Tempo profundo e questões cognitivas Como podemos ... - Unicamp
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EH003 FILOSOFIA E ENSINO DE CIÊNCIAS<br />
O exemplo da montagem histórica: tempo <strong>profundo</strong><br />
Parte II<br />
<strong>Tempo</strong> <strong>profundo</strong> e <strong>questões</strong> <strong>cognitivas</strong><br />
Estudos sobre a aprendizagem do tempo geológico usualmente se remetem a um<br />
de dois campos complementares: estudos baseados em eventos e estudos baseados em<br />
lógica. Estudos dedicados a eventos voltam-se para descrever como os estudantes<br />
entendem fenômenos e processos da história da Terra (p.ex., origem da Terra, origem da<br />
vida). 1 Essa abordagem contrasta com estudos apoiados na lógica. Estes tratam de<br />
processos cognitivos nos quais os estudantes devem resolver problemas envolvendo<br />
tempo geológico. Exploram o pensamento relacional e buscam revelar que o tempo não<br />
existe como algo em si, mas trata-se de uma correlação de relações entre eventos e<br />
objetos postos diante do observador.<br />
Dessa forma, <strong>podemos</strong> concluir que raciocinar usando o tempo geológico é uma<br />
habilidade cognitiva para determinar relações temporais entre eventos. Isso permite<br />
construir uma representação de mudanças. Ao usar estratos geológicos como unidades<br />
de tempo, <strong>podemos</strong> ordenar relativamente eventos do mesmo modo que ordenamos<br />
fatos no tempo. Torna-se possível reconstruir a transformação ambiental marcada pelo<br />
estrato.<br />
<strong>Como</strong> <strong>podemos</strong> conceber o tempo <strong>profundo</strong>?<br />
Ele pode ser imaginado como uma combinação de estruturas diferentes.<br />
Esquematicamente há um entendimento temporal passivo e outro ativo. Na estrutura<br />
temporal passiva ocorrem eventos longos do planeta ou da vida. Ou seja, foram<br />
construídos nexos entre eventos e tempo. Isso opera com associações em rede nas quais<br />
um sistema temporal desenvolve informações e as localiza no tempo, p.ex.: vínculos<br />
entre férias e estações do ano. A localização do evento no tempo é baseada no<br />
conhecimento.<br />
O segundo é o entendimento ativo e lógico do tempo. Serve para reconstruir<br />
eventos e organismos do passado, apóia-se em uma série de princípios. Trata-se do<br />
entendimento lógico do tempo.<br />
1 As estratégias de pesquisa freqüentemente combinam entrevistas e exercícios, algumas vezes utilizam<br />
figuras que representam eventos e buscam estimular o pensamento sobre cronologia.
EH003 FILOSOFIA E ENSINO DE CIÊNCIAS<br />
Apoiando-se nesse segundo conceito, é possível reconstruir as mudanças que<br />
afetaram uma assembléia fóssil durante a seqüência de processos deposicionais em um<br />
sistema (uma bacia sedimentar). Trata-se de um modelo de pensamento diacrônico: as<br />
transformações são representadas em um modelo de tempo e esse pensamento<br />
diacrônico precisa ser aplicado a cenários especializados como aqueles que envolvem as<br />
estruturas do processo geológico de sedimentação.<br />
As tarefas relacionadas ao tempo <strong>profundo</strong> envolvem a habilidade de reconstruir<br />
sistemas terrestres tais como ambientes deposicionais, seqüências de fósseis, etc. que se<br />
desenvolveram durante o tempo. Isso implica uma estrutura organizativa do<br />
entendimento, ou seja, trata-se de usar um modelo de pensamento diacrônico. É uma<br />
espécie de quebra-cabeças que inclui relações causais para explicar as transformações<br />
ocorridas que se acham fixadas na distribuição de rochas, minerais e estruturas.<br />
Mas quais são as fontes dessa forma particular de pensar?<br />
Três fontes de conhecimento acham-se na origem dos esquemas cognitivos que<br />
propiciam construir a idéia de tempo <strong>profundo</strong>: (1) Conhecimento empírico.<br />
Conhecimento de transformações. Obtido da experiência pessoal bem como da<br />
influência de representações culturais específicas. (2) Conhecimento organizacional.<br />
Entendimento de dimensões e relações causais. As dimensões incluem: números, idéias<br />
espaciais e temporais. (3) Conhecimento axiológico. Conhecimento de transformações<br />
apoiado em um sistema de valores. Isso permite julgar de alguma coisa está em<br />
progresso.<br />
Aceitando essas fontes, elas podem tornar-se alvos de investigação específica<br />
para identificar sua presença ou ausência em grupos de alunos ou grupos de pessoas.<br />
Essas fontes conduzem aos sistemas diacrônicos com os quais as pessoas<br />
precisam operar para entender o que ocorreu na natureza no passado.<br />
Os sistemas diacrônicos precisam ser imaginados em cenários específicos. O que<br />
compõem esses sistemas?<br />
− Transformação. A idéia de mudança depende da transferência de<br />
informação do presente para o passado. Isso permite reconstruir e comparar<br />
assembléias de organismos vivos e assembléias de fósseis.<br />
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− Organização temporal. Princípios lógicos que possibilitam estabelecer<br />
relações entre estratos e servem para determinar a organização temporal.<br />
Inclui princípios: superposição, correlação, horizontalidade.<br />
− Sucessão e fenômenos evolutivos. Trata-se da reconstrução de estágios<br />
por meio da combinação de transferência de informação no tempo e<br />
pensamento causal.<br />
− Síntese dinâmica. Resultado de articulação dos esquemas anteriores para<br />
construir o elemento interpretativo e hipotético que pode ser sucessivamente<br />
examinado.<br />
Destruindo os limites do tempo<br />
A construção da história da Terra teve aspectos que ultrapassam muito a ideia<br />
comum de que há um conflito ocasional entre ciência e religião. Os dados empíricos<br />
sugerem que foi elaborada uma nova forma de pensar sobre o mundo natural. No<br />
período entre 1780 e 1830, se aceitou a ideia de estabilidade e segurança das leis<br />
naturais, a criação do mundo foi considerada um fato único mas em seguida toda a<br />
natureza funcionou com ordem e regularidade.<br />
Houve a construção de um modo histórico de analisar o mundo natural. Duas<br />
fontes apoiaram esse construto. Primeiro, ideias, conceitos e métodos de analisar<br />
evidências e reconstituir o passado foram transpostas do mundo humano para o mundo<br />
da natureza. Naturalistas frequentemente adotaram metáforas tais como: documentos e<br />
arquivos da natureza, moedas e monumentos, anais e cronologias. A segunda fonte,<br />
talvez menos rica em dados empíricos, foi historicizar a natureza, foi adotada a noção de<br />
a natureza tem uma história própria. A natureza não foi considerada apenas o habitat do<br />
mundo humano, de fato, houve uma projeção do mundo humano sobre a natureza. De<br />
certo modo, isso é profundamente religioso: a presença divina está na natureza de modo<br />
análogo à presença divina em Cristo. Logo se pode identificar o bem e o mal na história<br />
da natureza.<br />
A historização da Terra, na época em que apareceu a Geologia como ciência<br />
moderna, rapidamente se estendeu a outros campos do mundo natural sobretudo<br />
propagou a concepção histórica para os organismos vivos.<br />
A história de duas bacias sedimentares foram marcantes na elaboração da ideia<br />
de tempo geológico: Bath e Paris. A bacia de Paris foi investigada e descrita por<br />
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Georges Cuvier e Alexandre Brongniart (1770-1841). De fato, essa colaboração foi<br />
fundamental, evidências de Cuvier (fortemente anatômicas) vinham de sua experiência<br />
de campo feita junto com o mineralogista Brongniart. Eles levantaram o que foi<br />
denominado Bacia de Paris: sequência complexa de formações de rochas, algumas ricas<br />
em fósseis. Seus métodos foram similares aos adotados por William Smith (1769-1839),<br />
mas eles transformaram o uso estratigráfico dos fósseis. Os franceses não trataram os<br />
fósseis como característicos de cada formação, mas como diagnósticos de condições<br />
ambientais específicas. Eles trataram a região em torno de Paris em termos históricos:<br />
reivindicaram a ocorrência de períodos tranquilos, alternados a agitados, interpretaram a<br />
existência de lagos, lagoas, etc. Mudanças rápidas e ocasionais do ambiente foram<br />
responsáveis por mudanças abruptas observadas nas rochas.<br />
Cuvier e Brogniart reconheceram que sua pesquisa na Bacia de Paris tinha papel<br />
crucial na reconstrução da história global. As formações rochosas em torno de Paris<br />
eram mais antigas do que os depósitos superficiais. Nestas Cuvier identificou ossos<br />
fósseis de mamíferos extintos, estas rochas eventualmente haviam escavado canais nas<br />
rochas mais antigas. Os canais grosseiros cortavam a camada de Chalk 2 , até então<br />
considerada a rocha mais jovem, com seus fósseis da era Secundária.<br />
Cuvier emprestou conceitos estabelecidos pela Geognose, a ciência das<br />
estruturas e formações de rochas, o que mais tarde foi denominado Estratigrafia.<br />
Em Ossos fósseis (1817), Cuvier resumiu o trabalho iniciado no século anterior.<br />
Primeiro publicou seu Reino animal em quatro volumes no qual revisou toda a<br />
classificação dos animais vivos por meio de anatomia comparada. Depois voltou seu<br />
interesse para ossos fósseis.<br />
Cuvier visitou a Inglaterra pela primeira vez em 1818. Encontrou-se com Joseph<br />
Banks (1743-1820), Presidente da Royal Society. Estudou ossos fósseis em museus<br />
britânicos – espécimes inacessíveis na época das guerras napoleônicas. Em Oxford, se<br />
reuniu com William Buckland (1784-1856). Depois da visita, suas impressões foram<br />
registradas por um amigo: os anatomistas e naturalistas ingleses não conhecem bem<br />
Zoologia ou Anatomia comparada, não alcançam o rico acervo que dispõem e suas<br />
coleções em museus, suas instituições científicas são quase nada, o governo favorece<br />
somente a arte de fazer dinheiro.<br />
2 Reconhecido estratigraficamente como Grupo Chalk corresponde a calcários europeus do Cretáceo.<br />
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EH003 FILOSOFIA E ENSINO DE CIÊNCIAS<br />
Depois da viagem a Inglaterra, Cuvier revisa seu discurso preliminar e valoriza<br />
especialmente a história humana. O volume sobre a geologia da Bacia de Paris mostra<br />
detalhamento estratigráfico feito por Brongniart e revela a importância da distribuição<br />
das formações rochosas (Chalk e seus equivalentes). Isso propiciou que outros geólogos<br />
começassem a distinguir o Terciário. Foi tornando-se claro que o Terciário era uma<br />
janela que conduzia ao mundo familiar do presente, muito diferente do tempo <strong>profundo</strong><br />
muito mais estranho que caracterizava as formações da Era Secundária.<br />
O trabalho de Brongniart sobre as formações do Terciário permitiu detalhar os<br />
estudos de Cuvier sobre os vertebrados dessa era. Cuvier exemplifica um eloquente caso<br />
de tratamento da Geologia como ciência histórica. Fez com que o tempo crescesse<br />
(adensasse) para atrás do presente conhecido.<br />
Cuvier identificou ossos de crocodilos nos dois lados do Canal da Mancha.<br />
Muitos fósseis achados por Cuvier vieram da camada da era Secundária que foi<br />
denominada Lias por William Smith.<br />
Smith era um geonóstico, isso conduziu a enfatizar a ordem das formações que<br />
foram mapeadas. Quando foi publicado o mapa geológico de Smith (1815), Brongniart e<br />
Cuvier tinham produzido um mapa semelhante da Bacia de Paris, estes denominaram<br />
seu documento de carta geognóstica. A estratigrafia de Smith não poderia substituir a<br />
antiga prática da Geognose porque era limitada às áreas das formações Secundárias e<br />
Terciárias nas quais as rochas continham fósseis. Portanto a ciência geognóstica<br />
continuou florescendo e em algum momento se transformou em práticas modernas de<br />
tectônica e geologia de rochas ígneas e metamórficas.<br />
Logo depois das guerras napoleônicas, geognose era basicamente uma ciência<br />
estrutural que recebia atenção do naturalista prussiano Alexander Humbold (1769-<br />
1859). A expedição de Humbold pela América Latina e outras grandes viagens fizeram<br />
dele um naturalista bem qualificado para comparar formações em escala global. Suas<br />
conclusões foram publicadas em 1822 em um longo artigo do Dicionário de Ciências<br />
Naturais (editado em Paris).<br />
Conferência proferida em Berlin em 1809 “Sobre o conceito de formação” por<br />
Leopold von Buch (1774-1853). Humboldt manteve que a característica essencial de<br />
uma formação independente é sua relação espacial e o lugar que ela ocupa na série geral<br />
de estratos (terrenos).<br />
Em 1823 surgiu uma estratigrafia internacional. O mapa geológico da Europa de<br />
Conybeare e Phillips cristalizou um projeto internacional de pesquisa.<br />
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Ami Boué (1794-1881) estudou sob Robert Jameson em Edimburgo. Ficou<br />
conhecido pelo texto em francês comparando rochas vulcânicas da França e da Escócia.<br />
Boué listou as rochas estratificadas ou netunistas (hoje, chamaríamos rochas<br />
sedimentares) em colunas paralelas, uma para cada região. Em outra coluna, listou<br />
rochas não estratificadas ou rochas ígneas que pareciam ter sido formadas no mesmo<br />
período. Boué aceitou implicitamente que rochas, tais como os granitos, deviam ter se<br />
formado em algum período da história da Terra e não eram obrigatoriamente Primárias.<br />
Atividade vulcânica e formação de rochas ígneas ocorreriam em altas temperaturas em<br />
locais profundidos da Terra, isso deve ter sido uma característica constante da história<br />
ou, pelo menos, se repetiu em distintos eventos, de outro lado, as camadas sedimentares<br />
devem ter se formado na superfície.<br />
O estudo da história da vida por meio de fósseis ajudou a formar a ideia de uma<br />
sequência temporal na qual os humanos apareceram depois de outros mamíferos, estes<br />
depois dos répteis. A sucessão indicava tipos mais altos de organização, ou seja,<br />
implicou direcionalidade da história dos quadrúpedes e na história da vida.<br />
Brongniart ajudou Anselme-Gaëten Desmarest (1784-1838) desenvolver seus<br />
trabalhos e relacioná-los ao estudo das trilobitas. As lagostas e caranguejos do Terciário<br />
e Secundário estudados por Desmarest eram muito menos estranhos do que as trilobitas<br />
de Brongniart. Werner havia inserido uma categoria de transição entre o Primário e o<br />
Secundário formada por conglomerados, grauvacas e com poucos fósseis. Essas rochas<br />
de transição permaneceram obscuras: os fósseis eram mal preservados, as rochas<br />
estavam dobradas, apesar disso, havia exceções: em poucos lugares, rochas eram<br />
claramente mais antigas do que o Carbonífero e, portanto, foram definidas como Pré-<br />
Secundário. Nesse tipo encontravam-se os trilobitas de Brongniart.<br />
Um segundo exemplo desse particular grupo de invertebrados fósseis foi<br />
detalhado por John Samuel Miller (1779-1830). Miller era de Danzig (Prússia) – onde<br />
hoje é Gdansk, Polônia – mas fixou-se em Bristol. Ele denominou seus fósseis de<br />
Crinoidea. Embora os crinóides eram reconhecidos devido a espécies atuais (ouriços do<br />
mar, estrelas do mar, etc.), foram reconhecidos como um exemplo espetacular de fóssil<br />
com sua simetria característica. Esses fósseis foram muito comuns nos calcários do<br />
Secundário. Sua ampla variedade indicava que estavam extintos. Encorajado pelo<br />
sucesso de seus estudos, Miller passou a estudar os belemites do Secundário. Foram<br />
tratados como um grupo intermediário entre os náuticos e os moluscos (lulas, etc.)<br />
ambos pertencendo ao que Cuvier denominou cefalópode. Os belemides floresceram em<br />
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EH003 FILOSOFIA E ENSINO DE CIÊNCIAS<br />
um longo período de tempo tanto que Miller supôs que eles se tornaram extintos no fim<br />
do Secundário (Miller estava estudando belemides do Triássico).<br />
Adolphe Theodore (1801-76), filho de Alexandre Brongniart, com 21 anos de<br />
idade apresentou à Academia o Sobre a classificação e distribuição estratigráfica de<br />
fósseis de plantas. Neste trabalho usou uma linguagem histórica e combinou Geologia e<br />
Botânica, expôs sua matéria por épocas da história da natureza. Deu importância às<br />
formações do Terciário, reconheceu que o Terciário foi um janela para estudos mais<br />
<strong>profundo</strong>s. Mas também descreveu fósseis da formação do Carvão. Ele concebeu que<br />
isso devia indicar um antigo clima tropical, mas indicou diferenças na flora tropical;<br />
fósseis similares achados em minas de carvão na Índia e Austrália sugeriram que houve<br />
um clima global mais uniforme do que o do presente.<br />
A abordagem das plantas fósseis feita por Adolphe Brongniart foi análoga a de<br />
Cuvier. Inicialmente foi um estudo de espécimes em gabinete para classificar e<br />
reconstituir seu lugar na história. Complementado por estudos de campo que serviram<br />
para construir o modo de vida da planta, o que em termos modernos denominamos<br />
Paleoecologia.<br />
Na viagem de Cuvier à Inglaterra, em 1818, Buckland mostrou a ele fósseis<br />
particulares que não haviam sido claramente classificados. Um era um dente chato que<br />
Cuvier logo reconheceu tratar-se de um réptil cuja posição estratigráfica (base da<br />
camada de oólitos de calcário) não era surpreendente. Cuvier contou para Buckland que<br />
se tratava de um enorme lagarto. Desde que tinha interpretado um animal da formação<br />
Chalk em Maastricht como um grande lagarto marinho esperava encontrar outros<br />
espécimes, por isso sugeriu que Buckland investigasse a pedreira de Stonesfield para<br />
encontrar espécimes melhores que permitissem uma classificação mais definida.<br />
Somente em 1824, depois de muito atraso, foi divulgado o artigo de Buckland à<br />
Geological Society com o título Megalossauro. A partir do dente achado comparado aos<br />
dentes de lagartos atuais, foi calculado que o animal do Secundário deveria ter cerca de<br />
12 m de comprimento.<br />
Na mesma época, Algernon Mantell (1790-1852) que era médico, despertou seu<br />
interesse por antiquários e história local. Mantell ganhou um aluno e amigo. Charles<br />
Lyell viveu em Hampshire embora fosse das highlands escocesas, mas durante três anos<br />
seguiu os cursos de Mantell em Oxford. Mantell contou a Cuvier que pretendia chamar<br />
o animal cujos dentes foram achados de Iguanossauro, mas Conybeare chamou<br />
simplesmente de Iguanodom.<br />
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Os estudo de Cuvier sugeriam que não existia mamíferos antes do Terciário. De<br />
fato, boa parte das descobertas de fósseis do Secundário era de répteis, com o tempo e<br />
as descobertas de grandes répteis (lagartos, crocodilos, etc.) só reforçava essa ideia. Mas<br />
quando fez sua primeira visita a Inglaterra, Buckland mostrou um maxilar da formação<br />
Chalk. Cuvier interpretou que era dente de mamífero. Então, o exemplar achado na<br />
pedreira de Stonefield permaneceu como exceção.<br />
Constant Prévost (1787-1856), aluno de Brongniart, foi mandado a Inglaterra<br />
para estudar as formações do Secundário que fossem equivalentes às do norte da França.<br />
Prévost estava bem qualificado para atividade de campo. Cuvier, posteriormente, já com<br />
a presença de Prévost, confirmou que o dente enigmático de Buckland era de um<br />
mamífero e, de fato, detalhou a interpretação, tratava-se de um marsupial. Cuvier<br />
achava esse fato extraordinário.<br />
Prévost achou uma evidência mais difícil de ser considerada ad hoc. Prévost não<br />
estava pronto para questionar a autoridade de um grande anatomista, mas em<br />
estratigrafia sua posição era outra. Tendo visitado Stonefield, considerou que a posição<br />
das camadas de Oólito estava em aberto, de fato, ele pensou que elas seriam sedimentos<br />
mais jovens assentando-se sobre mais antigos. Esse ceticismo sobre a estratigrafia foi<br />
muito bem vindo para os geólogos ingleses. As dúvidas de Prévost foram logo<br />
esquecidas e outros geólogos adotaram a visão de Cuvier de que se tratava de uma<br />
pequena anomalia e que a Era Secundária era a época dos grandes répteis.<br />
A pesquisa sobre o Dilúvio de Buckland recebeu forte impulso depois da<br />
descoberta da caverna Kirkdale em Yorkshire. Lá se acha grande quantidade de ossos<br />
fósseis. Combinando o contexto e o material achado, Buckland elaborou a história da<br />
hiena – exposta em 1822 na Royal Society. Interpretou a caverna como um antigo<br />
esconderijo de hienas extintas, lá elas deixavam restos de sua dieta composta de vários<br />
tipos de animais (mamutes, ratos, etc.). Ancorou o ecossistema dentro da história.<br />
Defendeu que a caverna havia sido habitada em tempo recente e que as hienas não<br />
poderiam ter sido extintas muitos milênios atrás (tempo compatível com a datação de<br />
Ussher do Dilúvio, 2348 anos). A descoberta da caverna deu acúmulo de dados para<br />
apoiar a teoria de um dilúvio recente. Dessa forma, a fama de Buckland cresceu e não<br />
ficou limitada ao Reino Unido. Seu livro Relics of the Deluge foi uma obra de ciência<br />
popular. Buckland recomendou a seus críticos que lessem James Hall. O trabalho do<br />
amigo de Hutton reconstruiu violentas correntes em Edimburgo explicadas por analogia<br />
com modernos tsunamis.<br />
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EH003 FILOSOFIA E ENSINO DE CIÊNCIAS<br />
A análise de ossos feitas por Buckland conduziu a reforçar o argumento de que<br />
houve um dilúvio recente e, então, poderia ter sido o dilúvio bíblico. O argumento<br />
manteve ressonância no contexto britânico. No ambiente continental, o argumento não<br />
era levado a sério ou deixava as pessoas confusas. Críticos de Buckland mostraram que<br />
há pelo menos dois componentes que Buckland trata em conjunto mas deveriam ser<br />
vistos separadamente na teoria do dilúvio. Primeiro, pode ter tido um evento geológico<br />
excepcional no passado recente, provavelmente foi um mega tsunami. O segundo, o<br />
dilúvio bíblico foi tão recente que não seria possível manter os animais na Arca e,<br />
dentro dessa cronologia, redistribui-los pelo planeta.<br />
Outro seguidor de Cuvier foi John Fleming (1785-1857). Fleming argumentou<br />
que Cuvier tinha sido um anatomista e naturalista, mas não pode reivindicar ter sido um<br />
geólogo. Rejeitou a ideia de que só inundação poderia provocar extinções, defendeu que<br />
mudanças locais também podem. Fez um ataque direto aos geólogos ingleses que fazem<br />
uma união entre Geologia e Revelação. O centro do argumento de Fleming é que as<br />
evidências usadas são locais, que fósseis marinhos desapareceram mas eles já viviam no<br />
mar antes do dilúvio. Os depósitos mencionados deviam ter sido resultado de<br />
fenômenos locais como o ocorrido em 1818 na área alpina de Val de Bagnes, de onde<br />
Von Buch desenvolveu o conceito de mega tsunami e corrente de turbidez.<br />
Fleming defendeu um método heurístico para penetrar cada vez mais no passado<br />
a partir do presente conhecido – o que já havia sido empregado um século antes por<br />
Démarest e outros pensadores.<br />
A pesquisa de Cuvier, como de outros pensadores com interesse na história da<br />
natureza, tinha adotado um método padrão ao usar o presente como chave primária para<br />
entender o passado. Sua identificação de ossos fósseis como pertencentes a espécies<br />
distintas das conhecidas atualmente e sua inferência de extinção em massa como a<br />
última revolução, foram derivadas de rigorosa comparação de ossos fósseis e aqueles de<br />
animais vivos. O que gerou mais controvérsia foi a extensão dos eventos no passado<br />
para explicar processos observáveis. O caso clássico foi da origem dos vales, muitos dos<br />
quais foram escavados por massas não perturbadas de rochas. Desde o trabalho pioneiro<br />
de Desmarest sobre os vulcões extintos d’ Auvergne, sua inferência de que os vales<br />
foram escavados pela ação lenta das correntes e rios que fluem até hoje devido a<br />
magnitude do tempo.<br />
Cuvier estava convencido que processos não conhecidos puderam interferir na<br />
extinção dos mamíferos no passado geológico recente. Mas ele ultrapassou esse<br />
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argumento e alcançou a ideia de que processos físicos ativos e observáveis no presente<br />
seriam inadequados para explicar todos os efeitos observáveis. Para justificar este ponto<br />
de vista, Cuvier reviu as causas atuais. O argumento de Cuvier que processos do<br />
presente não são suficientes para explicar o passado <strong>profundo</strong> não foi desafiado. Mas<br />
permaneceu obscuro, p.ex., se grandes correntes de turbidez e o mega tsunami de Von<br />
Buch e Hall podem ser possíveis causas das maiores revoluções da Terra, devemos<br />
considerá-los um tipo diferente ou meramente uma diferença de grau atestada pelos<br />
efeitos de inundações menores. Se o método atualista fosse perseguido como a<br />
estratégia mais efetiva para ciência contribuindo para tratar eventos não observáveis do<br />
passado, necessitaria ser estudado com muito mais profundidade. Cuvier e seus<br />
contemporâneos não se pronunciaram com suficiente clareza sobre o problema<br />
metodológico do mundo antigo.<br />
Dois projetos de pesquisa contrastaram. O primeiro derivou da história que havia<br />
sido formulada na época de Hutton e propagada por Playfair. Para evitar efeitos<br />
acidentais como o Dilúvio e demonstrar a total eficácia de leis da natureza comuns e<br />
ahistóricas, insistiram que os processos do presente explicam todos os traços do<br />
passado. Playfair mais claramente do que Hutton enfatizou a força dos processos<br />
comuns e admitiu tempo suficiente para que atuem. Playfair assinalou a força dos<br />
processos erosivos e sedimentares para produzir os resultados (produtos) observáveis. O<br />
trabalho de Hutton manteve subjacente um deismo.<br />
Uma tradução completa do texto de Playfair foi publicada em Paris (1815) e<br />
equilibrou a crítica à história huttoniana da Terra. O editor rejeitou a observação de<br />
Cuvier de que esta teoria reduziu a Geologia a um espirro da matéria. Pretendia<br />
proporcionar oportunidade para discutir teorias rivais que talvez pudessem conduzir a<br />
uma Ciência da Terra mais satisfatória. Essa história trazia os objetivos causais da terra<br />
física de volta ao debate científico a medida que apresentava argumentos a favor de uma<br />
explicação apoiada em causas reais.<br />
Paradoxalmente o debate sobre causas atuais foi proporcionado por André De<br />
Luc. De Luc insistia na realidade de finas descontinuidades na grande revolução.<br />
Datava o início da existência da luz ligada à história humana, tinha conduzido estudos<br />
sobre causas reais, tinha conduzido investigações com perfeição sobre causas reais e<br />
primeiras causas. Sua crítica a Hutton foi apoiada em trabalho de campo sobre os efeitos<br />
de causas reais incapazes de explicar a história da Terra. Apesar disso, suas observações<br />
foram dirigidas com objetivos teóricos e seus estudos serviram dentro de uma tradição<br />
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de mudanças da geografia física registradas durante a história humana. Os estudos<br />
geonósticos, na época de De Luc, se dedicavam a estudar as formações que se formaram<br />
em vasta medida de tempo como produtos das grandes revoluções, embora esses<br />
eventos pudessem ser ordenados no tempo, sua duração absoluta permanecia incerta.<br />
O texto de Karl Ernst Adolf von Hoff (1771-1837) foi famoso porque incluiu<br />
história na estatística (estatística geográfica paralela). De um lado, caracterizou uma<br />
tradição da estatística nos paises germânicos, mas isso não tinha relação com o sentido<br />
moderno de Estatística dentro do campo da Matemática. De fato, o levantamento<br />
envolveu uma coleção e classificação de informações factuais de todos os aspectos<br />
relevantes para o estado: demografia, educação, comércio, religião, etc. apresentados<br />
em termos quantitativos (quando foi possível) e usualmente organizados em linhas<br />
geográficas. Estatística era uma ciência burocrática, campo do governo, algo que foi<br />
parte da administração das cidades estado alemãs antes da unificação. Em Göttingen<br />
tinha um significado algo diferente porque incorporava a dimensão histórica. O estudo<br />
de von Hoff adotou a ideia de que história era estatística em andamento e estatística<br />
era a história estática. Posteriormente von Hoff transpôs a história para a natureza. O<br />
trabalho de von Hoff foi uma compilação de muitos fatos, foi um inventário descritivo<br />
da geografia física com dimensão histórica, não tentava ser uma compreensão da Terra<br />
física. Assinala-se que von Hoff compilou seu inventário de causas reais e que essa era<br />
uma atividade de exploração geográfica conduzida por todas as nações européias<br />
naquela época. Muitas viagens e explorações tinham primeiramente objetivos<br />
comerciais, mas geraram informações científicas amplas sobre regiões exóticas e<br />
distantes. Isso trouxe amplo conjunto de informações tanto para von Hoff, quanto para<br />
outros pesquisadores.<br />
O método atualista de usar o presente para a mais efetiva chave para o tempo<br />
<strong>profundo</strong> foi adotada por distintos pensadores da época para tratar a nova ciência<br />
histórica geológica. Mas Cuvier havia indicado limites porque causas atuais eram<br />
inadequadas para explicar as maiores revoluções da Terra e, mais especificamente o<br />
que Buckland chamou dilúvio. O argumento inverso de que causas atuais explicavam<br />
todos as marcas de eventos passados foi defendido por Hutton.<br />
Para tentar esclarecer o problema e a controvérsia, foi oferecido um prêmio para<br />
quem apresentasse a geografia física. Von Hoff ganhou o prêmio com seu inventário<br />
que registrou mudanças na geografia física, erupções vulcânicas, terremotos. Trouxe<br />
métodos das ciências sociais – estatística civil – que possuía a dimensão temporal<br />
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adotada pelos historiadores, ou seja, algo do mundo humano para o mundo natural. Esse<br />
trabalho mostrou que efeitos registrados de fenômenos atuais, tais como erosão e<br />
sedimentação, ação vulcânica e sísmica, eram relativamente pequenos na escala do<br />
globo, mas seus efeitos cumulativos ao longo de largas escalas de tempo poderia dar<br />
origem a história da Terra.<br />
O inventário de von Hoff foi puramente descritivo. No período da história<br />
humana, não procurou determinar se o aumento da área emersa de certa linha de costa<br />
era decorrência da sedimentação ou rebaixamento do nível do mar ou, ainda, um<br />
levantamento da superfície de terra. Mas sua compilação certamente propiciou<br />
condições para o debate.<br />
Entre todas as causas, aquelas que foram claramente supostas disseram respeito<br />
aos movimentos da crosta da Terra. A história huttoniana exigia grandes movimentos de<br />
elevação para criar os novos continentes que substituíssem aqueles arrasados pela<br />
erosão. Mas Hutton não conseguiu expor evidências de que esses movimentos estavam<br />
em operação no presente, precisou inferir que esses movimentos seriam muito lentos<br />
para ser percebidos na escala da história humana. Horace-Bénédict de Saussure (1740-<br />
99) na geografia física dos Alpes descreveu enormes dobras nas rochas secundárias e,<br />
contra as ideias da época, concluiu que foram causadas por grandes movimentos da<br />
crosta terrestre ocorridos no passado distante. Isso sugeria que as montanhas não tinham<br />
sido formadas no estado primário mas também em períodos muito posteriores como<br />
resultado de deslocamentos crustais.<br />
Um dos casos bem documentados era relativo à mudança do nível do mar das<br />
costas suecas. Mas seu significado não era claro. Usualmente foi aceito que isso era o<br />
resultado de rebaixamento do nível do mar (eustático).<br />
Andrea di Jorio (1769-1851), um antiquário que vivia em Nápoles, estudou<br />
especificamente uma vertente do Vesúvio. Jorio publicou um guia para turistas para a<br />
área em torno de Pozzuoli (oeste de Nápoles). A área de Flegrei era rica em sítios de<br />
antiquários mas também de fontes quentes e crateras vulcânicas, era uma ligação<br />
importante com causas geológicas atuais dentro da escala de tempo da história humana.<br />
À beira do Pozzuoli havia uma ruína romana conhecida como Templo de Serapis. Três<br />
colunas de calcário foram descobertas em escavação de 1750. Estudos posteriores<br />
mostraram que o templo – hoje perto da costa – foi construído em área seca acima do<br />
nível do mar. Porém, na época de Jorio, o pavimento do Templo de Serapis estava no<br />
nível do mar. As ruínas ofereceram evidência clara de uma sequência complexa de<br />
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mudanças físicas dentro dos limites temporais da história humana. Quando Jorio<br />
publicou seu estudo sobre a região, depois do guia turístico, ele sabia que o assunto era<br />
de grande interesse para época. Esta história física complexa desde o período romano<br />
foi confirmada pela topografia próxima das ruínas. Jorio publicou um mapa revelando<br />
que outras ruínas clássicas estavam dentro do mar, parcialmente submersas no<br />
Mediterrâneo. A própria Serapis foi construída sobre um terraço. Suas colunas<br />
afundaram por um período durante o qual se instalaram os moluscos, depois ela foi pelo<br />
menos cortada por um período de erosão até o presente, enquanto isso o terraço tornou-<br />
se praia.<br />
Scipione Breislak (1748-1826) reconstituiu cuidadosamente os movimentos do<br />
nível do mar em seu estudo mineralógico e geognóstico da Catania (publicado em<br />
francês), indicou quatro épocas. Em 1818, incorporou seu trabalho de campo no terceiro<br />
volume. No contexto de criticar a geoteoria, ele reviu a evidência de abaixamento do<br />
mar em escala global e arguiu que não era bem fundamentada. Considerou, ainda, que a<br />
explicação sísmica dos movimentos da região do Templo de Serapis insatisfatória. Ele<br />
concluiu que as mudanças na região italiana e no Báltico deviam ser movimentos da<br />
crosta terrestre.<br />
Uma controvérsia intensa foi sobre se as causas atuais podem explicar<br />
movimentos da crosta terrestre no período histórico. Era difícil saber se esses eventos<br />
foram episódicos e de grande magnitude no passado <strong>profundo</strong> ou se foram resultado da<br />
soma de pequenos movimentos que devem continuar por meio de pequenos<br />
movimentos. Mesmo nos locais em que o movimento do período histórico era bem<br />
caracterizado, como nas costas do Báltico, era difícil determinar se a terra emergia ou o<br />
mar abaixava e se ocorria algum movimento da crosta no local.<br />
Um membro da Geological Society of London adotou a explicação sobre o<br />
esfriamento da Terra de Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768-1830). George Poulet<br />
Scrope (1797-1876) assistiu aulas de Sedwick e de Edward Daniel Clarke (1769-1822)<br />
em Cambridge. Scrope, mesmo antes de terminar seus estudos, fez inúmeras viagens<br />
pelo maciço central e, logo em seguida, conheceu várias áreas com vulcões (Etna,<br />
Vesúvio, etc.). Quando voltou à Inglaterra tinha substancial informação sobre vulcões<br />
ativos e extintos. Em 1825 publicou seus estudos sobre vulcões nos quais combinou<br />
ampla revisão e substancial informação de campo. O livro de Scrope foi notável por sua<br />
insistência no valor explicativo de causas atuais. Apesar da insistência na força<br />
explicativa de causas atuais, a visão da história de Scrope permaneceu longe do<br />
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pensamento huttoniano que naquela época era muito familiar por causa do livro de<br />
Playfair, ou seja, Scrope não supôs que processos extremamente lentos seriam capazes<br />
de alcançar certa finalidade por meio da repetição de estados similares. Ao invés disso,<br />
sua história fortemente direcional devido ao esfriamento da Terra reivindicou rápidos e<br />
violentos eventos, p.ex., o levantamento em pouco tempo dos Alpes com a ocorrência<br />
de mega tsunamis.<br />
A orientação linear de cordilheiras montanhosas era um tópico importante da<br />
geografia física descritiva. A viagem de Humboldt pela América Latina foi<br />
particularmente significativa. Mas foi Von Buch que alargou o contexto desse assunto.<br />
O desenvolvimento decisivo dessa ideia foi de Léonce Elie de Beaumont (1798-1874).<br />
Em 1823, Elie de Beaumont foi mandado para Inglaterra para estudar métodos de<br />
campo que permitiram construir o grande mapa geológico. Elie de Beaumont aspirou<br />
expandir o conceito de movimentos crustais de Von Buch para toda Europa. Mas mais<br />
importante do que isso, foi incorporar a precisão de Smith baseada nos fósseis para<br />
indicar a datação relativa dos episódios para mostrar os movimentos da crosta de<br />
construção de montanhas.<br />
Elie de Beaumont sustentou que simplesmente havia adotado a ideia de Cuvier<br />
de sucessão de rápidas revoluções, apoiado no registro fóssil, com a cuidadosa<br />
capacidade de captar a distinção entre vários sistemas de rochas dobradas de Von Buch.<br />
Mas de fato, Elie de Beaumont foi muito além disso. Começou seu trabalho listando<br />
quatro casos de limites paleontológicos e estratigráficos que correspondiam a quatro<br />
eventos de dobramento. Destes inferiu quatro revoluções na recente história da Terra:<br />
no fim do Jurássico, no fim do Chalk (ou Cretáceo), no fim do Terciário e os depósitos<br />
superficiais antes do aluvião. O sumário de sua história narrativa é um diagrama teórico<br />
surpreendentemente original com suas evidências e conclusões gráficas.<br />
Elie Beaumont defendeu que sua história estava ligada às explicações físicas de<br />
progressivo esfriamento do globo. Esse era o motor para a história direcional marcada<br />
por revoluções rápidas. O fluido interior ao se esfriar se contrai, a crosta sendo rígida<br />
deve ter períodos de rápido levantamento. Isso deve ter ocorrido repetidamente no curso<br />
da história da Terra.<br />
A compilação de Von Hoff tornou as causas atuais conhecidas. Outros geólogos<br />
adotavam a visão de que o mundo do presente oferecia a melhor chave de entender o<br />
mundo antigo da geohistória, ou pelo menos era o ponto que permitia o início da<br />
investigação. Muitas dúvidas persistiam na possibilidade de causas atuais explicarem<br />
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fenômenos do passado. Mas se o estudo deveria começar pelo presente, o Terciário era<br />
o melhor lugar para começar. Se o Terciário pudesse ser compreendido em termos de<br />
processos que foram observáveis no mundo do presente, essas explicações causais<br />
poderiam avançar para limites mais <strong>profundo</strong>s do tempo. Dessa forma, o Terciário<br />
poderia ser a chave para compreender as formações do Secundário.<br />
Prévost começou a estudar os estratos da Bacia de Paris com maior detalhe,<br />
colecionando os fósseis camada por camada – método que estava se tornando padrão<br />
entre os geólogos. Ele procurou explicar a estratigrafia e evitar o postulado da subida e<br />
abaixamento do nível do mar. Por outro lado, deu especial atenção à identificação do<br />
ambiente sedimentar (águas doces ou marinhas) e a partir de fósseis e das dinâmicas<br />
erosivas mostrou que houve entrada de águas doces no ambiente marinho.<br />
Prévost propôs uma radical reinterpretação dos estratos parisienses. Alcançou a<br />
ideia de que houve variação de episódios marinhos e de águas doces. Estas foram<br />
revoluções repetidas e mudanças súbitas e o nível do mar não precisou ser envolvido. A<br />
camada plástica de argila sobre o Chalk, que Brongniart e Cuvier consideraram como a<br />
primeira marca de água doce do Terciário, tornou-se na visão de Prévost um depósito de<br />
material terrestre que tinha sido trazido pelos rios durante inundações. O calcário<br />
grosseiro sobrejacente com sua abundante fauna marinha marcou o final de um período<br />
de deposição verdadeiramente marinha. Prévost apresentou à Academia... grande<br />
volume de dados geológicos. Fez o movimento do presente para o passado, do<br />
conhecido para o desconhecido. Tentou mostrar como comparações atualistas podiam<br />
explicar muito mais coisas do que Brongniart e Cuvier acreditavam ser possível.<br />
Prévost rejeita que os continentes submergiram diversas vezes. Usando dados de<br />
campo defendeu que podiam ser explicados pelo recuo do mar uma única vez,<br />
transformando a região em um golfo, em lagoa e então em lago de águas doces e,<br />
finalmente, dando lugar à terra firme. As anomalias seriam explicadas por misturas e<br />
rápidas alternâncias desses ambientes. Perseguiu um caminho analítico ou filosófico do<br />
conhecido para o desconhecido. Fez conjecturas heurísticas a partir do que era<br />
conhecido por Cuvier.<br />
Prévost tomou a situação atual do Canal da Mancha para ilustrar a Bacia de Paris<br />
no Terciário, ou seja, como ela devia ter sido em sua fase marinha. Arguiu que as águas<br />
do Sena eram turvas durante as cheias e deviam depositar argila e silte no fundo do<br />
Canal perto da costa francesa enquanto, do outro lado, predominava a erosão do Chalk e<br />
depositava conglomerados, seixos. O ponto central é que as formações deveriam ter<br />
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limites laterais porque se depositam em condições específicas e locais, seus fósseis<br />
devem refletir essas circunstâncias.<br />
O raciocínio empregado por Prévost é tipicamente interpretativo e filosófico. Ele<br />
cogita sobre o presente, infere o futuro e usa o possível produto para prever o passado.<br />
Trata-se de um raciocínio hipotético e hermenêutico. Esse procedimento das<br />
humanidades é expandido para explicar o registro deixado nas estruturas rochosas e no<br />
seu conteúdo fossilífero.<br />
Cuvier permaneceu como referência para estudos sobre a recente revolução dos<br />
organismos. Não era um repetidor da Bíblia, mas identificou eventos geológicos como o<br />
dilúvio (registrado em muitas culturas antigas). Dessa forma, Buckland (talvez o mais<br />
ardente seguidor de Cuvier) manteve-se como um anglicano, repudiou qualquer<br />
liberalismo diante do Gênesis, foi muito mais literal do que Cuvier na interpretação<br />
sobre a grande Enchente e suas evidências físicas.<br />
Na sua viagem pela Europa em 1826, Buckland cruzou a França e em<br />
Montepellier se reuniu com o advogado Marcel Pierre Toussaint de Serres de Mesplès<br />
(1780-1862). Serres estudava as formações do Terciário e os fósseis de sua região.<br />
Tratava-se do mundo de fósseis antediluvianos de Buckland.<br />
Buckland seguiu a ideia de Cuvier de que só rápidas mudanças físicas poderiam<br />
extinguir toda a fauna de animais bem adaptadas, ou seja, uma extinção em massa teria<br />
sido causada por uma violenta inundação ou rápida mudança climática. A associação<br />
com o Dilúvio bíblico era rápida e especialmente esse ponto foi criticado por outros<br />
naturalistas, dentre estes se destacou Fleming. Este indicou que os restos dos animais do<br />
dilúvio sugerido foram encontrados em materiais aluviais, para ele isso indicava que<br />
essas espécies haviam sobrevivido e coexistiram na época dos humanos. Advogou que<br />
as extinções haviam sido causadas pela caça de homens antigos, talvez aceleradas por<br />
mudanças no ambiente incluindo mudanças climáticas. Isso foi considerado comum e<br />
atualista. Fleming extrapolou a interpretação de registros a partir de extinções históricas<br />
locais – como os lobos britânicos caçados nas florestas. Dessa forma, seu raciocínio não<br />
dependeu de extinção drástica produzida pelo Dilúvio, mas era um resultado gradual e<br />
não inteiramente devido à chegada da espécie humana nos locais onde houve extinção.<br />
Os principais membros da Geological Society em Londres procuraram rejeitar as<br />
críticas de Fleming. Mas os naturalistas escoceses tomaram-nas como algo importante.<br />
Cuvier e outros pensadores lutaram para reconhecer as extinções como uma<br />
característica real do mundo e pareceu natural atribuir a mudança a um evento decisivo.<br />
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Entretanto, Fleming reconheceu que ali devia haver muitos passos até a extinção, ou<br />
seja, uma gradual redução de números em certa área geográfica. Lobos ou ursos foram<br />
extintos das Ilhas Britânicas, mas não no resto da Europa. O modelo de extinção de<br />
Fleming era um processo gradual e fragmentado, seria uma explicação natural ou quase<br />
natural e as atividades humanas seriam inseridas na natureza sem qualquer necessidade<br />
de advogar eventos excepcionais tais como o suposto dilúvio.<br />
Bibliografia sugerida para aprofundamento<br />
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Science Education, v.87, p.708-731, 2003.<br />
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ROSSI, Paolo. Francis Bacon: de la magia a la ciencia. Tradução por Susana Gómez<br />
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São Paulo: Editora da UNESP, 1992. 389p.<br />
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