A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói - Liceu Albert Sabin Ribeirão ...
A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói - Liceu Albert Sabin Ribeirão ...
A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói - Liceu Albert Sabin Ribeirão ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Não mentia o doutor, mas as dores morais <strong>de</strong> <strong>Ivan</strong> <strong>Ilitch</strong> eram infinitamente<br />
piores do que as físicas. Resultavam do fato <strong>de</strong>, naquela noite, ao contemplar o<br />
rosto <strong>de</strong> Guerássim, sonolento, bondoso, <strong>de</strong> maçãs salientes, acudira-lhe à<br />
mente a seguinte indagação: “E se toda a minha vida, a minha vida consciente,<br />
tivesse sido realmente errada?”<br />
Pon<strong>de</strong>rou que aquilo que antes acreditava ser totalmente impossível, isto é,<br />
não ter vivido como <strong>de</strong>veria, podia ser verda<strong>de</strong>. Consi<strong>de</strong>rou que as pequeninas<br />
tentativas que fizera, tentativas quase imperceptíveis e que logo sufocava, para<br />
lutar contra o que era consi<strong>de</strong>rado acertado pelas pessoas mais altamente<br />
instaladas na socieda<strong>de</strong>, podiam representar o lado autêntico das coisas,<br />
sendo falso tudo o mais. E que os seus <strong>de</strong>veres profissionais, sua vida regrada,<br />
a or<strong>de</strong>m familiar e todos os interesses mundanos e oficiais, não passassem <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>s mentiras. Tentou <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r tudo aquilo perante si mesmo e, <strong>de</strong><br />
repente, atinou com a fragilida<strong>de</strong> da sua <strong>de</strong>fesa. Não, não havia nada a<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r.<br />
“Mas, se assim é, estou eu saindo da vida com a plena consciência <strong>de</strong> ter<br />
<strong>de</strong>struído tudo o que me foi concedido e, se a perda é irreparável, que irei<br />
fazer?”, pensou. E, <strong>de</strong>itado <strong>de</strong> costas, pôs-se a passar em revista a sua vida <strong>de</strong><br />
maneira completamente diversa.<br />
De manhã, quando apareceram sucessivamente o criado, a mulher, a filha e o<br />
médico, cada palavra, cada gesto <strong>de</strong>les era a confirmação da tremenda<br />
verda<strong>de</strong> que lhe fora revelada <strong>de</strong> noite. Reviu-se em cada um — sua existência<br />
fora precisamente o que era a <strong>de</strong>les. E viu <strong>de</strong> forma espantosamente clara que<br />
não passava ela dum imenso e horrendo embuste, que escondia a vida e a<br />
morte. Tal certeza intensificou, <strong>de</strong>cuplicou os seus sofrimentos físicos. Gemia,<br />
remexia-se, empurrava as cobertas que o incomodavam, o abafavam. E odiava<br />
todos os que o cercavam.<br />
Deram-lhe uma dose forte <strong>de</strong> ópio e ele adormeceu, mas, na hora do jantar,<br />
tudo recomeçou. Enxotou todos do quarto e entrou a se <strong>de</strong>bater no divã.<br />
Praskóvia Fiódorovna acercou-se <strong>de</strong>le e disse:<br />
— Jean, meu querido, faça isto por mim. Não po<strong>de</strong> lhe fazer mal e até muitas<br />
vezes alivia. Mesmo as pessoas sas...<br />
Ele arregalou os olhos:<br />
— O quê? A extrema-unção? Para quê? Não, não é preciso. Todavia...<br />
Ela rompeu em pranto.<br />
— Faz, meu querido? Eu vou mandar chamar o nosso padre. Ele é tão bom!<br />
— Está bem. Man<strong>de</strong>.<br />
Veio o padre e ouviu a confissão. <strong>Ivan</strong> <strong>Ilitch</strong> relaxou-se, sentiu como que um<br />
atenuamento das suas dúvidas e, conseqüentemente, dos seus sofrimentos.<br />
Baixou sobre ele um pequenino raio <strong>de</strong> esperança e entrou a pensar no ceco e<br />
nos meios <strong>de</strong> curá-lo. Comungou com os olhos cheios <strong>de</strong> lágrimas.<br />
Quando <strong>de</strong> novo o <strong>de</strong>itaram, após a comunhão, mostrou-se aliviado por uns<br />
instantes e reacen<strong>de</strong>u-se nele a pequena chama da esperança. Começou a<br />
pensar na operação que lhe haviam aconselhado. “Viver! Eu quero viver!”,<br />
gritava intimamente.<br />
A mulher veio felicitá-lo, disse as costumeiras palavras e acrescentou:<br />
— Está se sentindo melhor, não está?<br />
— Sim — confirmou ele, sem olhá-la.<br />
Seu vestido, seu porte, sua fisionomia, o tom da sua voz, tudo lhe dizia: “Não é<br />
nada disto. Tudo aquilo pelo que você viveu, e ainda vive, é falsida<strong>de</strong>,