Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
— Meu pai, sabe qual é a nova forma <strong>de</strong> cumprimento que o povo, nas ruas, inventou?<br />
— disse Deífobo, um dos poucos filhos que ainda restara ao rei troiano.<br />
— Não, meu filho, diga qual é... — respon<strong>de</strong>u o velho, com um sorriso ameno.<br />
— "<strong>Tróia</strong> livre!" — respon<strong>de</strong>u Deífobo. — Assim bradam homens, mulheres, velhos e crianças, uns<br />
aos outros, quando cruzam pelas ruas. Não é lindo, meu pai?<br />
Sim, fez o rei, dando um assentimento tímido com a cabeça.<br />
Logo em seguida, entretanto, <strong>de</strong>u as costas ao filho, querendo significar com isto que preferia ficar a<br />
sós. Momentos <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, sabia ele, velho e calejado que estava pela dor da perda, não<br />
significavam muita coisa quando não podiam ser compartilhados por aqueles que já haviam partido.<br />
— Heitor, meu adorado filho... — disse o velho, com os olhos marejados <strong>de</strong> lágrimas. — Que lástima<br />
que os <strong>de</strong>uses não permitissem que ainda pu<strong>de</strong>sses estar entre nós para saborear o alegre dia da vitória.<br />
Durante um longo tempo, Príamo, rei <strong>de</strong> <strong>Tróia</strong>, semelhante aos <strong>de</strong>uses, esteve sentado<br />
em seu trono, escutando o ruído da euforia, que parecia inesgotável. Pela sua cabeça passava a imagem<br />
recorrente dos filhos que per<strong>de</strong>ra — oh, Júpiter inclemente, quantos que eram! -, a maioria abatidos<br />
pelo braço cruel do perverso Aquiles. E ao lembrar-se <strong>de</strong>le, inevitavelmente lhe veio à mente, outra<br />
vez, a figura <strong>de</strong> Heitor, o preferido do seu coração. (Sim, havia o irresponsável e estouvado Pária, mas<br />
mesmo este não lhe falava tanto à alma quanto o nobre Heitor. ) Como estar alegre, então, se iria levar<br />
para o resto da vida a imagem horrível do filho dileto sendo arrastado ao redor das muralhas <strong>de</strong> sua<br />
<strong>Tróia</strong> amada pelos pés, amarrado <strong>de</strong> maneira indigna ao carro do selvagem filho <strong>de</strong> Peleu, que, graças<br />
aos <strong>de</strong>uses, já havia também <strong>de</strong>scido à mansão dos mortos?<br />
A noite avançara, e agora o silêncio em toda <strong>Tróia</strong> era quase completo. Sínon, o falso amigo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
passar a noite inteira comemorando junto <strong>de</strong> uma bela troiana a sua nova condição <strong>de</strong> súdito <strong>de</strong><br />
Príamo, esgueirou-se do leito, pronto para ganhar imediatamente a rua. Antes, porém, puxou seu<br />
afiado punhal e enterrou-o, <strong>de</strong> maneira vil e impiedosa, no pescoço da pobre moça. Depois, cosido<br />
com as pare<strong>de</strong>s, percorreu as ruas, somente encontrando, vez por outra, algum bêbado caído pelas<br />
ruas, mergulhado numa poça <strong>de</strong> vinho misturado ao vômito. Sínon, enojado, dava uma cuspida em<br />
cada um <strong>de</strong>sses que encontrava: estava chegando a hora <strong>de</strong> vingar-se dos insultos e bofetadas que<br />
recebera quando <strong>de</strong> sua fingida captura. Ao cruzar com o cavalo, que permanecia postado no centro da<br />
cida<strong>de</strong>, ele fez um sinal para o alto, indicando que a hora fatal se aproximava.<br />
Sínon esgueirou-se para fora das muralhas quebradas, que, logicamente, ainda não haviam sido<br />
consertadas — pressa, agora, para quê? — e correu velozmente até alcançar o túmulo <strong>de</strong> Aquiles, que<br />
ficava no alto <strong>de</strong> um outeiro. Ali trepado, agitou, então, em direção à ilha próxima <strong>de</strong> Tenedos, um<br />
facho aceso. Lá estavam escondidas as tropas gregas, comandadas por Agamenon, o qual somente<br />
esperava o sinal prometido para embarcar seus homens e rumar a toda pressa para <strong>Tróia</strong>. O dia ainda<br />
tardaria a romper, e teriam os gregos tempo <strong>de</strong> pegar os <strong>de</strong>savisados troianos ainda <strong>de</strong>itados,<br />
anestesiados pelo vinho.<br />
Enquanto isto, no palácio real <strong>de</strong> <strong>Tróia</strong>, Príamo, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter ido abraçar sua esposa Hécuba, a nora<br />
Andrômaca, esposa <strong>de</strong> seu amado Heitor, e <strong>de</strong> ter dado mais uma amorosa olha<strong>de</strong>la em Astíanax, seu<br />
belo netinho, foi até a janela que dava para a praça central da sua amada cida<strong>de</strong>.<br />
Sínon, o sagaz traidor, recém havia passado pela frente do cavalo e feito a sua senha, quando Príamo<br />
apontou na janela, que dava direto para o gran<strong>de</strong> monumento. Mais uma vez as Parcas fatais<br />
conspiravam contra o rei troiano. Apoiando seus cansados cotovelos sobre o peitoril, Príamo esteve<br />
observando por algum tempo o cavalo. Negro, da cor da noite, ainda assim era terrível em sua beleza.<br />
Como era imenso! Sua cabeça perdia-se no alto, e apesar <strong>de</strong> o rei estar na torre do seu castelo, ainda<br />
assim estava quase face a face com o tremendo animal <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. Os fachos <strong>de</strong> seus olhos já haviam<br />
apagado, <strong>de</strong> há muito. Mas o clarão da lua, incidindo sobre eles, dava-lhes agora um outro aspecto —<br />
não mais ígneo e dourado, mas frio e metálico, que parecia torná-los ainda mais infinitamente<br />
ameaçadores.<br />
Príamo, vencido, afinal, pelo cansaço, foi dormir. Assim que Sínon retornou <strong>de</strong> sua missão, bateu três<br />
vezes com o cabo <strong>de</strong> sua espada nos pés do cavalo. O ruído ribombou até o estômago do animal.