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A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói - Liceu Albert Sabin Ribeirão ...

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que <strong>de</strong>vo eu morrer e morrer sofrendo? Alguma coisa, positivamente, está<br />

errada!”<br />

“Talvez eu não tenha vivido como <strong>de</strong>veria”, acudiu-lhe <strong>de</strong> súbito. “Mas <strong>de</strong> que<br />

sorte, se eu sempre procedi como era preciso?” — e imediatamente afastou a<br />

única hipótese possível para o enigma da vida e da morte,<br />

“E o que queres agora? Viver? Viver <strong>de</strong> que maneira? Viver como viveste no<br />

tribunal, quando o oficial <strong>de</strong> justiça anunciava: — Está aberta a sessão!”...<br />

“Está aberta a sessão!”, repetiu. “O julgamento vai começar. Mas eu não sou<br />

culpado!”, exclamou, indignado. “Por quê?”<br />

E parou <strong>de</strong> chorar. Com o rosto voltado para a pare<strong>de</strong>, pôs-se a martelar a<br />

mesma coisa: Por quê? Para que tal horror? Mas, por mais que repisasse a<br />

questão, não encontrava solução. E quando lhe vinha a idéia <strong>de</strong> que não vivera<br />

como <strong>de</strong>veria, o que amiudadamente acontecia, lembrava-se logo da correção<br />

da sua vida e repelia o insólito pensamento.<br />

Mais uma quinzena se escoou. <strong>Ivan</strong> <strong>Ilitch</strong> já não <strong>de</strong>ixava o divã. Não queria<br />

ficar na cama. E quase todo o tempo, com o rosto voltado para a pare<strong>de</strong>, sofria<br />

solitário os mesmos insolúveis tormentos, martirizava-se com o mesmo<br />

insolúvel problema: “O que é isso? Será, realmente, a morte?” E a voz interior<br />

lhe respondia: “Sim, é a morte”. “Mas para que tanto sofrimento?” E a voz<br />

tornava a respon<strong>de</strong>r: “Para nada. Além disso não há nada”.<br />

Des<strong>de</strong> a primeira consulta ao médico para ver o que tinha, a vida <strong>de</strong> <strong>Ivan</strong> <strong>Ilitch</strong><br />

dividira-se em dois estados <strong>de</strong> espírito, opostos e alternados: ora <strong>de</strong>sespero e<br />

expectativa <strong>de</strong> uma morte absurda e atroz, da qual nada o salvaria, ora<br />

esperança e acurada observação dos seus órgãos, que se recusavam a<br />

funcionar regularmente. E, quanto mais progredia a doença, mais ilusórias e<br />

fantásticas eram as suas esperanças no rim e no ceco, e mais real o<br />

sentimento da morte iminente.<br />

Era suficiente comparar o que fora há três meses com o que era agora e, da<br />

simples constatação da <strong>de</strong>rrocada, vinha a certeza <strong>de</strong> que se afastava <strong>de</strong><br />

qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> salvação.<br />

Nos últimos tempos da sua solidão, solidão no meio <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>,<br />

cercado por inúmeros amigos e parentes e que não po<strong>de</strong>ria ser mais completa<br />

nem mesmo no fundo do mar ou nas entranhas da terra, na sua terrível solidão,<br />

<strong>Ivan</strong> <strong>Ilitch</strong>, com o rosto voltado para o encosto do divã, vivia somente das<br />

recordações do passado. Diante <strong>de</strong>le, um após outro, surgiam os<br />

acontecimentos antigos.<br />

Começava sempre pelo mais próximo no tempo, ia <strong>de</strong>pois se transportando<br />

para os mais remotos até que chegava à infância, on<strong>de</strong> parava. Se <strong>Ivan</strong> <strong>Ilitch</strong><br />

pensava nas ameixas cozidas que lhe serviram naquele dia, vinham-lhe logo à<br />

memória as ameixas secas da sua infância, muito enrugadas, com um gosto<br />

todo especial e que provocavam uma abundante saliva quando mordido o<br />

caroço; e a lembrança <strong>de</strong>sse gosto <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ava uma seqüência <strong>de</strong> outras<br />

daquela época: a ama, o irmão, os seus brinquedos. “Não <strong>de</strong>vo pensar em tais<br />

coisas. É triste <strong>de</strong>mais”, pensava, e voltava ao presente e, bem diante dos<br />

olhos, estavam o botão no encosto do divã e as pregas do marroquim. “O<br />

marroquim é caro e pouco durável e nós discutimos bastante a respeito. Mas<br />

houve um outro marroquim e uma outra discussão, quando rasgamos a pasta<br />

<strong>de</strong> meu pai, fomos castigados e mamãe nos trouxe bolos às escondidas.” E<br />

novamente se <strong>de</strong>tinha na infância, mas as lembranças lhe eram dolorosas e<br />

procurava afastá-las pensando em outra coisa.

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