Diferentes heróis, Diferentes caminhos - Leia Brasil
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Elaine Cristina R. Gomes Vidas * Eliana Yunes * Maria Clara Cavalcanti de Albuquerque *<br />
Marina Colasanti * Maria Aparecida da Silva Ribeiro * Regina Zilberman * Sueli de Oliveira Rocha<br />
reconcilia o protagonista com a bailarina, pois ambos<br />
são, de fato, destruídos. Assim, o texto contradiz um<br />
estereótipo: não apresenta um final feliz; contudo,<br />
ninguém afirmaria que não é adequada à criança ou<br />
que não se trata de literatura infantil.<br />
Profundamente inventiva, a história do bravo<br />
soldado apaixonado pela inatingível bailarina – símbolo<br />
de um ideal a ser sempre perseguido, por pior<br />
que seja a situação pessoal do indivíduo – representou<br />
um marco na trajetória do gênero a que seu criador<br />
acabou por se engajar. E sua leitura hoje ressalta<br />
uma vez mais o selo de originalidade que, desde seu<br />
nascimento, a narrativa contém.<br />
A roupa nova do imperador aponta para outro<br />
lado do fazer artístico de Andersen. Aproximandose<br />
à fábula, a história quer ensinar algo, ao narrar as<br />
desventuras públicas causadas a um rei vaidoso que<br />
descura dos negócios do Estado para dar atenção tão<br />
somente à aparência pessoal. Antes de tudo, denuncia<br />
o comportamento de governantes e governados,<br />
sobretudo os primeiros, preocupados exclusivamente<br />
com eles próprios e lutando para conservar cargos e<br />
vantagens, ainda que isso lhes custe a honestidade<br />
60<br />
e os princípios éticos. Os outros não querem passar<br />
por bobos, tratando de manter a imagem externa que<br />
acreditam ter conquistado. O resultado é uma mentira<br />
coletiva contaminando a sociedade: essa é governada<br />
por um mau rei, porque é tão vaidosa quanto<br />
ele. Assim como o chefe do Estado, aceita a falsidade,<br />
legitimando os atos condenáveis e, portanto, perdendo<br />
o direito à reclamação. Mesmo porque não teria a<br />
quem se queixar: todos são coniventes com a trapaça,<br />
a não ser os dois vigaristas, que ficam imunes dada a<br />
situação irregular generalizada.<br />
A crítica de Andersen é amarga, mas oferece uma<br />
saída por meio da ação da criança, que desmascara a<br />
farsa. O menino, portador da “voz da inocência” ausente<br />
do grupo, recupera a honestidade perdida, e sua<br />
ação contagia a comunidade: após seu grito de alarme,<br />
os outros vão se conscientizando da falcatrua, e<br />
esta sobe à tona. A sociedade purga o mal cometido,<br />
deixando o imperador solitário, entregue a si mesmo:<br />
em seu lugar reina agora um garoto, responsável pela<br />
regeneração coletiva.<br />
O conto, como uma fábula, oferece ao leitor<br />
uma lição. Contudo, o aprendiz agora é o adulto,<br />
não a criança, pois é ela o elemento deflagrador da<br />
rebeldia que desmascara o rei. A conclusão parece paradoxal,<br />
já que estamos perante um texto dirigido ao<br />
público infantil. Nem por isso, entretanto, deixa de<br />
manter-se fiel às características do gênero.<br />
Em primeiro lugar, não apenas o menino percebe<br />
que o rei está sendo enganado; o narrador também<br />
está ciente disso e revela a verdade desde a abertura do<br />
conto. Portanto, igualmente o leitor fica conhecendo<br />
tanto o caráter do imperador e seus súditos, como a<br />
vigarice preparada pelos dois trapaceiros. Num texto<br />
de literatura infantil, esse leitor só pode ser uma<br />
criança, de modo que a verdade circula naturalmente<br />
nas pessoas dessa faixa etária. O narrador não poderia<br />
proceder de maneira semelhante, se o texto fosse<br />
destinado apenas aos adultos, pois é a honestidade e<br />
a inocência da infância o que ele busca. Eis por que,<br />
numa primeira instância, o conto deve ser lido para e<br />
pelas crianças.<br />
Além disso, o autor deseja preservar aquelas virtudes<br />
entre seus destinatários, de um lado, para que,<br />
quando crescerem, possam impô-las à sociedade. De<br />
outro, para que os meninos sirvam de exemplo aos<br />
Para ler Andersen<br />
61<br />
maiores. Este aspecto é muito importante, porque resulta<br />
de uma inversão: até então, a literatura infantil<br />
fornecia modelos de comportamento aos pequenos,<br />
tomando os adultos como marco. Andersen procede<br />
a uma troca: a criança é que oferece o exemplo a ser seguido,<br />
mesmo quando arrisca tomar uma atitude dessacralizadora<br />
que pode desagradar aos mais velhos.<br />
Com isso, seu ângulo é reforçado: ela não precisa introjetar<br />
a moral da história (isso compete aos adultos),<br />
mas pode descobrir que seus atos espontâneos<br />
são válidos. Ainda que esses cheguem a resultados<br />
imprevistos, mostram-se melhores que as ações dos<br />
adultos, corrompidos pela hipocrisia das aparências.<br />
Não por acaso a história do imperador que se<br />
viu nu e envergonhado perante os subordinados ultrapassou<br />
os limites do livro e instalou-se no cotidiano<br />
dos atos mais triviais de todos nós. Nem por<br />
isso ela é menos importante enquanto literatura para<br />
crianças, porque escrita desde a perspectiva dos pequenos<br />
leitores e a seu favor.<br />
Outro imperador protagoniza um conto de<br />
Andersen: governando riquíssimo território, a personagem<br />
central de “O rouxinol e o imperador” não