o primeiro responsável por assegurar o respeito a este conjunto de <strong>direitos</strong>. Todavia, a<br />

não realização por parte do Estado nacional de alguns dos <strong>direitos</strong> contidos nesta declaração não<br />

pode ser contestada perante nenhuma corte, uma vez que não existe jurisdição para seu julgamento.<br />

São <strong>direitos</strong>, mas necessariamente não contam com mecanismos de exigibilidade.<br />

As perspectivas mais recentes adotam o empoderamento como um elemento dos <strong>direitos</strong>.<br />

Contudo, múltiplas interpretações e intenções estão em jogo neste ponto em particular. O leque<br />

de interpretações que sustentam a presença e a importância do empoderamento dentro dos<br />

<strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s vai de uma recusa a trabalhar o desenvolvimento como uma questão de caridade<br />

(criando e recriando a dependência), passando por criar a figura do beneficiário de projetos e<br />

programas (como portador de <strong>direitos</strong> com capacidades de monitorar os projetos), até questões<br />

ligadas <strong>à</strong> eficácia/eficiência de programas <strong>no</strong>s quais a participação das pessoas pobres na concepção,<br />

implementação e avaliação de projetos/programas/políticas aparece como uma garantia para seu<br />

sucesso. Uma interpretação que vem ganhando força é a que busca juntar e não dissociar os<br />

<strong>direitos</strong> civis e políticos (o direito a ter voz, o direito a ser escutado) dos <strong>direitos</strong> econômicos,<br />

sociais, culturais e ambientais.<br />

A importância que a participação tem ganho na agenda de atores-chave do desenvolvimento<br />

tem levado <strong>à</strong> incorporação do empoderamento ao arcabouço do desenvolvimento e das políticas.<br />

9 Os exemplos na história recente de América Latina, onde os gover<strong>no</strong>s militares que aboliram <strong>direitos</strong> civis e políticos – entre<br />

outros – com base em argumentos de ordem e crescimento econômico, parecem não combinar com esta argumentação, nem<br />

tampouco os programas de ajuste propostos pelo FMI <strong>à</strong> Argentina e outros países da região.<br />

36


— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —<br />

Todavia, há que se ressaltar que esta permanente tentativa de acomodar todos os elementos<br />

(antes particulares <strong>à</strong>s visões alternativas de desenvolvimento) produzindo uma visão de consenso<br />

sobre o desenvolvimento tem dificultado a emergência de discussões sobre as relações de poder<br />

que perpetuam a <strong>pobreza</strong>. Discutir poder e desenvolvimento está cada vez mais fora de questão.<br />

Oportunidades da perspectiva baseada em <strong>direitos</strong><br />

Algumas oportunidades e vantagens têm sido apontadas por aqueles que têm adotado o<br />

rights based approach.<br />

• O fortalecimento da prestação de contas (accountability) através da identificação de responsáveis<br />

e daqueles que têm tido seus <strong>direitos</strong> negados, negligenciados ou não protegidos.<br />

O fortalecimento da prestação de contas tem sido visto como um mecanismo de quebra de<br />

poder arbitrário e de visões assistenciais e caritativas <strong>no</strong> desenvolvimento.<br />

• Maiores níveis de empoderamento, apropriação, liberdade e participação colocando os<br />

beneficiários <strong>no</strong> centro do desenvolvimento.<br />

• Maior clareza e detalhamento das <strong>no</strong>rmas, provisionadas pelos instrumentos e interpretações<br />

internacionais que listam e definem o conteúdo, incluindo-se os requerimentos para <strong>direitos</strong><br />

como saúde, educação, moradia e governabilidade. Os standards, tratados, convenções e<br />

guias de princípios são públicos e estão acessíveis, descrevendo em detalhes os requerimentos<br />

institucionais de vários <strong>direitos</strong> garantidos.<br />

• Consenso mais fácil, aumento de transparência e me<strong>no</strong>s barganha política em processos<br />

nacionais de desenvolvimento. Objetivos, indicadores e pla<strong>no</strong>s podem ser baseados em<br />

padrões universais de <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s ao invés de modelos importados, soluções prescritas<br />

ou perspectivas partidárias ou políticas arbitrárias.<br />

• Uma mais ampla e completa compreensão baseada em <strong>direitos</strong> abarcando todas as áreas de<br />

desenvolvimento huma<strong>no</strong> (segurança, moradia, justiça, participação, saúde, educação).<br />

• Um conjunto integrado de salvaguardas contra da<strong>no</strong>s não intencionais de projetos de<br />

desenvolvimento.<br />

• Uma análise mais completa e efetiva da <strong>pobreza</strong>, ultrapassando análises baseadas em<br />

indicadores econômicos. A perspectiva baseada em <strong>direitos</strong> revela a preocupação com os<br />

pobres, incluindo o fenôme<strong>no</strong> da ausência de poder e a exclusão social. Uma análise mais<br />

correta sobre a <strong>pobreza</strong> corresponde a melhores respostas e melhores resultados.<br />

• Uma base de maior autoridade para trabalhos de advocacy <strong>no</strong> reclame de recursos e obrigações<br />

em níveis internacionais e nacionais. Por exemplo, nesta perspectiva se pode advogar<br />

que um Estado gaste me<strong>no</strong>s em despesas militares e dirija os recursos para a promoção do<br />

acesso <strong>à</strong> saúde.<br />

Fragilidades da perspectiva baseada em <strong>direitos</strong><br />

Identificadas as fortalezas da perspectiva baseada em <strong>direitos</strong>, cabe também dar atenção a<br />

algumas dificuldades e limitações desta perspectiva. A pergunta-chave: como implantar <strong>direitos</strong> já<br />

tão longamente estabelecidos? Ela mostra um ponto crucial das limitações que existem nesta<br />

perspectiva e que ainda não foram profundamente abordadas.<br />

37


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Como afirma Fortman, “o mundo inteiro parece ter a boca cheia de <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s, mas<br />

em termos de implementação se pode dizer que ainda persiste uma crise. Apesar da retórica e da<br />

euforia (em tor<strong>no</strong> dos <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s), o que vemos é um grande déficit”.<br />

Os sinais desta fragilidade de implementação estão por todos os lados. Os exemplos da<br />

dificuldade de se punir gover<strong>no</strong>s que perpetram violência a <strong>direitos</strong> civis e <strong>direitos</strong> contra seus<br />

habitantes e de Estados que suprimem pela força e violência <strong>direitos</strong> de outros povos e mi<strong>no</strong>rias<br />

lotam os <strong>no</strong>ticiários internacionais.<br />

Uma outra fragilidade é a própria linguagem. A Declaração Universal dos Direitos Huma<strong>no</strong>s, por<br />

exemplo, reflete um discurso cuja base moral e ética é forte, mas a linguagem é fraca. Por exemplo,<br />

“avançar na dignidade... dos indivíduos”, ao invés de proteger a dignidade dos indivíduos; “a<br />

idéia que outros têm responsabilidades de facilitar e fortalecer o desenvolvimento huma<strong>no</strong>” e não<br />

que outros têm a obrigação de implementar e assegurar o desenvolvimento huma<strong>no</strong>; “direito a<br />

pedir a ajuda de outros” ao invés de direito a reclamar de outros a responsabilidade/obrigação de<br />

garantir os <strong>direitos</strong>. 10<br />

Um outro aspecto importante diz respeito <strong>à</strong> falta de estratégias para <strong>combate</strong>r a violação de<br />

direito nas esferas privadas, situação que afeta particularmente as mulheres em todos os<br />

países e continente.<br />

A fragilidade dos <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s se estabelece quando se conectam os <strong>direitos</strong> <strong>à</strong> realidade<br />

(tanto em nível nacional como internacional). Idealmente, o direito tem poder e status para<br />

proteger através de mecanismos de justiça, mas a realidade mostra que a força para sua implementação<br />

depende igualmente de os <strong>direitos</strong> serem social e politicamente reconhecidos.<br />

A idéia de <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s assenta sobre o princípio de que toda violação deverá ser evitada<br />

e reparada por ações que recuperem os <strong>direitos</strong>. Todavia, a falha existente tanto na prevenção<br />

como na reparação parece ainda não ter encontrado uma solução. Esta falha está vinculada a dois<br />

fatores cruciais: primeiro se verifica, de modo geral, uma permanente inadequação da legislação<br />

enquanto um mecanismo de controle do poder; e segundo, uma defasagem da percepção destes<br />

<strong>direitos</strong> em muitos contextos culturais e políticos (e aqui não estamos tratando das diferenças<br />

culturais que os ocidentais consideram extravagantes, como a de alguns grupos na África, Ásia,<br />

América do Sul e Central). Como resultado destes dois fatores, é visível que os <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s<br />

como estão colocados em tratados e declarações, entre outros formatos, sofrem de uma fundamental<br />

falta de integração com a vida cotidiana e com o uso do poder em todas as sociedades.<br />

Como Fortman <strong>no</strong>ta, a idéia de que <strong>no</strong> centro estão os <strong>direitos</strong> e que violação é algo marginal é<br />

amplamente contestada pela realidade. “Freqüentemente o que vemos é diferente: <strong>no</strong> centro<br />

estão as violações e na margem, os <strong>direitos</strong>”. 11<br />

Na situação que vivemos hoje, os <strong>direitos</strong> têm sido subordinados ao poder econômico, que<br />

se manifesta na distância entre a integração destes <strong>direitos</strong> com o cotidia<strong>no</strong> de tomada de decisões<br />

políticas. Isso se reflete, por exemplo, na própria estrutura da ONU, que separa em três instâncias<br />

os componentes de um único sistema de <strong>direitos</strong>. Direitos huma<strong>no</strong>s ficam a cargo da Ecosoc,<br />

desenvolvimento econômico fica com as poderosas agências de Bretton Woods e segurança, com<br />

o Conselho de Segurança.<br />

10 Estes exemplos são do texto Rigths-based approaches: any new thing under the sun, de Bas de Gaasy Fortman.<br />

11 Esta constatação é reconhecida por alguns atores. Atualmente Kofi Annan vem liderando uma campanha chamada<br />

Mainstreaming Human Rights.<br />

38


— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —<br />

Na perspectiva otimista do Relatório de Desenvolvimento Huma<strong>no</strong> da ONU de 2000, uma<br />

vez mais se propõe uma visão integrada de desenvolvimento huma<strong>no</strong>, onde a segurança, o<br />

desenvolvimento econômico e o acesso aos <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s devem estar juntos. Para que haja<br />

dignidade humana é preciso que estes elementos estejam juntos, coloca o referido relatório.<br />

Todavia outras tentativas de juntar estes três elementos já ocorreram <strong>no</strong> passado sem conseguir se<br />

manter e influenciar políticas nas três esferas.<br />

Ao analisar este relatório, Fortman de<strong>no</strong>ta que são grandes as falhas e dificuldades que estão<br />

<strong>à</strong> frente da perspectiva baseada em <strong>direitos</strong>. Considerando-se um direito econômico básico, por<br />

exemplo, o direito a um padrão decente de vida (UDHR, art. 25), como um indivíduo pode reclamar<br />

o acesso a este direito? Os pobres, sem trabalho, sem moradia, sem seguridade social, têm direito<br />

a reclamar por estes <strong>direitos</strong>, mas como torná-los reais? Confrontamo-<strong>no</strong>s <strong>no</strong>vamente com a<br />

realidade de um lado e com um direito de outro. As pessoas têm seu direito econômico, mas isso<br />

não significa que, quando privado dele, o indivíduo possa recorrer <strong>à</strong> lei e obter um resultado<br />

concreto que restabeleça sua dignidade humana. Como Amartya Sen coloca, “<strong>direitos</strong> naturais e<br />

imprescritíveis” acabam sendo “<strong>no</strong>nsense”.<br />

A distinção de Dworkin entre “<strong>direitos</strong> abstratos” e “<strong>direitos</strong> concretos” mostra bem o problema<br />

que temos diante. Nesta concepção o indivíduo teria direito a políticas apropriadas para a garantia de<br />

seus <strong>direitos</strong> e não garantia de ter comida, moradia ou emprego, que são considerados <strong>direitos</strong><br />

abstratos. A questão que fica é: os <strong>direitos</strong> são abstratos enquanto que o direito a reclamar por<br />

eles é concreto. Assim temos que um direito não implica que automaticamente a reclamação do<br />

mesmo possa ser honrada, e isso não depende apenas da força do direito em questão, como<br />

pressupõem a <strong>no</strong>rma jurídica e o tipo de proteção oferecida. Isso tem relação especialmente com as<br />

existências material e política para seu preenchimento, em última instância, as correlações de força e<br />

poder, a competição com outros atores, para que este direito possa ser reclamado e obtido. 12<br />

Retomando o ponto de fragilidade sobre a linguagem, temos muitas expressões em tratados<br />

e convenções que enfraquecem a própria exigibilidade. Isto se aplica especialmente aos <strong>direitos</strong><br />

econômico, social e cultural, que estão expressos em termos como “progressiva realização”, termo<br />

adotado também pela RDH 2000. O pressuposto é que a falta de recursos pode atrasar ou implicar<br />

na não realização destes <strong>direitos</strong>. E mais importante, a realização de <strong>direitos</strong> econômicos, sociais<br />

e culturais é uma matéria confrontacional, uma vez que para sua implementação as estruturas de<br />

poder existentes são desafiadas.<br />

A dificuldade verificada <strong>no</strong> reclame de <strong>direitos</strong> econômicos, sociais e culturais por parte dos<br />

mais pobres é já uma decorrência da negação de <strong>direitos</strong> básicos, de injustiças e do uso do poder<br />

político e econômico sobre estes segmentos. Assim, o que é possível constatar é que, mais que<br />

discursos sobre o que são <strong>direitos</strong> e quais são esses <strong>direitos</strong>, o que de fato existe é uma luta pela<br />

existência mesma de <strong>direitos</strong>.<br />

Para os mais pobres, lutar pelo direito é uma questão extremamente confrontacional e perigosa<br />

(são inúmeros os casos onde a reclamação de um direito termina com a morte do solicitante;<br />

retomando <strong>no</strong>ssos exemplos, a realidade da Zona da Mata pernambucana mostra que ainda hoje<br />

é freqüente a violência e o assassinato de trabalhadores por exigirem um pagamento atrasado ou<br />

uma revisão <strong>no</strong>s cálculos do corte de cana, como também são freqüentes as arbitrariedades e a<br />

violência da polícia junto <strong>à</strong> população dos morros do Rio de Janeiro ou na periferia de São Paulo,<br />

12 Este ponto <strong>no</strong>s sugere que a perspectiva de empoderamento devia precedência <strong>à</strong> dos <strong>direitos</strong>.<br />

39


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

para não mencionar trabalhadores que estão reduzidos <strong>à</strong> situação de escravidão por dívida em<br />

fazendas espalhadas pelo interior do <strong>Brasil</strong> ou mesmo em cidades grandes como São Paulo, onde<br />

imigrantes ilegais [bolivia<strong>no</strong>s, corea<strong>no</strong>s] estão trabalhando em oficinas de fundo de quintal sem<br />

acesso a <strong>direitos</strong> mínimos).<br />

Um outro problema que se pode mencionar diz respeito ao déficit de instrumentos que possam<br />

assegurar a implantação dos <strong>direitos</strong>. Apesar do avanço do relatório em estabelecer indicadores e<br />

demonstrar os efeitos que têm a negação dos <strong>direitos</strong>, parece-<strong>no</strong>s que a questão maior não reside<br />

<strong>no</strong>s indicadores, Aliás, os indicadores até se tornam pouco efetivos se não existem instrumentos<br />

que os conectem com mecanismos/instrumentos que possam ser empregados em ações concretas<br />

para implementação dos <strong>direitos</strong>. Neste ponto reside um dos maiores desafios da perspectiva<br />

baseada em <strong>direitos</strong>.<br />

Por outro lado, é o gover<strong>no</strong> o primeiro responsável pela implementação de <strong>direitos</strong>. Aqui surge<br />

outro problema: os gover<strong>no</strong>s muitas vezes representam interesses econômicos contrários <strong>à</strong> implementação<br />

dos <strong>direitos</strong> mais básicos.<br />

É possível perceber hoje um aumento de importância da lei entre as pessoas. Mais pessoas<br />

recorrem <strong>à</strong> lei tentando solucionar problemas, todavia a eficácia destas ações legais está condicionada<br />

<strong>à</strong> existência de um ambiente favorável. Em ambientes adversos onde o Estado e a eco<strong>no</strong>mia vivem<br />

em permanentes crises, a realização dos <strong>direitos</strong> através de ações judiciais mostra pouco efeito.<br />

O que não significa dizer que os <strong>direitos</strong> não tenham sentido nestes ambientes, mas há que se<br />

construir um patamar de legitimidade dos <strong>direitos</strong>, e não já pressupor sua existência. Este ponto<br />

recoloca uma séria questão para os <strong>direitos</strong>: a da legalidade e da legitimidade.<br />

6. À guisa de conclusão<br />

A luta contra a <strong>pobreza</strong> e a exclusão social tem passado por diferentes fases ao longo das últimas<br />

décadas. Nos a<strong>no</strong>s 1950 pensava-se que as dificuldades para o desenvolvimento, e a conseqüente<br />

eliminação da <strong>pobreza</strong>, se encontravam na carência de infra-estrutura. Atores globais, o Banco Mundial<br />

entre outros, passaram a apoiar obras de infra-estrutura. Pouco depois se percebeu que o desenvolvimento<br />

não acontecia como resultado da mudança em condições materiais. Era necessário<br />

investir nas pessoas. Saúde e educação passaram a receber quantias volumosas de recursos.<br />

Nem toda a comunidade internacional apostou <strong>no</strong> welfare state. Muitas energias e recursos<br />

apostaram em processos de mudança mais radicais.<br />

As décadas passaram e a distância entre ricos e pobres, excluídos ou incluídos tem aumentado<br />

em proporções alarmantes. Ao mesmo tempo, nunca a humanidade produziu tanta riqueza e a<br />

ideologia neoliberal ganhou tanta hegemonia em todo o planeta.<br />

Talvez possamos dizer que aprendemos muitas lições das experiências tão ricas que passamos<br />

<strong>no</strong>s últimos a<strong>no</strong>s <strong>no</strong> campo da cooperação. Hoje vemos as bandeiras e discursos alternativos<br />

sendo incorporados por um amplo leque de atores. Estratégias de empoderamento ficaram na<br />

moda e, mais recentemente, a baseada em <strong>direitos</strong>.<br />

Uma é mais efetiva que a outra? São ambas estratégias mutuamente excludentes?<br />

Não parece haver uma só resposta para essas perguntas.<br />

É evidente, <strong>no</strong> entanto, que qualquer estratégia de luta por um mundo melhor dificilmente<br />

será uma receita que possa ser aplicada em qualquer realidade, independentemente do contexto<br />

em que seja utilizada.<br />

40


— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —<br />

As estratégias de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> são um processo essencialmente político, que precisa<br />

de atores capazes de alterar correlações de força em níveis macro, meso e micro articulados em<br />

tor<strong>no</strong> de temas e lutas comuns. Neste marco, estratégias de empoderamento são uma parte<br />

essencial de qualquer processo social que busque um mundo melhor para a grande maioria deste<br />

planeta. Ela poderá ser articulada com outras várias perspectivas, mas certamente não poderá<br />

estar ausente nem cumprindo um papel subordinado.<br />

Anexos<br />

A abordagem da Oxfam 13<br />

A Oxfam GB tem trabalhado por muitos a<strong>no</strong>s dentro de uma abordagem baseada<br />

em <strong>direitos</strong> como estratégia de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>, entendendo <strong>pobreza</strong> como<br />

um processo complexo e multidimensional.<br />

Baseada na Conferência Mundial da ONU, realizada em Viena, em 1993, a<br />

Oxfam desenvolveu uma carta global de <strong>direitos</strong> básicos, onde retoma os pontos<br />

da declaração da conferência, segundo a qual toda pessoa tem o direito a um lar,<br />

água limpa, comida suficiente, educação etc. Contudo, a Oxfam entende que <strong>no</strong><br />

presente momento a melhor forma de contribuir para a realização dos <strong>direitos</strong><br />

huma<strong>no</strong>s, em face também das atividades e da experiência de outras organizações, é,<br />

dentro do continuum que são os <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s, focalizar suas energias e recursos<br />

<strong>no</strong>s <strong>direitos</strong> sociais e econômicos, incluídos aqui os humanitários. Esta perspectiva<br />

envolve também a análise e aprofundamento dos vínculos existentes entre <strong>direitos</strong><br />

sociais, econômicos e culturais com os civis e políticos.<br />

A partir de 1998, a Oxfam focalizou seu trabalho em cinco <strong>direitos</strong> básicos<br />

vinculados a objetivos específicos de intervenção. A Oxfam Internacional, confederação<br />

de 11 Oxfams que inclui a Novib e a Intermon, se envolve neste processo<br />

desde 1999. De tal forma, o pla<strong>no</strong> de trabalho do conjunto das Oxfams para 2001-<br />

2004 tem como base o esquema de <strong>direitos</strong> Right-based framework. A Oxfam<br />

Internacional focaliza na realização de <strong>direitos</strong> econômicos e sociais. Estes cinco<br />

<strong>direitos</strong>, que estão assegurados em convênios e acordos internacionais, fundamentam<br />

o planejamento estratégico da Oxfam Internacional e são:<br />

a. O direito a meios de vida sustentáveis (eqüidade econômica e ambiental e<br />

meios de vida para as gerações futuras).<br />

b. O direito a serviços sociais básicos (acesso eqüitativo <strong>à</strong> saúde e <strong>à</strong> educação).<br />

13 Baseado <strong>no</strong> documento Oxfam GB conference paper on Social and Eco<strong>no</strong>mic Rights, de Chris Roche<br />

e Caroline Roseveare.<br />

41


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

c. O direito <strong>à</strong> vida e <strong>à</strong> segurança (provisão eqüitativa de projeção, ajuda, relief<br />

e reabilitação).<br />

d. O direito a ser escutado (participação eqüitativa em elaboração de políticas<br />

e tomadas de decisão econômicas, políticas e socais).<br />

e. O direito <strong>à</strong> identidade (eqüidade de gênero e diversidade).<br />

É objetivo do trabalho da Oxfam assegurar que os <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s sejam<br />

promovidos e respeitados. Esse compromisso se implementa em diferentes níveis:<br />

trabalhando com indivíduos e grupos para fortalecer sua capacidade de se organizar<br />

e de se manifestar; em nível de gover<strong>no</strong>s e instituições internacionais<br />

através de lobby e advocacy para mudar políticas que negam ou infringem<br />

<strong>direitos</strong>; em nível do público em geral para conscientizar sobre <strong>direitos</strong> e os meios<br />

para redress, através da educação para o desenvolvimento, informação para o<br />

público e campanhas.<br />

A estratégia de <strong>combate</strong> <strong>à</strong><br />

<strong>pobreza</strong> do Banco Mundial<br />

Para o Banco, <strong>pobreza</strong> é o resultado de processos sociais, econômicos e políticos<br />

que interatuam e freqüentemente se reforçam mutuamente, de forma a<br />

exacerbar o processo de exclusão em que vivem os pobres. Bens escassos, falta de<br />

acesso a mercados e escassez de emprego prendem as pessoas <strong>no</strong> círculo da<br />

<strong>pobreza</strong> material. Por tal motivo, estimular o crescimento econômico, fazer os<br />

mercados trabalhar para os pobres e incrementar seus bens é fundamental para<br />

reduzir a <strong>pobreza</strong>. Mas essa é apenas uma parte da história. Num mundo onde<br />

a distribuição de poder acompanha a distribuição de riqueza, o modo como os<br />

Estados funcionam pode ser particularmente desfavorável aos pobres. Por exemplo:<br />

os pobres raramente recebem os benefícios dos investimentos públicos em educação<br />

ou saúde. E ainda são freqüentemente vítimas da corrupção e das arbitrariedades<br />

dos órgãos públicos.<br />

A <strong>pobreza</strong> é também muito afetada por <strong>no</strong>rmas, valores sociais e praticas<br />

tradicionais que dentro da família, da comunidade ou do mercado levam a<br />

processos de exclusão social de mulheres, grupos étnicos ou grupos socialmente<br />

desempoderados.<br />

É por isso que facilitar o empoderamento dos pobres, fazendo com que o<br />

Estado e as instituições sociais atendam mais a eles, é também fundamental para<br />

<strong>combate</strong>r a <strong>pobreza</strong>.<br />

Vulnerabilidade a eventos exter<strong>no</strong>s e fora de controle, epidemias, violência e<br />

choques econômicos reforçam o senso de dificuldade, de <strong>pobreza</strong> material e<br />

debilidade para barganhar suas posições. É importante aumentar a segurança<br />

reduzindo os riscos a eventos exter<strong>no</strong>s para <strong>combate</strong>r a <strong>pobreza</strong>.<br />

42


A estratégia<br />

— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —<br />

A abordagem para <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> do Banco Mundial a partir do a<strong>no</strong><br />

2000, em face do contexto de globalização, efetiva-se através de três elementos:<br />

a. Promover oportunidades. Oportunidades significam emprego, crédito, caminhos,<br />

escolas, eletricidade, mercados para os seus produtos, água, saneamento<br />

básico e serviços de saúde. O crescimento econômico é crucial para gerar<br />

oportunidades. Reformar os mercados pode ser essencial para expandir oportunidades<br />

para os pobres, mas as reformas devem refletir as instituições e<br />

estruturas locais. E mecanismos devem ser criados para compensar os potenciais<br />

perdedores da transição. Em sociedades muito desiguais, mais igualdade é<br />

fundamental para acelerar os processos de redução da <strong>pobreza</strong>.<br />

b. Facilitar o empoderamento. A escolha e implementação de ações públicas<br />

que atendam as necessidades dos pobres dependem da interação de processos<br />

sociais, econômicos e políticos. O acesso a mercados e a serviços públicos é<br />

freqüentemente influenciado pelo Estado e por instituições sociais que devem<br />

atender e serem accountable para os pobres. Atingir esse acesso, atender as<br />

necessidades e a prestação de contas (accountabilty) é um processo intrinsecamente<br />

político e precisa de ativa colaboração dos pobres, das classes médias<br />

e de outros grupos sociais. A colaboração ativa pode ser grandemente facilitada<br />

por mudanças na governança do Estado, tornando a administração<br />

pública, as instituições legais e os serviços públicos mais eficientes e<br />

accountables para todos os cidadãos; a colaboração ativa também pode ser<br />

facilitada fortalecendo-se a participação dos pobres <strong>no</strong>s processos políticos e<br />

nas tomadas de decisão local. É também importante remover as barreiras<br />

institucionais e sociais que resultam da distinção de status social, de gênero e<br />

de etnia. Instituições que atendam as necessidades existentes não são apenas<br />

importantes para os pobres, mas também para o processo de crescimento<br />

como um todo.<br />

c. Expandir a segurança. Reduzir a vulnerabilidade a desastres naturais, choques<br />

econômicos, epidemias e violência é parte intrínseca do aumento do bem-estar<br />

e promove o investimento em capital huma<strong>no</strong>. Requer ação nacional e mecanismos<br />

efetivos para reduzir os riscos enfrentados pelos pobres. Requer também<br />

construir bens para os pobres, diversificar a renda do grupo familiar e promover<br />

mecanismos de seguro – podem ser trabalho público e seguros de saúde –<br />

para enfrentar os choques adversos.<br />

Para o Banco não há hierarquia de importância entre os três mecanismos,<br />

eles são complementares.<br />

43


BIBLIOGRAFIA<br />

— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

AFSHAR, Haleh. Introduction: Women and empowerment – some illustrative studies.<br />

BROCK, K.; CORNWALL, A. & GAVENTA, J. Power, k<strong>no</strong>wledge and political spaces in the framing<br />

of poverty policy. Working paper IDS, October 2001.<br />

CORNWALL, A. & GAVENTA, J. Bridging the gap: citizenship, participation and accountability.<br />

PLA Notes 40 – IDS. Feb 2001.<br />

DAWSON, E. L. Assessing the impact: NGOs and empowerment.<br />

FORTMAN, Bas de Gaay. Rights – based approaches”: any new thing under the sun?<br />

IDEA Newsletter, Dec 2000, IDEA Page.<br />

PARPART, Jane L. Rethinking participatory empowerment, gender and development in<br />

a global/local world. McGill University, September, 2000.<br />

ROCHE, Chris & Roserveare, C. Oxfam GB Conference Paper on Social and Eco<strong>no</strong>mic Rights.<br />

March 2002.<br />

ROWLANDS, Jo. A word of the times, but what does it mean? Empowerment in the Discourse<br />

and Practice of Development.<br />

SEN, Gita. Empowerment as an approach to poverty. Working Paper Series, number 97.07. Indiam<br />

Institute of Management. Background paper to the Human Development Report 1997,<br />

Dec. 1997 .<br />

The World Bank Annual Report 2001.<br />

The World Bank 2000. Voices of the poor. Can anyone hear us? Deepa Narayan [et alii],<br />

Oxford University Press for WB, 2000.<br />

The UN OHCHR. Human Rights in Development.<br />

SITES VISITADOS<br />

World Bank, United Nation, União Européia, DFID, IDS, Swansea University, London School of<br />

Eco<strong>no</strong>mics, Action Aid UK, Oxfam GB, The Save the Children Fund, Christian Aid, Cafod, Bond UK,<br />

Novib, Icco, PPM, EED e<br />

http://www.empowermentresources.com/<br />

http://www.stanford.edu/~davidf/empowermentevaluation.html<br />

http://www.angelfire.com/mi3/empowerment/<br />

http://www.ids.ac.uk/ids/particip/index.html<br />

44


Metodologias e ferramentas<br />

para implementar<br />

estratégias<br />

de empoderamento<br />

45<br />

Alberto Enríquez Villacorta 1<br />

e Marcos Rodríguez 2<br />

O presente documento foi feito com base <strong>no</strong>s termos de referência estabelecidos<br />

pela <strong>ActionAid</strong> a fim de gerar mais e melhores insumos <strong>à</strong> reflexão e ao debate abertos dentro da<br />

organização a respeito das decisões e projeções impulsionadas, por um lado, na África e Ásia, e<br />

por outro, na América Latina e Caribe, que mudaram o enfoque do trabalho institucional.<br />

No caso da África e da Ásia, os programas começaram a dar mais enfoque a um “desenvolvimento<br />

baseado em <strong>direitos</strong>”, enquanto <strong>no</strong> caso da América Latina e do Caribe, tanto a estratégia<br />

regional como a de cada país individualmente se baseiam num enfoque de “empoderamento”.<br />

Neste marco, a <strong>ActionAid</strong> precisa aprofundar a análise com o propósito de determinar qual<br />

dos dois enfoques tem mais consistência, poderá gerar melhores resultados e alcançar maiores<br />

índices de sustentabilidade.<br />

Com o fim de contribuir para esta análise, o presente documento se estruturou em três partes.<br />

Na primeira se estabelece o conceito de empoderamento e o marco para desenhar estratégias que<br />

o tornem possível, assinalando, ao mesmo tempo, as principais semelhanças e diferenças com o<br />

enfoque de desenvolvimento baseado em <strong>direitos</strong>.<br />

Na segunda parte, se faz uma espécie de balanço crítico de estratégias, metodologias e<br />

ferramentas utilizadas na América Latina para implementar processos de empoderamento.<br />

Finalmente, na terceira parte, se fazem algumas recomendações <strong>à</strong> <strong>ActionAid</strong>, visando <strong>à</strong><br />

análise e ao desenvolvimento de metodologias que permitam formular e implementar estratégias<br />

de empoderamento.<br />

1. Marco analítico para formular<br />

estratégias de empoderamento<br />

1.1. <strong>Empoderamento</strong>, desenvolvimento e <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong><br />

e <strong>à</strong> exclusão<br />

Assim como muitos outros, o termo “empoderamento” começou a ser utilizado com muita<br />

freqüência, tanto por organizações sociais e políticas como por analistas e centros acadêmicos<br />

1 Doutor em Filosofia, Funde (Fundação Nacional para o Desenvolvimento), El Salvador.<br />

2 Eco<strong>no</strong>mista, Funde, El Salvador.


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

que trabalham <strong>no</strong> campo do desenvolvimento, servindo de marco ou enfoque para a formulação<br />

de estratégias ou políticas e programas implementados em diversas zonas geográficas,<br />

microrregiões, municipalidades, setores sociais e instituições.<br />

Baseado nisso, consideramos importante, não só do ponto de vista teórico, mas também de<br />

uma perspectiva política e operativa, fazer um esforço de delimitar o conceito de empoderamento.<br />

Não se trata de estabelecer uma definição que encerre e enquadre, mas sim uma delimitação que<br />

aproxime e se mantenha aberta, ao mesmo tempo em que permita um horizonte que dê sentido,<br />

marco e suporte a diversas estratégias, metodologias e instrumentos.<br />

No presente trabalho, o empoderamento está vinculado fundamentalmente ao estímulo de<br />

um desenvolvimento sustentável.<br />

Entendemos por desenvolvimento sustentável aquele que tem como propósito a geração de<br />

riqueza e bem-estar para as presentes e futuras gerações. Considerando que o que ele busca não<br />

é só gerar riqueza, mas também bem-estar, tanto das presentes como das futuras gerações, não se<br />

pode reduzi-lo ou fazê-lo sinônimo de crescimento econômico (o que muda radicalmente a perspectiva<br />

e estrutura em que habitualmente se pensa o desenvolvimento), pois, além da econômica,<br />

ele inclui diversas dimensões ou esferas da vida humana, como a política, a social, a cultural,<br />

a ambiental, a espacial, a espiritual etc. Por isso, trata-se de um fenôme<strong>no</strong> multidimensional.<br />

Uma das características fundamentais do desenvolvimento assim entendido é a inclusão de<br />

todas as forças e atores de uma sociedade, seja esta local, regional, nacional ou global. Por isso,<br />

um dos desafios centrais que enfrenta o desenvolvimento na América Latina é como resolver e<br />

superar a realidade da exclusão e da <strong>pobreza</strong>.<br />

Um desenvolvimento excludente, por um lado, é mau desenvolvimento e, por outra, carece<br />

de sustentabilidade.<br />

Visto de outro ângulo, uma das características típicas do mau desenvolvimento é a geração<br />

de <strong>pobreza</strong> e exclusão. Isto é evidente na América Latina, que é a região do mundo com o maior<br />

abismo entre os mais ricos e os mais pobres.<br />

O desenvolvimento sustentável implica, portanto, ainda que não se reduza a isto, uma luta por<br />

erradicar a <strong>pobreza</strong> e a exclusão, o que significa que uma estratégia de desenvolvimento passa<br />

por conseguir que os setores, grupos e pessoas que vivem na <strong>pobreza</strong> e na extrema <strong>pobreza</strong>, ou que<br />

tenham sido excluídos e marginalizados por diversas razões como gênero, etnia ou religião, não só<br />

sejam levados em conta como objeto de programas ou estratégias contra a <strong>pobreza</strong>, mas que, abandonando<br />

sua condição de excluídos e marginalizados, se convertam em atores do próprio desenvolvimento,<br />

participando das decisões fundamentais que o impulsionam e dos benefícios que gera.<br />

O processo que torna esse “trânsito” possível passa por resolver outro problema crucial<br />

como o do poder. Isto em duas dimensões: uma é a distribuição do poder na sociedade; e a outra,<br />

o modo de exercício do poder.<br />

Aqui é justamente onde entra o enfoque do “empoderamento” dos setores, grupos e pessoas<br />

pobres e excluídas como um fator-chave para avançar em direção ao desenvolvimento sustentável.<br />

Por isso, não é casual que historicamente o conceito de empoderamento tenha sido introduzido<br />

<strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 60 e 70 pelo movimento American Black e por grupos feministas e de mulheres que<br />

lutavam respectivamente contra a discriminação das mi<strong>no</strong>rias negras <strong>no</strong>s Estados Unidos e por<br />

alcançar a plena cidadania das mulheres.<br />

Por isso, delimitar o conceito de empoderamento é uma questão-chave. Não só nem principalmente<br />

com uma pretensão acadêmica, mas, sobretudo, visando <strong>à</strong> implementação de políticas e estratégias.<br />

Trata-se de avançar em direção a um conceito que se converta em marco e horizonte para a ação.<br />

46


— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —<br />

Para entender bem o significado, o alcance e as implicações do conceito de empoderamento<br />

não basta conhecer sua origem etimológica ou seu vínculo com o conceito de poder. É necessário<br />

compreender que ele nasce de uma busca de paradigmas que permitem conhecer e explicar<br />

melhor fenôme<strong>no</strong>s como a <strong>pobreza</strong> e a exclusão e encontrar caminhos e formas concretas para<br />

combatê-los, superá-los e, se possível, erradicá-los.<br />

Que é, então, o empoderamento?<br />

É uma perspectiva que coloca as pessoas excluídas dos processos prevalecentes de desenvolvimento<br />

e do poder (sua distribuição e exercício) <strong>no</strong> centro do processo de desenvolvimento.<br />

Situar as pessoas e grupos sociais que vivem na <strong>pobreza</strong> ou são excluídos <strong>no</strong> centro do processo<br />

de desenvolvimento significa colocar as instituições econômicas (mercados) e as políticas (Estado)<br />

ao serviço desses grupos, e não o contrário.<br />

O empoderamento:<br />

• Parte do entendimento de que a situação de <strong>pobreza</strong> e dominação experimentada por<br />

milhões de pessoas, não só na América Latina, mas também <strong>no</strong> resto do mundo, é um<br />

impedimento ao desenvolvimento que tem em sua base o poder de uns poucos sobre os<br />

recursos e sobre as possibilidades de existência social de outros.<br />

• É basicamente um processo de criar poder e ganhar poder de e para os setores pobres e<br />

excluídos. Ganhar implica diminuir o poder que têm outros, redistribuir o poder e, neste<br />

sentido, é um processo conflitivo. Criar poder é gerar capacidades inexistentes e, por isso,<br />

implica claro lucro para a sociedade.<br />

• É o processo de obter acesso e controle sobre si mesmo e sobre os meios necessários para<br />

sua existência.<br />

• É um processo de construção e/ou ampliação das capacidades que têm as pessoas e grupos<br />

pobres e excluídos para:<br />

– Assumir o controle de seus próprios assuntos;<br />

– Produzir, criar, gerar <strong>no</strong>vas alternativas;<br />

– Mobilizar suas energias para o respeito a seus <strong>direitos</strong>;<br />

– Mudar as relações de poder;<br />

– Obter controle sobre os recursos (físicos, huma<strong>no</strong>s e financeiros) e também sobre a ideologia<br />

(crenças, valores, atitudes);<br />

– Poder discernir como escolher;<br />

– Levar a cabo suas próprias opções.<br />

Tudo isso com o propósito de se converter em sujeitos do desenvolvimento sustentável.<br />

• É um processo ao mesmo tempo inter<strong>no</strong> (relacionado com auto-estima, autopercepção) e<br />

exter<strong>no</strong> (que tem a ver com controle ou influência sobre o meio a sua volta).<br />

• É pessoal e organizacional. Não pode ser feito de fora pra dentro, mas pode ser facilitado<br />

através de ações estimulantes e criando um ambiente amistoso, favorável. Implica ações<br />

simultâneas e complementares de cima para baixo e de baixo para cima.<br />

47


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

• Não é um processo neutro, pois deve implicar necessariamente mudanças nas relações de<br />

poder a favor dos que vivem na <strong>pobreza</strong> ou são excluídos. Deve gerar processos de mudança<br />

<strong>no</strong> nível individual e coletivo, tanto em termos de controle de recursos, como em termos de<br />

uma maior auto<strong>no</strong>mia e autoridade sobre as decisões que têm influência na sua própria vida.<br />

• Também não é um processo natural. É induzido. Não nasce por geração espontânea, mas é<br />

impulsionado intencionalmente. É socialmente construído.<br />

• É um elemento-chave para romper o ciclo da <strong>pobreza</strong> e da exclusão, já que abre possibilidades<br />

para a formulação de políticas mais adequadas de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>, como também espaços<br />

de participação na elaboração e implementação dessas políticas que podem favorecer os<br />

grupos pobres e excluídos, convertendo-os em agentes de desenvolvimento.<br />

• É um processo através do qual grupos que têm sido excluídos e marginalizados por causas<br />

econômicas, sociais, políticas, de gênero etc., buscam mudar essa situação e se incorporar na<br />

determinação do rumo que suas localidades, países, regiões e o mundo devem tomar. Por isso, as<br />

estratégias de empoderamento são caminhos para sociedades locais ou nacionais mais democráticas,<br />

via pela qual grupos, atores e setores mais excluídos entram <strong>no</strong>s processos onde se<br />

decide o rumo daquelas.<br />

O empoderamento combina duas dimensões:<br />

– A introdução <strong>no</strong> processo de tomada de decisões das pessoas que se encontram fora dele.<br />

Aqui a ênfase está <strong>no</strong> acesso <strong>à</strong>s estruturas políticas e aos processos formalizados de tomar<br />

decisões; e, <strong>no</strong> âmbito econômico, <strong>no</strong> acesso aos mercados e <strong>à</strong> renda que lhes permitam<br />

participar da tomada de decisões econômicas. Tudo isso remete a pensar em pessoas capazes<br />

de aproveitar ao máximo as oportunidades que se lhes apresentam sem, ou apesar das,<br />

limitações de caráter estrutural ou impostas pelo Estado.<br />

– O acesso a processos intangíveis de tomada de decisões, através dos quais as pessoas<br />

tomam consciência de seus próprios interesses e de como estes se relacionam com os interesses<br />

dos outros, com o fim de participar da tomada de decisões a partir de uma posição<br />

mais sólida e, de fato, influir nessas decisões.<br />

Concluindo, podemos afirmar que não há desenvolvimento sustentável sem processos efetivos<br />

de empoderamento, mediante os quais se incrementam os ativos e as capacidades dos pobres e<br />

excluídos para participar, negociar, articular e mudar não só sua própria condição mas a do seu<br />

meio, com o propósito de melhorar sua qualidade de vida e a da sua comunidade.<br />

Mas, ao mesmo tempo, há que se levar em conta que os setores empoderados só poderão se<br />

consolidar e exercer um papel positivo <strong>à</strong> medida que o desenvolvimento for se ampliando e transformando<br />

as raízes e as bases estruturais que tornaram possíveis a <strong>pobreza</strong> e a exclusão social.<br />

A partir desta perspectiva, tem sentido refletir sobre as estratégias, metodologias e instrumentos<br />

de empoderamento que vêm sendo implementados e, <strong>à</strong> luz de sua análise crítica,<br />

avançar algumas propostas e recomendações que contribuam para revisá-los, melhorá-los<br />

e transformá-los.<br />

48


— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —<br />

1.2. Enfoque de empoderamento versus enfoque de <strong>direitos</strong>?<br />

Do mesmo modo como acontece com o enfoque de empoderamento, diversos atores <strong>no</strong><br />

campo do desenvolvimento vêm aplicando um enfoque baseado em <strong>direitos</strong>. Não é <strong>no</strong>ssa pretensão<br />

aqui fazer uma comparação entre esses dois enfoques para estabelecer qual é o melhor, ou se se<br />

deve adotar um deles, eliminando o outro. Tal como ficou assinalado, o desenvolvimento sustentável<br />

e a luta contra a <strong>pobreza</strong> e a exclusão, como componente fundamental do mesmo, são por<br />

sua natureza multidimensionais. Quer dizer, implicam processos de altos níveis de complexidade<br />

que, por isso mesmo, requerem diversas abordagens e enfoques.<br />

A abordagem de desenvolvimento baseada em <strong>direitos</strong> “é uma estrutura conceitual que se<br />

apóia em padrões e modos de operar voltados <strong>à</strong> promoção e proteção dos <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s.<br />

Integra <strong>no</strong>rmas, padrões, princípios do sistema internacional dos <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s contidos em<br />

tratados e declarações, em pla<strong>no</strong>s, políticas e processos de desenvolvimento”. 3<br />

Além disso, esta perspectiva baseada em <strong>direitos</strong> se fundamenta em vários elementos, tais<br />

como: a conexão entre os diferentes <strong>direitos</strong>, eqüidade, igualdade, prestação de contas em sentido<br />

amplo, empoderamento, participação e a não discriminação e atenção a grupos vulneráveis.<br />

O valor do enfoque baseado em <strong>direitos</strong> é que parte de uma base ética e moral que confere<br />

a todas as pessoas humanas só pelo fato de serem <strong>direitos</strong> iguais. Por isso, é um enfoque que<br />

contém e estimula uma vocação democrática.<br />

Sem dúvida, como bem se assinalou, na prática, a realidade atual <strong>no</strong>s mostra que ao longo<br />

do continente lati<strong>no</strong>-america<strong>no</strong> e de outras partes do mundo, o que está <strong>no</strong> centro da prática<br />

social é a violação e o desrespeito aos <strong>direitos</strong>.<br />

Como aponta Cecilia Iorio, “a fragilidade dos <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s se estabelece quando se<br />

conectam com a realidade. Idealmente, o direito tem um poder ou status para proteger através de<br />

mecanismos de justiça, mas a realidade mostra que a força para sua implementação depende de<br />

que os <strong>direitos</strong> sejam social e politicamente reconhecidos”. 4<br />

A idéia ou perspectiva baseado em <strong>direitos</strong> se fundamenta <strong>no</strong> princípio de que toda violação<br />

deve ser evitada e reparada por ações que recuperam os <strong>direitos</strong>. Porém, as falhas existentes tanto<br />

na prevenção como na reparação não parecem haver encontrado uma solução. Estas falhas estão<br />

vinculadas a dois fatores cruciais:<br />

• Uma permanente inadequação da legislação quanto a mecanismos de controle do poder.<br />

• Um abismo na percepção destes <strong>direitos</strong> em muitos contextos culturais e políticos.<br />

Como resultado desses dois fatores, é claro que os <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s tal como estão <strong>no</strong>s<br />

tratados, declarações e outros formatos sofrem de uma falta fundamental de integração com a<br />

vida cotidiana e com os modos do uso ou exercício do poder em todas as sociedades.<br />

Se uma perspectiva baseada em <strong>direitos</strong> coloca a força <strong>no</strong> direito mesmo, em sua base ética<br />

e moral, a perspectiva de empoderamento, por seu lado, põe a força naqueles que têm sido<br />

excluídos, <strong>no</strong>s pobres, <strong>no</strong>s desempoderados.<br />

A partir da perspectiva do empoderamento, a violação dos <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s sucede porque<br />

os setores desfavorecidos socialmente carecem do poder suficiente para garantir o respeito a seus<br />

<strong>direitos</strong> ou para exigir a reparação quando estes são violados.<br />

3 IORIO, Cecilia, 2002, p.18.<br />

4 Idem, p.21.<br />

49


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Não obstante, um enfoque excessivamente centrado na questão do poder, que não leve em<br />

conta os <strong>direitos</strong> inerentes a todas as pessoas humanas, pode conduzir, como já sucedeu ao<br />

longo da história, a caminhos autoritários que não resolvem o problema das desigualdades e do<br />

desenvolvimento huma<strong>no</strong>.<br />

Daí que o enfoque de <strong>direitos</strong> pode ser visto como complementar ao enfoque de empoderamento.<br />

Isto começou a se evidenciar com o recente surgimento de interpretações que sustentam<br />

a presença e importância do empoderamento dentro dos <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s. Tais interpretações<br />

vêm ganhando força e buscam articular, e não dissociar, os <strong>direitos</strong> civis e políticos (direito a ter<br />

voz e direito a ser escutado) com os <strong>direitos</strong> econômicos, sociais, culturais e ambientais.<br />

Em suma, não há dúvida de que desencadear processos de desenvolvimento sustentável que<br />

incluam o <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> e <strong>à</strong> exclusão requer atores que tenham a capacidade e o poder<br />

suficiente para produzir mudanças profundas na correlação de forças tanto <strong>no</strong>s níveis locais e<br />

microrregionais, como <strong>no</strong>s nacionais e mundiais.<br />

Por isso, o empoderamento daquelas pessoas, grupos e setores que vivem na <strong>pobreza</strong> ou<br />

são excluídos e marginalizados é fundamental e se caracteriza por ser um processo essencialmente<br />

político. Porém, isto não significa que não existam outros enfoques que o possam<br />

enriquecer e complementar, ainda que jamais devam substitui-lo. Um desses é, sem dúvida, o<br />

enfoque baseado em <strong>direitos</strong>.<br />

2. Estratégias, metodologias e ferramentas<br />

utilizadas para o desencadeamento de<br />

processos de empoderamento<br />

O conceito de estratégia faz alusão aos caminhos que se devem transitar para que, partindo de<br />

uma situação determinada, se consiga alcançar um ou vários objetivos também pré-determinados,<br />

da maneira mais eficaz e eficiente possível. Toda estratégia, portanto, inclui um ponto de partida,<br />

um ponto de chegada e o caminho que une a ambos.<br />

O ponto de partida geral de uma estratégia de empoderamento é a existência de pessoas,<br />

grupos ou setores sociais que vivem em condições de <strong>pobreza</strong> ou sofrem de exclusão e carecem<br />

de poder suficiente para conseguir uma situação melhor em seu contexto social. O ponto de<br />

chegada é uma situação em que esses grupos ou setores saíram da <strong>pobreza</strong> e da exclusão e se<br />

integraram na sociedade como agentes de desenvolvimento.<br />

O desafio que deve enfrentar a estratégia de empoderamento é o que fazer para conseguir<br />

esta mudança, quais são os passos para gerar esse poder em termos de criação das capacidades<br />

das pessoas, grupos ou setores pobres e excluídos e de produzir as transformações necessárias <strong>no</strong><br />

meio <strong>à</strong> sua volta, de modo que sua <strong>no</strong>va condição seja sustentável <strong>no</strong> tempo.<br />

2.1. Sujeito e agentes do empoderamento<br />

O primeiro ponto que deve definir uma estratégia é quem ou quais devem levá-la adiante.<br />

Neste sentido, diversas experiências e aportes sobre o empoderamento <strong>no</strong>s ensinam que este não<br />

pode ser desenvolvido em <strong>no</strong>me daqueles que devem ser empoderados, que os processos de<br />

empoderamento devem centrar-se necessariamente nas pessoas e grupos desempoderados, em<br />

suas visões, interesses e prioridades. Isto significa que nenhum grupo pode ser empoderado de<br />

maneira sustentável desde fora, dado que as mudanças na consciência e na autopercepção, assim<br />

50


— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —<br />

como a construção de capacidades, tanto pessoais como coletivas, são próprias e singulares, de<br />

maneira que ninguém as pode conseguir em <strong>no</strong>me de outrem.<br />

Por isso, como afirma um analista nicaragüense, fazendo alusão <strong>à</strong> sua própria experiência<br />

nacional, existem diversos exemplos de projetos e, inclusive, processos políticos que, apoiando-se<br />

principalmente em fatores exter<strong>no</strong>s, realizaram ações que pareciam demonstrar empoderamento,<br />

com o aparente beneplácito dos “empoderados”, mas cujos resultados se reverteram tão rápido<br />

quanto desapareceram aqueles fatores exter<strong>no</strong>s que os motivaram. Disso conclui que nestas situações<br />

só houve um empoderamento não muito avançado ou definitivamente aparente. 5<br />

As estratégias de empoderamento, portanto, só as são de fato se situam como sujeito do<br />

empoderamento as pessoas e grupos ou setores desfavorecidos, pobres e excluídos.<br />

Porém, isto não significa que o empoderamento seja uma questão exclusiva dos setores<br />

sociais desfavorecidos. Ao contrário. Devemos recordar que estamos situados <strong>no</strong> campo do desenvolvimento<br />

e que se trata de que os grupos ou setores empoderados exercitem o poder adquirido<br />

incidindo positivamente nas dinâmicas de desenvolvimento. Isto só é possível com a intervenção de<br />

outros atores que contribuam na criação de um ambiente que seja favorável para que isso aconteça.<br />

A mesma situação de desvantagem que os setores pobres e excluídos têm na sociedade evidencia<br />

a necessidade de estabelecer vínculos e alianças com outros agentes que contribuam com estímulos<br />

e ações positivas para a criação de um ambiente que favoreça os processos de empoderamento.<br />

Isto permite situar adequadamente a dimensão e a importância do papel e a contribuição de<br />

agentes exter<strong>no</strong>s como catalisadores de processos de empoderamento. Os agentes exter<strong>no</strong>s<br />

nunca podem substituir o sujeito da estratégia, mas podem definitivamente contribuir de maneira<br />

fundamental para a construção destes processos.<br />

É, portanto, necessária a ação de outros atores, como gover<strong>no</strong>s centrais, gover<strong>no</strong>s locais,<br />

organizações da sociedade civil, ONGs e cooperação internacional, que são atores indiscutíveis <strong>no</strong><br />

campo do desenvolvimento e que assim como podem favorecer os processos de empoderamento,<br />

também podem obstruí-los e bloqueá-los.<br />

Em outras palavras, uma estratégia de empoderamento deve contemplar a construção de<br />

alianças do sujeito das mesmas, os pobres e excluídos, com a mais diversa gama de atores <strong>no</strong><br />

campo do desenvolvimento com o propósito de transformar o meio a sua volta e abrir caminho<br />

aos processos de empoderamento.<br />

Aqui entra, portanto, que um componente fundamental das estratégias de empoderamento<br />

é a participação. A participação não é um componente secundário, mas um elemento constitutivo<br />

das estratégias de empoderamento.<br />

É por isso que “muitas análises e investigações de campo relacionam os temas participação,<br />

cidadania e poder com políticas de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>”. 6<br />

São muitas e muito diversas as experiências na América Latina e em outras partes do mundo<br />

que vêm mostrando que os processos de participação possibilitam processos de empoderamento<br />

e favorecem o estímulo de políticas e práticas de desenvolvimento que contemplam as necessidades<br />

das pessoas e grupos pobres e excluídos. Isto será abordado detidamente mais adiante.<br />

Neste sentido, experiências como a aprovação e implementação da Lei de Participação Popular na<br />

Bolívia, a concordância governamental para colaborar com o Serviço de Informação de Orçamento<br />

5 ULLOA, L. F. ¿Empoderamiento de las organizaciones de base desde proyectos de desarrollo?, s/d.<br />

6 IORIO, Cecilia, 2002.<br />

51


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

para a Democracia na África do Sul e o papel desempenhado pela autoridade federal durante o<br />

gover<strong>no</strong> de Kennedy para romper a oposição local <strong>à</strong> votação dos afro-america<strong>no</strong>s <strong>no</strong> sul dos<br />

Estados Unidos demonstram a importância que pode ter a ação do gover<strong>no</strong> nacional na criação<br />

de condições <strong>no</strong> meio <strong>à</strong> sua volta que favoreçam processos de empoderamento.<br />

Da mesma forma, o partido político e o gover<strong>no</strong> local têm tido um papel-chave como um<br />

agente facilitador de empoderamento <strong>no</strong> caso do Orçamento Participativo <strong>no</strong> sul do <strong>Brasil</strong>.<br />

Além disso, existem inúmeras experiências de ONGs que, apoiadas por agências de cooperação<br />

internacional, facilitaram processos i<strong>no</strong>vadores e flexíveis de empoderamento que serviram de<br />

base para sua posterior adoção por entidades governamentais e internacionais.<br />

2.2. Espaços de empoderamento<br />

O empoderamento faz referência a produzir mudanças nas relações de poder que afetam<br />

negativamente o desenvolvimento da sociedade em seu conjunto e, em especial, aos setores<br />

sociais em desvantagem. Porém, a própria idéia de desvantagem é relativa em função da presença<br />

de outros setores sociais que detenham cotas maiores de poder em um determinado âmbito<br />

social. Assim, o empoderamento da mulher é relativo ao poder que detenham os homens; o<br />

empoderamento dos pobres é relativo ao poder dos ricos e dos setores médios; e o empoderamento<br />

das etnias indígenas é relativo ao poder social dos mestiços.<br />

Ao mesmo tempo, todas estas relações de poder não se produzem <strong>no</strong> abstrato, mas em<br />

espaços sociais concretos, <strong>no</strong>s quais os diferentes atores sociais e organizações interagem produzindo<br />

valores, tomando decisões e alocando recursos.<br />

Devido ao que foi exposto, as estratégias de empoderamento devem se perguntar quais são<br />

os âmbitos sociais onde se cabe incidir, quais as características deles e que oportunidades de<br />

incidir criam para construir <strong>no</strong>vas relações de poder.<br />

Neste sentido, é possível tipificar pelo me<strong>no</strong>s cinco espaços sociais de ação para as estratégias<br />

de empoderamento: a família, a comunidade, o município ou a região, o país e o global. Exporemos<br />

resumidamente a seguir as potencialidades que na <strong>no</strong>ssa opinião oferecem cada um desses espaços.<br />

A família<br />

É o me<strong>no</strong>r espaço de organização social e mostra-se fundamental <strong>no</strong> estabelecimento de relações<br />

de poder entre gêneros, assim como entre pais e filhos. Daí que as estratégias orientadas <strong>à</strong><br />

eqüidade de gêneros, ao apoio <strong>à</strong> infância e <strong>à</strong> adolescência e <strong>à</strong> diminuição da violência intrafamiliar<br />

devem considerar incidir de alguma forma neste espaço social.<br />

A comunidade<br />

É um espaço social mais complexo que a família, mas ainda relativamente homogêneo, <strong>no</strong> qual<br />

primam as relações estabelecidas pela proximidade física e o fato de que as pessoas compartilham, em<br />

geral, uma situação similar <strong>no</strong> que se refere ao acesso a recursos e serviços, como a moradia, o<br />

emprego, a água e o saneamento, a educação, a saúde etc.<br />

Durante as décadas de 80 e 90, na América Latina, as organizações comunitárias rurais e<br />

urbanas pobres desempenharam um papel fundamental para resolver um conjunto de serviços<br />

básicos e construir <strong>no</strong>rmas de convivência, que resultaram indispensáveis diante da debilidade<br />

histórica do papel social do Estado. A ponto de se poder afirmar que uma boa parte da infraestrutura<br />

social que existe neste tipo de comunidades se deve mais <strong>à</strong> autogestão comunitária<br />

52


— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —<br />

apoiada pelas ONGs e pela cooperação internacional do que pela ação do Estado. Esta situação é<br />

ainda mais clara nas zonas que foram cenários de conflitos armados onde, diante do virtual<br />

desaparecimento do poder do Estado, as organizações comunitárias demonstraram uma apreciável<br />

capacidade de autogestão, sem a qual não teria sido possível sua sobrevivência.<br />

Estas experiências permitiram que, <strong>no</strong> mencionado período, se atribuísse uma considerável<br />

importância <strong>à</strong>quilo que se convencio<strong>no</strong>u chamar de “desenvolvimento comunitário”. Porém, com<br />

o tempo, este espaço de empoderamento demonstrou não só suas virtudes mas também suas<br />

restrições, principalmente <strong>no</strong> que se refere a sua limitada massa crítica para gerar dinâmicas<br />

sustentáveis de desenvolvimento.<br />

O local e o regional<br />

Durante os últimos a<strong>no</strong>s, o município e a região adquiriram especial relevância na América Latina<br />

como espaços para a implementação de estratégias de desenvolvimento e de empoderamento.<br />

Isto se produziu como resultado de duas megatendências. A primeira delas vem de cima para<br />

baixo e tem relação com a pressão que exercem os organismos multinacionais para descentralizar<br />

o Estado, como meio de torná-lo me<strong>no</strong>s burocrático e mais eficaz, assim como para fortalecer a<br />

fraca governabilidade <strong>no</strong>s países da região. A segunda tendência corre de baixo para cima e tem<br />

a ver com a crescente pressão da sociedade civil e suas organizações para ganhar maior ingerência<br />

na gestão do Estado através da participação cidadã.<br />

Nesta conjunção se misturam também tendências ideológicas de significado diferente.<br />

Uma de corte neoliberal que aposta na debilidade do poder do Estado e na transferência para a<br />

sociedade civil de uma parte do custo que implica o investimento e o gasto social. Outra, de<br />

caráter popular, vê na descentralização do Estado e na participação cidadã uma oportunidade<br />

para aprofundar os processos democráticos e conseguir maior influência dos setores populares na<br />

definição de políticas públicas.<br />

Em todo caso, a partir do enfoque do desenvolvimento e do empoderamento, o município e,<br />

em me<strong>no</strong>r medida, a região oferecem a potencialidade de serem os me<strong>no</strong>res espaços de ação <strong>no</strong>s<br />

quais a sociedade civil se encontra com o Estado. Isto significa que os grupos em processo de<br />

empoderamento têm aqui maiores possibilidades de influenciar o estabelecimento de políticas<br />

públicas que levem em conta seus interesses, mas também possibilita empreender iniciativas a<br />

partir dos municípios ou dos gover<strong>no</strong>s locais que propiciem processos de empoderamento.<br />

O país<br />

É o espaço tradicional para a formulação e a execução de políticas públicas de caráter macro,<br />

setorial e territorial que constitui o meio fundamental que facilita ou dificulta os processos locais<br />

e comunitários. Além disso, é <strong>no</strong>s gover<strong>no</strong>s nacionais que se concentram os principais recursos<br />

para investir em desenvolvimento.<br />

A implementação de estratégias que propiciam empoderamento <strong>no</strong> espaço nacional carece,<br />

em geral, da especificidade e da profundidade que permite o espaço local. Porém, pode influenciar<br />

consideravelmente o empoderamento de setores populacionais amplos como as mulheres, a<br />

infância e a adolescência, os trabalhadores rurais sem terra e as etnias mi<strong>no</strong>ritárias mediante a<br />

aprovação de marcos jurídicos que defendam os <strong>direitos</strong> civis destes setores, a criação de mecanismos<br />

que os façam cumprir e a alocação de recursos que os privilegiem.<br />

53


O global<br />

— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

É junto ao local, um dos espaços que adquiriu maior vigência durante os últimos a<strong>no</strong>s como<br />

conseqüência do processo de globalização, da crescente interdependência política entre os Estados e<br />

a evidência cada vez mais clara de desigualdades internacionais, que deram lugar a amplos movimentos<br />

sociais e cidadãos como o movimento antiglobalização ou o Fórum Social Mundial.<br />

Porém, a globalização abriu ao mesmo tempo a oportunidade de impulsionar estratégias<br />

voltadas a influenciar grandes decisões que têm um inquestionável impacto sobre o empoderamento<br />

de grupos sociais <strong>no</strong>s níveis nacional e local.<br />

Os perigos maiores são a falta de compreensão da relação que existe entre os processos, a<br />

absolutização de alguns espaços e sua conseqüente desvinculação dos outros. Por isso, aqueles<br />

que pensam que não há nada a fazer <strong>no</strong> terre<strong>no</strong> local porque tudo vem determinado pelos<br />

processos internacionais e pelas grandes empresas transnacionais, ou os que pensam que a solução<br />

de todos os problemas está <strong>no</strong>s espaços locais e municipais, não poderão criar estratégias de<br />

empoderamento genuínas.<br />

As estratégias de empoderamento devem situar-se prioritariamente em um desses espaços,<br />

mas devem estar articuladas aos demais.<br />

2.3. Estratégias de empoderamento<br />

As estratégias voltadas para promover ou facilitar o empoderamento dos setores sociais em<br />

desvantagem devem ser orientadas a incidir em duas dimensões:<br />

a. O incremento das capacidades internas.<br />

b. A criação de condições a sua volta que favoreçam os processos de empoderamento.<br />

A efetividade das estratégias de empoderamento voltadas para o desenvolvimento e, conseqüentemente,<br />

para sua luta contra a <strong>pobreza</strong> e a exclusão dependerá do grau em que essas duas<br />

dimensões se desdobrem e se articulem.<br />

2.3.1. Estratégias para o fortalecimento de capacidades internas<br />

De acordo com a experiência, podem se identificar pelo me<strong>no</strong>s quatro eixos de ação para fortalecer<br />

as capacidades internas dos grupos sociais em desvantagem:<br />

– o fortalecimento de suas organizações,<br />

– a criação de <strong>no</strong>vos conhecimentos e habilidades,<br />

– o fortalecimento de sua auto-estima e valores e<br />

– a construção de vínculos e alianças com outros setores.<br />

Vejamo-lo mais detidamente:<br />

Fortalecimento organizacional<br />

Diversos autores insistem que o empoderamento possui uma dimensão pessoal, mas também<br />

organizacional. Isto se deve a que a capacidade que têm os setores sociais em desvantagem de<br />

apoiar-se a si mesmos e de influenciar as decisões que se tomam na sociedade depende, em boa<br />

medida, de sua capacidade de unir-se e atuar coordenadamente frente <strong>à</strong>s estruturas de poder<br />

estabelecidas. Porém, não se trata somente do simples fato de criar organizações, mas de conseguir<br />

que estas sejam autô<strong>no</strong>mas, democráticas, inclusivas e influentes.<br />

54


— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —<br />

Olhando para a história dos países da Europa Ocidental, por exemplo, se vê que as organizações<br />

de massas (sindicais, de consumidores etc) que se constituíram <strong>no</strong> começo do século passado<br />

desempenharam um papel fundamental <strong>no</strong> estabelecimento de iniciativas de cooperação grupal e<br />

de um conjunto de <strong>direitos</strong> políticos e sociais que hoje distinguem as sociedades modernas.<br />

No final do século, estes modelos organizacionais começaram a se esgotar, mas surgiram outros,<br />

como os movimentos de mulheres, os ambientalistas e os da solidariedade internacional, que<br />

também adquiriram grande influência. Na América Latina se constituíram também importantes<br />

organizações sociais que alcançaram me<strong>no</strong>r ou maior influência segundo suas potencialidades<br />

internas e o âmbito nacional que enfrentaram.<br />

Estas experiências, entre muitas, permitem afirmar com bastante segurança que existe uma<br />

forte correlação positiva entre o poder organizacional que adquirem as organizações dos setores<br />

sociais em desvantagem e o nível de desenvolvimento democrático e de inclusão social que alcançam<br />

as sociedades onde atuam.<br />

Durante os últimos a<strong>no</strong>s na América Latina se difundiu consideravelmente a organização<br />

comunitária. Em El Salvador, por exemplo, existem evidências que demonstram que aqueles municípios<br />

onde durante o conflito armado se constituíram fortes redes de organizações comunitárias<br />

(como Tecoluca, Suchitoto e o <strong>no</strong>rte do município de Chalatenango), se enfrentam os desafios do<br />

desenvolvimento local de maneira mais democrática, inclusiva e i<strong>no</strong>vadora que <strong>no</strong>s municípios<br />

<strong>no</strong>s quais a organização comunitária é mais incipiente. Isto á válido inclusive quando se comparam<br />

municípios que se encontram governados pelo mesmo partido político.<br />

Mas o fortalecimento da capacidade organizacional dos setores sociais em desvantagem não<br />

deixa de ser problemático.<br />

Uma das debilidades que se apresenta é a dispersão em muitas e pequenas organizações<br />

sociais que, apesar de se encontrarem muito ligadas com sua gente, carecem da força necessária<br />

para influenciar os tomadores de decisão locais, regionais, nacionais e globais.<br />

Outro problema é a pouca capacidade que têm estas organizações de manter sua auto<strong>no</strong>mia<br />

frente ao Estado, os partidos políticos e outras instituições de poder. A experiência demonstra que<br />

a subordinação destas organizações <strong>à</strong>s estruturas tradicionais de poder pode favorecer sua forte<br />

expansão <strong>no</strong> curto prazo, mas as debilita e desnaturaliza <strong>no</strong> longo prazo.<br />

O problema da pouca auto<strong>no</strong>mia tem muitas vezes relação com a dificuldade deste tipo de<br />

organizações para financiar seu funcionamento. O apoio financeiro da cooperação internacional<br />

estimulou a auto<strong>no</strong>mia de muitas organizações sociais frente aos poderes estabelecidos, mas<br />

também teve o efeito negativo de desestimular as contribuições dos associados e transformar<br />

algumas organizações de base em fazedoras de projetos, o que gera grandemente <strong>no</strong>vas e, <strong>à</strong>s<br />

vezes muito sutis, formas de dependência.<br />

Fortalecimento e criação de <strong>no</strong>vos conhecimentos e habilidades<br />

Um dos fatores que situam determinados grupos sociais em posição de desvantagem é<br />

terem sido discriminados negativamente na provisão social de conhecimento e de habilidadeschave<br />

para discernir alternativas, criar propostas próprias e manejar seus assuntos com a habilidade<br />

que exige um meio que se mostra cada vez mais exigente. Isto tem a ver com o acesso <strong>à</strong><br />

educação formal, mas também com um conjunto de habilidades específicas que são necessárias<br />

para se manejar tanto <strong>no</strong> mercado como na esfera pública. Daí que o empoderamento não pode<br />

passar por cima da criação de conhecimentos e habilidades.<br />

55


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

As campanhas de alfabetização como a que se realizou na Nicarágua durante o período revolucionário,<br />

as escolas populares nas zonas de conflito de El Salvador ou a campanha total de alfabetização<br />

que se desenvolveu na Índia a partir de 1989 7 evidenciaram uma incidência maciça <strong>no</strong> fortalecimento<br />

das capacidades dos setores sociais em desvantagem para melhorar sua situação. Porém,<br />

estes são empreendimentos que dificilmente podem se realizar sem o envolvimento do Estado.<br />

De maneira mais seletiva, os cursos de formação e capacitação que realizam as ONGs, algumas<br />

universidades e as próprias organizações sociais para dirigentes nacionais e locais apresentam<br />

uma e<strong>no</strong>rme quantidade de exemplos que demonstram sua incidência positiva na elevação da<br />

capacidade de empoderamento que têm os setores sociais em desvantagem.<br />

O problema das atividades de formação e capacitação é seu alto custo e o tempo que leva<br />

para alcançar níveis de acumulação que permitam dar saltos de qualidade. Outro elemento que<br />

também se deve levar em conta é a baixa qualidade em muitas atividades desse tipo, sejam<br />

cursos, oficinas ou seminários.<br />

Todavia, estamos diante de um campo em que se devem investir recursos huma<strong>no</strong>s, técnicos<br />

e financeiros e <strong>no</strong> qual é necessário avançar permanentemente <strong>no</strong> aperfeiçoamento de conteúdos<br />

e metodologias.<br />

Aumento da auto-estima e transformação de valores<br />

Um dos principais mecanismos que se criam socialmente para justificar a exclusão social é<br />

argumentá-la ideologicamente, com preconceitos que subestimam o valor dos setores pobres e<br />

excluídos, sejam estes mulheres, classes sociais ou grupos étnicos. Mas para que o sistema de<br />

exclusão funcione, é necessário que os setores desempoderados se assumam estes preconceitos<br />

que paradoxalmente os desfavorecem. Por esta razão, as estratégias de empoderamento devem<br />

contribuir por um lado, para mudar estes valores <strong>no</strong>s setores desempoderados e, por outro, para<br />

transformar os valores predominantes na sociedade.<br />

Os projetos orientados para a eqüidade de gênero, relativamente recentes numa perspectiva<br />

histórica, estão demonstrando que a mudança na auto-estima dos participantes é o resultado mais<br />

destacado por eles e que esta mudança tem um importante efeito desencadeador de outras transformações<br />

positivas nas relações familiares e comunitárias. Neste sentido, as ações genéricas têm muito<br />

que contribuir para as estratégias e metodologias de empoderamento de outros setores sociais.<br />

O trabalho <strong>no</strong> campo dos valores, tanto dos setores em desvantagem como da sociedade em<br />

seu conjunto, é algo que, em geral, tem pouca presença <strong>no</strong>s projetos de desenvolvimento, o que<br />

determina seu pouco desenvolvimento teórico. Isto é grave num contexto mundial em que o valor<br />

da “solidariedade” perdeu peso frente <strong>à</strong> “competitividade” e em que as relações humanas tendem<br />

cada vez mais a serem apreciadas como “relações de mercado”.<br />

Influência e alianças<br />

A experiência parece demonstrar também que é fundamental o fortalecimento da capacidade<br />

dos setores pobres e excluídos de influir <strong>no</strong>s tomadores de decisão, de modo que seus interesses<br />

e propostas sejam levados em conta.<br />

Isto significa desenvolver capacidades de mobilização social e luta reivindicativa de maneira<br />

ajustada <strong>à</strong>s condições de cada sociedade e momento político, mas também estabelecer alianças<br />

com outros setores-chave para criar correlações sociais e políticas favoráveis. Significa também<br />

7 SEN, Gita: El empoderamiento como un enfoque a la <strong>pobreza</strong>, http://www.dawn.org.fj/publications/ losdesafios.html<br />

56


— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —<br />

desenvolver capacidades mais sutis de criação de vínculos, lobby e influência sobre os políticos<br />

com poder de decisão <strong>no</strong> nível local, nacional e global.<br />

O que dissemos acima implica necessariamente a construção de propostas de desenvolvimento.<br />

Uma das capacidades dos grupos de poder que mais se destacam consiste em gerar<br />

propostas que na realidade privilegiam seus próprios interesses, embora sejam apresentadas e<br />

justificadas como de interesse para toda a sociedade. Os setores carentes de poder raramente têm<br />

esta capacidade devido ao fato de que suas propostas geralmente se expressam em forma de<br />

plataformas reivindicativas pouco fundamentadas que, se expressam bem seus interesses de setor,<br />

não chegam a transmitir o motivo pelo qual representam mais um lucro que um custo para o<br />

conjunto da sociedade.<br />

2.3.2. Estratégias para a criação de um meio favorável ao empoderamento<br />

As estratégias para a criação de um meio favorável ao empoderamento dos setores em desvantagem<br />

social não se encontram isoladas das orientadas a fortalecer suas capacidades internas, mas sim se<br />

inter-relacionam mutuamente. Isto significa que quanto maiores forem as capacidades internas dos<br />

setores em processo de empoderamento, tanto maiores serão suas possibilidades de influenciar o<br />

meio ao redor. Mas também o inverso é verdadeiro: quanto mais favoráveis forem as condições do<br />

meio, tanto maiores serão as possibilidades de incrementar as capacidades internas destes setores.<br />

Fazendo uma leitura da experiência lati<strong>no</strong>-americana dos últimos a<strong>no</strong>s, as estratégias voltadas<br />

para modificar o meio visam a promover:<br />

– a descentralização do Estado e o desenvolvimento local,<br />

– a participação cidadã e a atuação em rede,<br />

– a transparência e o acesso <strong>à</strong> informação compreensível,<br />

– a criação de serviços de apoio,<br />

– a geração de mudanças na cultura institucional, particularmente <strong>no</strong> Estado, e<br />

– a influência nas alocações orçamentárias do Estado.<br />

Descentralização do Estado e desenvolvimento local<br />

A descentralização do Estado e o desenvolvimento local são duas políticas de Estado que<br />

estão em moda e podem representar uma oportunidade considerável para o empoderamento dos<br />

setores sociais pobres e excluídos.<br />

A descentralização do Estado pode permitir <strong>à</strong>s comunidades pobres se acercarem do<br />

poder de decisão e de recursos e fortalecerem sua capacidade de influenciar os poderes públicos.<br />

O desenvolvimento local permite também pensar e realizar o desenvolvimento a partir de um<br />

âmbito mais próximo das pessoas e desde uma perspectiva na qual os pobres e excluídos se<br />

convertam em protagonistas e não sejam só demandantes ou beneficiários.<br />

Neste sentido, a Lei de Participação Popular e Descentralização da Bolívia (1989) e a aplicação de<br />

seus conteúdos são um bom exemplo de uma mudança radical <strong>no</strong> sistema jurídico e nas políticas<br />

de Estado que ampliou as possibilidades de empoderamento. O mesmo se pode dizer da influência<br />

positiva que teve o incremento das transferências do gover<strong>no</strong> nacional <strong>à</strong>s municipalidades de<br />

El Salvador (1997), correspondente a 6% da renda bruta do primeiro; e das leis de Descentralização<br />

do Estado, Código Municipal e de Conselhos de Desenvolvimento que recentemente foram<br />

aprovadas na Guatemala.<br />

Porém, a descentralização do Estado não realizada ou mal aplicada também pode significar<br />

uma ameaça para os setores e territórios desempoderados, já que pode acarretar conseqüências<br />

57


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

como a transferência do custo dos serviços públicos aos pobres, aprofundar as atuais disparidades<br />

territoriais e, inclusive, fortalecer as elites locais.<br />

A participação cidadã e a atuação em redes<br />

Na mesma linha de pensamento se pode afirmar que a participação cidadã é a condição que<br />

pode permitir que a descentralização do Estado não se limite a beneficiar as elites locais, já que<br />

abre as portas para que os setores desempoderados acedam ao poder de decisão e aos recursos<br />

transferidos. Neste sentido, o Orçamento Participativo de Porto Alegre, hoje replicado em numerosos<br />

municípios da América Latina, é o exemplo mais radical da oportunidade que representa a participação<br />

cidadã para o empoderamento dos setores que foram tradicionalmente excluídos. Mas existem<br />

também outros exemplos que se experimentam em numerosos países, como os comitês ou conselhos<br />

de desenvolvimento local, os exercícios de planejamento local participativo, os comitês de monitoramento<br />

e controle social etc., que permitem depositar esperanças neste tipo de mecanismos<br />

de participação cidadã como meios facilitadores de processos de empoderamento.<br />

A atuação em redes e as alianças para o desenvolvimento territorial permitem também que<br />

os setores tradicionalmente excluídos incorporem sua própria perspectiva na construção de acordos<br />

e vínculos de cooperação com outros setores sociais. Porém, a utilidade destas formas de relação<br />

social para o empoderamento dependerá em boa medida da capacidade que as organizações<br />

populares tenham de fazer valer seus próprios interesses e formular iniciativas que sejam atrativas<br />

para os outros setores. Neste sentido, os Fundos para o Desenvolvimento Local que se constituíram<br />

em alguns municípios salvadorenhos entre o setor empresarial, o gover<strong>no</strong> local, as organizações<br />

comunitárias e algumas ONGs são uma experiência interessante de construção de alianças que<br />

inclui as organizações populares como parceiras.<br />

Mesmo que o âmbito local seja especialmente favorável para promover a participação cidadã,<br />

esta não deve se limitar ao mesmo, dando as costas ao fato de que um conjunto de decisões,<br />

geralmente as mais importantes, se realizam <strong>no</strong>s âmbitos nacional e global. A experiência sulafricana<br />

de promover a participação cidadã na elaboração do orçamento nacional e as cada vez<br />

mais recorrentes iniciativas cidadãs para promover mudanças legais ou de políticas nacionais que<br />

estão se desenvolvendo na América Latina parecem indicar uma tendência em ascensão. Por outro<br />

lado, a participação cidadã nas questões globais como os Tratados de Livre Comércio (TLC), o<br />

Pla<strong>no</strong> Puebla-Panamá e as regras do comércio parecem um imperativo que precisa encontrar vias<br />

de realização <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s vindouros.<br />

Acesso <strong>à</strong> informação compreensível<br />

O acesso <strong>à</strong> informação é outra questão-chave para o empoderamento dos grupos sociais, já<br />

que deste depende sua capacidade de controlar e exercer influência sobre o Estado <strong>no</strong> campo<br />

político e social, e de aceder a mercados <strong>no</strong> campo econômico.<br />

Durante os últimos a<strong>no</strong>s foram realizadas algumas iniciativas interessantes, mesmo que ainda<br />

embrionárias, destinadas a tornar pública certa informação do Estado via internet e os meios de<br />

comunicação de massas. Porém, como se afirmou numa oficina sobre empoderamento realizada<br />

<strong>no</strong> Peru, “não é muito útil tornar a informação disponível se as pessoas não a podem entender.<br />

O verdadeiro desafio, então, consiste não tanto em torná-la disponível, mas sim em fazê-la<br />

comunicável e compreensível”. 8 .<br />

8 Oficina Internacional sobre Participação e <strong>Empoderamento</strong>: http://www.bancomundial.org/ sociedadcivil/lessons.html, p.12.<br />

58


— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —<br />

Neste sentido, existem algumas experiências como o Orçamento Participativo em várias<br />

cidades brasileiras; os repórteres populares na Índia; a análise, disseminação e educação para<br />

compreender o orçamento na África do Sul; e a recente montagem de um sistema de informação<br />

<strong>à</strong> cidadania na prefeitura de San Salvador, El Salvador, que demonstram que este é um campo<br />

promissor para as estratégias de empoderamento.<br />

Acesso a serviços de apoio<br />

No mundo moder<strong>no</strong> se fala cada vez mais da importância dos serviços de apoio <strong>à</strong>s empresas<br />

como um fator-chave de competitividade. Porém, se o acesso a serviços apropriados é importante<br />

para as empresas, é ainda mais para os setores populacionais com me<strong>no</strong>r poder na sociedade.<br />

As ONGs se destacaram neste papel durante os últimos a<strong>no</strong>s, oferecendo tipos de serviços<br />

diferenciados para estes setores, de modo que, em muitos casos, se converteram em parceiras<br />

necessárias para a cooperação internacional. Existem também organizações sociais que oferecem<br />

serviços apropriados para seus associados.<br />

Entre as experiências de serviços de apoio que favorecem processos de empoderamento,<br />

cabe destacar a prestação de serviços legais, a prestação de serviços para facilitar o acesso a<br />

mercados de produtores rurais e micro empresários e os serviços de capacitação.<br />

Porém, nesses casos, o importante para o empoderamento não é somente o serviço em si,<br />

como propõem algumas ONGs ou programas governamentais, que vêem a assistência aos grupos<br />

vulneráveis com uma ótica de mercado ou assistencialista, mas que esta atividade se realize fortalecendo<br />

o protagonismo e a criação de capacidades autogestoras dos setores desempoderados.<br />

Isto é uma questão de filosofia, cultura e metodologia institucional.<br />

2.4. Princípios metodológicos<br />

Ao analisar os diferentes casos de empoderamento, se descobre que não existe uma seqüência<br />

metodológica única, devido <strong>à</strong> diversidade de estratégias e âmbitos em que estas se implementam.<br />

Porém, é possível sim identificar a aplicação dos princípios metodológicos que se descrevem a seguir:<br />

Envolvimento do sujeito<br />

Todos os projetos bem-sucedidos voltados para a criação de capacidades internas, e boa parte<br />

daqueles voltados para criar condições favoráveis, buscam o maior envolvimento possível dos<br />

setores que se pretende apoiar, ainda que a iniciativa não tenha partido destes. O que significa<br />

dizer que os grupos com os quais se trabalha são concebidos como sujeitos da mudança, mais do<br />

que como “clientes” ou “beneficiários” da ação do projeto.<br />

Respeito <strong>à</strong>s diferentes naturezas e papéis<br />

Nos processos de empoderamento internacional atuam diversos setores e atores, cada um com<br />

sua própria natureza e com um papel específico de acordo com ela. Respeitar essas naturezas e<br />

papéis a fim de que nenhum substitua ou desloque o outro é fundamental para o êxito.<br />

Gradação<br />

A maior parte dos projetos começou com iniciativas simples que se foram complexificando<br />

progressivamente, vale dizer, que avançaram do simples para o complexo.<br />

59


Aprendizagem e i<strong>no</strong>vação<br />

— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Alguns projetos de empoderamento, sobretudo os que são apresentados em foros públicos, são<br />

sumamente i<strong>no</strong>vadores, por parecerem que foram inventados de repente. Porém, ao analisar globalmente<br />

a realidade se descobre que a maioria dos projetos surge como réplica de outros, aos quais<br />

se introduziram pequenas i<strong>no</strong>vações que produzem saltos de qualidade.<br />

Diferenciação<br />

A maioria das iniciativas voltada para o empoderamento se orienta num princípio de iniciar <strong>no</strong>s<br />

setores mais avançados ou conscientes da população-alvo que, com o tempo, vão agregando<br />

setores mais amplos, mas raramente se chega a comprometer toda a população. Dá a impressão<br />

de que a metodologia se poderia resumir em “atuar com os avançados, para ganhar os intermediários<br />

e arrastrar os atrasados”.<br />

Propositividade<br />

Outra característica metodológica das iniciativas empoderadoras parece ser a busca em elaborar<br />

propostas de solução antes de assinalar problemas ou carências.<br />

2.5. Ferramentas<br />

Existe um grande número de ferramentas que se utilizaram durante os últimos a<strong>no</strong>s para<br />

tornar viáveis as estratégias de empoderamento que têm sido desenvolvidas em diferentes contextos.<br />

A seguir apresentamos algumas:<br />

Técnicas participativas de planejamento<br />

Estas técnicas têm sido desenvolvidas com muitas variações devido <strong>à</strong> ampla difusão tida pelo<br />

planejamento participativo local. Entre elas se encontram desde a metodologia conhecida como<br />

ZOP e adaptações do Marco Lógico, especialmente apropriadas para identificar projetos, até adaptações<br />

para o planejamento estratégico desenvolvido por Carlos Mattos, mais apropriadas para<br />

planejamentos de caráter estratégico.<br />

Técnicas de comunicação<br />

Como se assinalou anteriormente, a comunicação é chave para trabalhar os valores <strong>no</strong>s setores<br />

pobres e excluídos e na sociedade civil, para tornar pública e compreensível a informação sobre o<br />

Estado e o acesso aos mercados, assim como para difundir as propostas voltadas para alcançar<br />

mudanças nas condições políticas e econômicas da sociedade. Porém, foi peque<strong>no</strong> o avanço neste<br />

sentido, se comparado ao alcance adquirido pelos meios de comunicação de massas, que estão<br />

mais voltados para a alienação e a desinformação que ao empoderamento.<br />

Técnicas para influência e lobby<br />

As técnicas de influência e lobby são relativamente recentes, mas adquiriram uma grande importância<br />

para aumentar a influência da sociedade civil <strong>no</strong>s grupos de poder e naquelas instâncias<br />

onde se decidem as políticas públicas. Estas técnicas se destinam, por um lado, <strong>à</strong> construção de<br />

propostas e <strong>à</strong> busca de apoio social e político para as mesmas; e, por outro, a identificar os<br />

caminhos, formas e mecanismos para levá-las adiante. Isto inclui para os grupos excluídos e<br />

pobres o crescente conhecimento dos centros de poder e a lógica com que funcionam e decidem.<br />

60


— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —<br />

Técnicas de resolução ou transformação de conflitos<br />

Dado que os processos de empoderamento são sempre altamente conflituosos, cresce cada vez<br />

mais a preocupação em estudar a natureza do conflito e as formas de compreendê-lo, analisá-lo,<br />

gerenciá-lo e encontrar soluções para ele. Por isso, vêm sendo desenvolvidas mais e melhores<br />

técnicas não só para conhecer e gerenciar os conflitos, mas também para resolvê-los ou transformálos,<br />

de maneira que se contribua para a consolidação do empoderamento. Porém, uma tarefa<br />

pendente é que os próprios sujeitos principais dos processos de empoderamento sejam aqueles que<br />

conheçam e dominem estas técnicas.<br />

Intercâmbios de conhecimentos e de experiências<br />

O intercâmbio de experiências e de conhecimentos aumentou consideravelmente durante os últimos<br />

a<strong>no</strong>s entre os profissionais do desenvolvimento. Não obstante, ainda são escassas as atividades<br />

deste tipo que envolvem diretamente os sujeitos das estratégias e das ações de empoderamento.<br />

A ampliação deste instrumento poderia contribuir consideravelmente para estabelecer sinergias<br />

que potencializem a aprendizagem e a i<strong>no</strong>vação <strong>no</strong> campo do empoderamento.<br />

Foros de análise, reflexão e debate<br />

A experiência se encarregou de mostrar que o intercâmbio de experiências não é suficiente para<br />

elevar o nível de reflexão sobre os desafios que coloca o desenvolvimento. Pode-se afirmar inclusive<br />

que durante os últimos a<strong>no</strong>s este nível de reflexão diminuiu, concentrando-se mais na busca<br />

de receitas de sucesso que em análises profundas e <strong>no</strong> contraste de idéias e propostas. Isto<br />

constitui uma ameaça, lamentavelmente pouco tangível, para os processos de empoderamento e<br />

desenvolvimento. Daí ser imprescindível promover mais e melhores atividades deste tipo.<br />

Sistematização de experiências<br />

A maioria dos projetos de desenvolvimento que se realizam não é sistematizada por seus protagonistas,<br />

de maneira que se perde muito da riqueza das lições que produz, sejam êxitos ou fracassos.<br />

Isto se deve em parte <strong>à</strong> crescente escassez de recursos e tempo para a execução de projetos, assim<br />

como <strong>à</strong> falta de metodologias e hábitos de sistematização por parte dos profissionais do desenvolvimento.<br />

Porém, são evidentes a necessidade e a urgência de ampliar os esforços deste tipo para<br />

elevar a qualidade do trabalho dentro dos processos de empoderamento e para se apropriar das<br />

lições que eles vão assumindo.<br />

Estudos e investigações<br />

Os estudos e investigações a partir de e voltados para os processos de empoderamento ainda são<br />

escassos. Porém, para que os setores em desvantagem possam realizar propostas para a sociedade é<br />

cada vez mais imprescindível que vão além de suas plataformas reivindicativas e consigam contrabalançar<br />

o domínio que exerce o pensamento dos grupos hegemônicos. A construção destas<br />

ferramentas é estratégica para os processos de empoderamento.<br />

Cursos, oficinas e seminários para fortalecer a formação<br />

e a capacitação dos atores<br />

Sua importância e seu papel já ficaram assinalados <strong>no</strong> ponto anterior.<br />

61


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

3. Recomendações <strong>à</strong> <strong>ActionAid</strong> para a<br />

análise e o desenvolvimento de estratégias<br />

e metodologias de empoderamento<br />

Um aspecto central <strong>no</strong> momento de fazer recomendações é precisar o sujeito das mesmas, vale<br />

dizer, a quem se fazem tais recomendações. Em outras palavras, quem se espera que as ponha em<br />

prática. Neste caso, o destinatário é a <strong>ActionAid</strong>.<br />

Tendo presente isto e tudo o que foi colocado anteriormente, alguns aspectos e componentes<br />

para o desenvolvimento de estratégias, metodologias e instrumentos de empoderamento são:<br />

3.1. Que fazer?<br />

Sugere-se:<br />

• Partir de uma delimitação conceitual de empoderamento que, mesmo que se mantenha<br />

aberta a enriquecimentos e aprimoramentos posteriores, permita um horizonte que dê<br />

sentido, marco e suporte <strong>à</strong>s diversas estratégias, metodologias e instrumentos.<br />

De acordo com o que foi colocado neste trabalho, o empoderamento não é um fim em si<br />

mesmo. Refere-se a processos vinculados medular e vertebralmente ao desenvolvimento e,<br />

nessa medida, <strong>à</strong> redução substantiva da <strong>pobreza</strong> e da exclusão.<br />

Em conseqüência, as estratégias de empoderamento têm como ponto de chegada não só<br />

sujeitos empoderados, que conseguiram romper sua condição de <strong>pobreza</strong> e exclusão, mas<br />

sujeitos que exercem esse poder adquirido em dinâmicas de desenvolvimento que impactam<br />

positivamente e de modo crescente e sustentável a qualidade de vida deles e dos demais<br />

setores da sociedade.<br />

• Ter presente, em todo momento, que os sujeitos do processo de empoderamento são os<br />

setores desempoderados, mas que este processo demanda o envolvimento de outros atoreschave<br />

como os gover<strong>no</strong>s central e locais, setores organizados da sociedade civil e da<br />

empresa privada.<br />

Neste marco, é indispensável conseguir que as grandes necessidades e reivindicações dos<br />

grupos pobres e excluídos não fiquem somente na formulação de plataformas ou pacotes de<br />

demandas (como aconteceu com muitos sindicatos, associações de agricultores e movimentos<br />

rurais em diferentes países da América Latina), mas que se convertam em propostas de<br />

transformações do Estado e da sociedade que também beneficiem o coletivo e os demais<br />

setores, convertendo <strong>no</strong>s únicos perdedores do processo aqueles peque<strong>no</strong>s grupos que<br />

fizeram da concentração excludente da riqueza e do poder seu fim supremo e exclusivo.<br />

• Combinar de maneira profunda e permanente, ao longo de todos os passos e momentos da<br />

estratégia, as duas dimensões dos processos de empoderamento:<br />

– O aumento das capacidades internas dos setores pobres e excluídos;<br />

– A criação de condições que favoreçam os processos de empoderamento destes setores.<br />

• Mesmo que os processos de empoderamento devam priorizar e enfatizar uma dimensão,<br />

econômica (mercados) ou política (Estado), devem ser impulsionados de maneira multidimensional<br />

e integral. Não existe um processo de empoderamento genuí<strong>no</strong> que seja<br />

unidimensional.<br />

62


— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —<br />

• Selecionar, com base em critérios claros, os espaços desde onde se pretende apoiar os<br />

processos de empoderamento.<br />

À luz da situação atual <strong>no</strong>s países da América Latina e tomando por base as lições aprendidas<br />

<strong>no</strong>s últimos 10 a<strong>no</strong>s, é recomendável privilegiar os espaços locais, tendo o município<br />

como ponto de partida, dado que ali, pela primeira vez, se encontram os atores fundamentais<br />

dos processos de empoderamento com o Estado e o gover<strong>no</strong>.<br />

Isto significa que os grupos em processo de empoderamento têm ali maiores possibilidades<br />

de influenciar o estabelecimento de políticas públicas e que seus interesses, demandas e<br />

propostas sejam levadas em conta. Mas também é possível empreender iniciativas a partir da<br />

municipalidade ou dos gover<strong>no</strong>s locais que propiciem processos de empoderamento.<br />

A partir dos espaços locais, as estratégias de empoderamento devem estar articuladas e se articularem<br />

aos demais espaços: a comunidade e a família, desde baixo, o país e o global desde cima.<br />

3.2. Como fazer?<br />

• Tomar a decisão e criar as condições para se envolver como parceiro exter<strong>no</strong> estratégico.<br />

Ser parceiro implica compromisso e responsabilidade. Supõe um envolvimento ativo, sistemático<br />

e criativo <strong>no</strong>s processos. Trata-se de um ator que aporta e cuja participação agrega<br />

valor em termos quantitativos e qualitativos. Por isso é estratégico. Exter<strong>no</strong> faz alusão <strong>à</strong> sua<br />

natureza e ao papel que desempenha. Destaca que não é o protagonista principal, mas que<br />

sem sua presença o processo pode seguir adiante, que nunca deve substituir aquele e que<br />

muito me<strong>no</strong>s deve ser o que marca o ritmo do processo, mas sob nenhum ponto de vista é<br />

sinônimo de alheio ou de passivo.<br />

Envolver-se nesta condição implica fazê-lo com perspectiva de médio e longo prazo. Isto não<br />

contradiz, mas destaca o sentido de urgência de que os processos de empoderamento<br />

deslanchem e avancem.<br />

Concentrar e não diluir esforços e recursos. Comprometer-se seriamente com processos e<br />

estratégias de empoderamento requer esforços e recursos concentrados. Estamos falando de<br />

mudanças profundas e estáveis na distribuição e <strong>no</strong> exercício do poder. A me<strong>no</strong>s que se<br />

conte com recursos huma<strong>no</strong>s, institucionais e financeiros em grande escala, isto não se pode<br />

fazer participando simultaneamente em demasiados processos e em muitas alianças estratégicas.<br />

Por isso, se recomenda investimento concentrado, seleção cuidadosa de poucos<br />

parceiros, mas com importância estratégica. Não tem mais impacto nem maior incidência<br />

aquele que participa em mais processos, mas o que seleciona e participa melhor.<br />

Pôr os recursos da <strong>ActionAid</strong> em função dos processos, dado que sua natureza de agência<br />

internacional pode contribuir, ao comprometer-se com processos nacionais ou locais, a uma<br />

tomada de consciência gradual sobre a necessidade e utilidade de uma perspectiva global<br />

adequada, que contemple também as questões do poder.<br />

Isso significa que a <strong>ActionAid</strong> não deve reduzir seu papel a um mero apoio financeiro, mas<br />

combiná-lo com apoio técnico e profissional, contribuir para a geração de espaços de encontro<br />

entre atores do processo, para estender pontes, promover intercâmbios de conhecimentos<br />

e experiências, criar condições para alianças e ações conjuntas.<br />

63


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Também significa se deixar impregnar pelos processos concretos de empoderamento. Um dos<br />

aspectos para medir a profundidade e o alcance do compromisso da <strong>ActionAid</strong> é o quanto<br />

aqueles o impactam, o quanto o impulsionam a mudanças, ajustes e readequações a fim de<br />

desempenhar um papel que cada vez mais contribua melhor em termos qualitativos. Isto<br />

demonstra o quão sensível é a organização aos processos em que se envolve.<br />

• Partindo dos espaços selecionados para atuar, identificar de fato o sujeito do empoderamento,<br />

isto é, as pessoas e grupos ou setores desfavorecidos, pobres e excluídos, <strong>no</strong> marco de uma<br />

análise das formas concretas de exclusão, de distribuição do poder e de seu exercício naquele<br />

espaço em que se quer trabalhar, seja este um país, uma região ou uma localidade.<br />

• Identificar os outros atores que podem contribuir para criar um meio favorável já que, para<br />

que o processo de empoderamento se realize com êxito e seja sustentável, é necessário saber<br />

quais são aqueles setores, forças ou organizações com quem os setores pobres e excluídos<br />

podem estabelecer vínculos e alianças, dado que com seu peso e capacidade podem ajudar<br />

na criação de um meio que favoreça os processos de empoderamento.<br />

• Redimensionar a importância, natureza e papel dos diagnósticos:<br />

Os dois passos anteriores implicam um diagnóstico do qual devem participar os próprios<br />

atores. Não é um trabalho de consultores exter<strong>no</strong>s. Em todo caso, o papel dos consultores<br />

deve ser o de facilitar o processo de diagnóstico, que deve ser já o primeiro passo da estratégia.<br />

Sua primeira pedra. E é preciso assegurar que seja sólida. É importante conceber o<br />

diagnóstico como uma primeira fase de aprofundamento e ampliação de conhecimento e<br />

consciência, isto é, de empoderamento.<br />

O diagnóstico como ponto de partida do processo de empoderamento é, por isso, necessariamente<br />

participativo, de modo que se faz desde dentro e desde baixo.<br />

O diagnóstico deve ser dinâmico e permanente. Um processo de constante ampliação do<br />

conhecimento e de ir registrando as mudanças e os impactos do empoderamento.<br />

• Promover a participação da sociedade civil e a construção de alianças:<br />

Aqui entra como componente fundamental a participação que, como já assinalamos, é um<br />

elemento constitutivo das estratégias de empoderamento. Trata-se de participação crescente<br />

dos pobres e excluídos, assim como de outros setores e forças da sociedade civil, <strong>no</strong>s processos<br />

de tomada de decisão que tem a ver com formulação e implementação de políticas<br />

públicas seja <strong>no</strong> nível local, regional ou nacional.<br />

Junto a isto, a estratégia de empoderamento deve contemplar a construção de alianças do<br />

sujeito das mesmas, os pobres e excluídos, com a mais diversa gama de atores <strong>no</strong> campo do<br />

desenvolvimento, com o propósito de transformar o meio e abrir caminho aos processos de<br />

empoderamento.<br />

• Promover espaços e formas diversas e articuladas para a formação e a capacitação dos sujeitos<br />

que impulsionam o processo e as estratégias de empoderamento. Aqui podem desempenhar<br />

um papel central instâncias governamentais e não-governamentais, assim como universidades<br />

e centros acadêmicos.<br />

64


— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —<br />

• Promover estratégias e processos que contribuam para modificar o meio, gerando condições<br />

favoráveis ao empoderamento, <strong>à</strong> redução da <strong>pobreza</strong> e da exclusão e ao desenvolvimento<br />

sustentável. Entre eles:<br />

– Descentralização do Estado;<br />

– Institucionalização da participação cidadã e da articulação em redes;<br />

– Instalação de sistemas de informação transparente e compreensível em todos<br />

os níveis de gover<strong>no</strong>;<br />

– Geração de mudanças na cultura institucional, tanto do Estado como da sociedade civil; e<br />

– Influência <strong>no</strong>s orçamentos <strong>no</strong> nível nacional e local.<br />

• Estabelecer critérios e indicadores que permitam medir se um processo de empoderamento<br />

avança e vai na direção do desenvolvimento.<br />

3.3. Com que ferramentas fazer?<br />

Os processos, estratégias e metodologias de empoderamento requerem sem dúvida a utilização<br />

de certos instrumentos ou ferramentas básicas. Considerando o que já foi colocado antes e os<br />

processos e experiências em curso na América Latina, pode se concluir que as mais importantes e<br />

efetivas são:<br />

• técnicas participativas de planejamento;<br />

• técnicas de resolução ou transformação de conflitos;<br />

• técnicas de comunicação;<br />

• técnicas e instrumentos de difusão: audiovisuais;<br />

• técnicas para a influência e o lobby;<br />

• intercâmbios de conhecimentos e de experiências;<br />

• sistematização de experiências;<br />

• estudos e investigações;<br />

• estudos comparativos de processos e/ou experiências;<br />

• foros de análises, reflexão e debate; e<br />

• cursos, oficinas e seminários para fortalecer a formação e a capacitação dos atores.<br />

Para terminar, é importante destacar que cada um destes instrumentos tem sua natureza<br />

própria, seu papel e seu valor. Porém, eles ganham maior força e alcance quando são vistos como<br />

peças de uma caixa de ferramentas e, conseqüentemente, são utilizadas de maneira combinada<br />

por uma mesma estratégia, dentro de um mesmo processo de empoderamento.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

ACTIONAID EN AMERICA LATINA Y EL CARIBE. Estrategia Regional para 2001 – 2003.<br />

Guatemala, <strong>no</strong>v. 2000.<br />

ALBANEZ, Teresa. Un caso de empoderamiento promovido por una organización de sociedad<br />

civil en Venezuela. Foro de Empoderamiento y Acción. México, out. 2001.<br />

ENRIQUEZ, Alberto. Desarrollo regional/local en El Salvador: reto estratégico del siglo XXI.<br />

Funde, El Salvador, julho 1999.<br />

65


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

ENRIQUEZ, Alberto. Participación ciudadana y concertación: una lectura desde experiencias<br />

locales. Funde, El Salvador, jan. 2001.<br />

ESTEVA, Gustavo. El estado de la sociedad civil y las estrategias de empoderamiento en México.<br />

Primer Foro Temático Regional empoderamiento y acción. México, out. 2001.<br />

FTR: Primer Foro Temático Regional empoderamiento y acción. Construyendo una agenda para<br />

la reducción de la <strong>pobreza</strong>. México, out. 2001.<br />

FTR: Taller Internacional sobre participación y empoderamiento para un desarrollo inclusivo.<br />

Banco Mundial. Peru, jul. 2001.<br />

GÁMEZ, Ramón. Participación social en la definición de la estrategia para la reducción de<br />

la <strong>pobreza</strong> en Nicaragua. s.d.<br />

GRAF, Sergio. Gobernabilidad y conservación: la participación social en la reserva de la biosfera de<br />

Manantlán, México.<br />

IORIO, Cecilia. Algumas considerações sobre estratégias de empoderamento e de <strong>direitos</strong>.<br />

<strong>Brasil</strong>, abril 2002.<br />

LIZARRALDE MONTOYA, Rubén. Indupalma, un proceso de empoderamiento. s.d.<br />

LIZARRALDE MONTOYA, Rubén. Participación popular en la producción de aceite<br />

en Colombia. Sem data.<br />

MINERVINO DIAZ, Edmundo. Proyecto de justicia comunitaria en <strong>Brasil</strong>. s.d.<br />

MURIAS, Luis. Micro-crédito para la autoconstrucción de viviendas en Uruguay. s.d.<br />

PEREZ HARO, Eduardo. Participación social y empoderamiento para la gestión del desarrollo.<br />

Relatório apresentado na Oficina Internacional sobre Participação e <strong>Empoderamento</strong><br />

para um Desenvolvimento Inclusivo. Peru, jul. 2001.<br />

PINELO, José. Diálogo nacional HIPC II en Bolivia. s.d.<br />

ROWLANDS, Jo. El empoderamiento a examen.<br />

www.developmentinpractice.org<br />

SEN, Gita. El empoderamiento como un enfoque a la <strong>pobreza</strong>.<br />

http://www.dawn.org.fj/publications/ losdesafios.html<br />

ULLOA, Luis Felipe. ¿Empoderamiento de las organizaciones de base desde proyectos<br />

de desarrollo?. s.d.<br />

66


<strong>Empoderamento</strong>, teorias<br />

de desenvolvimento<br />

e desenvolvimento local<br />

na América Latina<br />

67<br />

Enrique Gallichio 1<br />

O presente trabalho procura avançar na discussão de três temas:<br />

• Uma análise dos modelos de desenvolvimento vigentes na América Latina nas últimas<br />

décadas, seus resultados e conclusões.<br />

• As implicações das teorias do poder e do desenvolvimento na América Latina e <strong>no</strong> Caribe.<br />

As principais concepções, evolução, tendências, debates e estado da arte sobre as mesmas.<br />

• Alguns elementos de busca e construção de alternativas, formulação de proposta(s) e<br />

recomendações concretas.<br />

Para desenvolver o primeiro tema, <strong>no</strong>s basearemos na análise dos paradigmas do desenvolvimento<br />

que inclui Arocena (1995). Assim, avançamos sobre as principais implicações da discussão<br />

do desenvolvimento num contexto de globalização.<br />

Em relação ao segundo tema, vinculado <strong>à</strong>s teorias do poder, <strong>no</strong>s baseamos fortemente nas<br />

contribuições de Pierre Bourdieu, sobretudo <strong>no</strong> que diz respeito a sua forma de conceber as<br />

práticas sociais, a dinâmica dos campos e as formas de fazer e sentir por parte dos atores.<br />

Também <strong>no</strong>s apoiaremos em alguns aspectos da obra de Michel Foucault.<br />

No segundo bloco se afirma a importância do desenvolvimento local como forma de ver e de<br />

atuar neste contexto. As principais teses do trabalho assinalam que os diferentes modelos/relações<br />

de poder tomam corpo e se materializam em <strong>no</strong>ssas sociedades de diferentes maneiras. No que<br />

diz respeito aos processos de empoderamento, o âmbito local surge como o meio mais relevante<br />

para dar-lhes corpo.<br />

O desenvolvimento local será tomado como eixo numa perspectiva não localista, que assume<br />

as interações e as mútuas determinações local-global.<br />

A importância de discutir os paradigmas do desenvolvimento e do poder se dá fundamentalmente<br />

<strong>no</strong> papel que cada um deles atribui aos atores. Os processos de empoderamento devem estar fortemente<br />

ligados ao território, este entendido como o contínuo entre identidade, história e projeto.<br />

Enquanto alternativas, esta forma de ver o desenvolvimento local somada <strong>à</strong> perspectiva da<br />

análise e do <strong>combate</strong> <strong>à</strong> exclusão social são as dimensões mais relevantes, na medida em que são<br />

capazes de discutir as mútuas determinações entre ator e sistema.<br />

1 Sociólogo, Claeh (Centro Lati<strong>no</strong>-America<strong>no</strong> de Eco<strong>no</strong>mia Humana), Uruguai.


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

1. Teorias do desenvolvimento<br />

na América Latina<br />

Portes 2 assinala que “<strong>à</strong> medida que <strong>no</strong>s aproximamos do fim do milênio, as persistentes desigualdades<br />

econômicas e sociais tomaram um rumo inesperado: deixa-se de realizar esforços para<br />

reduzir estas desigualdades e reconhece-se sua permanência, e até sua funcionalidade, para o<br />

desenvolvimento da eco<strong>no</strong>mia global. Neste contexto, a sociologia do desenvolvimento parece ter<br />

perdido muito de seu fundamento, devido ao predomínio do enfoque orientado para o mercado<br />

e a disposição dos gover<strong>no</strong>s para seguir essa perspectiva”.<br />

O mesmo autor analisa os pontos fortes e as limitações de duas das principais teorias lati<strong>no</strong>americanas<br />

do desenvolvimento: a da modernização e a da dependência. Mais adiante analisaremos<br />

as implicações do paradigma neoliberal, se é que se lhe pode chamar desta forma.<br />

1.1. As teorias “lati<strong>no</strong>-americanas” do desenvolvimento<br />

A modernização, o desenvolvimentismo<br />

Nesta perspectiva, segundo a análise de Cardoso: 3 “Se em algo se baseou a perspectiva<br />

desenvolvimentista, pelo me<strong>no</strong>s a que se elaborou na América Latina, foi precisamente na capacidade<br />

de identificar problemas, tentar superar obstáculos e abrir caminhos para a acumulação de<br />

riqueza e para que se pudessem compartilhar os frutos do progresso técnico.” E segue: “Se houve<br />

uma instituição na qual <strong>no</strong>ssos reformadores iluministas tiveram fé, foi <strong>no</strong> Estado.” Assim, Cardoso<br />

ressalta que a preocupação central destes autores (Prebisch, a Cepal e também, em seu primeiro<br />

momento, Furtado, Sunkel, Paz) não era uma teoria de desenvolvimento, mas sim dar uma explicação<br />

<strong>à</strong>s desigualdades entre eco<strong>no</strong>mias nacionais que vinham se acentuando através do comércio<br />

internacional. Isto se opunha fortemente <strong>à</strong>s expectativas da eco<strong>no</strong>mia neoclássica, que previa<br />

uma tendência <strong>à</strong> igualação relativa da remuneração dos fatores de produção.<br />

Em suma, a teoria desenvolvimentista impulsionada pela Cepal negava a importância do<br />

comércio internacional como promotor de oportunidades iguais, incorporando <strong>à</strong> discussão fatores<br />

de cunho institucional e estrutural situados para além do mercado. Insistia-se, portanto, na tomada<br />

de medidas políticas para permitir que a racionalidade técnica resultasse num progresso para as<br />

nações e os estratos sociais mais prejudicados.<br />

Neste marco, como se ressaltou, o ator principal era o Estado, a partir da criação de “agências<br />

públicas de desenvolvimento”, da promoção do investimento em tec<strong>no</strong>logia e da necessidade de<br />

expandir os mercados inter<strong>no</strong>s.<br />

Como Cardoso demonstra, a crítica a estas políticas veio da direita e da esquerda. Mostra que<br />

para a direita, as teses cepalinas seriam “erros grosseiros ou argumentos maliciosamente usados<br />

pelos que, sendo na verdade contrários ao sistema capitalista, preferiam iniciar a batalha por<br />

partes: primeiro propunham quimeras, como a industrialização e o estatismo, para depois abrir o<br />

jogo diretamente a favor do socialismo” (Cardoso, 1980). A crítica da esquerda argumentava que as<br />

teorias do desenvolvimento obscureciam o principal: que não há desenvolvimento sem acumulação<br />

de capital e que esta não é mais que a expressão de uma relação de exploração de classes.<br />

2 PORTES, Alejandro, 2001.<br />

3 CARDOSO, F. H, 1980.<br />

68


— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —<br />

Este enfoque é ainda bastante vigente em vários de <strong>no</strong>ssos países, <strong>no</strong>s quais se derivou<br />

algumas vezes para modelos populistas e outras, para modelos autoritários.<br />

O enfoque da dependência<br />

Diversos autores, inclusive alguns dos assinalados dentro do modelo desenvolvimentista, começam<br />

a questionar os principais pontos da teoria da modernização. A partir deste ponto de vista<br />

alternativo, Portes destaca que “a modernização não era outra coisa senão o verniz ideológico do<br />

capitalismo ocidental, cujas incursões <strong>no</strong> resto do mundo geravam paralisação permanente”<br />

(Portes, 2001). Autores como Frank ou Baran começam a defender a tese do “desenvolvimento do<br />

subdesenvolvimento”, para a qual o subdesenvolvimento é um fenôme<strong>no</strong> ativamente manejado<br />

em detrimento dos produtores de bens primários e dos Estados mais vulneráveis. Ao mesmo<br />

tempo, na América Latina, surge vigorosamente a escola da dependência (Cardoso e Faletto,<br />

Sunkel, Furtado). Portes ressalta: “Com suas raízes teóricas firmemente plantadas na eco<strong>no</strong>mia<br />

política marxista, os escritos sobre a dependência ig<strong>no</strong>raram o peso de ideologias e valores<br />

culturais e responsabilizaram as corporações multinacionais pela <strong>pobreza</strong> do Terceiro Mundo”<br />

(Portes, 2001).<br />

Cardoso assinala que o enfoque da dependência não enfatizou só a “dependência externa”,<br />

mas também a análise dos padrões estruturais que vinculam, assimétrica e regularmente, as<br />

eco<strong>no</strong>mias centrais com as periféricas. Introduzia-se o conceito de dominação, que destacava que<br />

um desenvolvimento autô<strong>no</strong>mo não era possível e que a única saída era o socialismo. É neste<br />

sentido, na crítica <strong>à</strong> possibilidade de um desenvolvimento nacional, que surgem tantos autores<br />

como Santos, Quija<strong>no</strong>, Marini, Cardoso e Faletto. A dominação, definitivamente, era uma dominação<br />

entre classes e não entre nações.<br />

Com relação aos atores para superar esta situação, aí é onde provavelmente se encontra a<br />

principal debilidade dos teóricos da dependência. Cardoso conclui destacando que “em lugar do<br />

Estado-reformador dos cepali<strong>no</strong>s, apresentamos uma imagem da sociedade reformada, mas não<br />

levamos <strong>à</strong>s últimas conseqüências as duas questões-chave que se percebiam <strong>no</strong> horizonte: que<br />

tipo de sociedade reformada e por quem?” (Cardoso, 1980).<br />

Portes enfatiza que é necessário, na busca de alternativas, abandonar os debates “modernização<br />

versus dependência” e ir além de declarações históricas gerais.<br />

1.2 O ajuste neoliberal<br />

“Em meados dos a<strong>no</strong>s 80, uma equipe de eco<strong>no</strong>mistas neoclássicos produziu o equivalente<br />

a um ‘manifesto capitalista’ para o desenvolvimento da América Latina” (Portes, 2001). Da crítica<br />

“ortodoxa” ao modelo de substituição de importações, proclamaram um modelo <strong>no</strong>vo que<br />

conduziria ao “desenvolvimento”: levantamento unilateral de barreiras econômicas, abolição dos<br />

subsídios ao consumidor, expulsão do Estado da eco<strong>no</strong>mia, estímulo ao fluxo de capital estrangeiro<br />

(Balassa et al, 1986).<br />

Portes continua: “O desaparecimento do bloco soviético e o descrédito de sua estratégia de<br />

desenvolvimento estatista abriram caminho para a expansão global do capitalismo e, junto com<br />

ele, para a hegemonia da escola teórica mais voltada para o mercado” (Portes, 2001).<br />

69


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Díaz4 assinala sete passos da execução do ajuste neoliberal:<br />

1. a abertura unilateral ao comércio estrangeiro;<br />

2. a privatização de empresas estatais;<br />

3. a remoção de regulações <strong>no</strong>s mercados de bens, serviços e trabalho;<br />

4. a liberalização do mercado de capital com ampla privatização dos fundos de pensão;<br />

5. o ajuste fiscal, baseado na drástica redução do gasto público;<br />

6. a reestruturação e redução de programas sociais, concentrando-se estes em esquemas<br />

compensatórios para os grupos mais atingidos; e<br />

7. o fim de qualquer forma de capitalismo estatal e a reestruturação do estado <strong>à</strong> administração<br />

macroeconômica.<br />

Junto a isto, coloca Portes, o neoliberalismo trouxe também mudanças socioculturais importantes:<br />

1. a reavaliação da acumulação capitalista como desejável e congruente com os interesses<br />

nacionais;<br />

2. o descrédito dos sindicatos e da indústria nacional protegida como redutos de privilégio<br />

opostos <strong>à</strong> eficiência econômica;<br />

3. o apoio do investimento estrangeiro como necessário ao crescimento sustentável;<br />

4. a re<strong>no</strong>vada fé <strong>no</strong>s efeitos do trickle down para a redução da desigualdade social;<br />

5. a reorientação das fontes de identidade nacional a partir da capacidade de resistência <strong>à</strong><br />

hegemonia estrangeira até a reinserção inteligente <strong>no</strong> sistema econômico mundial.<br />

Evidentemente, as conseqüências da aplicação deste modelo apontam para as limitações do<br />

paradigma neoclássico e também dos paradigmas alternativos e para a necessidade de construir<br />

una perspectiva teórica alternativa.<br />

1.3 Novas propostas<br />

É neste marco que aparecem algumas <strong>no</strong>vas propostas, como a chamada “terceira via” – a<br />

raiz do manifesto Blair-Schroeder. Dahrendorf resume alguns dos principais postulados desta linha<br />

de pensamento: “Giddens situa a tarefa de alcançar a combinação de criação de riqueza com<br />

coesão social <strong>no</strong> contexto das grandes mudanças produzidas pela globalização, o ‘<strong>no</strong>vo diálogo’<br />

com a ciência e a tec<strong>no</strong>logia, e a transformação dos valores e os estilos de vida”. Determina,<br />

depois, seis áreas de política da terceira via:<br />

• uma <strong>no</strong>va política ou “segunda onda de democratização” em que se socorre diretamente o povo;<br />

• una <strong>no</strong>va relação entre o Estado, o mercado e a sociedade civil que os “una entre si”;<br />

• políticas de oferta através do investimento social, principalmente em projetos de educação e<br />

infraestrutura;<br />

• a reforma fundamental do Estado de bem-estar social mediante a criação de um <strong>no</strong>vo equilíbrio<br />

entre o risco e a segurança;<br />

4 DÍAZ, Alvaro, 1996.<br />

70


— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —<br />

• uma <strong>no</strong>va relação com o meio ambiente através da “modernização ecológica”;<br />

• um forte compromisso com as iniciativas transnacionais num mundo de “soberania confusa”.<br />

No marco de ásperos debates, autores como Touraine afirmaram que “não se deve ver nela<br />

(a terceira via) um programa político, mas um sinal emitido por alguns dirigentes que com ele<br />

indicam claramente a prioridade que dão <strong>à</strong>s exigências do mercado internacional, ainda que, ao<br />

mesmo tempo, queiram fazer <strong>no</strong>tar sua preocupação em resolver os problemas sociais, que se<br />

vêm agravando há 20 a<strong>no</strong>s. Há duas formas de avaliar a terceira via. Ou é um anúncio da reaparição<br />

dos temas próprios da esquerda num mundo dominado por políticas de direita ou, o que me<br />

parece mais apropriado, o modo que têm os políticos de centro-esquerda de fazer uma política<br />

de centro-direita” (os destaques são meus).<br />

Partindo de uma perspectiva lati<strong>no</strong>-americana, Ricardo Lagos ressaltou:<br />

“Mas existem matizes de diferença entre o debate europeu e o lati<strong>no</strong>-america<strong>no</strong>.<br />

Enquanto na Europa os social-democratas buscam estimular um crescimento que não<br />

deixe de lado o papel do Estado <strong>no</strong> desenvolvimento, enfatizando o fomento do emprego<br />

produtivo, o avanço tec<strong>no</strong>lógico para uma maior competitividade, assim como a necessidade<br />

de seguir garantindo os <strong>direitos</strong> dos cidadãos ao bem-estar social, reestruturando<br />

o antigo Estado de bem-estar social, na América Latina se observa um debate similar,<br />

mas com ênfase na busca de maiores níveis de eqüidade e integração social frente <strong>à</strong><br />

persistente cristalização de desigualdades sociais que originam mobilizações e demandas<br />

populares legítimas.<br />

Não é que não tenhamos feito <strong>no</strong>ssas tarefas <strong>no</strong> sentido de estimular um crescimento<br />

econômico estável, melhorar a eficácia do gasto social ou manter os equilíbrios macroeconômicos.<br />

Em grande parte da América Latina se fez tudo isso, e muito bem, mas,<br />

apesar disto, se mantêm os problemas sociais que, supostamente, deveriam desaparecer,<br />

tais como o endurecimento de uma <strong>pobreza</strong> rural e urbana, a manutenção ou inclusive<br />

o aumento do abismo na distribuição de riqueza ou a agudização de problemas de<br />

violência, insegurança e exclusão juvenil.<br />

A terceira via não pode então ter a mesma ênfase numa Europa de US$ 30 mil per<br />

capita que numa América Latina de me<strong>no</strong>s de US$ 5 mil dólares per capita. Mais ainda<br />

se levamos em conta que a América Latina é a região com a distribuição de renda mais<br />

desigual do mundo. Em <strong>no</strong>ssa região, conseqüentemente, a ênfase deve estar na inclusão<br />

dos excluídos melhorando sua vida sem que isto ocorra a expensas do resto. A idéia é que<br />

ninguém perca <strong>no</strong> processo de inclusão social, para o qual se requer, simultaneamente,<br />

progresso material e progresso social, tal qual o postulam <strong>no</strong>ssos amigos europeus”.<br />

Em suma, nesta discussão sobre as alternativas, as propostas de corte lati<strong>no</strong>-america<strong>no</strong><br />

aparecem, todavia, bastante ausentes.<br />

É <strong>no</strong> contexto da realidade que coloca Lagos para a América Latina, que a idéia de <strong>combate</strong><br />

<strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> e <strong>à</strong> exclusão social mediante a perspectiva do empoderamento aparece como sumamente<br />

relevante. A idéia de processo pelo qual se obtém acesso ao controle sobre si e sobre os<br />

meios necessários para a existência (Iorio, 2002) é sumamente relevante numa estratégia de<br />

desenvolvimento.<br />

Creio que pode ajudar muito na discussão sobre dentro de que e como empoderar, a visão a<br />

partir da teoria e da prática do desenvolvimento local. É para essa linha de análise que <strong>no</strong>s<br />

dirigimos a seguir.<br />

71


2. Paradigmas do<br />

desenvolvimento<br />

— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Para começar este debate, gostaria de ressaltar a análise feita por Arocena sobre os principais<br />

paradigmas do desenvolvimento e suas implicações sobre o local.<br />

Para falar de desenvolvimento local é necessário explicitar os pressupostos teóricos: quando<br />

estudamos o local não <strong>no</strong>s situamos em um universo <strong>à</strong> parte dos processos de desenvolvimento<br />

nacional ou regional; não partimos do zero como se nunca tivesse sido tratada a questão do<br />

desenvolvimento. É então necessário explicitar alguns pressupostos básicos. Arocena assinala que<br />

“não há uma teoria sobre o desenvolvimento local, mas teorias de desenvolvimento que diferem<br />

entre elas na forma de considerar o local” 5 e analisa três grandes paradigmas.<br />

2.1 Evolucionismo<br />

Neste paradigma, o desenvolvimento está ligado ao processo evolutivo e se compõe de<br />

etapas <strong>à</strong>s quais é necessário recorrer para chegar a um final previamente conhecido. Este modelo<br />

parte do pressuposto de que existe uma dinâmica evolutiva positiva em direção ao progresso; e<br />

que existem freios impostos pelas tradições locais opondo-se a essa dinâmica. Vai-se então do<br />

tradicional (algo negativo a superar) ao moder<strong>no</strong> (e avançado, o objetivo).<br />

Aqui o modelo industrial representa a superação ou destruição da sociedade tradicional.<br />

Em 1963, um de seus principais expositores, W. W. Rostow, estabeleceu cinco etapas de crescimento<br />

econômico: a sociedade tradicional, as condições prévias para o crescimento, a decolagem,<br />

a entrada na maturidade e o consumo de massa. 6<br />

A crítica a este modelo foi realizada entre outros por Touraine, que assinala que o desenvolvimento<br />

esteve mais marcado por relações de dependência, de interdependência e de dominação<br />

que por uma racionalidade universal de crescimento econômico; e se pergunta se o subdesenvolvimento<br />

é um atraso ou uma posição <strong>no</strong> sistema, afirmando esta última concepção. Desse modo,<br />

as especificidades locais determinam que os processos dificilmente sejam comparáveis; e, sobretudo,<br />

o desenvolvimento não significou necessariamente progresso, evolução.<br />

Para esta posição – o paradigma evolucionista – os atores locais não têm papel algum a<br />

cumprir, salvo seguir o melhor possível os ditados das demandas do crescimento econômico.<br />

Em geral, atuam mais como freio que como impulsionadores do desenvolvimento.<br />

2.2 Historicismo<br />

Neste enfoque, o essencial não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida, sempre<br />

diverso em função dos perfis nacionais e locais específicos.<br />

A história é um ponto de partida fundamental. A palavra-chave neste caso não é progresso,<br />

como <strong>no</strong> evolucionismo, mas estratégia. Para esta forma de ver a realidade, não existem leis prédeterminadas.<br />

O modelo é o da contingência pura. A idéia de <strong>no</strong>vidade é chave, todo processo é<br />

inédito. O endóge<strong>no</strong> se privilegia claramente e não se dá importância aos fatores estruturais ou<br />

globais. Nos a<strong>no</strong>s 70, o “Small is beautiful” era o slogan desta linha de pensamento, que teve<br />

como principal linha de investigação os estudos de corte antropológico-cultural.<br />

5 AROCENA, José, 1995.<br />

6 ROSTOW, W. W, 1963.<br />

72


— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —<br />

A crítica a este modelo está dada <strong>no</strong> fato de que sem dúvida é possível identificar pautas<br />

comuns em diferentes processos. Por outra parte, para esta concepção nem todos os atores fazem<br />

parte do processo, o qual é dirigido por elites. Não é um processo orientado pela sociedade.<br />

Neste enfoque, os atores locais são tudo, mas as dinâmicas globais existentes estão ausentes.<br />

2.3 Estruturalismo<br />

Para esta concepção, o desenvolvimento é um processo sistêmico cujos componentes<br />

estruturais são interdependentes. Há diferentes posições <strong>no</strong> sistema: dominantes e dominados.<br />

A determinação não vem de uma lei evolutiva ou da história, mas da racionalidade de um sistema.<br />

A análise da mecânica social é mais forte que a análise da mudança. Todo sistema tem sempre<br />

uma contradição que pode fazê-lo explodir. A busca de qual ou quais são os fatores determinantes<br />

passa a ser central: qual a zona sensível do sistema (eco<strong>no</strong>mia, política, cultura?). Para os<br />

teóricos desta linha, o sistema se reproduz constantemente e a margem de ação é unicamente<br />

revolucionária, de destruição do sistema. Não existe a idéia de desenvolvimento do sistema.<br />

O local é um lugar de reprodução das relações de dominação globais. As sociedades locais<br />

serão lidas a partir das contradições fundamentais que atravessam o sistema. Esta teoria, de forte<br />

base marxista, teve seus principais expositores <strong>no</strong>s teóricos da dependência.<br />

A crítica mais forte a esta concepção foi feita por um dos próprios teóricos da dependência<br />

como Cardoso, que assinalou que não se promove um <strong>no</strong>vo modelo de desenvolvimento, mas sim<br />

o mesmo tipo de desenvolvimento em benefício de outras classes. Por outro lado, destaca que é<br />

inútil propor uma teoria do desenvolvimento de um sistema que se diz que fatalmente produz<br />

subdesenvolvimento. Os atores locais não têm nenhum papel, já que são reprodutores nesse nível<br />

da lógica do sistema.<br />

2.4 Concepções alternativas<br />

Existem diversas concepções alternativas. Autores como Touraine, Morin ou Bourdieu desenvolveram<br />

diferentes linhas de análise que, com diferentes ênfases, dão conta destes problemas.<br />

Em todo caso, Arocena assinala que não é possível analisar os processos de desenvolvimento<br />

sem fazer intervir as três dimensões destacadas pelos paradigmas analisados: a história (mudança,<br />

especificidade, auto<strong>no</strong>mia), o sistema (funcionamento, universalidade, interdependência) e o<br />

modelo (representações, generalização, utopia).<br />

Estas dimensões, articuladas de maneiras diferentes, são as que definem os perfis dos processos<br />

de desenvolvimento. Não se pode pensar isoladamente as ênfases postas por estes três<br />

níveis de análise expressos <strong>no</strong>s paradigmas. Ao contrário, é necessário colocar-se simultaneamente<br />

<strong>no</strong>s três níveis, o que significa dar conta de fatores como a complexidade, a diferença, a<br />

incerteza, ou a integralidade dos processos de desenvolvimento.<br />

A esta altura, tendo dado conta de sensibilidades e enfoques teóricos diferentes, o problema<br />

da relação entre indivíduos e sociedade, ou entre a ação (individual ou coletiva) e a estrutura<br />

social, é um ponto <strong>no</strong>dal, central, da teoria e da prática social.<br />

Em suma, cremos que este tema da margem de ação do ator (por ator entendemos sujeitos<br />

individuais ou coletivos) subjaz <strong>à</strong> discussão que encara linhas de intervenção que promovem tanto o<br />

empoderamento como a perspectiva dos <strong>direitos</strong> sócio-econômicos e culturais. Enfim, se o ator<br />

73


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

está totalmente constrangido pela estrutura social, ou se tem margem de ma<strong>no</strong>bra, em que os<br />

atores podem mudar a estrutura e, finalmente, quais são as relações de poder e como se expressa<br />

esse poder em <strong>no</strong>ssas sociedades.<br />

2.5 O ator e o sistema<br />

Aqui <strong>no</strong>s parece relevante incluir outro autor-chave <strong>no</strong> pensamento contemporâneo: Pierre<br />

Bourdieu. 7 Suas preocupações se centram em desvendar a contradição entre a igualdade que<br />

promove e que está <strong>no</strong> discurso da modernização e a exclusão social que esta produz, e de que<br />

forma culturas que exaltam a igualdade como valor social produzem processos de exclusão e<br />

divisão. Bourdieu assinala que as diferenças e os processos de exclusão não são exclusivamente<br />

econômicos, mas também culturais. Daí seu interesse em mostrar a relação existente entre cultura,<br />

dominação e desigualdade social.<br />

Os conceitos-chave para este autor são reprodução cultural, legitimação, classe social, habitus,<br />

campo e espaço social, entre outros. É neste sentido que <strong>no</strong>s interessa trazer este autor, dadas as<br />

implicações de sua construção teórica sobre o tema do poder e da dominação.<br />

Suas raízes se encontram na teoria clássica e as reinterpreta a partir da problemática social<br />

de <strong>no</strong>ssos dias. De Marx, toma o programa para uma sociologia da reprodução, de Durkheim, a<br />

sociologia genética das formas simbólicas, e de Weber, as funções sociais dos bens simbólicos e<br />

das práticas simbólicas.<br />

Dentro deste marco, pretende explicar as ações sociais a partir uma perspectiva sociológica.<br />

Aproxima-se de Marx pela referência ao histórico; e de Durkheim, na explicação pelo social e a partir<br />

do social. Pretender explicar as ações sociais a partir de uma perspectiva social implica a convicção<br />

de que só a descrição das condições objetivas não chega a explicar totalmente o condicionamento<br />

social das práticas: é preciso resgatar o agente social que produz as práticas e seu processo de<br />

produção. Mas trata-se de resgatá-lo não enquanto indivíduo, mas como agente socializado,<br />

como “agente de desenvolvimento”. Substitui-se a relação ingênua entre indivíduo e sociedade<br />

pela relação construída entre os dois modos de existência do social: as estruturas sociais externas e<br />

as estruturas sociais internalizadas: o social feito coisas e o social feito corpo. As primeiras se referem<br />

a campos de posições sociais historicamente constituídos e as segundas, a habitus, ou seja,<br />

sistemas de disposições incorporados pelos agentes ao longo da sua trajetória social.<br />

Para Bourdieu, as estruturas sociais existem duas vezes: o social está conformado por relações<br />

objetivas, mas também os indivíduos possuem um conhecimento prático dessas relações. Isto impõe<br />

a quem intervém sobre a realidade uma dupla leitura de seu objeto de estudo. Estes conceitos<br />

teóricos são chaves para compreender a atuação do indivíduo numa perspectiva de empoderamento.<br />

Segundo Bourdieu, objetivismo e subjetivismo são perspectivas parciais, mas não irreconciliáveis.<br />

Ambas representam dois momentos da análise, momentos que estão numa relação<br />

dialética. A construção do mundo dos agentes se opera sob condições estruturais e segundo seu<br />

habitus, como sistema de esquemas de percepção e apreciação, como estruturas cognitivas e<br />

valorativas adquiridas através da experiência duradoura de uma posição <strong>no</strong> mundo social.<br />

Faz alusão ao “sentido das práticas” e aponta para a reflexão sobre as possibilidades de<br />

apreender a lógica que põe em marcha os agentes sociais que produzem sua prática e que atuam<br />

num tempo e num contexto determinado.<br />

7 GUTIÉRREZ, Alicia, 1995.<br />

74


— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —<br />

Bourdieu define seu enfoque teórico como construtivismo estruturalista ou estruturalismo<br />

construtivista. Por estruturalismo entende que <strong>no</strong> próprio mundo social existem estruturas objetivas,<br />

independentes da consciência e da vontade dos agentes, que são capazes de orientar ou de<br />

coagir suas práticas ou suas representações. Por construtivismo entende que há, de um lado, uma<br />

gênese social dos esquemas de percepção, de pensamento e de ação que são constitutivos do que<br />

chama habitus; e, de outro, também uma gênese social das estruturas, particularmente do que<br />

chama de campos e grupos, e em especial do que se de<strong>no</strong>mina geralmente como classes sociais.<br />

O conceito de habitus coloca uma perspectiva relacional, identificando o real com relações.<br />

Pensar relacionalmente é centrar a análise na estrutura das relações objetivas que determina as<br />

formas que podem tomar as interações e as representações que os agentes têm da estrutura, de<br />

sua posição nela mesma, de suas possibilidades e de suas práticas.<br />

O enfoque de Bourdieu considera como princípios de estruturação de práticas não só a<br />

posição e a trajetória do agente <strong>no</strong> sistema de relações, mas também os habitus incorporados<br />

pelo agente, enquanto esquemas de percepção, de avaliação e de ação. Como podem ser explicadas<br />

as práticas sociais a partir da ótica de Bourdieu? Quais são os princípios a partir dos quais se<br />

estruturam as práticas dos diversos agentes sociais segundo esta perspectiva teórico-metodológica?<br />

A reprodução cultural<br />

Bourdieu afirma que o sistema escolar e universitário funciona como instância de seleção, de<br />

segregação social em benefício das classes sociais superiores e em detrimento das classes médias<br />

e, mais ainda, das populares. Os privilegiados do sistema são os filhos das diferentes frações da<br />

burguesia. São os herdeiros, cuja herança não é só econômica, mas também, sobretudo, cultural.<br />

A escola cumpre a função de legitimação, transformando os privilégios aristocráticos em<br />

<strong>direitos</strong> meritocráticos, compatíveis com os princípios da democracia. Privilegiam-se os privilegiados,<br />

aos quais se dá a vantagem de não aparecerem como privilegiados. Corresponde, portanto,<br />

a um primeiro direito ao qual não se acede universalmente: a educação.<br />

A legitimação<br />

Bourdieu toma emprestada de Marx a idéia de que a realidade social é um conjunto de relações<br />

de força; e, de Weber, a <strong>no</strong>ção de que a realidade social é também um conjunto de relações de<br />

sentido e que toda dominação social deve ser reconhecida, ser aceita como legítima e ganhar<br />

sentido. Legitimar um tipo de dominação é dar toda a força da razão ao interesse do mais forte.<br />

É a violência simbólica, onde o poder se impõe mediante significações. Conseqüentemente, impõe-se<br />

uma arbitrariedade cultural. Geram-se culturas dominantes e culturas dominadas.<br />

Neste caso, estamos claramente posicionados dentro da lógica do poder. Este possui, como<br />

se assinala, um forte componente simbólico, cultural, de forma que a análise dos processos de<br />

construção de identidade adquire grande relevância.<br />

O habitus<br />

Este é um conceito-chave que permite articular o individual com o social, as estruturas internas da<br />

subjetividade e as estruturas sociais externas.<br />

O habitus é um sistema de disposições para atuar, sentir e pensar de uma determinada<br />

maneira, interiorizada e incorporada pelos indivíduos <strong>no</strong> transcurso da história. Manifesta-se por<br />

meio do sentido prático, que é a aptidão para se mover, para atuar e para se orientar segundo a<br />

75


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

posição que se ocupa <strong>no</strong> espaço social. Tudo isto sem recorrer a uma reflexão consciente, graças<br />

<strong>à</strong>s disposições adquiridas que funcionam automaticamente. É ao mesmo tempo um sistema de<br />

produção de práticas e um sistema de percepção e de apreciação de práticas.<br />

O conceito de habitus se constitui numa espécie de dobradiça na construção teórica de<br />

Bourdieu, já que permite articular o individual e o social como sendo dois estados da mesma<br />

realidade, da mesma história coletiva que se deposita e se inscreve simultânea e indissoluvelmente<br />

<strong>no</strong>s corpos e nas coisas. Bourdieu o vê como perpetuador e reprodutor das condições objetivas e<br />

destaca a irreversibilidade do processo de formação dos habitus.<br />

Pode-se dizer então que o habitus é ao mesmo tempo possibilidade de invenção e necessidade,<br />

recurso e limitação. Trata-se de uma estrutura estruturante. Falar de habitus é também recordar a<br />

historicidade do agente, é afirmar que o individual, o subjetivo, o pessoal é social, é produto da<br />

mesma história coletiva que se deposita <strong>no</strong>s corpos e nas coisas.<br />

Habitus e prática: o sentido prático e a prática como estratégia<br />

As práticas e as representações geradas pelo habitus podem estar objetivamente adaptadas a seu<br />

fim, sem pressupor a busca consciente dos fins. Podem ser objetivamente regradas e regulares,<br />

sem ser o produto de obediência a regras. Elas são o produto de um sentido prático, de uma<br />

aptidão para se mover, para atuar e para se orientar segundo a posição ocupada <strong>no</strong> espaço social,<br />

segundo a lógica do campo e da situação na qual se está comprometido.<br />

O sentido prático implica o encontro entre um habitus e um campo social, entre a história<br />

objetivada e a história incorporada. Possui ao mesmo tempo um sentido objetivo e um sentido<br />

subjetivo: é produto das estruturas objetivas do jogo e das experiências dos agentes nesse jogo.<br />

O sentido prático (o sentido do jogo social) possui uma lógica própria, que é necessário apreender<br />

para poder explicar e compreender as práticas. Este sentido não pode funcionar fora de toda<br />

situação. Estimula a atuar em relação a um espaço objetivamente constituído como estrutura de<br />

exigências, como as “coisas a fazer” diante de uma situação determinada.<br />

Sistematicidade dos habitus e das práticas: os habitus de classe<br />

As práticas que os habitus produzem são sistemáticas e compreensíveis. Todas as práticas de um<br />

mesmo agente estão harmonizadas entre si e objetivamente orquestradas com as de todos os<br />

membros da mesma classe.<br />

Falar de habitus de classe implica falar de um sistema de disposições comum a todos os<br />

indivíduos biológicos que são produto das mesmas condições objetivas. Trata-se do fato de que<br />

todos os membros da mesma classe têm mais probabilidades de enfrentar as mesmas situações e<br />

os mesmos condicionamentos entre si, que com membros de outra classe.<br />

Em suma, e em relação a este conceito, sua relevância em termos de empoderamento significa<br />

que todos os atores “sabem” atuar em seu meio, conhecem os códigos e, em todo caso, os<br />

processos de desenvolvimento local necessitam de articuladores entre essas diferentes lógicas,<br />

saberes e relações de poder.<br />

Campo/capital<br />

Um campo é um sistema específico de relações objetivas, que podem ser de aliança ou conflito, de<br />

competição ou de cooperação. As posições que se ocupam são independentes dos sujeitos que as<br />

ocupam em cada momento. Toda interação se desenvolve dentro de um campo específico e está<br />

determinada pela posição que ocupam os diferentes agentes sociais <strong>no</strong> sistema de relações específicas.<br />

76


— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —<br />

Em cada campo existem diferentes bens que estão permanentemente em jogo: econômicos,<br />

culturais e sociais. São três tipos de capital. Todo campo é um mercado onde se produz e se<br />

negocia um capital específico. A discussão, sobre a qual não <strong>no</strong>s alongaremos neste trabalho, é<br />

acerca da dinâmica dos campos, as lutas por eles e mecanismos de reprodução. Em particular,<br />

qual é a forma em que se distribui o capital específico, quais são as estratégias de conservação<br />

dos capitais e, também, quais são as estratégias de subversão. Sempre, em toda sociedade, é<br />

preciso pagar um direito de entrada para chegar ao campo, já que existe uma cumplicidade<br />

objetiva comum entre todos os membros do campo, sejam ou não antagonistas.<br />

No campo da construção do desenvolvimento local, é possível identificar estas relações, mas,<br />

sobretudo, é possível estabelecer esses acordos que permitam caminhar em direção ao bem<br />

comum, o que não significa desconhecer – os atores não o desconhecem – as assimetrias de<br />

poder existentes.<br />

O campo e o habitus são dois modos ou maneiras de existência do social. Ao campo pertencem<br />

as instituições e ao habitus, a ação individual. Não se excluem, já que a visão deve ser elaborada a<br />

partir da dupla existência do social: a história feita corpo, o habitus; e a história feita coisa, o campo.<br />

Bourdieu define os campos sociais como espaços de jogo historicamente constituídos com<br />

suas instituições específicas e suas leis de funcionamento próprias.<br />

Os campos se apresentam como sistemas de posições e de relações entre posições. Trata-se<br />

de espaços estruturados de posições, ligadas a certo número de propriedades, que podem ser<br />

analisadas independentemente das características daqueles que as ocupam. Um campo se define<br />

definindo o que está em jogo e os interesses específicos do mesmo, que são irredutíveis aos<br />

compromissos e aos interesses próprios de outros campos. A estrutura de um campo é um estado<br />

da distribuição do capital especifico que está em jogo ali, num momento dado do tempo, levando<br />

em conta as lutas anteriores e as estratégias. Sua estrutura é um estado das relações de força<br />

entre os agentes ou as instituições comprometidos <strong>no</strong> jogo. Constitui um campo de lutas destinadas<br />

a conservar ou a transformar esse campo de forças. Os agentes comprometidos nas lutas têm em<br />

comum um certo número de interesses fundamentais, causas compartilhadas e aceitas. Os limites<br />

de cada campo e suas relações com os demais campos se definem e se redefinem historicamente.<br />

3. O local como dimensão<br />

de análise<br />

Uma das primeiras perguntas que se fazem quando se fala de desenvolvimento local é sobre suas<br />

relações e vínculos com a globalização. Em particular, por que e como falar de desenvolvimento<br />

local num contexto tão fortemente marcado pela globalização? Sobretudo, qual é o sentido e os<br />

conteúdos desta categoria conceitual, quando uma primeira leitura reflete um avassalamento dos<br />

âmbitos locais pelas dinâmicas globais?<br />

Há várias repostas para esta pergunta, que foram compiladas por Arocena. 8 Umas afirmam o<br />

caráter determinante do global sobre o local e os processos de “desterritorialização”. Nesta ótica,<br />

o local é subordinado <strong>à</strong>s dinâmicas globais. Sob este ponto de vista, o trabalho <strong>no</strong> nível local não<br />

tem sentido, já que a globalização impede pensar em “chave” local.<br />

8 AROCENA, José, 1999.<br />

77


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Outros postulam o local como alternativa aos “males” da globalização. O local é visto assim<br />

como a única alternativa frente a uma análise da globalização que mostra exclusão, <strong>pobreza</strong> e<br />

injustiça. O desenvolvimento local é visto como uma política compensatória, como uma resposta<br />

<strong>à</strong>s dinâmicas globais. Nesta proposta, o local adquire sentido, mas num marco <strong>no</strong> qual não tem<br />

desti<strong>no</strong> propositivo. Ao contrário: é uma resposta, uma reação a um estado de coisas.<br />

Finalmente, a terceira resposta, embora mi<strong>no</strong>ritária, destaca a articulação local-global, dentro<br />

de uma compreensão complexa da sociedade contemporânea.<br />

As duas primeiras respostas têm a virtude de serem coerentes e claras. Porém, do <strong>no</strong>sso<br />

ponto de vista, são profundamente equivocadas. A terceira é mais complicada, contraditória, de<br />

difícil compreensão, buscando articular categorias que aparecem como incompatíveis. Contudo,<br />

creio que é a única que dá conta plenamente do significado do desenvolvimento local. Trata-se da<br />

articulação entre o local e o global, que faz a própria definição de desenvolvimento local.<br />

O desenvolvimento local consiste em crescer a partir de um ponto de vista endóge<strong>no</strong> e<br />

também obter recursos exter<strong>no</strong>s, exóge<strong>no</strong>s (investimentos, recursos huma<strong>no</strong>s, recursos econômicos),<br />

assim como deter a capacidade de controle do excedente que se gera <strong>no</strong> nível local. O desafio<br />

passa, então, pela capacidade dos atores em utilizar os recursos que passam, e ficam, em seu<br />

âmbito territorial, para melhorar as condições de vida dos habitantes.<br />

Trabalhar articulando estes nexos, estas pontes entre o local e o global levaram Alain Touraine a<br />

assinalar que “a sociedade necessita hoje de engenheiros de pontes e caminhos”. Certamente não são<br />

os engenheiros tradicionais, mas atores locais que pensam e atuam nesta lógica que mencionamos.<br />

É neste sentido que tentamos uma primeira aproximação ao conceito de desenvolvimento<br />

local:<br />

O desenvolvimento local surge como uma <strong>no</strong>va forma de olhar e de atuar a partir do<br />

território neste <strong>no</strong>vo contexto de globalização. O desafio para as sociedades locais está<br />

colocado em termos de inserirem-se de forma competitiva <strong>no</strong> global, capitalizando ao<br />

máximo suas capacidades locais e regionais, através das estratégias dos diferentes<br />

atores em jogo.<br />

3.1 O território e “o local”<br />

Os processos de desenvolvimento local transcorrem em um território específico. Por isso,<br />

quando falamos de desenvolvimento local, falamos de desenvolvimento de um território. Mas o<br />

território não é um mero espaço físico. Ele não deve ser visto como um lugar onde as coisas<br />

acontecem, mas sim como uma variável, uma construção social. O território é ao mesmo tempo<br />

condicionador e condicionado por e a partir das ações dos atores e das comunidades.<br />

“O local” é um conceito relativo que responde a um estado da sociedade atual e pressupõe<br />

uma definição de ator social bem precisa. Situa-se ao mesmo tempo na afirmação do singular e das<br />

regras estruturais. Para defini-lo, é necessário tomar distância, ao mesmo tempo, do isolamento<br />

autárquico e do reducionismo globalizador.<br />

Existem definições possíveis do “local” <strong>no</strong> nível de escala (em número de habitantes ou<br />

quilômetros quadrados); ou de sistema de interações com certa auto<strong>no</strong>mia; ou de unidade políticoadministrativa.<br />

Mas para definir de forma precisa “o local”, não há outro caminho senão referi-lo<br />

a sua <strong>no</strong>ção correlativa: o global. Se algo se define como local é porque pertence a um global.<br />

78


— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —<br />

Não se pode analisar um processo de desenvolvimento local sem se referi-lo <strong>à</strong> sociedade<br />

global em que está inscrito. O global está presente em cada processo de desenvolvimento. Mas, o<br />

global, a análise das grandes determinações sistêmicas e estruturais, não esgota o conhecimento<br />

da realidade. Portanto, <strong>no</strong> nível local se encontram aspectos que lhe são específicos e que não são<br />

o simples efeito da reprodução das determinações globais. Definir o local como uma <strong>no</strong>ção relativa<br />

permite evitar a armadilha do localismo. Mas é preciso ir mais além. Nem toda subdivisão do<br />

espaço nacional é uma sociedade local. Para que exista uma sociedade local devem dar-se condições<br />

de dois níveis: o sócio-econômico e o cultural.<br />

Para chamar uma sociedade de local, lhe pedimos uma condição sócio-econômica (a possibilidade<br />

de que os atores disponham e discutam a geração e o uso do excedente econômico ali<br />

gerado) e uma condição cultural (sentirem-se pertencentes ao território, a identidade).<br />

4. A discussão na<br />

América Latina<br />

A discussão na América Latina em relação a estes temas tem sido intensa. E neste debate não faltaram<br />

críticos nem apologistas. Do <strong>no</strong>sso ponto de vista, é necessário tomar cuidado tanto com as euforias<br />

localistas utópicas como com os mecanicismos inspirados em determinismos estruturais.<br />

“O fato de que o tema desenvolvimento local esteja em evidência não significa que<br />

haja uma compreensão unívoca em tor<strong>no</strong> de seu sentido. Das discussões internacionais,<br />

se pode depreender uma expectativa de que com a reforma neoliberal do Estado<br />

– que supõe a redução da capacidade dos Estados nacionais em atender as demandas<br />

sociais – se possa transferir, em parte ou <strong>no</strong> todo, uma agenda de responsabilidades<br />

para os municípios.<br />

Tal entendimento acaba por transferir aos gover<strong>no</strong>s locais a gestão do conflito social,<br />

originado a partir das demandas sociais insatisfeitas e alimentadas pela dinâmica econômica<br />

e social de níveis mais abarcadores. Há aí um reconhecimento de que o processo<br />

de globalização leva inexoravelmente a um aprofundamento da dualização da <strong>no</strong>ssa<br />

sociedade, com o crescimento da <strong>pobreza</strong> e da exclusão social, e que nada se pode<br />

fazer <strong>no</strong>s diferentes níveis de gover<strong>no</strong> para enfrentar a questão social.<br />

Baseada na idéia da irreversibilidade dos efeitos do processo de redução da intervenção<br />

do Estado nacional <strong>no</strong>s grandes processos econômicos e na produção de serviços públicos,<br />

ganhou força a idéia de que os gover<strong>no</strong>s locais devem assumir um comportamento<br />

cada vez mais de agentes de desenvolvimento econômico, preocupando-se centralmente<br />

em garantir a competitividade do município dentro da dinâmica econômica “globalizada”.<br />

A partir desta perspectiva, eles perdem o papel regulador e de re-distribuidores da<br />

riqueza e da renda e se tornam incapazes de atuar <strong>no</strong> resgate da dívida social, na<br />

construção de cidades justas, democráticas e sustentáveis” (BAVA, Silvio Caccia, 2001).<br />

O único caminho que pode dar conta destes processos sem cair em aproximações redutoras<br />

do desenvolvimento local parece ser dirigir-se para uma compreensão complexa dos processos de<br />

desenvolvimento que fale de paradoxo, de coexistência de contrários, de articulação.<br />

Mais que nunca é preciso vincular estes processos de desenvolvimento local aos processos de<br />

globalização. Vários autores destacaram a ameaça de uma “globalização desabitada”, caracterizada<br />

pelo achatamento dos mais vulneráveis, tanto como grupo social como a partir dos territórios.<br />

Há um mal-estar generalizado acompanhado pelo risco de ver a globalização como o mal absoluto,<br />

voltando aos discursos messiânicos, de defesa das identidades (característicos da globalização de<br />

79


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

princípios do século XX). Surgem dois discursos e duas posturas possíveis: a uniformização/<br />

homogeneidade versus a complexidade/articulação.<br />

Do <strong>no</strong>sso ponto de vista, o desafio consiste em construir a unidade na diferença. A vitalidade<br />

das sociedades se expressa na emergência do singular diverso e não nas tendências uniformizadoras.<br />

No caso lati<strong>no</strong>-america<strong>no</strong>, concentrar a atenção <strong>no</strong> local é uma via para superar as aproximações<br />

demasiado globais e mecanicistas e tratar de construir a partir de cada singularidade,<br />

considerando as determinações globais.<br />

A época das macroteorias explicativas dos processos de desenvolvimento está definitivamente<br />

encerrada. Em seu lugar se buscam respostas adaptadas, pertinentes, que partem muito mais<br />

dos atores que dos planejadores e especialistas em desenvolvimento. Os teóricos do “planejamento<br />

territorial” também fracassaram, assim como muitos processos que sob a definição de “desenvolvimento<br />

local” levaram adiante processos de ordenamento territorial.<br />

Um objetivo de fundo é a geração de políticas nacionais de desenvolvimento local. Estas se<br />

dão quando o nível central é consciente da importância da diferença <strong>no</strong>s processos de desenvolvimento,<br />

gerando reformas descentralizadoras e criando os marcos legais propícios para o desenvolvimento<br />

das diferenças.<br />

Certamente estes processos geram incerteza; passa a se expressar uma cultura do singular,<br />

do múltiplo, do diverso, do movimento onde antes reinava o universal, o único, o uniforme, a<br />

ordem. Por outro lado, enfrentamos a pergunta: as sociedades locais têm capacidades para<br />

gerar iniciativas próprias? Há um certo ceticismo, relacionado <strong>à</strong> fragilidade que se lhes atribui.<br />

O centralismo mi<strong>no</strong>u a capacidade de iniciativa das sociedades locais.<br />

É relevante também destacar as diferentes dimensões do desenvolvimento. Esta visão multidimensional<br />

concebe o desenvolvimento de um território em relação a quatro dimensões básicas:<br />

• Econômica: vinculada <strong>à</strong> criação, acumulação e distribuição de riqueza;<br />

• Social e cultural: referente <strong>à</strong> qualidade de vida, <strong>à</strong> eqüidade e <strong>à</strong> integração social;<br />

• Ambiental: referente aos recursos naturais e <strong>à</strong> sustentabilidade dos modelos adotados <strong>no</strong><br />

médio e <strong>no</strong> longo prazos;<br />

• Política: vinculada <strong>à</strong> governabilidade do território e <strong>à</strong> definição de um projeto coletivo<br />

específico, autô<strong>no</strong>mo e sustentado <strong>no</strong>s próprios atores locais.<br />

Assim como quando <strong>no</strong>s referimos <strong>à</strong> descentralização falamos de “reinvenção da política”,<br />

<strong>no</strong> nível de desenvolvimento local devemos falar da “reinvenção do território”. 9<br />

Este desafio se concebe em três dimensões:<br />

• O conhecimento – apontando a re<strong>no</strong>vação dos paradigmas e as disciplinas científicas<br />

envolvidas <strong>no</strong>s processos de desenvolvimento local.<br />

• A política – com o objetivo da construção do projeto coletivo, que gere políticas numa<br />

lógica horizontal e territorial (redes) mais que na tradicional lógica vertical e setorial<br />

(centralista).<br />

• A gestão – encarregando-se da necessária adequação institucional dos órgãos de<br />

gover<strong>no</strong> local.<br />

9 BERVEJILLO, Federico, 1999.<br />

80


— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —<br />

Outros elementos especialmente relevantes a considerar são a capacidade de visão estratégica<br />

dos atores envolvidos, sua capacidade de iniciativa e a existência de um processo de identidade<br />

que atue potencializando o processo geral e não o impedindo, como <strong>no</strong>s processos determinados<br />

por uma forte presença de “identidade <strong>no</strong>stálgica”.<br />

Em suma, desenvolvimento local pressupõe:<br />

• visão estratégica de um território;<br />

• atores com capacidade de iniciativa;<br />

• identidade cultural como alavanca do desenvolvimento.<br />

Algumas das características específicas do desenvolvimento local são:<br />

• trata-se de um enfoque multidimensional, onde coexistem <strong>no</strong> mínimo as dimensões<br />

econômica, ambiental, cultural e política;<br />

• é um processo orientado para a cooperação e negociação entre atores;<br />

• é um processo que requer atores e agentes de desenvolvimento.<br />

5. Como abordar o<br />

desenvolvimento local<br />

Do ponto de vista metodológico, um dos principais desafios do desenvolvimento local é definir<br />

suas principais categorias de análise. Partindo da experiência do Claeh, é necessário identificar<br />

três variáveis básicas: 10<br />

• Modelo de desenvolvimento: as diferentes formas que a estrutura sócio-econômica local<br />

assumiu nas últimas décadas. Quão integral foi o processo.<br />

• Sistema de atores: quais são as relações e vínculos entre o subsistema governamental, o<br />

empresarial e o socioterritorial.<br />

• Identidade cultural: identificar as características de identidade que têm incidência <strong>no</strong>s processos<br />

de desenvolvimento.<br />

Não <strong>no</strong>s estenderemos nestes aspectos que beiram o metodológico, mas gostaria de destacar<br />

pelo me<strong>no</strong>s os principais conceitos que configuram cada uma destas variáveis.<br />

5.1. O modelo de desenvolvimento<br />

A análise do “modelo de desenvolvimento” se refere <strong>à</strong>s diferentes formas que a estrutura<br />

sócio-econômica local foi adquirindo ao longo das últimas décadas <strong>no</strong> território estudado.<br />

Nesse sentido, é relevante a reconstrução do processo, assim como das lógicas que pautaram as<br />

grandes transformações.<br />

Trata-se, antes de tudo, de identificar o grau de integralidade do processo. Assim, estamos<br />

diante de modelos de desenvolvimento integral; modelos de desenvolvimento de incipiente articulação;<br />

modelos de desenvolvimento desarticulado dual; modelos de desenvolvimento desarticulado.<br />

10 AROCENA, José, 1995.<br />

81


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Desse modo, é evidente que existem territórios “com projeto” (poucos), sem projeto, ou com<br />

projetos truncados.<br />

5.2. A identidade como alavanca de desenvolvimento<br />

A identidade reúne o passado, o presente e o projeto numa única realidade interiorizada<br />

pelo conjunto dos membros da sociedade. Desenvolve-se numa realidade cultural na qual se<br />

valorizam a i<strong>no</strong>vação, o trabalho e a produção, marcando a diferença e a especificidade para<br />

situar-se em relação a outras diferenças e especificidades. Consolida-se, então, um processo que<br />

mantém grande fidelidade ao passado, possui capacidade de resposta ao <strong>no</strong>vo, permite superar<br />

as dificuldades e cujos membros podem constituir-se numa mi<strong>no</strong>ria articulada <strong>no</strong> meio nacional<br />

e transnacional.<br />

A identidade <strong>no</strong>stálgica reconhece o passado com ar <strong>no</strong>stálgico, desejando uma forma de<br />

convivência social e de desenvolvimento econômico aparentemente muito superior <strong>à</strong>s atuais e<br />

impedindo de se seguir adiante. Como representação coletiva, o futuro se desenha como uma<br />

volta ao passado: ressuscitar essa ou aquela empresa, recuperar uma dinâmica setorial, voltar a<br />

ser um peque<strong>no</strong> centro financeiro. O campo das representações mentais está totalmente invadido<br />

pelo que se teve e se perdeu e não é possível imaginar alternativas. Esta identidade é uma fonte<br />

permanente de geração de obstáculos. Nestes casos, trabalhar <strong>no</strong> nível das representações é uma<br />

prioridade absoluta.<br />

Falamos da extrema fragilidade da identidade local quando não se criam processos que<br />

autorizem a falar de identidade local ou quando o tecido social está tão gasto que os referenciais<br />

de identidade desapareceram. Trata-se de grupos huma<strong>no</strong>s que habitam um território, mas que<br />

não poderíamos considerar sociedades locais. Isto pode obedecer a duas situações: crise ou falta<br />

de identidade.<br />

5.3. O sistema de atores<br />

A análise da forma e da dinâmica que toma o sistema local de atores é fundamental. Mas<br />

antes gostaria de dar uma primeira definição do que se entende por “ator local”.<br />

Podemos dar uma primeira definição de acordo com a cena em que atua:<br />

“Ator local é todo aquele indivíduo, grupo ou organização, cuja ação se desenvolve<br />

dentro dos limites da sociedade local”.<br />

Também podemos defini-lo em função do sentido de sua ação:<br />

“Ator local é aquele agente que <strong>no</strong> campo político, econômico, social e cultural é<br />

portador de propostas que tendem a capitalizar melhor as potencialidades locais”.<br />

Esta segunda definição liga as <strong>no</strong>ções de “ator local” e de “desenvolvimento”, levando-<strong>no</strong>s<br />

para o ator como agente de desenvolvimento local. É a definição pela qual optamos, é mais<br />

restritiva, mas exige do ator-agente determinadas características.<br />

Entre os atores locais que atuam em um território, encontramos:<br />

• O ator político-administrativo, constituído pelo gover<strong>no</strong> local, pelas agências do gover<strong>no</strong><br />

nacional, pelas empresas públicas.<br />

82


— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —<br />

• O ator empresarial, constituído pela microempresa e o artesão, a pequena e média empresa,<br />

a grande empresa.<br />

• O ator socioterritorial: associações de bairro, organizações não-governamentais, igrejas etc.<br />

5.4. Os agentes de desenvolvimento local<br />

Outro fator crucial nesta discussão é o tema dos agentes do desenvolvimento local. Do <strong>no</strong>sso<br />

ponto de vista, nem todos os atores presentes num território podem ser considerados atoresagentes<br />

de desenvolvimento local num sentido propositivo.<br />

O Claeh identificou o agente de desenvolvimento local – chave neste processo – com as<br />

seguintes características:<br />

Papel do agente de desenvolvimento local (ADL)<br />

O agente de desenvolvimento local (ADL), então, é preparado para desempenhar os papéis que se<br />

descreveram, que são chaves para o desenvolvimento local. É um facilitador dos processos, basicamente<br />

um profissional da gestão pró-ativa, capaz de antecipar-se aos acontecimentos, trabalhar<br />

antevendo cenários, articulando atores e mediando entre: os recursos privados e estatais e a<br />

população beneficiária; os discursos oficiais e os dos cidadãos; as soluções propostas pela política<br />

pública (ou vazios desta) e as iniciativas dos grupos sociais; os interesses daqueles que concedem<br />

os recursos e os dos destinatários; o poder constituído e a base constituinte. O agente de desenvolvimento<br />

local é um articulador global que media entre relações de poder desiguais num processo<br />

de articulação-tensão-rearticulação. Este processo é o que valoriza o potencial dos atores para<br />

reestruturar seus discursos, suas práticas, seu poder, seus recursos em função do bem comum,<br />

sem hegemonizar nem ser pura auto-referência, sem medo de enfrentar o diálogo, permitindo<br />

uma saída criativa para os conflitos e a geração e regeneração do tecido social.<br />

Fernando Barreiro de<strong>no</strong>mina três funções-chave do agente de desenvolvimento local: integração<br />

(articulação local-global); mediação (ponto de apoio, gerar condições para o diálogo);<br />

i<strong>no</strong>vação e mobilização (de todos os recursos locais). Tanto indivíduos como grupos de indivíduos<br />

ou agências podem ser agentes de desenvolvimento local<br />

Nem todos os processos são iguais. Interessa-<strong>no</strong>s destacar especialmente alguns elementos:<br />

Características das elites dirigentes: um tema importante passa pela capacidade de gerar um<br />

grupo dirigente fortemente legitimado e com possibilidades reais de conduzir o processo e a<br />

elaboração do projeto coletivo através do estabelecimento de vínculos com os quadros técnicos.<br />

Neste sentido é comum encontrar grupos dirigentes localmente desarticulados, elites locais<br />

fragilmente constituídas.<br />

Um fator relevante é a forma da interação com atores extralocais. Esta pode inscrever-se<br />

num sistema regulado pela negociação ou em um sistema regulado pela dependência.<br />

Portanto, a capacidade de elaborar respostas diferenciadas é um fator absolutamente crucial<br />

dos atores locais. Podemos identificar sociedades e sistemas de atores com alta capacidade de<br />

resposta diferenciada em processo de construção de respostas diferenciadas <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> do discurso<br />

ou ausência de referências na diferenciação da resposta. Os processos de “empoderamento” possuem<br />

relação direta com a capacidade das sociedades locais, e seus atores, de elaborar respostas diferenciadas<br />

em relação a seus territórios.<br />

83


5.5. As lógicas de ação local<br />

— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

É evidente que <strong>no</strong> nível dos atores existem lógicas de ação distintas, racionalidades diferentes<br />

e, naturalmente, diferentes relações de poder.<br />

Nossos países vêm de uma tradição vertical-centralista que determina a forma de sentir e de<br />

atuar de boa parte dos atores. Pelo contrário, os processos de desenvolvimento local pressupõem<br />

articulação, negociação e interação entre atores.<br />

O ator político-administrativo pode operar através de uma lógica centralizada setorial-vertical<br />

(o mais freqüente em <strong>no</strong>ssos países) ou descentralizada territorial-horizontal. Esta última forma<br />

de ação, que implica a ruptura da velha ordem de elaboração e gestão de políticas, pressupõe<br />

também a existência de redes locais-regionais, com alguns atores-chave que operam como<br />

articuladores-nexos dessas redes. Mas, em todo caso, pressupõe também processos de empoderamento,<br />

porque a mudança de lógica implica igualemente uma mudança nas relações de<br />

poder vigentes.<br />

No nível dos atores socioterritoriais é possível também identificar diferentes lógicas:<br />

A lógica reivindicativa<br />

Trata-se de atores que atuam basicamente na defesa da qualidade de vida. A mobilização permanente<br />

como o ideal de expressão popular – e essa seria, para aqueles que atuam nesta lógica, a<br />

verdadeira participação. Prioriza-se a estratégia de pressão e se desdenha da estratégia de gestão.<br />

Os conflitos com o setor político são freqüentes, por questionamento de sua legitimidade.<br />

A lógica do voluntariado<br />

Baseia-se <strong>no</strong> serviço prestado <strong>à</strong> comunidade sem receber uma remuneração em troca. Não se propõe,<br />

como a lógica anterior, a organizar ou gerar um movimento, mas sim satisfazer uma necessidade,<br />

por isso não dá respostas globais. Esta é a lógica de organizações de serviço (laicas ou religiosas).<br />

O voluntariado está desempenhando um papel crescente em muitas áreas diferentes e é altamente<br />

reconhecido por parte da sociedade.<br />

A lógica profissional<br />

Trata-se de trabalhadores sociais, educadores, docentes, dirigentes religiosos, juristas, psicólogos,<br />

sociólogos, antropólogos, agrô<strong>no</strong>mos, veterinários, arquitetos, médicos, profissionais da área<br />

médica e da comunicação, ou ainda organizações não-governamentais que têm em comum a<br />

intervenção a partir de uma competência técnica determinada em uma área da atuação social.<br />

Todos eles vivem de sua atividade, recebendo uma remuneração em troca da tarefa que realizam.<br />

Um tema crucial é se esse ator reside na área local ou fora dela. Se são locais, terminam<br />

certamente enraizados <strong>no</strong>s processos locais. Assim, <strong>no</strong> profissional residente há uma dupla<br />

dimensão: a remunerada e a participação em instâncias coletivas. Em contrapartida, se são de<br />

fora, a lógica é de intervenção externa.<br />

A lógica profissional parte de objetivos e técnicas pré-definidos. Atualmente se debate a<br />

legitimidade deste tipo de intervenção. A crítica principal é que se parte de alguém que “sabe” e<br />

“leva” esse conhecimento. A defesa é que esta metodologia não pressupõe uma substituição do<br />

papel protagonista dos atores locais. O profissional é mais um catalisador, um facilitador, que um<br />

iluminado. O papel das ONGs tem sido e é importante.<br />

84


A lógica política<br />

— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —<br />

Como destacamos, há uma mudança na demanda para este tipo de ator: caminha de correia de<br />

transmissão de processos nacionais para o papel de canalizador da demanda social. Enfim, o ator<br />

político local está passando da lógica de controle para a lógica de co-responsabilidade em iniciativas<br />

e projetos.<br />

Em resumo, a ação local exige a superação das lógicas que atravessam os diferentes sistemas:<br />

equilibrar a lógica vertical-setorial com a horizontal-territorial, o estabelecimento de redes<br />

que fortaleçam a sociedade civil, a articulação institucional público-privada.<br />

Contudo, existem mecanismos muito fortes de defesa do centralismo. Desconfia-se da capacidade<br />

dos atores locais, argumentando-se, assim, a necessidade de um “centro” que assegure a<br />

unidade nacional e a eqüidade social.<br />

O sistema empresarial<br />

Notoriamente, as transformações <strong>no</strong> modo de acumulação são importantes. Fatores como a desconcentração<br />

de atividades empresariais, a flexibilidade, a articulação com o meio, a produção<br />

diferenciada, a qualidade, a qualificação dos recursos huma<strong>no</strong>s são elementos que conduzem a<br />

grandes mudanças na forma que o setor empresarial vê, e necessita, do local. Trata-se de fatores<br />

que favorecem o caráter de “ator local” da empresa, já que a competitividade vem tendo crescentemente<br />

uma dimensão territorial muito forte. Além do mais, dentro dos fatores de competitividade<br />

sistêmica, a competitividade territorial é um dos mais relevantes.<br />

Com a pequena empresa é mais factível chegar a um acordo localmente, mas também há<br />

sérias dificuldades de articulação, de capacidade de visão estratégica.<br />

A racionalidade deste sistema se dá ao mesmo tempo pelas lógicas dos atores e pelas exigências<br />

dos processos de desenvolvimento.<br />

5.6 Identidade<br />

Retomaremos, finalmente, o conceito de identidade, que <strong>no</strong>s parece essencial para a ação<br />

neste nível. A identidade local se constrói sobre duas dimensões: a história e o território.<br />

A história é a memória viva de um grupo huma<strong>no</strong> que se reconhece num passado e representa<br />

continuidade e ruptura entre o passado, o presente e o projeto.<br />

O território é o espaço significativo para o grupo que o habita, que gera uma relação desenvolvida<br />

em um nível profundo da consciência. Representa permanência e ausência, continuidade<br />

e ruptura.<br />

Identidade e desenvolvimento<br />

Aproximando-<strong>no</strong>s de um conceito de identidade desde uma perspectiva de desenvolvimento,<br />

podemos falar de um fio condutor entre passado, presente e projeto através de um processo de<br />

construção de identidade. Este processo se produz em um sistema de relações (a dimensão de<br />

relação com outros é muito relevante); se apóia na idéia de unidade de si mesmo através de certo<br />

lapso de tempo (permanência); se apóia também na idéia de diferença (um é um si mesmo e não<br />

outro); permite a existência de limites (como fronteiras, não como cercas) que permitem intercâmbios<br />

seletivos com outros; e se afirma na capacidade de rememorar o que se viveu e o que se<br />

é, e adequar-se a <strong>no</strong>vos contextos, gerando a capacidade de reconstruir a identidade.<br />

85


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

A identidade em sujeitos coletivos implica ter algo que se compartilhe com os que estão<br />

dentro e que <strong>no</strong>s diferencie dos que estão fora, numa relação de continuidade e ruptura. Há relação<br />

entre a dimensão de identidade e os processos de desenvolvimento local, enquanto a primeira é<br />

um componente-chave para pensar e para gerir o desenvolvimento local. Esta dimensão não foi<br />

suficientemente trabalhada, apesar de sua relevância. A evidência empírica reunida <strong>no</strong>s estudos<br />

de caso do Claeh lança algumas linhas de trabalho para seguir explorando e complementando:<br />

• Nem todo processo de consolidação de identidade é uma “alavanca de desenvolvimento”;<br />

também pode operar como freio ou obstáculo ao desenvolvimento.<br />

• A fragilidade de identidade é uma desvantagem em termos de desenvolvimento.<br />

• Os processos de formação-capacitação para o desenvolvimento local devem abordar o tema<br />

da mudança cultural e o fortalecimento da identidade. Nos aspectos culturais e na base de<br />

identidade que tenha uma sociedade local, existem recursos-chave para impulsionar e orientar<br />

o desenvolvimento sócio-econômico (reação diante das crises, diversidade de respostas).<br />

• A identidade é uma combinação de fatores similares que não se repetem.<br />

Uma das grandes dificuldades que afronta o desenvolvimento é o nível das mentalidades. A<br />

mudança põe em questão os costumes, os hábitos adquiridos, os modelos tradicionais de<br />

conduta. O risco e o fracasso são comuns.<br />

Em qualquer caso, não é possível pensar em processos de desenvolvimento local sem considerar<br />

a dimensão de identidade como chave, como condição do empoderamento.<br />

5.7. O poder<br />

Aqui vale destacar alguns dos elementos que Michel Foucault assinala em relação ao tema<br />

do poder.<br />

Este autor marca importantes diferenças em relação a concepções mais “tradicionais” ou<br />

reducionistas do poder como sendo exercido exclusivamente a partir dos aparatos estatais. Pelo<br />

contrário, adota uma <strong>no</strong>ção de poder que não faz referência exclusiva ao pla<strong>no</strong> estatal, mas se<br />

encarrega da multiplicidade de poderes que se exercem na esfera social, os quais se podem definir<br />

como poder social.<br />

Desta forma, fala do subpoder como “uma trama de poder microscópico, capilar”, que não<br />

é o poder político nem os aparatos de Estado nem o de uma classe privilegiada, mas o conjunto<br />

de peque<strong>no</strong>s poderes e instituições situadas num nível mais baixo. Nesse sentido, não existe um<br />

poder único, pois na sociedade há múltiplas relações de autoridade situadas em diferentes níveis,<br />

apoiando-se mutuamente e manifestando-se de maneira sutil. Um dos grandes problemas que<br />

se devem enfrentar <strong>no</strong> momento das mudanças é, precisamente, que não persistam as atuais<br />

relações de poder.<br />

Para o autor da Microfísica do poder, a análise deste fenôme<strong>no</strong> só se efetuou a partir de duas<br />

relações, a contratual – de caráter jurídico, baseada na legitimidade ou ilegitimidade do poder –<br />

e a dominação – de caráter repressivo, apresentada em termos de luta-submissão. Não se pode<br />

reduzir o problema do poder ao da soberania, já que entre homem e mulher, alu<strong>no</strong> e professor e<br />

<strong>no</strong> interior de uma família existem relações de autoridade que não são projeção direta do poder<br />

sobera<strong>no</strong>, mas muito mais condicionantes que possibilitam o funcionamento desse poder, que<br />

são o substrato sobre o qual se assegura.<br />

86


— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —<br />

O poder se constrói e funciona a partir de outros poderes, dos efeitos destes, independentes<br />

do processo econômico. As relações de poder se encontram estreitamente ligadas <strong>à</strong>s familiares,<br />

sexuais, produtivas; intimamente entrelaçadas e desempenhando um papel de condicionante e<br />

condicionado. Na análise do fenôme<strong>no</strong> do poder não se deve partir do centro e descer, mas sim<br />

realizar uma análise ascendente.<br />

Em Os intelectuais e o poder, Foucault coloca em questão o papel dos intelectuais, que<br />

descobriram que as massas não têm necessidade deles para conhecer: elas sabem muito mais.<br />

Porém, existe um sistema de dominação que obstaculiza, proíbe, invalida esse discurso e o conhecimento.<br />

O poder que não se encontra só nas instâncias superiores de censura, mas em toda a<br />

sociedade. A idéia de que os intelectuais são os agentes da “consciência” e do discurso forma<br />

parte desse sistema de poder. O papel do intelectual não residiria em situar-se adiante das massas,<br />

mas em lutar contra as formas de poder ali onde realiza seu trabalho, <strong>no</strong> terre<strong>no</strong> do “saber”, da<br />

“verdade”, da “consciência”, do “discurso”; o papel do intelectual consistiria assim em elaborar<br />

o mapa e as apostas sobre o terre<strong>no</strong> onde se vai desenvolver a batalha, e não em dizer como<br />

levá-la a cabo.<br />

Como bem disse Foucault, a estrutura exerce por si mesma um poder de dominação que não<br />

é necessariamente ativo e com uso de força, mas que na maioria dos casos (e é aí que reside seu<br />

maior perigo) é passivo e se caracteriza por manifestar-se em forma de consenso entre os indivíduos<br />

(aceitação das <strong>no</strong>rmas). A origem está <strong>no</strong> conjunto de relações de poder que se estabelecem em<br />

cada sociedade em particular. Com esta característica podemos ver que seu estruturalismo, diferentemente<br />

do marxista ou do durkheimia<strong>no</strong>, antes de ser universal é particular a cada objeto<br />

específico de análise.<br />

Finalmente, outra característica de sua obra que merece ser ressaltada é a constante evolução de<br />

sua estrutura que avança junto com a sociedade, melhorando seus mecanismos de dominação.<br />

Desse modo, abandona a antiga <strong>no</strong>ção de que o poder se relaciona claramente com as<br />

<strong>no</strong>rmas jurídicas que o fazem legítimo ou ilegítimo e centra sua atenção nas <strong>no</strong>ções de estratégias,<br />

mecanismos e de relações de força como suas formas de manifestação.<br />

Com base <strong>no</strong> que já dissemos, podemos deduzir que para analisar as relações de poder se<br />

deve ter em conta:<br />

1. O sistema de diferenciações econômicas, jurídicas, de status, culturais etc., já que<br />

toda relação de poder implica diferenciações que surgem como condições e efeitos ao<br />

mesmo tempo.<br />

2. O tipo de objetivos: o que se busca.<br />

3. As modalidades instrumentais: desde o uso da palavra até a ameaça e o uso da violência.<br />

4. As formas de institucionalização: os diferentes tipos de dispositivos.<br />

5. Os graus de racionalização, já que as relações de poder toleram um amplo campo de<br />

possibilidades, <strong>no</strong> qual se tem em conta “a eficácia dos instrumentos” em relação ao<br />

objetivo.<br />

87


6. A título de conclusão<br />

— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

No marco deste documento, considerado explicitamente como sujeito a discussão e reelaboração,<br />

gostaria finalmente de deixar alguns elementos para discussão. Das experiências analisadas pelo<br />

Claeh, surgem algumas conclusões para compartilhar:<br />

O desenvolvimento local como idéia mestra<br />

A maior parte das experiências vinculadas ao empoderamento ou <strong>à</strong> abordagem baseada em <strong>direitos</strong><br />

reconhecem uma dimensão territorial. A maior parte das mesmas, embora não sejam experiências<br />

de desenvolvimento local num sentido “estrito”, apontam para essa forma de ver a realidade.<br />

Não <strong>no</strong>s encontramos necessariamente diante de processos de geração de riqueza ou de<br />

controle do excedente econômico num território, mas de geração de massa crítica e de definição<br />

de plataformas para projetos de desenvolvimento local, já que boa parte das experiências que se<br />

possa relatar são processos orientados para ou em perspectiva de desenvolvimento local.<br />

O desenvolvimento local como estratégia de construção de cidadania<br />

A construção de cidadania – em sua diversidade de <strong>direitos</strong> e deveres – é um processo social e cultural<br />

complexo que implica um forte trabalho <strong>no</strong> tecido social para o empoderamento das pessoas a<br />

fim de reconhecer suas necessidades econômicas, sociais e culturais e buscar soluções para estas.<br />

Assim, uma meta-chave nestes processos de desenvolvimento local é que as pessoas e os<br />

coletivos sejam capazes de moldar seus próprios processos e projetos de desenvolvimento e que<br />

sejam parte ativa neles. A partir das experiências analisadas, evidencia-se a necessária inserção<br />

laboral para a construção de cidadania; o trabalho como chave para integração social, criação de<br />

cidadania e mobilidade social e espacial.<br />

Não basta somente a declaração e o reconhecimento dos <strong>direitos</strong> de cidadania, é necessário<br />

criar os mecanismos de exigência e os espaços de proposição, diante dos quais a sociedade toda<br />

– não só o gover<strong>no</strong> – se comprometa para a garantia deste direito básico. É o caminho para o<br />

empoderamento.<br />

A participação é compartilhada como valor e meio para a governança, para a apropiação do<br />

gover<strong>no</strong> pela sociedade local, sendo que um dos seus nós críticos é a sua relação com a tomada<br />

de decisão e com o planejamento. Porque um dos objetivos últimos do desenvolvimento é dar<br />

sentido e significação <strong>à</strong> participação na sociedade.<br />

Atores e agentes do desenvolvimento local<br />

Entendendo a construção da cidadania como uma dinâmica de gerações – não uma <strong>no</strong>rma –,<br />

cabe perguntar-<strong>no</strong>s quem é o ator que deve fortalecê-la; como iniciar os processos de constituição<br />

de atores; e qual é o sentido último da ação. Ganham força a questão dos deveres sociais<br />

e, em particular, a relativa ao papel que cabe a outros agentes diferentes da burocracia estatal,<br />

neste processo de construção de cidadania. Quais são os pontos fortes e fracos da sociedade civil.<br />

Reforma do Estado<br />

A reforma do estado como condição necessária, mas não suficiente. Nos processos de descentralização,<br />

o espaço local aparece como propício para a execução de programas sociais num trabalho<br />

simultâneo de participação e prestação de serviços. Neste <strong>no</strong>vo papel dos municípios, os proces-<br />

88


— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —<br />

sos de tomada de decisões, a superação do político como pragmático, ganham vital importância.<br />

E mais que a busca de resultados ou de benefícios, a geração de espaços de conversação, de<br />

visibilidade de experiências e a incorporação do público para além do governamental.<br />

O papel do Estado segue sendo insubstituível na promoção da eqüidade, mas ao mesmo<br />

tempo é imperioso avançar <strong>no</strong> reconhecimento da constituição de práticas sociais autô<strong>no</strong>mas na<br />

sociedade civil.<br />

Sociedade civil<br />

A sociedade civil em seus diversos modos de organização apresenta graus de associativismo relativamente<br />

densos, de alto potencial mobilizador em <strong>no</strong>ssos territórios lati<strong>no</strong>-america<strong>no</strong>s, ao mesmo<br />

tempo que a grande fragmentação e atomização desta sementes de ação independentes<br />

limita sua possível articulação sob uma matriz que gere projetos coletivos.<br />

Identidade<br />

A identidade aparece como uma possível ferramenta de entrada em suas múltiplas dimensões:<br />

simbólica, de patrimônio físico, complexa, que apela para a memória como capital na busca desta<br />

articulação.<br />

Luzes e sombras da interação entre atores<br />

Ao incorporar redes horizontais-territoriais e se organizar em função destas, a descentralização<br />

muda radicalmente a forma de produção das políticas públicas. Assim, a governabilidade é<br />

alcançada se o Estado é capaz de articular a participação destes atores na formulação e implementação<br />

de políticas.<br />

É necessário identificar segmentos de organização com a idéia do interesse comum (de assumir<br />

como próprios os interesses do público) e fortalecer as redes sociais em sua diversidade para<br />

potencializar a negociação, já que as redes homogêneas podem não colaborar para sair de situações<br />

de exclusão ou de segregação social.<br />

O território como recurso<br />

O território como variável pertinente, sendo a mínima unidade com sentido e capacidade de<br />

iniciativa para deslanchar processos de desenvolvimento e como variável complexa em sua potencialidade<br />

de operar a partir de diferentes dimensões ou escalas; e em sua necessária articulação<br />

com a região, não como conceito geográfico ou virtual, mas como desafio político, resultado dos<br />

atores num projeto estratégico próprio.<br />

O território, a partir de sua diversidade, <strong>no</strong> sentido do múltiplo pertencimento territorial de<br />

que desfruta o cidadão (como habitante, eleitor, ou trabalhador), apresenta dificuldades para<br />

manejar a diversidade e para i<strong>no</strong>var <strong>no</strong>s vínculos necessários com outros territórios.<br />

Nos níveis de interação local-municipal-nacional e diante do desafio da intersetorialidade <strong>no</strong><br />

campo da articulação e das alianças, resgatamos o valor específico do local para preparar a<br />

motricidade fina, o valor do central para desenvolver a motricidade grossa e a potencialidade<br />

do local para alcançar o nível de sincronia entre as duas modalidades para a organização de<br />

políticas públicas.<br />

89


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Diversidade metodológica, sustentabilidade dos processos, necessidade<br />

de espaços de reflexão, sistematização e avaliação<br />

Desde as experiências de planejamento e monitoramento mais tradicionais até a criatividade nas<br />

ferramentas de trabalho que utilizam as histórias de vida como método de aproximação e diagnóstico<br />

da realidade, mostra-se o rico leque metodológico possível nestes processos.<br />

A consciência – como agente – da fragilidade dos processos de desenvolvimento local, sua<br />

suscetibilidade a processos exter<strong>no</strong>s e inter<strong>no</strong>s. A sustentabilidade dos processos em função da<br />

formação de agentes de desenvolvimento local, de lideranças diferentes e do questionamento<br />

sobre o desenvolvimento local e o empoderamento: por onde começar. A necessidade de um<br />

trabalho conjunto, paralelo, de fortalecimento dos atores locais e mais o reconhecimento das<br />

antenas locais de ONGs nacionais como atores territoriais. A importância do fator tempo para a<br />

necessária compreensão e prosseguimento dos processos e dos âmbitos de análise e reflexão<br />

acerca dos fatores detonantes ou iniciadores de processos, suas marcas como também os possíveis<br />

fatores comuns que surgem das sistematizações. As experiências apresentadas são um mostruário<br />

interessante que <strong>no</strong>s aporta insumos para capitalizar <strong>no</strong>s processos em que entramos.<br />

BIBLIOGRAFÍA<br />

AROCENA, José. El desarrollo local: un desafío contemporáneo. Caracas, Nueva Sociedad, 1995.<br />

AROCENA, José: Por una lectura compleja del actor local en los procesos de globalización.<br />

In: Desarrollo local en la globalización. Montevideo, Claeh, 1999.<br />

BERVEJILLO, Federico: La reinvención del territorio. In: Desarrollo local en la globalización.<br />

Montevideo, Claeh, 1999.<br />

BAVA, Silvio Caccia. El desarrollo local como oportunidad. 2001.<br />

CARDOSO, Fernando Henrique. El desarrollo en el banquillo. Comercio Exterior.<br />

México, 30(8), 1980.<br />

DÍAZ, Alvaro. Chile ¿hacia el postneoliberalismo?. Informe apresentado na Conferência sobre<br />

Respostas da Sociedade Civil ao Ajuste Neoliberal. Austin, University of Texas, 1996.<br />

FOUCAULT, Michel. Microfísica del poder. Madrid, La Piqueta, 1978.<br />

GUTIÉRREZ, Alicia. Pierre Bourdieu, las prácticas sociales. Universidad Nacional<br />

de Córdoba, 1995.<br />

PORTES, Alejandro. El neoliberalismo y la sociología del desarrollo: tendencias emergentes<br />

y efectos inesperados. 2001.<br />

ROSTOW, W. W. Les étapes de la croissance éco<strong>no</strong>mique. Paris, Seuil, 1963.<br />

SEN, Amartya. Teorías del desarrollo a principios del siglo XXI. Revista Centroamericana<br />

de Eco<strong>no</strong>mía, (57-8), 2000.<br />

90


O caminho do empoderamento:<br />

articulando as <strong>no</strong>ções de<br />

desenvolvimento, <strong>pobreza</strong><br />

e empoderamento<br />

91<br />

Marta Antunes 1<br />

Neste ensaio é apresentada uma articulação teórica das <strong>no</strong>ções de desenvolvimento,<br />

<strong>pobreza</strong> e empoderamento, partindo das abordagens de desenvolvimento como liberdade,<br />

de Amartya Sen, e de rural livelihoods, de Robert Chambers.<br />

Este balanço teórico tem como fim contribuir para a reflexão em curso na <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong><br />

acerca de sua abordagem estratégica, que coloca o empoderamento como principal meio de<br />

<strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>.<br />

Para esta discussão, tomaremos como base uma experiência de pesquisa em andamento 2<br />

sobre duas ONGs – Assema 3 e AS-PTA 4 –, parceiras da <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>no</strong> Nordeste brasileiro.<br />

Como salientamos, o objetivo deste ensaio não é apresentar nem discutir essas duas<br />

experiências, mas contribuir com um modelo analítico que articule desenvolvimento, <strong>pobreza</strong> e<br />

empoderamento. Para tal, começaremos por apresentar um balanço teórico das <strong>no</strong>ções de desenvolvimento,<br />

<strong>pobreza</strong> e empoderamento.<br />

Em seguida, apresentaremos a abordagem de rural livelihoods, de Chambers, na forma como<br />

esta foi aplicada por Bebbington (1997 e 1999) <strong>à</strong> análise de <strong>pobreza</strong> e viabilidade dos camponeses<br />

da região andina da América Latina. Esta última ajuda a colocar as pessoas, famílias e comunidades<br />

<strong>no</strong> centro da discussão de <strong>pobreza</strong>, enfocando nas estratégias que as mesmas estão empreendendo<br />

para superar sua condição de <strong>pobreza</strong>, acessando a recursos e (re)construindo o acesso <strong>à</strong> sociedade<br />

civil, ao Estado e ao mercado.<br />

Ao falar na relação entre pessoas, famílias e comunidades com o Estado, com a sociedade<br />

civil e dentro da própria família e comunidade, é necessário entrar na discussão de accountability<br />

e participação, o que será realizado em seguida. No final, serão apresentadas <strong>no</strong>ssas contribuições<br />

para a reflexão em curso na <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong>.<br />

1 Eco<strong>no</strong>mista e mestranda do CPDA/UFRRJ.<br />

2 A reflexão apresentada neste ensaio tem a contribuição das entrevistas realizadas nas áreas de assentamento de atuação da<br />

Assema com técnicos desta organização e de suas organizações parceiras de base, assim como de lideranças locais, <strong>no</strong> âmbito<br />

da pesquisa Cooperação Internacional, ONGs e Superação das Pobrezas <strong>no</strong> Nordeste <strong>Brasil</strong>eiro: O Caminho do<br />

<strong>Empoderamento</strong>. Tem também a contribuição das discussões realizadas com a equipe da AS-PTA Paraíba e com seus parceiros<br />

locais, <strong>no</strong> âmbito do diagnóstico em curso sobre os caminhos da inclusão dos mais pobres.<br />

3 Assema – Associação em Áreas de Assentamento do Maranhão.<br />

4 AS-PTA Paraíba – Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa.


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

1. Desenvolvimento alternativo:<br />

as <strong>no</strong>ções de desenvolvimento, <strong>pobreza</strong><br />

e empoderamento<br />

Para entender melhor os conceitos e <strong>no</strong>ções a serem utilizados na discussão, apresentamos o<br />

contexto em que os mesmos surgiram e evoluíram, ou seja, os debates sobre a “ascensão e<br />

queda” da eco<strong>no</strong>mia do desenvolvimento (Hirschman, 1986). 5<br />

Durante a “ascensão” da eco<strong>no</strong>mia do desenvolvimento, vários teóricos defendiam o desenvolvimento<br />

como crescimento e progresso econômico. 6 Segundo Hirschman (1986), a teoria do<br />

crescimento, embora orientada para a reconstrução das eco<strong>no</strong>mias européias, a partir dos a<strong>no</strong>s<br />

50 começa a ser aplicada <strong>no</strong>s países em desenvolvimento. De acordo com Maluf (1997), esta<br />

exerceu forte influência na fundamentação de diversos diagnósticos da realidade lati<strong>no</strong>-americana<br />

do pós-guerra, inclusive, e principalmente, os da Cepal, que defendia a industrialização como o<br />

paradigma do crescimento econômico. Em relação <strong>à</strong> agricultura, era necessária a sua modernização,<br />

para que esta cumprisse suas funções <strong>no</strong> processo de industrialização como substituição de<br />

importações, o que levou ao favorecimento da agricultura patronal e <strong>à</strong> expulsão prematura de<br />

mão-de-obra do campo para a cidade. 7<br />

Os resultados dessas teses estão aí – o crescimento econômico não origi<strong>no</strong>u o desenvolvimento<br />

dos países lati<strong>no</strong>-america<strong>no</strong>s e a <strong>pobreza</strong> mantém-se em nível elevado nestes países –<br />

e levaram ao início da “queda” da disciplina.<br />

Segundo Hirschman (1986), quando se revelou que as medidas destinadas a favorecer o<br />

crescimento econômico estiveram freqüentemente na origem de uma série de eventos que se<br />

traduziram em graves regressões <strong>no</strong>s domínios social, político (ciclo de ditaduras lati<strong>no</strong>-americanas)<br />

e cultural, a tranqüila segurança que animava a eco<strong>no</strong>mia do desenvolvimento foi abalada e esta<br />

começa a duvidar de si mesma.<br />

Em 1970, Dudley Seer anuncia o destronar do PIB per capita como objetivo exclusivo do<br />

desenvolvimento. Em finais dos a<strong>no</strong>s 1980, Sen (1988) reivindica que é necessário que se recuse<br />

a visão do desenvolvimento econômico como mero crescimento econômico, defendendo que<br />

existem muitas outras variáveis que também influenciam as condições de vida, cujo papel o<br />

conceito de desenvolvimento não pode ig<strong>no</strong>rar.<br />

Segundo Stewart (1995), em muitos países o crescimento da renda per capita foi acompanhado<br />

por elevados níveis de <strong>pobreza</strong>, com aumento dos mesmos, e por um problema crescente<br />

de desemprego. A distribuição da renda não era eqüitativa e tor<strong>no</strong>u-se ainda mais desigual.<br />

Embora a esperança de vida e a educação tenham melhorado em termos médios significativamente,<br />

alguns países com crescimento acelerado (ex.: Paquistão e <strong>Brasil</strong>) tiveram fracas <strong>no</strong>tas<br />

neste tema, enquanto países de baixa renda alcançaram bons níveis em termos de indicadores<br />

huma<strong>no</strong>s (ex.: Sri Lanka).<br />

5 Nosso objetivo neste ponto não é esgotar a discussão acerca da “ascensão e queda” da eco<strong>no</strong>mia do desenvolvimento, mas<br />

sim fazer uma breve apresentação do contexto em que surgiu a abordagem do desenvolvimento alternativo.<br />

6 Segundo Leys (1996), a teoria de desenvolvimento era na sua origem apenas uma teoria acerca da melhor forma para colônias<br />

e ex-colônias acelerarem o crescimento econômico nacional <strong>no</strong> ambiente internacional do pós-guerra.<br />

7 Ver Armani (1998: 28/9), Binswanger (1995: 2/5-11/13-5), Throsby (1986: 23-6), World Bank (1995).<br />

92


— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

Surge então a questão: O que fazer? Que origina várias outras questões.<br />

• É o fim da eco<strong>no</strong>mia do desenvolvimento, que se fragmentou, caminhou para a interdisciplinaridade?<br />

• Há que negar a possibilidade de domesticar o processo de desenvolvimento imanente, ou<br />

seja, negar a prática de desenvolvimento intencional, quer pelo Estado, quer pela sociedade<br />

civil – defesa da era pós-desenvolvimento 8 e do desenvolvimento livre de tutela? 9<br />

• Deve-se insistir <strong>no</strong> crescimento econômico acompanhado das políticas compensatórias “das<br />

evidentes mazelas sociais e ambientais geradas pelos padrões de crescimento que vigoram<br />

até aos dias atuais”? (Maluf, 2000: 55) 10 Deixar ao Estado a mera função de regular o<br />

mercado e compensar os excluídos?<br />

• Optar por políticas de desenvolvimento alternativo? 11<br />

É, então, neste contexto de incerteza quanto ao futuro da eco<strong>no</strong>mia do desenvolvimento<br />

que surge a abordagem de desenvolvimento alternativo, da qual o empoderamento é um<br />

conceito-chave. Este modelo tem como reivindicações políticas-chave a integração política (democracia<br />

participativa), a integração econômica (crescimento econômico adequado), a integração<br />

social (igualdade de gênero) e a integração futura (sustentabilidade).<br />

Os autores do desenvolvimento alternativo defendem os <strong>direitos</strong> huma<strong>no</strong>s universais e os<br />

<strong>direitos</strong> particulares dos cidadãos em determinadas comunidades políticas, especialmente os <strong>direitos</strong><br />

das pessoas até então sem voz, os pobres sem poder, que constituem a maioria. O modelo<br />

de desenvolvimento alternativo envolve um processo de empoderamento cujo objetivo a longo<br />

prazo é reequilibrar a estrutura de poder na sociedade, tornando a ação do Estado mais sujeita <strong>à</strong><br />

prestação de contas, aumentando os poderes da sociedade civil na gestão de seus próprios assuntos<br />

e tornando o mercado mais responsável. 12 Um desenvolvimento alternativo consiste na primazia<br />

da política para proteger os interesses do povo, especialmente dos setores desempoderados,<br />

das mulheres e das gerações futuras assentes <strong>no</strong> espaço de vida da localidade, região e nação<br />

(Friedmann, 1996, 33).<br />

Embora um desenvolvimento alternativo seja inicialmente baseado em localidades particulares,<br />

seu objetivo a longo prazo é transformar a totalidade da sociedade através da ação política aos<br />

níveis nacional e internacional. Sem este salto qualitativo do local para o global, “o desenvolvimento<br />

alternativo continuará encapsulado dentro de um sistema de poder altamente restritivo,<br />

incapaz de progredir em direção ao genuí<strong>no</strong> desenvolvimento que procura” (Friedmann, 1996, 33).<br />

O desenvolvimento alternativo tem como objetivo procurar uma mudança nas estratégias<br />

nacionais existentes através de uma política de democracia participativa, de crescimento econômico<br />

apropriado, de igualdade de gêneros e de sustentabilidade ou eqüidade entre gerações.<br />

8 Sobre o enfoque pós-moder<strong>no</strong> ver Maluf (2000: 65/6).<br />

9 Cowen e Shenton (1996), citados por Maluf (2000: 68/70).<br />

10 Para crítica <strong>à</strong> combinação crescimento econômico com políticas sociais compensatórias ver Maluf (2000: 60/1).<br />

11 Pieterse (1998), citado por Maluf (2000: 68/9), critica o desenvolvimento alternativo por considerá-lo um campo fragmentado<br />

em termos teóricos e pela perda de seu sentido alternativo na medida em que a corrente tradicional incorporou muitos de seus<br />

lemas – embora na verdade o que fez foi cooptar seus conceitos e <strong>no</strong>ções para simplesmente os agregar a suas estratégias<br />

centradas <strong>no</strong> crescimento, caso do Banco Mundial.<br />

12 O que se pode considerar como uma forma de equilibrar os desequilíbrios dos níveis de poder entre as três esferas: Estado,<br />

mercado e sociedade civil.<br />

93


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Embora defenda uma política de unidades de base, um desenvolvimento alternativo necessita de<br />

um Estado forte (democrático e não autoritário) que instaure as suas políticas. Um Estado que<br />

aposte numa democracia participativa, em que os poderes para gerir problemas sejam entregues a<br />

instâncias locais e ao próprio povo, organizado em comunidades. É, então, necessário transformar<br />

dramaticamente o Estado e a doutrina dominante para possibilitar que os setores desprovidos de<br />

poder sejam incluídos <strong>no</strong>s processos políticos e econômicos, tenham os seus <strong>direitos</strong> de cidadania<br />

e sejam reconhecidos como seres huma<strong>no</strong>s (Friedmann, 1996).<br />

Contudo, a ação local encontra-se fortemente restringida por forças econômicas globais,<br />

estruturas de bem-estar desiguais e alianças de classe hostis. Se estas não forem modificadas, o<br />

desenvolvimento alternativo restringir-se-á a uma ação sustentada para manter os pobres afastados<br />

de uma miséria ainda maior e para conter a devastação da natureza. Assim, se o desenvolvimento<br />

alternativo encara a mobilização da sociedade civil a partir das bases, tem também que,<br />

num segundo passo, lutar pela emancipação num território maior – nacional e internacional<br />

(Friedmann, 1996, XI).<br />

1.1. Desenvolvimento e <strong>combate</strong> <strong>à</strong>s <strong>pobreza</strong>s<br />

As <strong>no</strong>ções de desenvolvimento e <strong>pobreza</strong> a serem utilizadas têm como base as apresentadas<br />

por Sen em sua abordagem mais recente – Desenvolvimento como liberdade –, que pode ser vista<br />

como o amadurecimento da abordagem de titularidades 13 e capacidades 14 da mesma autoria.<br />

Nesta abordagem, o desenvolvimento é visto como um processo de eliminação de privações<br />

de liberdades e ampliação das liberdades substantivas 15 interligadas de diferentes tipos que as<br />

pessoas têm razão para valorizar. Ou seja, uma <strong>no</strong>ção aberta, que respeita a diversidade humana<br />

e sua liberdade de escolha.<br />

E a <strong>pobreza</strong> é vista como privação de capacidades em vez de meramente como baixo nível de<br />

renda. O que não significa uma negação da idéia sensata de que a renda baixa é claramente uma<br />

das causas principais da <strong>pobreza</strong>, pois a falta de renda pode ser uma razão primordial da privação<br />

de capacidades de uma pessoa. Porém, ao colocar a ênfase da análise da <strong>pobreza</strong> nas capacidades,<br />

é possível melhorar o entendimento da natureza e das causas da <strong>pobreza</strong> e privação desviando a<br />

atenção principal dos meios (e de um meio específico que geralmente recebe atenção exclusiva,<br />

ou seja, a renda) para os fins que as pessoas têm razão para buscar e, correspondentemente, para<br />

as liberdades de poder alcançar esses fins.<br />

13 A abordagem das titularidades tem três conceitos básicos: o conjunto de dotações de recursos (endowment set), que se define<br />

como a combinação de todos os recursos legalmente possuídos por uma pessoa (tangíveis e intangíveis); o conjunto de<br />

titularidades (entitlement set), conjunto de todas as combinações possíveis de bens e serviços que uma pessoa pode obter<br />

legalmente através do uso do seu conjunto de dotações de recursos; e o mapa de titularidades (entitlement mapping ou<br />

E-mapping), que é a relação entre o conjunto de dotações de recursos e o de titularidades, i.e., mostra a taxa pela qual os<br />

recursos do conjunto de dotações podem ser convertidos em bens e serviços do conjunto de titularidades. O mapa de<br />

titularidades terá três componentes: um componente de produção, um componente de troca e um componente de<br />

transferência. É possível identificar quatro fontes de falha de titularidade: perda de dotação de recursos, falha de produção,<br />

falha de troca e falha de transferência (Osmani, 1995).<br />

14 A abordagem de capacidades (ou de desenvolvimento como expansão de capacidades) baseia-se na avaliação da mudança<br />

social em termos de enriquecimento da vida humana como seu resultado (desenvolvimento huma<strong>no</strong>), onde a vida humana é<br />

vista como sendo constituída de modos de fazer e de ser (doings and beings) que em conjunto se definem como modos de<br />

funcionar (functionings). O objetivo fundamental do desenvolvimento é o de expandir as capacidades das pessoas para fazer e<br />

ser. As capacidades determinam as várias combinações de modos de funcionar que uma pessoa pode atingir exercendo sua<br />

opção de escolha (Stewart, 1995).<br />

15 Capacidades possuídas por uma pessoa.<br />

94


— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

Segundo esta abordagem, para que ocorra desenvolvimento é preciso que se removam as<br />

principais fontes de privação de liberdades e que se ampliem as liberdades substantivas.<br />

Como primeira fonte de privação de liberdades temos a <strong>pobreza</strong> econômica, que rouba das<br />

pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças<br />

tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou de morar de modo apropriado, de ter acesso a água<br />

potável e saneamento básico. Como segunda, a carência de serviços públicos e de assistência<br />

social, que se traduz na ausência de programas epidemiológicos, de um sistema bem planejado<br />

de assistência médica e educação ou de instituições eficazes para a manutenção da paz e da<br />

ordem locais. E, ainda, a negação de liberdades políticas e civis por regimes autoritários e de<br />

restrições impostas <strong>à</strong> liberdade de participar da vida social, política e econômica da comunidade.<br />

Ou seja, a <strong>pobreza</strong> e a tirania, a carência de oportunidades econômicas e a destituição social<br />

sistemática, a negligência dos serviços públicos e a intolerância ou interferência excessiva de<br />

Estados repressivos, são vistas como obstáculos ao exercício e <strong>à</strong> expansão de liberdades.<br />

Sen considera cinco tipos de liberdades substantivas, 16 vistos numa perspectiva instrumental:<br />

liberdades políticas, facilidades econômicas, oportunidades sociais, garantias de transparência e<br />

segurança protetora.<br />

As liberdades políticas referem-se <strong>à</strong>s oportunidades que as pessoas têm para determinar<br />

quem deve governar e com base em que princípios, além de incluírem a possibilidade de fiscalizar<br />

e criticar as autoridades, de ter liberdade de expressão política e uma imprensa sem censura, de<br />

ter liberdade de escolher entre diferentes partidos políticos etc. As facilidades econômicas dizem<br />

respeito a oportunidades que os indivíduos têm para utilizar recursos econômicos com propósito<br />

de consumo, produção ou troca. As oportunidades sociais são disposições que a sociedade estabelece<br />

nas áreas de educação, saúde etc., que influenciam a liberdade substantiva de o indivíduo<br />

viver melhor. As garantias de transparência referem-se <strong>à</strong>s necessidades de sinceridade que as<br />

pessoas podem esperar: a liberdade de lidar uns com os outros sob garantias de segredo e clareza.<br />

Estas têm um claro papel instrumental como inibidoras da corrupção, da irresponsabilidade<br />

financeira e de transações ilícitas. A segurança protetora é necessária para proporcionar uma rede<br />

de segurança social, impedindo que a população <strong>no</strong> limiar da vulnerabilidade seja reduzida <strong>à</strong><br />

miséria e, até mesmo, <strong>à</strong> fome e <strong>à</strong> morte. Esta incorpora disposições institucionais fixas e medidas<br />

ad hoc em caso de emergências.<br />

Embora Sen centre sua análise nas esferas do Estado e do mercado, ao longo de seu livro é<br />

possível perceber que estas liberdades individuais poderão ser expandidas através do acesso <strong>à</strong>s<br />

organizações da sociedade civil, ao Estado e ao mercado.<br />

Nesta abordagem, a liberdade é considerada o fim primordial e o principal meio do desenvolvimento,<br />

isto é, respectivamente, o papel constitutivo e o papel instrumental da liberdade <strong>no</strong><br />

desenvolvimento.<br />

As liberdades instrumentais tendem a contribuir para a capacidade geral de a pessoa viver<br />

mais livremente (fim), mas também têm o efeito de complementar-se mutuamente (meios), contribuindo<br />

para o desenvolvimento via expansão de liberdades. Ou seja, as liberdades instrumentais<br />

aumentam diretamente as capacidades das pessoas, mas também ligam-se umas <strong>à</strong>s outras e<br />

contribuem para o aumento da liberdade humana em geral, que permite <strong>à</strong>s pessoas levarem o<br />

modo de vida que elas com razão valorizam (Sen, 2000).<br />

16 Sen reconhece que não é uma listagem completa.<br />

95


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Esta análise de desenvolvimento considera as liberdades dos indivíduos os elementos constitutivos<br />

básicos. Atenta-se particularmente para a expansão de capacidades (capabilities) das pessoas<br />

de forma a que estas levem o tipo de vida que com razão valorizam. Ou seja, o papel constitutivo<br />

relaciona-se <strong>à</strong> importância da liberdade substantiva <strong>no</strong> enriquecimento da vida humana.<br />

As liberdades substantivas incluem capacidades elementares como, por exemplo, ter condições de<br />

evitar privações como a fome, a subnutrição, a morbidez inevitável e a morte prematura, bem<br />

como as liberdades associadas a saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter participação política e<br />

liberdade de expressão etc. Essas capacidades podem ser aumentadas pelas políticas públicas e a<br />

direção de políticas públicas pode por sua vez ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades<br />

participativas do povo – relação de mão dupla.<br />

O papel instrumental da liberdade diz respeito ao modo como diferentes tipos de <strong>direitos</strong>,<br />

oportunidades e titularidades (entitlements) contribuem para a expansão da liberdade humana<br />

em geral e, assim, para a promoção do desenvolvimento. A eficácia da liberdade como instrumento<br />

reside <strong>no</strong> fato de que diferentes tipos de liberdade se inter-relacionam. E um tipo de liberdade<br />

pode contribuir imensamente para promover liberdades de outros tipos, sendo o processo de<br />

desenvolvimento crucialmente influenciado por essas inter-relações (Sen, 2000).<br />

Observe-se que, para responder <strong>à</strong>s múltiplas liberdades inter-relacionadas, existe a necessidade<br />

de desenvolver e sustentar uma pluralidade de instituições, como sistemas democráticos,<br />

mecanismos legais, estruturas de mercado, provisão de serviços de educação e saúde, facilidades<br />

para a mídia e outros tipos de comunicação etc. (Sen, 2000). Contudo, é necessário que essas<br />

instituições considerem e respeitem o tecido social existente.<br />

Sen ainda salienta duas razões pelas quais a liberdade é central para o processo de desenvolvimento:<br />

a razão avaliatória e a razão da eficácia.<br />

Segundo a razão avaliatória, a liberdade substantiva é considerada essencial, uma vez que o<br />

êxito de uma sociedade, nesta visão de desenvolvimento como expansão de liberdades, deve ser<br />

avaliado primordialmente segundo as liberdades substantivas que os membros dessa sociedade<br />

desfrutam. Ter mais liberdade para fazer as coisas que são justamente valorizadas é importante<br />

por si mesmo para a liberdade global da pessoa – e importante porque favorece a oportunidade<br />

de a pessoa ter resultados valiosos. Ambas as coisas são relevantes para a avaliação da liberdade<br />

dos membros da sociedade e, conseqüentemente, cruciais para a avaliação do desenvolvimento<br />

da sociedade.<br />

A razão da eficácia diz-<strong>no</strong>s que a liberdade substantiva é não apenas a base da avaliação do<br />

êxito e do fracasso, mas também um determinante principal da iniciativa individual e da eficácia<br />

social. Ter mais liberdade melhora o potencial das pessoas de cuidar de si e de influenciar o<br />

mundo, questões centrais para o processo do desenvolvimento. Quem se relaciona com o aspecto<br />

de condição de agente do indivíduo (como membro do público e como participante de ações<br />

econômicas, sociais e políticas) é alguém que age e ocasiona mudança e cujas realizações<br />

podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos, independentemente de as<br />

avaliarmos ou não também segundo algum critério exter<strong>no</strong>.<br />

Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva da liberdade seja colocada<br />

<strong>no</strong> “centro do palco”. Nessa perspectiva, as pessoas têm de ser vistas como ativamente envolvidas<br />

– dada a oportunidade – na conformação de seu próprio desti<strong>no</strong> e não apenas como beneficiárias<br />

passivas dos frutos de engenhosos programas de desenvolvimento. O Estado e a sociedade têm<br />

papéis amplos <strong>no</strong> fortalecimento e na proteção das capacidades humanas.<br />

96


— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

Então, <strong>no</strong> <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong> rural <strong>no</strong> Nordeste brasileiro, seguindo as <strong>no</strong>ções de desenvolvimento<br />

e <strong>pobreza</strong> de Sen, é necessário direcionar os esforços para <strong>combate</strong>r as principais<br />

fontes de privação de liberdades <strong>no</strong> campo e ampliar as liberdades substantivas da população rural.<br />

Como principais fontes de privação <strong>no</strong> campo temos: a <strong>pobreza</strong> econômica, cujos principais<br />

alvos são os agricultores familiares do Nordeste; 17 a carência de serviços públicos e assistência<br />

social, sendo necessário que os investimentos em serviços públicos (ex.: educação, saúde) deixem<br />

de privilegiar o urba<strong>no</strong> e comecem a olhar mais para o rural; e a negação de liberdades políticas<br />

e civis, o que <strong>no</strong> Nordeste rural se traduz, por exemplo, <strong>no</strong> poder das elites oligárquicas e <strong>no</strong><br />

seu acesso privilegiado ao Estado e capacidade de influenciar a formulação de políticas e<br />

programas em seu favor, criando simultaneamente uma relação clientelista com a população<br />

rural (ex.: política de seca).<br />

Para ampliar as liberdades substantivas da população rural é necessário ampliar suas liberdades<br />

políticas (que podem incluir descentralização, accountability e participação), ampliar suas<br />

facilidades econômicas (acesso a recursos – ex.: terra e financiamento – para consumo, produção<br />

e troca), suas oportunidades sociais (ex.: educação e saúde), as garantias de transparência<br />

(ex.: ausência de corrupção) e a segurança protetora (rede de segurança social, ex.: aposentadoria<br />

rural). O que terá de ocorrer juntamente com um processo de empoderamento desses atores e<br />

suas organizações locais para que estes possam ter “vez e voz” 18 nas três esferas de atuação –<br />

Estado, mercado e sociedade civil. Ou seja, apostar num tipo de desenvolvimento que olhe para o<br />

potencial de desenvolvimento da agricultura e para a possibilidade de os agricultores familiares<br />

se tornarem agentes do seu próprio desenvolvimento.<br />

1.2. <strong>Empoderamento</strong><br />

O empoderamento é encarado como estímulo e motor do processo de desenvolvimento e<br />

superação das <strong>pobreza</strong>s. Um processo contínuo e em constante re<strong>no</strong>vação que permite a sustentabilidade<br />

dos processos locais de desenvolvimento a longo prazo, por exemplo, com a saída das<br />

ONGs internacionais e nacionais da gestão do projeto de desenvolvimento e com a passagem da<br />

responsabilidade de gestão do mesmo <strong>à</strong>s comunidades locais.<br />

Consideramos interessante apresentar algumas das diversas <strong>no</strong>ções de empoderamento que<br />

se podem encontrar na literatura como contribuição para a discussão final.<br />

Cornwall (2000) refere-se ao termo empoderamento como o mais maleável, aquele que<br />

apresentou maiores mudanças de significado nas últimas três décadas do século XX <strong>no</strong> contexto<br />

do desenvolvimento, e ao seu esvaziamento por uso generalizado e não muito cuidado. Segundo<br />

a autora, os discursos de desenvolvimento alternativo dos a<strong>no</strong>s 1970 viam empoderamento como<br />

o processo através do qual as pessoas se envolviam ativamente na luta para aumento de controle<br />

sobre recursos e instituições (Cornwall, 2000: 74).<br />

17 Os pobres do Nordeste agrário correspondem hoje a 63% da <strong>pobreza</strong> rural do país e a 32% dos pobres brasileiros. Eles são 9%<br />

dos brasileiros, mas recebem me<strong>no</strong>s de 1% da renda familiar nacional. Destes, em 1990, viviam da agricultura de autosubsistência<br />

83% dos chefes de famílias pobres, cuja renda familiar dependia em 76% daquela atividade. (DESER, 1997, citado<br />

por Armani, 1998: 32).<br />

18 No decorrer de uma reunião <strong>no</strong> âmbito do diagnóstico sobre os caminhos de inclusão dos mais pobres na AS-PTA, uma<br />

liderança sindical, Nelson Ferreira, do STR de Lagoa Seca, colocou que, além de serem sem voz os excluídos são também sem<br />

vez – “sem vez e sem voz!”.<br />

97


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Muitas vezes associado com a simples participação <strong>no</strong>s processos de desenvolvimento e<br />

interpretado de forma restrita como ganho individual, a linguagem do empoderamento, <strong>no</strong> início<br />

dos a<strong>no</strong>s 1990, tor<strong>no</strong>u-se um termo confortável para o mainstream do desenvolvimento. Para alguns<br />

o termo adquiriu um significado ainda mais amplo. O Banco Mundial 19 , por exemplo, vê o empoderamento<br />

dos sem voz como uma faceta da participação. Segundo seu relatório, ao dar informação<br />

ao público e descentralizar a tomada de decisão as agências governamentais empoderam automaticamente<br />

os diferentes stakeholders e grupos de interesse, se a tomada de decisão for flexível por<br />

parte das agências.<br />

Para Cornwall (2000), não aparece nestas visões de empoderamento o reconhecimento das<br />

relações de poder existentes que podem impedir o uso de espaços políticos que podem ser abertos<br />

pelos esforços de empoderá-los.<br />

Mas essas não são as únicas relações de poder excluídas dessas visões. A <strong>no</strong>ção de empoderamento<br />

precisa também considerar as relações de poder existentes na família, nas próprias comunidades<br />

e organizações e <strong>no</strong>s movimentos da sociedade civil que, voluntária ou involuntariamente,<br />

excluem alguns de seus membros da tomada de decisões, do acesso aos recursos e do exercício de<br />

suas capacidades; as relações de poder dentro da esfera do mercado, que subordinam ou excluem<br />

totalmente os agricultores familiares do acesso ao mesmo em condições de maior eqüidade, quer<br />

para comprar, quer para vender; e o fato de o empoderamento não ser algo que se possa fazer<br />

pelas pessoas, mas sim algo que as pessoas têm de fazer por elas mesmas, ou seja, que não é<br />

possível empoderar alguém, mas sim estimular o processo individual e coletivo de empoderamento.<br />

É um processo que tem origem dentro das pessoas, <strong>no</strong> seio das comunidades e das organizações<br />

locais, que não pode ser pensado de cima para baixo (medidas assistencialistas e políticas clientelistas<br />

não se enquadram neste processo), nem de fora para dentro.<br />

Segundo Costa (2000), o conceito de empoderamento surgiu com os movimentos de <strong>direitos</strong><br />

civis <strong>no</strong>s EUA <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 1970, através da bandeira do poder negro, como uma forma de autovalorização<br />

da raça e conquista de uma cidadania plena. Esta autora define empoderamento como<br />

“o mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam controle de seus<br />

próprios assuntos, de sua própria vida, de seu desti<strong>no</strong>, tomam consciência da sua habilidade e<br />

competência para produzir e criar e gerir (Costa, 2000: 7). Este conceito começou a ser utilizado<br />

pelas feministas, <strong>no</strong> mesmo período, para se referirem <strong>à</strong> alteração radical dos processos e estruturas<br />

que reduzem a mulher a uma posição subordinada. “As mulheres tornam-se empoderadas através<br />

de decisões coletivas e mudanças individuais” (Costa, 2000: 7).<br />

Segundo Stromquist, 20 ainda dentro da linha feminista, os parâmetros do empoderamento<br />

são: a construção de uma auto-imagem e confiança positiva, o desenvolvimento da habilidade<br />

para pensar criticamente, a construção da coesão de grupo, a promoção da tomada de decisões<br />

e a ação. E este processo dá-se através de cinco níveis de igualdade: de bem-estar; de acesso aos<br />

recursos; de conscientização; de participação e de controle.<br />

Ainda segundo esta autora, uma definição de empoderamento deve incluir os componentes<br />

cognitivos, psicológicos, políticos e econômicos. O componente cognitivo refere-se <strong>à</strong> compreensão<br />

que as mulheres têm da sua subordinação, assim como das causas desta em níveis micro e macro<br />

da sociedade. Envolve a compreensão de ser e a necessidade de fazer escolhas, mesmo que<br />

19 Relatório de 1994, citado pela autora.<br />

20 Stromquist, N. La busqueda del empoderamiento: em qué puede contribuir el campo de la educación. In: Leon, M. (org.) Poder<br />

y empoderamiento de las mujeres. Bogotá, MT Editores, 1997, citada por Costa (2000).<br />

98


— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

possam ir contra as expectativas culturais e sociais. O componente psicológico inclui o desenvolvimento<br />

de sentimentos que as mulheres podem pôr em prática <strong>no</strong> nível pessoal e social para<br />

melhorar sua condição, assim como a ênfase na crença de que podem ter êxito <strong>no</strong>s seus esforços<br />

por mudanças: autoconfiança e auto-estima são fundamentais. O componente político supõe a<br />

habilidade para analisar o meio circundante em termos políticos e sociais, que também significa a<br />

capacidade para organizar e promover mudanças sociais. O componente econômico supõe a<br />

independência econômica das mulheres. É um componente fundamental de apoio ao componente<br />

psicológico, pois possibilita o fim da dependência financeira.<br />

Por outro lado, Blackburn (1993: 5), em seu estudo sobre educação popular na América<br />

Latina, vê educação como um processo de empoderamento através do qual os oprimidos se<br />

tornam conscientes das injustiças sistemáticas que os mantêm pobres e decidem agir para aliviar<br />

essas injustiças.<br />

Por seu lado, Friedmann (1996), em sua abordagem do empoderamento, coloca a ênfase na<br />

auto<strong>no</strong>mia das tomadas de decisão de comunidades territorialmente organizadas, na autodependência<br />

local (mas não na autarcia), na democracia direta (participativa) e na aprendizagem<br />

social pela experiência. E considera empoderamento todo o acréscimo de poder que, induzido<br />

ou conquistado, permite aos indivíduos ou unidades familiares aumentarem a eficácia do seu<br />

exercício de cidadania.<br />

O ponto de partida do processo de empoderamento é a localidade, porque a sociedade civil<br />

é mais prontamente mobilizável em tor<strong>no</strong> de temas locais, mas o objetivo é de que este processo<br />

avance para o nível regional, nacional e internacional.<br />

Segundo o autor, na sua luta pela vida e condições de vida, as unidades domésticas dispõem<br />

de três tipos de poder: o social, o político e o psicológico.<br />

O poder social é entendido como o acesso a certas bases de produção doméstica, como a<br />

informação, o conhecimento e as técnicas, a participação em organizações sociais e os recursos<br />

financeiros. Quando uma eco<strong>no</strong>mia doméstica incrementa o acesso a estas bases, sua capacidade<br />

de estabelecer e alcançar objetivos aumenta também.<br />

O poder político diz respeito ao acesso dos membros individuais de unidades domésticas ao<br />

processo pelo qual são tomadas decisões, particularmente as que afetam o seu futuro como<br />

indivíduos, inclusive dentro do agregado familiar nas decisões tomadas dentro da casa. O poder<br />

político não é apenas o poder de votar, mas também o poder da voz e da ação coletiva (participação<br />

em associações políticas, como partido, movimento social, grupo de interesse, sindicato<br />

de trabalhadores ou agricultores).<br />

O poder psicológico é visto como uma percepção individual de força e sua presença manifesta-se<br />

num comportamento de autoconfiança. O empoderamento psicológico é, muitas vezes,<br />

o resultado de uma ação vitoriosa <strong>no</strong>s domínios social e político, podendo resultar de um trabalho<br />

intersubjetivo. O poder psicológico terá efeitos positivos na luta continuada da unidade doméstica<br />

pelo aumento dos seus poderes social e político efetivos.<br />

O objetivo é então o empoderamento das unidades domésticas e dos seus membros individuais<br />

<strong>no</strong>s três sentidos. É um processo que começa por baixo e pelo interior de formações sociais<br />

específicas territorialmente – comunidades, aldeias, vizinhanças (Friedmann, 1996).<br />

Friedmann (1996) vê <strong>pobreza</strong> como um “estado de desempoderamento” que tem como<br />

ponto de partida o pressuposto de que as famílias pobres não têm poder social para melhorar as<br />

condições de vida dos seus membros. A <strong>pobreza</strong> é encarada como a falta de acesso <strong>à</strong>s bases de<br />

poder social, ou seja, a privação de: espaço de vida defensável, tempo excedente, conhecimentos<br />

99


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

e técnicas, informação adequada, organização social, redes sociais, instrumentos de trabalho,<br />

condições de vida e recursos financeiros. Estas bases são interdependentes, pois todas elas se<br />

ligam a meios de obtenção de outros meios num processo espiral de aumento de poder social<br />

(Friedmann, 1996).<br />

De acordo com esta abordagem, a superação das <strong>pobreza</strong>s passa pela aquisição de poder<br />

social e sua transferência para poder político efetivo, possibilitando que os interesses das unidades<br />

domésticas e das localidades sejam efetivamente defendidos e aceitos na macroesfera da política<br />

regional, nacional e mesmo internacional (Friedmann, 1996), ou seja, na relação com atores da<br />

esfera do Estado, <strong>no</strong>s diferentes níveis.<br />

Para Gita Sen (1997), empoderamento relaciona-se, primeiro e antes de tudo, com o poder,<br />

mudando as relações de poder em favor daqueles que anteriormente tinham pouca autoridade<br />

sobre suas próprias vidas. Para a autora, empoderamento é o processo de ganhar poder, tanto<br />

para controlar recursos exter<strong>no</strong>s como para o aumento da auto-estima e da capacidade interna.<br />

Ela considera que o verdadeiro empoderamento inclui tipicamente dois elementos e raramente é<br />

sustentável sem algum deles. Uma mudança <strong>no</strong> acesso a recursos exter<strong>no</strong>s sem uma mudança na<br />

consciência pode deixar as pessoas sem flexibilidade, motivação e atenção para fazer frente a e/ou<br />

obter esse poder, deixando um espaço aberto para que outros o obtenham. Para ser sustentável,<br />

o processo de empoderamento deve modificar tanto a autopercepção das pessoas como o controle<br />

sobre suas vidas e sobre seus ambientes materiais. Considera, ainda, que embora os agentes<br />

exter<strong>no</strong>s de mudança possam catalisar ou criar um ambiente de apoio, são as pessoas que empoderam<br />

a si mesmas.<br />

Tomaremos então como base as diferentes <strong>no</strong>ções de empoderamento apresentadas para a<br />

discussão final.<br />

2. Estratégias de reprodução individuais<br />

e coletivas na (re)construção do acesso<br />

ao Estado, ao mercado e <strong>à</strong> sociedade civil<br />

Se são as pessoas que empoderam a si mesmas e se aos agentes exter<strong>no</strong>s de desenvolvimento<br />

cabe o papel de facilitador e de catalisador do processo (e por vezes de estimulador), é interessante<br />

refletir sobre como as pessoas, famílias e comunidades estão-se empoderando. Quais suas estratégias<br />

tradicionais (individuais e/ou coletivas) de melhoria de suas condições de vida? Qual o<br />

papel das organizações e movimentos da sociedade civil? E do Estado? E do mercado?<br />

Para embasar esta discussão apresentaremos a abordagem de rural livelihoods de Chambers,<br />

na forma como esta foi aplicada por Bebbington (1997 e 1999) <strong>à</strong> análise da <strong>pobreza</strong> e viabilidade<br />

dos camponeses da região andina da América Latina.<br />

Destes trabalhos de Bebbington surge um esquema analítico 21 que se propõe a desenvolver e<br />

articular as abordagens anteriores. Apresentaremos então este esquema que servirá de base <strong>à</strong><br />

discussão final.<br />

21 Este esquema analítico i<strong>no</strong>va ao levantar uma das principais críticas <strong>à</strong> abordagem de capacidades de Sen – a de realizar uma<br />

análise estática que ig<strong>no</strong>ra a variável tempo – ao analisar as trajetórias de reprodução rurais (rural livelihoods).<br />

100


— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

O DFIF, adaptando a definição de rural livelihoods de Chambers, 22 compreende livelihood<br />

como o conjunto de capacidades, ativos e atividades necessários para viver. Uma livelihood é<br />

sustentável quando consegue lidar com e recuperar de crises e choques e manter e aumentar suas<br />

capacidades e ativos tanto <strong>no</strong> presente como <strong>no</strong> futuro, sem dilapidar a base de recursos naturais.<br />

De forma simplificada, o DFID apresenta o esquema analítico de livelihoods sustentáveis como<br />

vendo as pessoas operando num contexto de vulnerabilidade. Neste contexto, estas têm acesso a<br />

certos ativos (capital huma<strong>no</strong>, capital natural, capital financeiro, capital social e capital físico) ou<br />

fatores redutores da <strong>pobreza</strong>. Estes ganham seu significado e valor através do ambiente social,<br />

institucional e organizacional prevalecente. Este ambiente também influencia as estratégias de<br />

livelihoods – formas de combinar e usar os ativos – que são abertas <strong>à</strong>s pessoas na perseguição de<br />

resultados benéficos de livelihoods que vão ao encontro de seus próprios objetivos de livelihoods<br />

(DFID, 1999, 2000).<br />

De suas análises, Bebbington (1997 e 1999) conclui que apesar da diversidade das estratégias<br />

adotadas e dos seus, cada vez mais, componentes não-agrários, 23 é possível detectar temas comuns<br />

em termos de trajetórias de reprodução rurais (rural livelihoods) bem sucedidas. Temas esses que<br />

circulam em tor<strong>no</strong> da questão do acesso e, em particular, acesso a: diferentes recursos (crédito,<br />

terra, qualificações, trabalho etc., dependendo das estratégias de reprodução rurais); diferentes<br />

oportunidades para transformar esses recursos em fontes de otimização de livelihoods (acesso a<br />

<strong>no</strong>vos mercados de trabalho e de produto, por exemplo); acesso a meios que permitam melhorar<br />

as formas existentes através das quais esses recursos contribuem para as suas estratégias de<br />

reprodução; e, de modo a alcançar cada um dos acessos, as pessoas têm sido dependentes da<br />

capacidade de alcançar essas diferentes formas de acesso, o que pode vir de forma muito variada<br />

de redes de parentesco ou étnicas, de organizações sociais, de organizações estatais e não-governamentais<br />

intermediárias e também de outros atores intermediários do mercado.<br />

Por outro lado, as falhas de melhoria das rural livelihoods parecem ter como principais<br />

razões a falha ou incapacidade para: defender os seus ativos existentes (perda de terra, de capital<br />

financeiro), identificar e assegurar oportunidades para transformar ativos em livelihoods e<br />

proteger meios existentes de transformar ativos em livelihoods (perder um lugar num mercado).<br />

Bebbington chama atenção para um fator importante na contenção das forças que geram<br />

<strong>pobreza</strong>, que é a capacidade das pessoas para construir e utilizar adequadamente redes e ligações<br />

com atores do Estado, do mercado e da sociedade civil, que ajudam as famílias a aceder, defender<br />

e capitalizar seus ativos. E para o fato de as pessoas apresentarem fortes limitações neste tipo de<br />

capacidade (Bebbington, 1999).<br />

Conseqüentemente, um esquema analítico para analisar estratégias de reprodução rurais<br />

capazes de reduzir a <strong>pobreza</strong> necessita, <strong>no</strong> mínimo, de levar em conta: o acesso das famílias a<br />

cinco tipos de ativos 24 de capital (natural, produzido, huma<strong>no</strong>, social e cultural); os modos como<br />

elas combinam e transformam esses ativos na construção de livelihoods que, na medida do<br />

22 Chambers, R. & Conway, G. Sustainable rural livelihoods: practical concepts for the 21st century. IDS Discussion Paper 296,<br />

Brighton: IDS, 1992, citado por DFID (1999, 2000).<br />

23 Transição para agricultura familiar capitalizada e atividades agrossilvícolas e pastoris; proletarização rural; migração temporária<br />

ou permanente; indústria rural; e comércio rural e periurba<strong>no</strong>.<br />

24 Por ativos entendem-se os recursos acessados. Não são apenas recursos que as pessoas usam na construção de suas<br />

livelihoods, são ativos que lhes dão a capacidade de ser e agir, <strong>no</strong> sentido de Sen. Os ativos não são somente coisas que<br />

permitem sobrevivência, adaptação e alívio da <strong>pobreza</strong>, mas também a base do poder do agente para agir e para reproduzir,<br />

desafiar ou mudar as regras que governam o controle, o uso e a transformação dos recursos.<br />

101


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

possível, satisfaçam as suas necessidades; os meios pelos quais as pessoas são capazes de acessar,<br />

defender e manter esses ativos; os modos através dos quais são capazes de expandir os seus<br />

ativos-base através do engajamento com outros atores por meio de relações sujeitas <strong>à</strong>s lógicas do<br />

Estado, do mercado e da sociedade civil; e os modos como são capazes de desenvolver e<br />

intensificar as suas capacidades não apenas para dar <strong>à</strong> vida mais significado, mas também, e<br />

mais importante, para mudar as regras dominantes e as relações que governam as maneiras<br />

pelas quais os recursos são controlados, distribuídos e transformados em fluxos de renda<br />

(Bebbington, 1999).<br />

Assim, através das capacidades, é possível transformar os ativos em: níveis de consumo que<br />

reduzam sua <strong>pobreza</strong> (econômica); condições de vida que impliquem uma melhoria da sua qualidade<br />

de vida, de acordo com os critérios próprios a essas pessoas; capacidades humanas e sociais<br />

para usar e defender os ativos de maneira sempre mais efetiva; e um ativo-base que continuará a<br />

permitir os mesmos tipos de transformações (Bebbington, 1999).<br />

Para Bebbington os cinco capitais são, ao mesmo tempo, os recursos (inputs) que tornam<br />

possíveis as estratégias de reprodução, os ativos que dão capacidades <strong>à</strong>s pessoas e os resultados<br />

(outputs) que tornam as livelihoods significativas e viáveis. 25 O seu foco é o agregado familiar e as<br />

relações intra-agregado e suas formas de engajamento e de relações com os atores do mercado,<br />

Estado e sociedade civil, e as implicações desse engajamento para a distribuição e a transformação<br />

dos ativos.<br />

Em termos esquemáticos, temos que os agregados familiares e seus membros, ao terem<br />

acesso a pelo me<strong>no</strong>s um dos cinco capitais, através de seu uso e/ou transformação e/ou reprodução,<br />

irão construir maior bem-estar material, expandir capacidades e aumentar o significado<br />

de suas vidas, num círculo virtuoso de acesso constante a capitais, sua acumulação e troca entre<br />

os diferentes capitais. Além disso, as relações que permitem o acesso, uso e transformação desses<br />

capitais ocorrem nas esferas do Estado, mercado e sociedade civil, com suas lógicas próprias.<br />

Estas relações com atores das três esferas podem ocorrer quer individualmente, quer através de<br />

organizações locais, e têm como objetivos demandar, defender, transformar e receber ativos, além<br />

de desafiar a lógica governamental de distribuição de ativos e sua transformação.<br />

É através das relações com os atores que operam dentro das três esferas que as famílias<br />

rurais e suas organizações buscam reafirmar ou renegociar as regras (como definidas dentro de<br />

cada esfera) que governam o acesso aos recursos na sociedade. Cada esfera tem a sua lógica<br />

própria que influencia a distribuição, o controle e a transformação de ativos. Através dessas<br />

relações os atores buscam defender seus ativos, defender ou aumentar os benefícios que derivam<br />

de seus ativos ao transformá-los (transformando dotações em titularidades [Sen]) e lutar para<br />

melhorar as taxas de troca que governam as transações através das quais as dotações são transformadas<br />

em titularidades. Como cada esfera opera de acordo com sua própria lógica, isso estabelece<br />

os limites do que pode e não pode ser obtido através da ação dentro de uma esfera.<br />

Assim, para ser eficaz <strong>no</strong> fortalecimento de livelihoods é necessário capacidade de administrar<br />

relações e transações dentro de cada uma das esferas, aproveitando o que pode ser obtido através de<br />

uma esfera e complementando esse resultado com atuação nas outras esferas (Bebbington, 1999).<br />

25 Ao se incluir tanto a <strong>no</strong>ção de viabilidade e significação, o que se espera é que o esquema analítico proposto permita a<br />

consideração tanto de <strong>no</strong>ções de <strong>pobreza</strong> mais estritas (baseados na renda/gasto) como de <strong>no</strong>ções mais amplas (baseadas na<br />

dignidade/segurança).<br />

102


— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

A habilidade das famílias rurais para ganharem acesso a estas três esferas é fortemente<br />

afetada pelas capacidades que elas detêm, como resultado de suas dotações iniciais de diferentes<br />

tipos de capitais. Um ponto importante, então, é compreender as condições sob as quais as<br />

pessoas com me<strong>no</strong>s dotações podem ser capazes de incrementar seu acesso aos atores que operam<br />

dentro dessas diferentes esferas e as maneiras pelas quais as organizações podem começar a agir<br />

mais em favor daqueles me<strong>no</strong>s dotados. Apesar do papel de todos os capitais como meios para<br />

expandir capacidades e iniciar processos de empoderamento, Bebbington centra sua análise na<br />

forma como o capital social pode ampliar o acesso a outros atores geridos pela lógica do Estado,<br />

mercado e sociedade civil e assim afetar a sustentabilidade das livelihoods e <strong>combate</strong>r a <strong>pobreza</strong><br />

(Bebbington, 1999).<br />

Convém esclarecer o que se entende, nesta abordagem, por capital natural, produzido, huma<strong>no</strong>,<br />

social e cultural, apesar da dificuldade de encontrar consenso na sua definição e da necessidade de<br />

contextualizar estes capitais na realidade em análise, para que o esquema analítico tenha significado.<br />

DFID (1999, 2000) considera capital huma<strong>no</strong> como qualificações, conhecimento, habilidade<br />

para trabalho e boa saúde que em conjunto possibilitam <strong>à</strong> pessoa seguir diferentes estratégias de<br />

reprodução e alcançar seus objetivos de livelihoods. No nível do agregado familiar, o capital<br />

huma<strong>no</strong> é um fator da quantidade e qualidade de trabalho disponível, o que varia de acordo com<br />

o tamanho do agregado familiar, nível de qualificações, potencial de liderança, estado de saúde<br />

etc. O capital huma<strong>no</strong> aparece <strong>no</strong> esquema como um ativo de livelihood, ou seja, como um meio<br />

para atingir resultados das estratégias de reprodução. Contudo, a sua acumulação pode ser um<br />

fim em si mesmo – desenvolvimento huma<strong>no</strong>. Além de seu valor intrínseco, sua importância<br />

reside <strong>no</strong> fato de este capital ser necessário para se poder usar quaisquer outros tipos de capitais.<br />

Este é necessário, embora não suficiente, para alcançar resultados das estratégias de reprodução.<br />

O capital natural é utilizado para se referir ao estoque de recursos naturais dos quais se<br />

retiram recursos e serviços necessários <strong>à</strong>s livelihoods. Existe uma grande variedade <strong>no</strong>s recursos<br />

que constituem o capital natural, desde bens públicos intangíveis, como atmosfera e biodiversidade,<br />

até bens divisíveis utilizados diretamente para produção. Este capital é muito importante para<br />

todos aqueles que retiram toda ou parte de suas livelihoods de atividades baseadas em recursos<br />

(agricultura, pesca, extrativismo etc.). Contudo, sua importância vai mais além. Ninguém sobreviveria<br />

sem a ajuda de serviços ambientais chave e comida produzidos do capital natural. A saúde<br />

(capital huma<strong>no</strong>) tende a sofrer em áreas onde a qualidade do ar é baixa, como resultado de<br />

atividades industriais ou desastres naturais. (DFID, 1999, 2000)<br />

O capital produzido é encarado como resultado do crescimento econômico na abordagem<br />

do Banco Mundial. Acredito que este terá mais significado para a análise se englobar o capital<br />

físico e financeiro apresentados pelo DFID (1999, 2000).<br />

Este compreende por capital físico a infra-estrutura básica e bens de produção que ajudam<br />

as livelihoods, sendo que a infra-estrutura consiste em mudanças realizadas <strong>no</strong> ambiente físico<br />

que ajudam as pessoas a satisfazer suas necessidades básicas e serem mais produtivas. Bens de<br />

produção são ferramentas e equipamentos que as pessoas usam para funcionar mais produtivamente.<br />

Os componentes de infra-estrutura <strong>no</strong>rmalmente essenciais <strong>à</strong>s livelihoods sustentáveis<br />

são: transporte a preços acessíveis, habitação e construções seguras, oferta de água de qualidade<br />

e saneamento básico, energia limpa e a preços acessíveis, e acesso <strong>à</strong> informação (comunicação).<br />

Muitas avaliações participativas de <strong>pobreza</strong> mostram que a falta de tipos específicos de infraestrutura<br />

é considerada uma dimensão fundamental da <strong>pobreza</strong>. Bens de produção insuficientes<br />

ou inadequados também restringem a capacidade produtiva das pessoas e, por isso, o capital<br />

103


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

huma<strong>no</strong> <strong>à</strong> sua disposição. Maior tempo e esforço são despendidos para satisfazer as necessidades<br />

básicas, para produzir e ganhar acesso ao mercado.<br />

E por capital financeiro entendem-se os recursos financeiros que as pessoas utilizam para<br />

alcançar seus objetivos de livelihoods, isto é, a disponibilidade de dinheiro ou equivalente que<br />

permita <strong>à</strong>s pessoas adotar estratégias de reprodução diferentes. São duas as fontes principais de<br />

capital financeiro consideradas pelo DFIF (1999, 2000): os estoques disponíveis, <strong>no</strong>rmalmente<br />

poupanças e crédito; e recebimentos regulares de dinheiro, além da renda, aposentadorias e<br />

outras transferências do Estado. A importância deste tipo de capital deve-se <strong>à</strong> sua flexibilidade.<br />

Ele pode ser convertido em outros tipos de capitais (com maior ou me<strong>no</strong>r dificuldade); pode ser<br />

utilizado diretamente para obter alguns resultados das estratégias de reprodução (ex.: comprar<br />

comida para <strong>combate</strong>r a insegurança alimentar); e, certo ou errado, pode transformar-se em<br />

influência política e pode libertar as pessoas para participação mais ativa em organizações que<br />

formulam política e legislação e gerir o acesso a recursos.<br />

O capital cultural é introduzido por Bebbington (1999), devido ao fato de este ter verificado<br />

a importância dada <strong>à</strong> residência rural pelas populações analisadas. A residência parece estar associada<br />

<strong>à</strong> manutenção de um conjunto de práticas que são valorizadas pelo seu significado: participação<br />

em festas, certas formas de trabalho agrícola. O que o leva a concluir que, além do significado<br />

atribuído a um conjunto de ativos, existe um significado associado a um conjunto de<br />

práticas culturais tornado possível (ou restringido) por padrões de co-residência ligados a certas<br />

estratégias de reprodução rurais – tornando-se uma dimensão de <strong>pobreza</strong> ou riqueza significativa.<br />

Estas práticas são também facilitadoras e empoderadoras, uma vez que impulsionam formas de<br />

ação e de resistência que os outros quatro tipos de capitais não conseguiriam por si só tornar<br />

possíveis. Podem também ser a base de manutenção e reprodução dos outros tipos de capitais.<br />

Adotando certas formas de manutenção de identidade e padrões particulares de interação possibilitam,<br />

inspiram e de fato empoderam. São outro insumo importante para as estratégias de<br />

reprodução rurais e o alívio da <strong>pobreza</strong>.<br />

Em relação ao capital social, várias definições podem ser apresentadas, mas vamos <strong>no</strong>s centrar<br />

nas dos impulsionadores dessa discussão – Bourdieu, Coleman e Putnam.<br />

Bourdieu 26 define capital social como o agregado de recursos atuais ou potenciais que estão<br />

ligados <strong>à</strong> posse de uma rede durável de relações mais ou me<strong>no</strong>s institucionalizadas de conhecimento<br />

e reconhecimento mútuo – ou, por outras palavras, ser membro de um grupo – que fornece a<br />

cada um de seus membros o apoio de um capital possuído coletivamente. Afirma, também, que<br />

o volume de capital social possuído por um dado agente depende do tamanho da rede de conexões<br />

que ele consegue efetivamente mobilizar e do volume de capital (econômico, cultural ou simbólico)<br />

possuído por cada um dos indivíduos com quem ele se encontra conectado.<br />

Coleman 27 introduz capital social como uma ferramenta conceptual para a compreensão de<br />

uma orientação teórica da ação social que combina componentes da perspectiva econômica e<br />

sociológica. Tem como objetivo importar o princípio econômico de ação racional para usá-lo na<br />

análise de sistemas sociais, Coleman discute como o capital social é criado e examina três formas<br />

26 Bourdieu, P. The forms of capital. In: Richardson, J. (ed.) Handbook of theory and research for the sociology of education.<br />

Westport, CT: Greenwood Press, 1986, citado por Feldam et alii (1999).<br />

27 Coleman, J. S. Social capital in the creation of human capital. American Journal of Sociology 94 (Supplement), 1988, pp. S95-<br />

S120, citado por Feldam et alii (1999).<br />

104


— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

diferentes nas quais ele se manifesta. E, utilizando dados empíricos, mostra como o capital social<br />

é utilizado na criação de capital huma<strong>no</strong>. Então, as três formas de capital social são: obrigações e<br />

expectativas que dependem da confiança criada pelo ambiente social, a capacidade da informação<br />

fluir pela estrutura social de forma a fornecer a base para a ação e a presença de <strong>no</strong>rmas<br />

acompanhadas por sanções efetivas.<br />

Putnam (2000) apresenta o que entende por capital social <strong>no</strong> âmbito dos dilemas da ação<br />

coletiva e do oportunismo daí resultante. Afirma que a cooperação voluntária é mais fácil numa<br />

comunidade que tenha herdado um bom estoque de capital social sob a forma de regras de<br />

reciprocidade e sistemas de participação cívica. Identifica capital social como as características da<br />

organização social, como confiança, <strong>no</strong>rmas e sistemas, que contribuem para aumentar a eficiência<br />

da sociedade, facilitando a coordenação e cooperação para benefício mútuo. E conclui que o<br />

capital social facilita a cooperação espontânea e que sua oferta aumenta com o uso e que este<br />

esgota-se se não for utilizado.<br />

Bebbington recorre <strong>à</strong> definição de capital social de Woolcock (1998) 28 como um termo amplo<br />

que inclui as <strong>no</strong>rmas e redes que facilitam a ação coletiva para benefício mútuo. Noção que<br />

escolhe por considerar que consegue acomodar as <strong>no</strong>ções de Bourdieu, Coleman e Putnam. Considera,<br />

também, a existência de capital social em vários níveis. Na escala local, as redes de confiança e<br />

accountability mútua ligando indivíduos nas comunidades (<strong>no</strong>rmalmente não em toda a comunidade)<br />

que aumentam a confiança e capacidade das pessoas de trabalhar juntas e expandir seu<br />

acesso a outras instituições políticas ou civis; facilitam ainda a cooperação, reduzem os custos de<br />

transação e fornecem a base para redes de segurança locais entre os pobres. Na escala meso,<br />

alguns trabalhos empíricos demonstraram que organizações regionais e nacionais fortes com<br />

redes que as ligam a outros atores da sociedade civil e do Estado podem ser eficazes para impedirem<br />

outros atores de expropriarem os recursos naturais, ao facilitar o acesso a outros tipos de<br />

investimento (ex.: educação e saúde) através de sua demanda e conquista de uma presença mais<br />

permanente em certos foros definidores de regras e tomadores de decisões na sociedade civil e <strong>no</strong><br />

Estado (Fox, 1990; Bebbington, 1996). 29 De forma semelhante, organizações fortes com redes<br />

que as liguem a atores na esfera do mercado podem ajudar a abrir possibilidades de mercado aos<br />

produtores rurais. Na escala nacional, capital social forte na forma de organizações regionais e<br />

nacionais e suas ligações com funcionários governamentais podem ser um mecanismo pelo qual<br />

as populações rurais podem influenciar as regras gerais que governam a distribuição do investimento<br />

público de vários tipos e a defesa e o uso do capital natural (Fox, 1996; Bebbington e<br />

Perreault, 1998). 30<br />

Considerando-se que os capitais não são apenas vistos pelo seu significado ou fonte de<br />

sustento das famílias, estes são também uma fonte de poder. Podem ser vistos como meios para o<br />

desenvolvimento, como as liberdades instrumentais de Sen, e como meios do processo de empoderamento,<br />

possibilitando <strong>à</strong>s famílias tornarem-se agentes de seu próprio desenvolvimento.<br />

28 Woolcock, M. Social capital and eco<strong>no</strong>mic development: toward a theoretical synthesis and policy framework. Theory and<br />

Society, 27(2) : 151-208, 1998, citado por Bebbington (1999).<br />

29 Fox, J. (ed.) The challenge of rural democratisation: perspectives from Latin America and the Philippines. London: Frank Cass,<br />

1990; e Bebbington, A. Organizations and intensification: small farmer federations, rural livelihoods and agriculture tech<strong>no</strong>logy<br />

in the Andes and Amazonia. World Development, 24(7) : 1161-78, 1996, citados por Bebbington (1999).<br />

30 Bebbington, A. e Perrault, T. Social capital and political ecological change in highland Ecuador. Paper presented to the Annual<br />

Meetings of the Association of American Geographers, Boston, March 1998, citado por Bebbington (1999).<br />

105


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Então, de acordo com o esquema analítico de Bebbington, nas suas estratégias de reprodução<br />

rurais as pessoas, famílias e comunidades necessitam de ter acesso <strong>à</strong>s organizações e movimentos<br />

da sociedade civil e aos atores das esferas do Estado e do mercado, para usar, trocar, combinar,<br />

transformar, defender, manter, reproduzir e expandir suas dotações de capitais. O acesso a estas<br />

esferas possibilita, assim, que as pessoas, famílias e comunidades alcancem os resultados esperados<br />

de suas estratégias de reprodução rurais.<br />

Mas de que tipo de acesso estamos falando? Não é suficiente que as pessoas, famílias e<br />

comunidades tenham acesso <strong>à</strong>s diferentes esferas, é necessário que esse acesso se dê em condições<br />

de igualdade, de forma a que suas estratégias se operacionalizem e se potencializem. É, então,<br />

necessário considerar as relações de poder existentes nas relações estabelecidas entre pessoas,<br />

famílias e comunidades com os atores das diferentes esferas, assim como dentro das próprias<br />

famílias e comunidades, que limitam ou negam o acesso.<br />

3. Accountability e participação<br />

Como vimos, para superar sua condição de <strong>pobreza</strong> as pessoas, famílias e comunidades precisam<br />

não só ampliar seu acesso <strong>à</strong>s organizações e movimentos da sociedade civil e aos atores das<br />

esferas do Estado e do mercado, como também garantir que esse acesso se dê em condições de<br />

igualdade. Uma forma de alcançar maior igualdade nessas relações é favorecendo a accountability<br />

e a participação efetiva nas três esferas.<br />

Consideramos, assim, relevante apresentar as diferentes <strong>no</strong>ções de accountability que têm<br />

sido utilizadas para a análise da relação entre os atores do Estado e da sociedade civil, que<br />

acreditamos que também possam ser aplicadas <strong>à</strong> relação entre organizações e movimentos da<br />

sociedade civil e pessoas, famílias e comunidades.<br />

Segundo O’Donnell (1997), existem duas dimensões de accountability, a horizontal e a vertical.<br />

A dimensão horizontal está fortemente relacionada com a operação eficaz do sistema de checks<br />

and balances e com a transparência <strong>no</strong>s processos de tomada de decisão governamental. Esta opera<br />

mediante uma rede de poderes relativamente autô<strong>no</strong>mos (institucionais) que podem examinar e<br />

questionar e, se necessário, sancionar atos irregulares cometidos durante o desempenho de cargos<br />

públicos. Já a dimensão vertical tem como foco central as eleições (prestação periódica de contas<br />

dos governantes nas urnas) e outros mecanismos que os cidadãos utilizam para controlar o gover<strong>no</strong><br />

(O´Donnell, 1997; Smulovitz et alii, 2000).<br />

Teoricamente, enquanto os mecanismos horizontais controlam e monitoram a legalidade das<br />

ações de oficiais públicos e de agências governamentais, os verticais permitem aos cidadãos o<br />

controle das ações de seus representantes e orientações das políticas. Em ambos os casos, assume-se<br />

que os agentes controlados irão atuar de acordo com a lei ou de acordo com as preferências<br />

eleitorais porque querem evitar a imposição de potenciais custos. No caso dos mecanismos horizontais,<br />

os custos que pretendem evitar vão das sanções penais ao impeachment. No caso dos<br />

mecanismos verticais, o custo a ser evitado é a perda das eleições.<br />

Smulovitz et alii (2000) chamam a atenção para o fato de existir uma terceira dimensão<br />

de accountability – a accountability societal – ig<strong>no</strong>rada pelas análises tradicionais. Segundo os<br />

autores, através de uma multiplicidade de atividades de monitoramento e de estabelecimento<br />

de agenda, a sociedade civil acrescenta-se ao tradicional repertório de instituições eleitorais e<br />

constitucionais.<br />

106


— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

Embora não seja eleitoral, a accountability societal estabelece mecanismos verticais de<br />

controle que têm como base ações de um variado conjunto de associações e movimentos e dos<br />

meios de comunicação, ações que têm como objetivo expor a má atuação governamental, trazer<br />

<strong>no</strong>vas questões <strong>à</strong> agenda pública, ou ativar a operação de agências horizontais. E emprega tanto<br />

instrumentos institucionais (ativar ações legais ou queixas) quanto não institucionais (mobilizações<br />

sociais ou exposição na mídia) (Smulovitz et alii, 2000: 150).<br />

Para ser eficaz, a accountability societal requer uma sociedade civil organizada capaz de<br />

exercer influência <strong>no</strong> sistema político e nas burocracias públicas – uma sociedade civil<br />

empoderada. Ao contrário dos mecanismos eleitorais, a accountability societal pode ser exercida<br />

entre eleições e não depende de calendários fixos. Pode ser ativada com a demanda e pode<br />

ser dirigida para o controle de questões específicas, de políticos ou burocratas (Smulovitz et alii,<br />

2000: 150, grifo <strong>no</strong>sso).<br />

Tal como os mecanismos horizontais, os societais podem monitorar os procedimentos dos<br />

políticos e funcionários públicos enquanto fazem política. Ao contrário dos mecanismos horizontais,<br />

as medidas de accountability societal realizam estas funções de “cão de guarda” sem a necessidade<br />

de maiorias especiais ou de titularidades constitucionais (Smulovitz et alii, 2000: 150).<br />

Enquanto a accountability vertical é justificada pelo princípio da maioria, a accountability<br />

societal retira sua legitimidade do direito de petição – um direito que não requer que a demanda<br />

se encontre espalhada pela população. Em ambos os casos, a “voz” é o mecanismo disponível<br />

para controle. Nos mecanismos societais, embora necessite ser forte e intensa, a voz não necessita<br />

ser extensivamente representada. Esta característica revela uma das desvantagens deste tipo de<br />

controle: as preferências de uma mi<strong>no</strong>ria persistente e barulhenta acabam sobre-representadas<br />

(Smulovitz et alii, 2000: 150).<br />

Os mecanismos societais de accountability diferem também dos mecanismos horizontais e<br />

verticais na medida em que as sanções que eles provocam não são mandatárias nem legais, mas<br />

simbólicas. Embora os atores que exercem accountability societal sejam incapazes de aplicar punições<br />

legais por si mesmos, seus esforços ajudam a despontar procedimentos em tribunais ou agências<br />

que levam a eventuais sanções legais, além de poderem também destruir capital político com as<br />

denuncias realizadas (Smulovitz et alii, 2000: 151).<br />

Smulovitz et alii (2000) consideram então a existência de dois tipos de accountability,<br />

horizontal e vertical, sendo que a vertical se divide em eleitoral e societal. Os atores que controlam<br />

a accountability horizontal são os membros do poder executivo, legislativo e judicial, juntamente<br />

com as agências reguladoras. Os que controlam a accountability vertical eleitoral são os partidos<br />

políticos com participação parlamentar e os cidadãos. Os atores que controlam a vertical societal<br />

são as associações civis, as ONGs,os movimentos sociais e a mídia. Por seu lado, os mecanismos<br />

de controle de políticos e burocratas ao dispor das associações civis, ONGs e movimentos sociais<br />

são a mobilização social com exposição pública e/ou denúncia, a investigação pelas agências<br />

responsáveis e a formulação de agenda. Os ao dispor da mídia são investigação e denúncia/<br />

exposição pública e definição de agenda (Smulovitz et alii, 2000: 153).<br />

Para ser eficaz, a accountability societal necessita de visibilidade dada pela mídia. Contudo,<br />

apesar de sua eficácia, o uso da mídia levanta alguns problemas, uma vez que as acusações da<br />

mídia, mesmo que infundadas, criam a percepção de culpa, até prova em contrário – pode ser<br />

uma ameaça aos <strong>direitos</strong> individuais (Smulovitz et alii, 2000: 154).<br />

107


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Analisando a relação Estado-sociedade civil, em termos de accountability, 31 é possível verificar<br />

que tanto os mecanismos de controle verticais eleitorais quanto os horizontais mostram sinais de<br />

debilidade (Blair, 1997; Cornwall, 2000; O´Donnell, 1997; Narayan et alii, 2000; Smulovitz, 2000;<br />

Smulovitz et alii, 2000). E que existe um gap entre o Estado e os cidadãos. Segundo Cornwall<br />

(2000), esse gap só poderá ser eliminado através da participação cidadã 32 e do exercício de<br />

accountability. Blair (1997) vê também <strong>no</strong> fortalecimento da sociedade civil a chave para fortalecer<br />

a democracia, em particular através da participação e accountability.<br />

O que se relaciona com o que Smulovitz et alii (2000) de<strong>no</strong>minaram de accountability societal,<br />

mecanismo ativado por vários atores da sociedade civil, onde se destaca o papel das ONGs internacionais<br />

e locais. Ressaltando ainda que as próprias pessoas em estado de <strong>pobreza</strong> demandam o<br />

exercício deste mecanismo <strong>à</strong>s ONGs, “elegendo-as” como seus representantes, pela falta de capacidades<br />

individuais, recursos financeiros, tempo e medo de represálias 33 (risco de ofender os patrões<br />

e oficiais poderosos e de incorrer em perdas de emprego, multas, violência e outras penalidades)<br />

(Narayan, 2000; Smulovitz, 2000).<br />

“A ONG deveria monitorar a performance dessas agências [estatais] e deveria tentar ser<br />

imparcial <strong>no</strong>s assuntos inter<strong>no</strong>s da comunidade” – Participante de um grupo de discussão,<br />

Entra a Pulso, <strong>Brasil</strong> (Narayan et alii, 2000: 231)<br />

Contudo, a accountability societal deixa muitas questões em aberto e apresenta várias<br />

limitações que convém analisar.<br />

A principal limitação deste mecanismo, salientada por Smulovitz (2000) e Smulovitz et alii<br />

(2000), diz respeito ao fato de <strong>no</strong>s mecanismos societais a “voz” precisar ser forte e intensa, mas<br />

não ser necessária uma representação ampla dessa voz na sociedade. O que pode levar a que as<br />

atividades de controle sobre os governantes sejam centradas em interesses de atores fortes e<br />

organizados. E pode levar, também, <strong>à</strong> exclusão dos interesses de alguns atores e alguns temas.<br />

Temos assim três tipos de riscos, segundo Smulovitz (2000): risco de clientelismo, riscos envolvidos<br />

em qualquer processo de participação e riscos que resultam da especificidade de temas que<br />

podem ser controlados.<br />

Por todas estas limitações e questões apresentadas, acreditamos ser importante analisar a<br />

questão da accountability das ONGs internacionais e locais, principalmente em relação <strong>à</strong>s pessoas<br />

em estado de <strong>pobreza</strong> e de exclusão com que elas trabalham. É necessário que estas promovam<br />

um engajamento ativo das pessoas com que trabalham, cultivando voz, criando consciência crítica,<br />

defendendo a inclusão de mulheres, crianças, analfabetos, pobres e excluídos, ampliando os espaços<br />

de envolvimento na tomada de decisão e construindo capacidades políticas para engajamento<br />

democrático (Cornwall, 2000: 75). E também estimulando seu processo de empoderamento<br />

e aumentando sua demanda por accountability, quer em relação <strong>à</strong>s ONGs que com elas<br />

trabalham, quer em relação <strong>à</strong>s instituições estatais.<br />

31 Análise realizada <strong>no</strong> ensaio Não é apenas do Estado que a população está demandando accountability, mas também da<br />

sociedade civil. Como ela está respondendo? O caso da <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong>, apresentado como trabalho final da disciplina de<br />

Organizações, Política e Poder do mestrado em Estudos Internacionais Comparados do CPDA/UFRRJ.<br />

32 Segundo Gaventa e Valderrama (citados pela autora), a participação cidadã é definida como formas diretas pelas quais os<br />

cidadãos influenciam e exercem controle na governança, sendo um meio de ampliar a accountability (Cornwall, 2000: 60/1).<br />

33 Ou seja, pela sua posição subordinada na teia de relações de poder estabelecidas <strong>no</strong> meio que as rodeia.<br />

108


— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

Segundo Narayan alii (2000), 34 apesar da grande variedade de critérios apresentados pelas<br />

pessoas em estado de <strong>pobreza</strong> para avaliar o caráter das instituições, estes podem ser divididos em<br />

três grandes categorias: qualidade de relações, valores comportamentais e eficácia. A maior ênfase é<br />

dada, pelas pessoas pobres, a uma grande variedade de critérios de relacionamento. Estes incluem<br />

confiança, participação, accountability, união e capacidade de resolução de conflitos. Critérios comportamentais<br />

incluem respeito, honestidade, transparência, ouvir, gostar, ter carinho e trabalho duro.<br />

Eficácia inclui tempo para apoiar, acesso e contato com a instituição (Narayan et alii, 2000: 180).<br />

Destes critérios, os que merecem atenção, <strong>no</strong> âmbito desta análise, são a participação e a<br />

accountability.<br />

As pessoas definiram, em geral, participação como engajamento na tomada de decisões,<br />

juntar-se para participar em discussões e reuniões, expressar opiniões e serem ouvidas, e ter<br />

controle e influência nas decisões tomadas.<br />

“Participação é a capacidade de ter voz <strong>no</strong> que acontece” – participante de um grupo<br />

de discussão, Thompson Pen, Jamaica.<br />

“... quando as pessoas têm acesso a participar e expressar sua opinião em qualquer<br />

processo de tomada de decisão sem ter medo” – participante de um grupo de discussão,<br />

Dewangonj, Bangladesh (Narayan alii, 2000: 181).<br />

De acordo com a avaliação de várias pessoas em estado de <strong>pobreza</strong> por “todo o mundo”<br />

(Terceiro Mundo), os autores fizeram a classificação de várias instituições, sendo que as ONGs<br />

(que trabalham com emergências e provisão de serviços) pontuam negativamente <strong>no</strong>s critérios de<br />

participação e accountability, enquanto as organizações locais pontuam positivamente. 35<br />

“Só Deus <strong>no</strong>s escuta” – participante de um grupo de discussão, Zawyet Sultan, Egito.<br />

“Ninguém pergunta nada <strong>à</strong>s pessoas” – Sekovici, Bosnia Herzegovina (Narayan et alii,<br />

2000: 181).<br />

Embora nem todas as pessoas em estado de <strong>pobreza</strong> procurem estar ativamente envolvidas<br />

na gestão das ONGs, várias pessoas se referiram <strong>à</strong> falta de accountability destas. E, embora as<br />

ONGs sejam bastante apreciadas pelas pessoas pobres, estas gostariam que respondessem <strong>à</strong>s suas<br />

necessidades e de estar envolvidas na tomada de decisão das ONGs (Narayan et alii, 2000: 228/232).<br />

“Gostaríamos de ter mais controle sobre o gover<strong>no</strong> e as ONGs” – homem, Adaboya,<br />

Gana (Narayan et alii, 2000: 185).<br />

Roche (1997), analisando o caso específico da Acord, 36 verificou que a accountability do<br />

consórcio era maioritariamente dirigida aos seus fundadores e pessoal, que por sua vez prestavam<br />

34 Este livro tem como base testemunhos de 20 mil mulheres e homens pobres, resultantes do trabalho de campo realizado em<br />

1999 em 23 países da Ásia, África, América Latina e Caribe e Leste europeu, onde foram utilizados métodos participativos e<br />

qualitativos de pesquisa. Embora a riqueza dos testemunhos dessas pessoas, de certa forma, se perca com a agregação e<br />

necessária generalização de realidades tão distintas, acreditamos que se trate de uma contribuição fantástica para sabermos<br />

um pouco mais sobre o que dizem “as vozes dos pobres”.<br />

35 Mais uma vez gostaríamos de chamar a atenção para o nível de generalidade do estudo. Gostaria também de salientar o tipo<br />

de ONG considerada.<br />

36 A Acord – Agency for Co-operation and Research in Development (Agência para a Cooperação e Pesquisa em Desenvolvimento)<br />

é um consórcio internacional de ONGs européias e canadenses que trabalham juntas em prol do desenvolvimento de longo<br />

prazo na África.<br />

109


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

contas a seus boards e público e que, apesar de algum trabalho em processos de avaliação<br />

mútua, não existia nenhum mecanismo real através do qual o consórcio prestasse accountability<br />

para aqueles com quem trabalhava. Ou seja, a accountability era apenas vista pelo consórcio na<br />

sua dimensão reduzida de prestação burocrática de contas e não como instrumento de controle<br />

de poder entre atores. Tal fato levou a um descolamento entre o trabalho da ONG e as necessidades<br />

das pessoas a quem se dirigia esse trabalho.<br />

Conclui-se, então, que participação e accountability são demandas das pessoas em estado<br />

de <strong>pobreza</strong> em relação <strong>à</strong>s ONGs que com elas trabalham, que estas pessoas não querem mais ser<br />

receptoras passivas de serviços e pretendem tornar-se agentes de seu próprio desenvolvimento.<br />

Torna-se então necessário garantir accountability e participação, não só na relação entre<br />

Estado e sociedade civil como nas relações estabelecidas dentro da própria sociedade civil.<br />

Um caminho possível para analisar a questão da accountability das ONGs internacionais e<br />

locais seria recorrer a um “jogo metodológico” com os conceitos de accountability horizontal e<br />

vertical, tomando em consideração as relações de poder subjacentes a estas <strong>no</strong>ções. E utilizando-se<br />

o conceito de accountability horizontal para os mecanismos de controle e prestações de contas<br />

estabelecidos entre atores com “níveis” de poder equivalentes – membros com o mesmo nível<br />

hierárquico dentro das ONGs, seus diferentes departamentos –, ou atores em que, as relações que<br />

estabelecem são na sua maioria de aliança e cooperação, isto é, onde operam mais as relações de<br />

influência que as relações de poder (dominação/subordinação) – ONGs e outros atores da sociedade<br />

civil, Estado 37 e mercado.<br />

O conceito de accountability vertical seria utilizado para os mecanismos ativados por atores<br />

que detêm me<strong>no</strong>s poder – parceiros e comunidades – para controlar ações, exigir prestação de<br />

contas e participar das decisões de atores com maior poder – ONGs. Assim, as ONGs prestariam<br />

accountability vertical para com as pessoas, famílias e comunidades com que trabalham, seus<br />

parceiros e, dentro das ONGs, dos diretores para os restantes membros das equipes.<br />

As ONGs têm ainda o papel fundamental de exercer accountability societal, principalmente<br />

em relação ao Estado. E este tipo de accountability pode ser exercido também em relação a atores<br />

da esfera do mercado e outros atores da esfera da sociedade civil.<br />

4. Considerações finais<br />

Com base <strong>no</strong> balanço teórico realizado, apresentamos agora uma possível articulação das <strong>no</strong>ções<br />

de desenvolvimento, <strong>pobreza</strong> e empoderamento. As <strong>no</strong>ções de <strong>pobreza</strong> e de empoderamento<br />

apresentadas em seguida visam a levantar algumas questões para a reflexão em curso na <strong>ActionAid</strong><br />

<strong>Brasil</strong> sobre empoderamento como meio de <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>.<br />

A discussão tem a seguinte idéia base: <strong>pobreza</strong> é um estado de desempoderamento e de<br />

privação que apresenta várias dimensões e se manifesta de forma diferenciada de pessoa para<br />

pessoa, de família para família e de comunidade para comunidade; e para superar as <strong>pobreza</strong>s é<br />

necessário enfrentar suas várias dimensões, percorrendo os caminhos individuais e coletivos<br />

de empoderamento.<br />

37 Quando este não é o principal financiador da ONG.<br />

110


— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

4.1. Noção de <strong>pobreza</strong><br />

A <strong>pobreza</strong> é compreendida como um estado de privação e de desempoderamento. Uma <strong>no</strong>ção<br />

complexa que apresenta várias dimensões: a falha na dotação e titularidade sobre os recursos, a<br />

privação de capacidades individuais e coletivas, a falta de acesso <strong>à</strong>s organizações e movimentos<br />

da sociedade civil, ao Estado e ao mercado e a falta de poder pessoal, social, político e econômico.<br />

Consideramos que existem <strong>pobreza</strong>s, isto é, diferentes níveis de <strong>pobreza</strong>, pois a desigualdade<br />

manifesta-se também entre os pobres e não só entre as diferentes classes. As diferentes dimensões<br />

de <strong>pobreza</strong> manifestam-se de forma diferenciada e agravada <strong>no</strong> caso de alguns grupos sociais<br />

mais discriminados e mais sujeitos a relações de dominação e exclusão, como é o caso das mulheres,<br />

dos jovens, dos idosos, dos negros, dos indígenas, das mi<strong>no</strong>rias sexuais, dos deficientes. Ou seja,<br />

existem diferentes tipos de desigualdade que agravam estas dimensões de <strong>pobreza</strong>.<br />

Falha na dotação e titularidade sobre os recursos 38<br />

Na sua trajetória as pessoas, famílias e comunidades definem estratégias de reprodução e/ou<br />

sobrevivência e os resultados esperados das mesmas. Para operacionalizar e potencializar essas<br />

estratégias é necessário mobilizar recursos, que podem ser tangíveis ou intangíveis, e de titularidade<br />

das pessoas, famílias e/ou comunidades ou não.<br />

Consideraremos quatro grandes tipos de recursos: naturais, huma<strong>no</strong>s, econômicos e sociais.<br />

• Recursos naturais: atmosfera, biodiversidade, terra, água etc.;<br />

• Recursos huma<strong>no</strong>s: pessoais (qualificações, conhecimentos, habilidades, saúde etc.) e da<br />

família e comunidade (quantidade, qualidade e diversidade, em termos de gênero e de geração,<br />

do trabalho disponível etc.);<br />

• Recursos econômicos: infra-estrutura básica (transporte a preços acessíveis, habitação e<br />

construções seguras, oferta de água de qualidade e saneamento básico, energia limpa e a<br />

preços acessíveis, acesso <strong>à</strong> informação, etc.), bens de produção (instrumentos e equipamentos<br />

de trabalho) e recursos financeiros (estoques disponíveis em poupanças e crédito, por exemplo,<br />

e recebimentos regulares de dinheiro além da renda, como aposentadoria, outras transferências<br />

do Estado e remessas de familiares que migraram);<br />

• Recursos sociais: identidade, cultura, saber tradicional e local, formas de interação social,<br />

<strong>no</strong>rmas de reciprocidade e redes de sociabilidade, movimentos, associações e ONGs locais e<br />

regionais, redes de organizações da sociedade civil ligadas ao local etc.<br />

A falha na dotação e/ou titularidade sobre os recursos necessários a operacionalizar e/ou<br />

potencializar as estratégias de reprodução e/ou sobrevivência das pessoas, famílias e comunidades<br />

é considerada como uma dimensão da <strong>pobreza</strong>, na medida em que retira das pessoas, famílias e<br />

comunidades a liberdade de alcançar os resultados por elas valorizados de suas estratégias de<br />

reprodução e/ou sobrevivência.<br />

38 Optamos por de<strong>no</strong>minar de recursos os capitais do esquema de Bebbington e considerar capital cultural e social como um<br />

conjunto de recursos sociais.<br />

111


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Privação de capacidades individuais e coletivas<br />

As pessoas, famílias e comunidades possuem diferentes capacidades de ser e de fazer que possibilitam<br />

gerir recursos (usar, trocar, combinar, transformar, defender, manter, reproduzir, expandir),<br />

definir e escolher entre diferentes estratégias de reprodução e/ou sobrevivência e alcançar os<br />

resultados por elas valorizados das mesmas.<br />

Como exemplos de capacidades de ser temos a auto-estima, a identidade, a cultura e o saber<br />

tradicionais e locais, entre outras. E como exemplos de capacidades de fazer temos: capacidade<br />

de estar livre de doenças que podem ser evitadas, de poder escapar da morte prematura, de evitar<br />

privações como fome e desnutrição, saber ler, saber escrever, saber fazer cálculos aritméticos,<br />

capacidade de utilização das informações disponíveis, capacidade de participar social e politicamente,<br />

capacidade de expressão, capacidade de gerir os recursos disponíveis, capacidade de<br />

influenciar e ter voz nas tomadas de decisão que afetam seu desti<strong>no</strong>, entre outras.<br />

Outra dimensão de <strong>pobreza</strong> manifesta-se pela privação de capacidades individuais e coletivas<br />

de ser e de fazer. Para definir se a pessoa, família e/ou comunidade se encontra num estado de<br />

privação de capacidades é necessário analisar o contexto em que a mesma se encontra inserida,<br />

isto é, em relação a outras pessoas dentro da mesma família, outras famílias dentro da mesma<br />

comunidade, outras comunidades dentro da mesma região. E deixar as próprias pessoas, famílias<br />

e comunidades definirem seu estado de privação de capacidades: quais as capacidades que valorizam<br />

e de que se sentem privadas, quais as capacidades que necessitariam para superar seu<br />

estado de <strong>pobreza</strong>.<br />

Além das pessoas, famílias e comunidades em estado de <strong>pobreza</strong> se encontrarem privadas de<br />

capacidades, por vezes as capacidades que possuem são desvalorizadas por elas mesmas e pelos<br />

outros, isto é, não têm suas capacidades reconhecidas, o que limita que estas sejam exercidas e<br />

mesmo expandidas. O que pode ser visto como falta de poder pessoal, que se traduz em falta de<br />

auto-estima, de autoconfiança e de identidade.<br />

Falta de acesso <strong>à</strong>s organizações e movimentos da<br />

sociedade civil, aos atores do Estado e do mercado<br />

Outro fator que bloqueia o livre exercício e a expansão das capacidades é a falta de acesso <strong>à</strong>s<br />

organizações e movimentos da sociedade civil, aos atores do Estado e do mercado, que limita<br />

também a titularidade sobre os recursos.<br />

A falta de acesso pode-se traduzir tanto na falta de espaços nessas três esferas que permitam<br />

a participação das pessoas, famílias e comunidades e/ou seus representantes, quanto na impossibilidade<br />

de uma utilização efetiva desses espaços pelas pessoas, famílias e comunidades e/ou seus<br />

representantes devido <strong>à</strong>s relações de poder existentes. Essas relações de poder limitam as liberdades<br />

individuais e coletivas <strong>no</strong>s níveis político, social e econômico e bloqueiam o livre exercício e a<br />

expansão das capacidades individuais e coletivas, diminuindo o poder político, econômico e social<br />

das pessoas, famílias e comunidades.<br />

Essas relações de poder estão presentes na família e nas próprias comunidades, que voluntária<br />

e/ou involuntariamente, excluem alguns de seus membros da tomada de decisões, do acesso a<br />

recursos e do exercício de suas capacidades. Algumas organizações da sociedade civil limitam a<br />

participação dos mais desempoderados e privados de suas dinâmicas, voluntária ou<br />

involuntariamente, e não promovem accountability para com as pessoas, famílias e comunidades<br />

com que trabalham, bloqueando assim o livre exercício e expansão de capacidades das últimas.<br />

112


— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

Na esfera do Estado, as relações de poder podem assumir a forma de clientelismo, troca de<br />

favores por voto e de dependência, de falta de accountability horizontal e da não abertura de<br />

espaços para participação das pessoas, famílias, comunidades e/ou seus representantes.<br />

As relações de poder existentes na esfera do mercado subordinam, exploram ou excluem<br />

totalmente as pessoas, famílias e comunidades do acesso ao mesmo, quer para comprar, quer<br />

para vender bens, serviços ou força de trabalho.<br />

4.2. O caminho do empoderamento na superação das <strong>pobreza</strong>s<br />

O empoderamento é entendido como um processo contínuo e em constante re<strong>no</strong>vação de<br />

aumento do poder pessoal, social, político e econômico das pessoas, famílias, comunidades e<br />

organizações da sociedade civil, que se traduz na ampliação das capacidades individuais e coletivas,<br />

<strong>no</strong> aumento do controle, sobre recursos e ampliação do acesso <strong>à</strong>s organizações da sociedade<br />

civil, ao Estado e ao mercado, em condições de maior eqüidade e accountability, contribuindo<br />

para o aumento das liberdades em geral.<br />

<strong>Empoderamento</strong> é um meio de construção do desenvolvimento local alternativo sustentável,<br />

que tem origem dentro das pessoas, <strong>no</strong> seio das famílias, das comunidades e das organizações e<br />

movimentos locais e que não pode ser pensado de cima para baixo nem de fora para dentro.<br />

Embora os agentes exter<strong>no</strong>s de mudança possam catalisar ou criar um ambiente favorável ao<br />

desenrolar do processo, o empoderamento não é algo que se possa fazer pelas pessoas, mas algo que<br />

as pessoas têm de fazer por elas mesmas, ou seja, são as pessoas que se empoderam a si mesmas.<br />

Consideramos que este processo tende a seguir um “caminho”, tendo como ponto de partida<br />

o empoderamento individual (pessoas e famílias) e crescendo <strong>no</strong> sentido do empoderamento<br />

coletivo (comunidades, movimentos, organizações e redes da sociedade civil). Tem como objetivos a<br />

transformação das relações de poder e um maior nivelamento dos níveis de poder, originando<br />

maior eqüidade na sociedade.<br />

É um processo de aumento do poder das pessoas, famílias, comunidades e organizações e<br />

movimentos da sociedade civil que possibilita um maior controle sobre os recursos disponíveis e o<br />

livre exercício e a expansão de suas capacidades individuais e coletivas, de forma a que estas<br />

tenham liberdade para atingir os resultados por elas valorizados de suas estratégias de reprodução.<br />

Esse “caminho do empoderamento” teria então como ponto de partida o aumento da autoestima<br />

e da autoconfiança das pessoas, famílias e comunidades que se encontram em estado de<br />

<strong>pobreza</strong>, ou seja, o aumento de seu poder pessoal.<br />

Esse aumento da auto-estima e autoconfiança individual e coletiva poderia ser conseguido<br />

através da (re)valorização e do estímulo <strong>à</strong> expansão das capacidades das pessoas, famílias e<br />

comunidades. Cumpre então resgatar sua cultura e saber tradicionais, (re)construir sua identidade,<br />

aumentar a capacidade de gestão de recursos que viabilizam e potencializam suas estratégias<br />

de reprodução, incentivar a mobilização e organização das pessoas, famílias e comunidades,<br />

estimular sua inclusão nas dinâmicas sociais, ampliar seu acesso <strong>à</strong>s organizações e movimentos da<br />

sociedade civil e levar as pessoas, famílias e comunidades a se transformarem em agentes de seu<br />

próprio desenvolvimento.<br />

Outra forma de dar o primeiro estímulo ao processo de empoderamento é através da conscientização<br />

das pessoas e famílias em relação <strong>à</strong>s privações de que são alvo e sobre seus <strong>direitos</strong>,<br />

incentivando sua mobilização e organização para a implementação dos mesmos. Neste caso será<br />

também necessário um processo de aumento de auto-estima e de autoconfiança dessas pessoas,<br />

famílias e comunidades.<br />

113


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

Como um segundo passo 39 do processo de empoderamento, temos a alteração das relações<br />

de poder existentes entre as pessoas, famílias, comunidades e as organizações e movimentos da<br />

sociedade civil, os atores da esfera do Estado e do mercado, rompendo os laços de dependência<br />

e subordinação que bloqueiam o livre exercício e a expansão de suas capacidades.<br />

Nas relações estabelecidas dentro da família, na comunidade, nas organizações e movimentos<br />

da sociedade civil e nas relações estabelecidas entre as pessoas, famílias, comunidades e organizações<br />

e movimentos da sociedade civil com o Estado, a principal demanda é por maior accountability,<br />

participação e respeito aos processos, estratégias, tecido social e identidade locais. Ou seja, o<br />

aumento de poder social (relação com organizações da sociedade civil), o aumento do poder<br />

político (relação com o Estado) e o aumento do poder econômico (relação com o mercado).<br />

Para que a participação seja efetiva é necessário que os espaços de participação sejam ocupados<br />

por pessoas e/ou organizações e movimentos da sociedade civil empoderados, que além de terem<br />

voz nesses espaços possam num segundo momento ter meios para exercer a accountability societal,<br />

ou seja, que exijam transparência e participação nas tomadas de decisão, coloquem pontos na<br />

agenda, exponham corrupção e má atuação e exijam accountability horizontal. Que as organizações<br />

da sociedade civil promovam accountability vertical para com as pessoas, famílias e comunidades<br />

com que trabalham e que sejam abertos espaços <strong>à</strong> participação destas nas suas dinâmicas.<br />

É preciso que as organizações e movimentos da sociedade civil se empoderem, expandam<br />

suas capacidades coletivas, valorizem sua auto-estima coletiva, criando uma identidade forte, e se<br />

articulem entre si, trocando experiências, conhecimentos e propostas, formando redes e fortalecendo<br />

a esfera da sociedade civil, para que a lógica desta última comece a permear as lógicas das<br />

duas outras esferas, as do Estado e do mercado. Desta forma, equilibram-se os poderes entre as<br />

três esferas e transforma-se a relação entre elas, que deixa de ser uma relação de subjugação/<br />

subordinação e dominação para se tornar uma relação pautada <strong>no</strong> diálogo e na negociação – o que<br />

contribuirá para o aumento das liberdades em geral.<br />

Existem <strong>no</strong> mercado espaços socialmente construídos que se pautam pelos princípios da<br />

solidariedade e onde as relações entre agentes se pautam pelos princípios da cooperação, diminuindo<br />

as relações de dominação e sujeição típicas do mercado capitalista ao eliminar os atravessadores<br />

e propor uma relação direta entre produtores e consumidores organizados de forma solidária,<br />

possibilitando assim o pagamento de um preço justo aos produtores e diminuindo, ao mesmo<br />

tempo, o preço <strong>no</strong>s consumidores – são as experiências de eco<strong>no</strong>mia solidária. Existem, também,<br />

nichos de mercado que valorizam o produto da agricultura familiar, pagando um preço justo por<br />

ele e, o mais importante, dando oportunidade para o acesso dos agricultores familiares ao mercado.<br />

A aposta <strong>no</strong>s produtos orgânicos e na agroecologia também abre oportunidades de acesso ao<br />

mercado em condições mais favoráveis para a agricultura familiar. É preciso ocupar e ampliar<br />

esses espaços. Embora estes sejam pequenas ilhas abertas <strong>à</strong> agricultura familiar dentro da esfera<br />

do mercado, várias têm sido as iniciativas de construção de pontes entre essas experiências<br />

bem sucedidas.<br />

Estas são apenas algumas questões que consideramos capazes de contribuir para a reflexão<br />

em curso na <strong>ActionAid</strong> <strong>Brasil</strong> sobre empoderamento e <strong>combate</strong> <strong>à</strong> <strong>pobreza</strong>.<br />

39 Note-se que, apesar de falarmos em primeiro e segundo passo, consideramos empoderamento um processo contínuo e com<br />

recuos e avanços constantes, uma espiral de conquistas e aprendizado que se re<strong>no</strong>va constantemente.<br />

114


BIBLIOGRAFIA<br />

— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —<br />

ARMANI, D. (org.) Agricultura e <strong>pobreza</strong>: construindo os elos da sustentabilidade <strong>no</strong> Nordeste<br />

do <strong>Brasil</strong>. Porto Alegre, Tomo Editorial, Holanda, ICCO, 1998. cap.3.<br />

BEBBINGTON, A. Capitals and capabilities. A framework for analysing peasant viability, rural<br />

livelihoods and poverty in the Andes. London, IIED/DFID, January 1999. 54p.<br />

BEBBINGTON, A., KOPP, A. & RUBINOFF, D. From chaos to strenght? Social capital, rural people’s<br />

organizations and sustainable rural development. December 1997.<br />

(Disponível em: www.fao.org/forestry/for/forc/plural/2/BEBBIN_c.htm)<br />

BINSWANGER, H.P. Agricultural and rural development: painful Lessons. Washington (DC),<br />

World Bank, 1995.<br />

BLACKBURN, J. A. Popular education in Latin America: examining the role of outsiders in<br />

facilitating processes of empowerment at the grassroots. Mphil dissertation,<br />

August 1993.<br />

BLAIR, H. Do<strong>no</strong>rs, democratisation and civil society: relating theory to practice. In: HULME,<br />

D. & EDWARDS, M. (eds.) NGOs, States and do<strong>no</strong>rs: too close for comfort?<br />

London, Macmillan Press LTD/Save the Children, 1997. p.23-42.<br />

CORNWALL, A. Beneficiary, consumer, citizen: perspectives on participation for poverty reduction.<br />

Sidastudies <strong>no</strong>.2, Sweden, 2000.<br />

COSTA, A. A. Gênero, poder e empoderamento das mulheres. Núcleo de Estudos<br />

Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM/UFBA, 2000.<br />

DFID. Sustainable livelihoods guidance sheets. London, DFID, April 1999 and February 2000.<br />

FELDMAN, T. R. & ASSAF, S. Social capital: conceptual frameworks and empirical evidence.<br />

An an<strong>no</strong>tated bibliography. Washington D.C., World Bank, 1999. 47p.<br />

FRIEDMANN, J. <strong>Empoderamento</strong>: uma política de desenvolvimento alternativo. Oeiras,<br />

Celta, 1996.<br />

HIRSCHMAN, A. O. Grandeza e decadência da eco<strong>no</strong>mia do desenvolvimento. In: A eco<strong>no</strong>mia<br />

como ciência moral e política. São Paulo, <strong>Brasil</strong>iense, 1986.<br />

LEYS, C. The rise and fall of development theory. London, Indiana University Press, 1996. Cap.1.<br />

MALUF, R. S. Atribuindo sentido(s) <strong>à</strong> <strong>no</strong>ção de desenvolvimento econômico. Estudos: Sociedade<br />

e Agricultura, (15):53-86, out. 2000.<br />

. Planejamento, desenvolvimento e agricultura na América Latina: um roteiro<br />

de temas. Rio de Janeiro, CPDA, <strong>no</strong>v. 1997. (Textos para discussão nº3.)<br />

NARAYAN, D.; CHAMBERS, R.; SHAH, M. K. & PETESCH, P. Voices of the poor: crying out<br />

for change. New York, Oxford University Press/World Bank, 2000.<br />

O’DONNELL, G. Contrapuntos: ensayos escogidos sobre autoritarismo y democratización.<br />

Bue<strong>no</strong>s Aires, Paidós, 1997. p. 259-330.<br />

OSMANI, S. The entitlement approach to famine: an assessment. In: Basu, K. et alii (eds.) Choice,<br />

welfare and development: a festschrift in ho<strong>no</strong>ur of Amartya Sen. Oxford, Claredon<br />

Press, 1995. p.253-94.<br />

PUTNAM, R. Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro,<br />

FGV, 2000.<br />

ROCHE, C. It’s <strong>no</strong>t size that matters: ACORD’s experience in Africa. In: EDWARDS, M. & HULME,<br />

D. (eds.) Making a difference: NGOs and development in a changing world. London,<br />

Earthscan, 1997. p.180-90.<br />

SEN, A. K. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.<br />

. The concept of development. In: Chenery, H. & Srinivasan, T. N. (eds.) Handbook<br />

of development eco<strong>no</strong>mics. Amsterdam, North Holland, 1988. v.1.<br />

115


— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —<br />

SEN, G. Empowerment as an Approach to Poverty. In: Informe de Desenvolvimento Huma<strong>no</strong>.<br />

Pnud, 1997. (Documento base.)<br />

STEWART, F. Basic needs, capabilities and human development. Greek Eco<strong>no</strong>mic Review,<br />

17(2), 1995.<br />

SMULOVITZ, C. How can the rule of law rule? Cost imposition through descentralized<br />

mechanisms. Bue<strong>no</strong>s Aires, CONICET-UTDT, 2000.<br />

SMULOVITZ, C. & PERUZZOTTI, E. Societal Accountability in Latin America. Journal of Democracy,<br />

11(4):147-58, 2000.<br />

THROSBY, C. D. Agriculture in the Eco<strong>no</strong>my: the evolution of eco<strong>no</strong>mists perceptions over three<br />

centuries. Review of Marketing and Agricultural Eco<strong>no</strong>mics, 54(3):5-48, 1986.<br />

WORLD BANK. Decentralized rural development and enhanced community participation:<br />

a case study from Northeast Brazil. In: www.worldbank/research/workpapers, 1995.<br />

116

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!