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GÊNESE DO PENSAMENTO ÚNICO EM EDUCAÇÃO ... - UFF

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LUIZ FERNAN<strong>DO</strong> CONDE SANGENIS<br />

<strong>GÊNESE</strong> <strong>DO</strong> <strong>PENSAMENTO</strong> <strong>ÚNICO</strong> <strong>EM</strong> <strong>EDUCAÇÃO</strong>:<br />

Franciscanismo e Jesuitismo na Educação Brasileira<br />

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia Frazão Soares Linhares<br />

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação<br />

em Educação da <strong>UFF</strong> – Universidade Federal Fluminense,<br />

como requisito parcial para obtenção do Grau de Doutor.<br />

Área de Concentração: Movimentos Sociais e Políticas<br />

Públicas.<br />

Niterói<br />

2004


LUIZ FERNAN<strong>DO</strong> CONDE SANGENIS<br />

<strong>GÊNESE</strong> <strong>DO</strong> <strong>PENSAMENTO</strong> <strong>ÚNICO</strong> <strong>EM</strong> <strong>EDUCAÇÃO</strong><br />

Franciscanismo e Jesuitismo na Educação Brasileira<br />

Aprovada em 22 de setembro de 2004.<br />

BANCA EXAMINA<strong>DO</strong>RA<br />

___________________________________________<br />

Prof.ª Dr.ª Célia Frazão Soares Linhares - Orientadora<br />

<strong>UFF</strong> – Universidade Federal Fluminense<br />

___________________________________________<br />

Prof. Dr. Giovanni Semeraro<br />

<strong>UFF</strong> – Universidade Federal Fluminense<br />

___________________________________________<br />

Prof.ª Dr.ª Eliana Yunes<br />

PUC/RJ – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro<br />

___________________________________________<br />

Prof.ª Dr.ª Regina Helena Silva Simões<br />

UFES – Universidade Federal do Espírito Santo<br />

___________________________________________<br />

Prof. Dr. Leonardo Boff<br />

UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />

___________________________________________<br />

Prof.ª Dr.ª Maria Cristina Leal (Suplente)<br />

UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro


Dedico esta dissertação aos meus pais,<br />

Fernando e Veronica.


SUMÁRIO<br />

SUMÁRIO<br />

{ TOC \O "1-5" \T<br />

"ESTILO1;1;ESTILO2;2;ESTILO3;3;ESTILO4;4;ESTILO5;5" }


AGRADECIMENTOS<br />

A gratidão é, ao mesmo tempo, uma das virtudes mais raras e preciosas. Não se<br />

concluiu um trabalho como este, sem contrairmos muitas dívidas, em especial, com<br />

aqueles que mais nos amam e confiam em nós, numa demonstração generosa de<br />

colaboração e de apoio incondicional. Em primeiro lugar, agradeço a minha professoraorientadora<br />

Célia Frazão Soares Linhares com quem mantenho uma relação de anos de<br />

amizade e de parceria intelectual. Na qualidade de um de seus orientados, considero-a,<br />

socraticamente, uma “partejadora” de sonhos, idéias e ideais que, com o cuidado devido<br />

que dela recebemos, ganham consistência e maturidade para instrumentalizar as lutas<br />

coletivas pela transformação da educação, da escola e da sociedade. Exemplo concreto é<br />

esta Tese, cujo tema foi concebido durante uma reunião informal na residência da<br />

Professora Célia. Nesse particular, devo também agradecer ao Professor José Ribamar<br />

Linhares, seu esposo e companheiro, que, naquela ocasião, deu as suas contribuições<br />

para aquele cintilar de idéias.<br />

Agradeço o apoio e as contribuições dos membros da Banca, alguns já<br />

participando do desenvolvimento da minha Pesquisa, desde o exame de qualificação: o<br />

Professor Leonardo Boff, o Professor Giovanni Semeraro, a Professora Regina Helena<br />

Simões, a Professora Eliana Yunes e a Professora Maria Cristina Leal. A todos eles o<br />

meu muito obrigado.<br />

Devo também agradecer, de modo especial, a Professora Maria Fernanda<br />

Henriques, minha orientadora, em Portugal, durante o período em que realizei o<br />

doutorado sandwich na Universidade de Évora, com o imprescindível apoio do CNPq.<br />

O agradecimento é extensivo aos Professores Vitor e Maria Nazaret Trindade, ambos<br />

docentes da Universidade de Évora.<br />

Agradeço aos frades franciscanos da Província da Imaculada Conceição do<br />

Brasil, sempre dispostos a colaborar com o trabalho, por terem me distinguido como<br />

verdadeiro irmão, abrindo-me os seus arquivos e bibliotecas. Entre eles, devo destacar<br />

os Frades Sandro Roberto da Costa e Régis Guaracy Ribeiro Daher.<br />

A Ana Maria Blower, minha sempre revisora, a Maria Cândida Garcia<br />

Catharina, a quem recorro para os trabalhos na área de informática, e ao Professor José<br />

Francisco Borges de Campos, pelas luminosas contribuições dadas ao trabalho, os meus<br />

sinceros agradecimentos.<br />

Agradeço aos meus professores e colegas, bem como aos funcionários do<br />

Programa de Pós-Graduação em Educação da <strong>UFF</strong> e aos meus pares membros do<br />

ALEPH, porque só aprendemos, verdadeiramente, juntos, dialogando, debatendo e<br />

submetendo à crítica as nossas produções.<br />

Sem desejar esgotar os agradecimentos que são devidos a muitas pessoas e<br />

instituições que não conseguirei mencionar nominalmente, sou grato ao CNPq, ao<br />

Programa de Pós-Graduação em Educação da <strong>UFF</strong> e à Universidade Estácio de Sá de<br />

quem fui bolsista.


GLOSSÁRIO<br />

Capítulo Conventual – Reunião dos religiosos que vivem em dado convento ou casa<br />

religiosa. Em geral, reúne-se mensalmente.<br />

Capítulo Provincial – Reunião de âmbito provincial que congrega o Visitador, o<br />

Ministro Provincial e seus Definidores ou Conselheiros, guardiães ou superiores de<br />

conventos e delegados eleitos. Durante o Capítulo Provincial, são discutidos e<br />

decididos, por votação, os assuntos mais relevantes da vida da Província. Tem também<br />

caráter eletivo, alternando os religiosos que comporão os diversos âmbitos de governo,<br />

de acordo com os Estatutos Provinciais.<br />

Capítulo Geral – Congrega o Visitador Geral, os Ministros ou Padres Provinciais, os<br />

Definidores ou Conselheiros Gerais e delegados eleitos pertencentes às diversas<br />

Províncias da Ordem Religiosa. Durante o Capítulo Geral, reunido de seis em seis anos,<br />

ou conforme as Constituições da Ordem, elege-se o Ministro ou Padre Geral e demais<br />

membros do Governo Geral.<br />

Cartas ânuas – Espécie de cartas circulares da Companhia de Jesus, escritas na forma<br />

de relatos edificantes, com o intuito de divulgar, interna e externamente, os aspectos<br />

bem sucedidos e virtuosos da empresa missionária jesuítica.<br />

Custódia – Circunscrição de vários conventos, que não tendo jurisdição autônoma,<br />

depende, ainda, de uma Província.<br />

Custódio – Superior regional de um agrupamento de conventos que forma uma<br />

Custódia, portanto, ainda dependente de outra Província. Numa Província, Custódio é o<br />

primeiro conselheiro do Provincial, também chamado Vigário Provincial. Corresponde<br />

ao atual Vice-Provincial.<br />

Espirituais – Espécie de partido dentro da Ordem Franciscana, assim chamados porque<br />

apelavam para o direito de observar espiritualmente a Regra Bulada. Para os espirituais,<br />

São Francisco era a “regra viva” e seus ensinamentos diretos constituíam constante<br />

ponto de referência. Acreditavam não ser possível conciliar o entusiasmo pela ciência e<br />

o afã de prestígio granjeado pela Ordem com o espírito de pobreza. Mais tarde, os<br />

espirituais foram influenciados pela concepção escatológica do abade Joaquim de Fiori.<br />

Frades da Comunidade – Partido majoritário que defendia uma necessária evolução da<br />

Ordem, aceitando a construção de grandes conventos e casas de estudo, no interior das<br />

cidades, bem como o ingresso dos frades nos principais centros de estudo. O estilo de<br />

vida do grupo torna-se cada vez mais monástico. Claustro, hospedaria, ofício coral,


missa conventual, silêncio regular etc entram para a nomenclatura corrente. Aceitavam<br />

os privilégios e isenções concedidos à Ordem pelo Papa, de modo a obter autonomia de<br />

ação pastoral e jurídica, escapando à autoridade do clero local.<br />

Guardião – Para os franciscanos, designa o superior de um convento. Para São<br />

Francisco, o superior é um ministro e servidor dos demais religiosos, e deles deve cuidar<br />

como uma “mãe cuida dos seus filhos”.<br />

Hospício – Casa em que os frades residem como hóspedes, em território distante da<br />

Província.<br />

Metáfora benjaminiana – Refere-se a expressão “Escovar a tradição a contrapelo”,<br />

utilizada por Walter Benjamin (1892-1940), filósofo alemão da Escola de Frankfurt, em<br />

suas fragmentárias teses Sobre o Conceito de História.<br />

Movimento da Observância ou Reforma Observante – Ambas as expressões se<br />

referem ao amplo movimento de reforma da Ordem Franciscana, acontecido no século<br />

XVI, quando foi destacado o esforço de recuperação do antigo ideal e do estilo original<br />

da vida franciscana, tendo como fundamento a pobreza radical vivida fora dos grandes<br />

conventos existentes.<br />

Patente – Documento de caráter normativo ou informativo que circulava no âmbito da<br />

comunidade religiosa. Podia provir dos superiores eclesiásticos, das autoridade régias<br />

ou dos delegados apostólicos.<br />

Prelado – Superior Provincial ou local. Termo que também é empregado aos bispos.<br />

Província – Conjunto de conventos e de casas religiosas que, preenchidos certos<br />

requisitos, são reunidos sob um governo comum.<br />

Provincial – Superior de uma Província. É comum ser chamado de Padre Provincial ou<br />

Ministro Provincial, esse último, no caso dos franciscanos.<br />

Ratio Studiorum – Intitulado Ratio atque institutio studiorum, o plano de estudos da<br />

Companhia de Jesus, após quinze anos de elaboração, foi aprovado em 1599, vigorando<br />

quase duzentos anos, até a supressão da Ordem, em 1773.<br />

Vigário – Religioso substituto do Provincial, por óbito ou por impossibilidade de<br />

exercício do cargo.<br />

Visitador – Religioso nomeado pelo Superior Geral da Ordem Religiosa para visitar os<br />

conventos ou casas religiosas da Província ou Custódia, em preparação ao Capítulo<br />

Provincial que o mesmo preside.


INTRODUÇÃO<br />

Lembro-me de que, nos meus anos de colégio, ao estudar História, disciplina<br />

pela qual sempre tive especial predileção, formulava perguntas que, por timidez ou por<br />

não encontrar maior clareza para dirigi-las aos professores, ficavam guardadas no meu<br />

íntimo, à espera de, um dia, encontrarem solução. A Reforma Protestante, encetada por<br />

Martinho Lutero, por exemplo, parecia-me ocultar algum segredo. Como a ação de um<br />

único monge pôde causar a ruptura do Cristianismo? Suspeitava que, alguém mais,<br />

além de Lutero, houvesse contribuído para o êxito do movimento de reforma. Seria ele<br />

um “louco” solitário a questionar e a enfrentar o poder de uma Igreja corrompida e<br />

desviante dos ideais apostólicos? Os livros de História, no entanto, não deixavam<br />

transparecer o contrário. Confesso que, só na maturidade, vim a conhecer as figuras de<br />

John Wyclif e John Huss, ambos reformadores que precederam Lutero, bem como a<br />

importância do apoio político que o monge alemão recebeu dos príncipes teutônicos. De<br />

fato, confluiu para o sucesso da Reforma um feixe bem mais complexo de componentes<br />

políticos, culturais, religiosos e econômicos, destacando-se as contribuições do<br />

humanismo e do franciscanismo.<br />

Outra pergunta abafada, daqueles tempos, estimulava a minha curiosidade<br />

quanto à ação missionária dos frades franciscanos no Brasil. Penso que uma boa parte<br />

dos livros de História do Brasil estampam, em tamanhos variados, “A Primeira Missa”,<br />

de Victor Meirelles. Católico e paroquiano da Igreja da Porciúncula de Sant’Ana, em<br />

Icaraí, Niterói (RJ), administrada pelos franciscanos, identificava o marrom dos hábitos<br />

que conhecia, desde menino, àqueles que via na figura dos livros escolares. Gravei, na<br />

memória, o nome do Frei Henrique Soares de Coimbra, talvez, porque meu irmão<br />

também se chamasse Henrique. Não entendia por que, depois, nem os livros, nem os


professores falavam dos franciscanos. Sim, porque apenas os jesuítas ocuparam os<br />

textos e as aulas. Padre Manoel da Nóbrega foi inesquecível: meu avô se chamava<br />

Manoel; Padre José de Anchieta, outro nome fácil de guardar: há uma igreja dos<br />

jesuítas, no meu Bairro, que diz a tradição, foi fundada por ele; e claro, Santo Inácio de<br />

Loyola, fundador dos jesuítas: meu Bairro, São Francisco (Xavier), era uma fazenda dos<br />

inacianos, e a elevação mais pronunciada chama-se Pedra de Santo Inácio. Ora, refletia,<br />

se os frades partiram do Brasil, rumo às Índias, como aqueles franciscanos foram parar<br />

na minha Paróquia? Vieram mais tarde? Quando? Quem haveria de me responder? Anos<br />

se passaram, até que chegasse o momento das respostas. E, agora, no tempo presente, há<br />

a oportunidade de se fazerem novas perguntas.<br />

A pesquisa que apresento vem recuperar as reminiscências dos meus anos<br />

escolares, partindo das inquietudes que ficaram sem a resposta dos livros e dos<br />

professores. Penso, no entanto, que outros devem partilhar as mesmas inquietações ante<br />

os livros didáticos e científicos, produtos da historiografia que, via de regra,<br />

consagraram estradas que, na sua estreiteza, apenas comportam uma única versão dos<br />

acontecimentos. A História da Educação brasileira, dando ênfase ao exclusivismo da<br />

atividade missionária/educacional da Companhia de Jesus, a partir de sua chegada à<br />

Bahia, em 1549, marginalizou o protagonismo de “outras” Ordens Religiosas. Na cena<br />

educacional brasileira do período colonial, beneditinos, carmelitas, mercedários,<br />

franciscanos são praticamente ignorados ou silenciados. Quais as possíveis explicações<br />

para esse estranho e generalizado silenciamento sobre a matéria?<br />

Fernando de Azevedo, por exemplo, no desejo de defender uma escola única,<br />

privilegiou o padrão da uniformidade jesuítica. A posição do eminente sociólogo<br />

estabeleceu a doutrina de que a expulsão da Companhia de Jesus, nos tempos<br />

pombalinos, representou a destruição de todo o sistema escolar brasileiro.


Interessa-me, em especial, a atividade missionária/educacional dos franciscanos,<br />

presentes no Brasil, desde 1500. Não pude, todavia, manter-me fixado à ação<br />

educacional franciscana, uma vez que a atividade dos frades “capuchos”, designativo<br />

popular dos filhos de São Francisco, em Portugal e no Brasil, foi marcada por disputas<br />

com os jesuítas.<br />

Nesse campo de investigação, deparamo-nos com uma série de problemas que<br />

vão desde a exigüidade de fontes documentais às cristalizações de conceitos<br />

equivocados, construídos ao longo do tempo, ainda, hoje, persistentes. Terão os<br />

franciscanos escrito a sua história na areia, como se costuma pensar? Haverá outras<br />

causas para o esquecimento que ofusca a ação educacional franciscana no Brasil?<br />

A pesquisa sobre a atuação missionária e educacional de franciscanos e de<br />

jesuítas, desde os tempos coloniais, não pretende tratar de um passado mais ou menos<br />

remoto; falamos de coisas que possuem nítida atualidade: não estão retidas no passado,<br />

estão entre nós que sentimos o efeito das suas ações e das suas palavras. Conforme<br />

percebeu Benjamin, “existe um encontro secreto, marcado entre as gerações<br />

precedentes e a nossa” (Tese 2). E isso porque “a existência humana conjuga a<br />

materialidade de corpos humanos à ação interventora que inclui a palavra (...) E<br />

quando os corpos se vão, suas ações, suas palavras continuam ressoando entre nós,<br />

como um convite a movimentos de apropriação, com que fazemos e refazemos a vida”. 1<br />

Nosso projeto consiste em ler, no passado e no presente, os vestígios da história<br />

educacional dos franciscanos no Brasil. Tais vestígios, ora ignorados, ora silenciados,<br />

testemunham a tradição e a história dos que não conseguiram vencer.<br />

Foi, então, necessário identificar os sujeitos históricos, coletivos e sociais, e<br />

deixá-los falar, na tentativa de recuperar, a partir dos seus sinais, os discursos que<br />

ficaram subalternizados. Conforme diz Linhares, “só sondando também as relações


subterrâneas, pouco visíveis e, menos ainda audíveis, poderemos nos aproximar de<br />

práticas sociais que forneçam energias e nexos para alterar a seta que vem ameaçando<br />

com mesmices e banalizações não só a educação e a escola, mas o próprio futuro da<br />

sociedade brasileira”. 2<br />

A presente investigação gira em torno das memórias que subsidiarão o histórico.<br />

Não se tem, aqui, o interesse específico da historiografia convencional. A História, tal<br />

como a conhecemos, já é uma cristalização discursiva, uma produção estruturada a<br />

partir de determinada lógica.<br />

Nesse sentido, em busca do rigor que sempre deve nortear trabalhos dessa<br />

natureza, antes, desejamos considerar como fontes privilegiadas o acervo das memórias<br />

dos sujeitos – coletivas e individuais – especialmente através das suas narrações.<br />

Como também salienta Linhares, “o rememorar não é só um processo inocente e<br />

sem alto preço, nem muito menos linear e reprodutor. As memórias e as narrações –<br />

coletivas e individuais – são recortes e versões feitas nas múltiplas e infinitas<br />

possibilidades de combinações e implicam perspectivas em que do presente, os sujeitos<br />

redescobrem o ontem com os olhos do amanhã”. 3 As reminiscências que nos chegam,<br />

através dos seus silêncios, encobrimentos e desvelamentos, expõem os sujeitos à<br />

compreensão dos seus vazios.<br />

O uso da narrativa não é um caminho superior a outros tantos possíveis. As<br />

narrações respondem ao desafio de juntar e rejuntar experiências educacionais<br />

malogradas, dadas como perdidas e vencidas, reintegrando seus fragmentos às histórias<br />

1<br />

LINHARES, Célia Frazão Soares et TRINDADE, Maria Mazaret (Orgs.) Compartilhando o Mundo<br />

com Paulo Freire, São Paulo: Cortez / Unesco / Instituto Paulo Freire, 2003, pp. 13s.<br />

2<br />

LINHARES, Célia Frazão Soares. Formação dos Profissionais da Educação: Rememorando para<br />

Projetar, mimeo,1999, p.4.<br />

3<br />

LINHARES, Célia Frazão Soares et Alii. Os lugares dos Sujeitos na Pesquisa Educacional, Campo<br />

Grande: Ed. UFMS, 1999, p. 36.


e aos patrimônios das nossas instituições escolares que teimam em abrigar tantas<br />

esperanças. 4<br />

A narrativa, contra a pseudo-objetividade científica, “não está interessada em<br />

transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela<br />

mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime<br />

na narrativa a marca do narrado, como a mão do oleiro na argila do vaso”. 5<br />

O conceito benjaminiano da história fundamentou a nossa opção de não nos<br />

delimitarmos a um período histórico específico. Trabalhamos na perspectiva da<br />

transtemporalidade, no entendimento bejaminiano de que a história não é uma sucessão<br />

de “um tempo vazio e homogêneo” (Tese 13), mas “um tempo saturado de ‘agoras’”<br />

(Tese 14). Ademais, justificou-se no entendimento de que os processos de produção do<br />

pensamento único, bem como as formas de silenciamento da ação franciscana, só<br />

poderiam ser compreendidos se considerássemos um período histórico de larga duração.<br />

As escolhas que fazemos, de certo modo, vinculam-se às potencialidades que o<br />

próprio passado carrega, como virtualidades presentes em nossos sonhos e utopias. A<br />

memória social e política, segundo Linhares, pode ser entendida em sua expansão<br />

contínua, conforme a perceberam Benjamin, para quem “nada do que um dia aconteceu<br />

pode ser considerado perdido para a história”, e também Bakhtin, ao afirmar que “não<br />

há nada de morto de maneira absoluta. Todo o sentido festejará um dia seu<br />

renascimento”. 6 Assim é que, retornando a Benjamin, “articular historicamente o<br />

passado não significa conhecê-lo ‘como de fato foi’. Significa apropriar-se de uma<br />

reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (Tese 6). 7<br />

4<br />

LINHARES, Célia Frazão Soares. Narrações Compartilhadas na Formação dos Profissionais da<br />

Educação, Niterói: <strong>UFF</strong>, mimeo, 1999, p. 18.<br />

5<br />

BENJAMIN, Walter. Citado por LINHARES, idem, p. 20.<br />

6<br />

LINHARES, Célia. Memórias e Projetos nos Percursos Interdisciplinares e Transdisciplinares, in<br />

FAZENDA, Ivani (org.) A Virtude da Força nas Práticas Interdisciplinares, Campinas: Editora Papirus,<br />

1999, p. 24.<br />

7<br />

As indicações a seguir, referem-se às Teses sobre o Conceito de História in BENJAMIN, Walter. Obras<br />

Escolhidas - Magia e Técnica, Arte e Política, 7ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1994.


A pesquisa acerca do franciscanismo e do jesuitismo, começada inicialmente na<br />

área da Educação Brasileira, estendendo-se aos espaços transnacionais e percorrendo o<br />

campo da História da Educação em direção a outras áreas do conhecimento, como a<br />

Filosofia Política, confirma que não há como negar passagem aos problemas que<br />

necessitam transitar em espaços transdisciplinares.<br />

A educação é uma área de conhecimento transdisciplinar por excelência. A sua<br />

moderna emanciapação não a fez refém das especializações estanques que isolam e<br />

imunizam determinados conhecimentos de outros. Não há como tratar de educação sem<br />

deixar transitar os saberes classificados de “ciências humanas”, bem como os aspectos<br />

relevantes das “ciências da natureza” que, ao produzir novas teorias sobre a física, a<br />

biologia ou a geologia, permitem considerar novos parâmetros para a epistemologia ou<br />

para as questões políticas que suscitam outras formas de conceber o mundo, a<br />

sociedade, o humano e, portanto, a própria educação.<br />

A transdisciplinaridade diz respeito, como indica o prefixo “trans”, ao que está,<br />

ao mesmo tempo, entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de<br />

qualquer disciplina. Para Nicolescu, o objetivo da transdiciplinaridade é a compreensão<br />

do mundo presente, sob o imperativo da unidade do conhecimento. 8 Segundo o mesmo<br />

autor, não há antagonismos, mas complementaridade entre o conhecimento disciplinar e<br />

o conhecimento transdisciplinar. A visão transdisciplinar propõe-nos considerar uma<br />

realidade multidimensional, estruturada em múltiplos níveis, que substituiria a realidade<br />

unidimensional, típica do pensamento clássico. 9<br />

Na visão transdisciplinar de Nicolescu, a realidade não é somente<br />

multidimensional, como também multirreferencial. Isso implica uma nova concepção da<br />

relação sujeito/objeto, a partir da rejeição de uma lógica binária, escravizadora e<br />

8 NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade, São Paulo: Trion, 1999.<br />

9 NICOLESCU, Basarab. Para uma Educação Transdisciplinar, in LINHARES, Célia et TRINDADE,<br />

Maria Nazaret (Orgs.) Compartilhando o Mundo com Paulo Freire, op. cit., p.48.


excludente, por uma lógica do terceiro incluído que dá conta de descrever a coerência<br />

entre os diversos níveis de realidade, conforme ensejam pensar os resultados científicos<br />

mais importantes do século XX, como o princípio da relatividade e o da física quântica.<br />

Assim é possível falar na constituição de um objeto e de um sujeito transdisciplinares.<br />

Portanto, a transdiciplinaridade, ou uma educação transdisciplinar, nos permite<br />

estabelecer vínculos entre pessoas, fatos, imagens, campos de conhecimento e de ação,<br />

aproximando-os das interligações vitais que vão garantindo a expansão da própria<br />

existência. Em especial a linguagem estética ou poética é a linguagem por excelência do<br />

terceiro incluído, aquela que estabelece a unificação entre sujeito e objeto.<br />

Assim, novos valores se habilitam a integrar os campos estéticos e éticos do<br />

conhecimento; o livre pensar e agir reforça a autonomia e a responsabilidade humanas<br />

ante a heteronomia das normas impostas; um novo entendimento da razão torna o<br />

homem mais rico, complexo, inteiro; os aspectos da emoção são reabilitados,<br />

especialmente na produção das ciências, em particular, da Pedagogia; a política vai<br />

deixando de ser pautada pela disputa, onde só alguns precisam ganhar, e dá lugar à<br />

construção dialética inclusiva e solidária, numa dimensão de convivialidade.<br />

A crise e o crítico cada vez mais deixam de ser episódicos para constituir um<br />

estado de transformação permanente do conhecimento. Se a mudança é desinstaladora,<br />

gera a fragilidade dos que, a um só tempo, pretenderam conservar o exclusivismo do<br />

poder. Mas a mudança também pode produzir conservadorismos, quando o “novo” se<br />

faz para conservar o mesmo. O pensamento único, ideologia do capitalismo<br />

contemporâneo, globalizado e hegemonizado, ante a pretensa falta de alternativa<br />

econômica, em decorrência da erosão do bloco socialista, é avocado ao campo político.<br />

Ao mesmo tempo em que, de um lado, parece não existir saída para os graves<br />

problemas que assolam o mundo e, de outro, um caminho único é apontado como tábua


de salvação, acreditamos que, ao escaparmos dessa lógica viciosa, podemos encontrar<br />

horizontes ao mesmo tempo viáveis e alvissareiros.<br />

O chamado pensamento único, a rigor, não é um fenômeno inédito. Talvez a sua<br />

característica atual resida na sua vigência mundializada. A imposição de padrões<br />

dominantes, no entanto, acompanha a história das civilizações. A guerra, em geral, foi o<br />

modo mais comum de imposição dos valores de uma civilização sobre as outras<br />

dominadas.<br />

É verdade que o mundo dito civilizado não deixou de fazer guerras<br />

convencionais, ainda que dissimule, ao máximo, os reais motivos que ensejam a<br />

deflagração dos conflitos bélicos, geral e paradoxalmente justificados com a finalidade<br />

de garantir os direitos humanos, a liberdade, a paz, a democracia e o fim do terrorismo<br />

internacional.<br />

É importante considerar que, apesar da maior ou da menor eficácia dos<br />

processos de dominação, há sempre ressurgências, explícitas ou veladas, dos que<br />

resistem aos movimentos que tentam impor a integração pela via da supressão das<br />

identidades e das diferenças. O movimento da não-violência de Gandhi contra o<br />

domínio britânico, na Índia, marcou-se pela inicial imperceptibilidade da sua maior<br />

estratégia, a resistência pacífica. As formas de dominação deflagram processos de<br />

homogeneização, ao mesmo tempo em que provocam diversidades, fragmentações,<br />

antagonismos. Gandhi buscou, no próprio corpo da tradição indiana, os valores que se<br />

tornaram o esteio das lutas de resistência. Sobre esse tema, interessante Tese foi<br />

produzida por Aloísio J. J. Monteiro, pesquisador do ALEPH/<strong>UFF</strong>, intitulada<br />

“Violência ou Valores em Educação? A Política de Mahatma Gandhi e as Experiências<br />

Instituintes da Brahma Kumaris”. Mais remotamente, havemos também de pensar no<br />

franciscanismo como antídoto à lógica e aos movimentos históricos de dominação<br />

material e espiritual do Ocidente sobre os demais povos, regiões e culturas. Numa


polaridade oposta, surgem Francisco de Assis ou Gandhi, a modo de ícones de uma<br />

humanidade que reage e sonha com um mundo de paz e de fraternidade. O movimento<br />

pela paz e a não-violência ressurge, ao longo da história, como contraponto ao que<br />

denominamos “metáfora da guerra”.<br />

De modo análogo, os atuais processos de globalização também são ambíguos.<br />

Nicolescu destacou os dois perigos da globalização: a homogeneização econômica,<br />

cultural, religiosa, espiritual e o paroxismo dos conflitos étnicos e religiosos, como<br />

reação de autodefesa de culturas e civilizações. 10 Mas também é verdade que, ao<br />

mesmo tempo em que a globalização vai tornando o mundo mais igual e homogêneo,<br />

acende o desejo de afirmação de diferenças e de singularidades a serem preservadas.<br />

Uniformizar suprimindo diferenças e pluralizar defendendo a diversidade não são teses<br />

que se excluem reciprocamente, como num jogo de isso ou aquilo. São tendências<br />

inseparáveis, presentes na vida humana, dos indivíduos, dos povos, das nações, das<br />

culturas e das civilizações. Podemos, então, afirmar que o pensamento único, olhado<br />

pelo seu reverso, numa espécie de contraforça, produz, involuntariamente, feixes de<br />

possibilidades para a divergência do pensar.<br />

A própria tradição ocidental já foi produto de uma série de elementos culturais<br />

que se amalgamaram aos despojos das civilizações grega e romana, sob a orientação do<br />

cristianismo. Apesar da multifacetada riqueza da tradição do Ocidente, boa parte do seu<br />

conteúdo foi pragmaticamente recalcado – mas não suprimido – em vista da necessidade<br />

de impor com eficácia a civilização européia aos demais povos, regiões e culturas. Sua<br />

trajetória pode ser sintetizada como um longo processo de hegemonia de um tipo de<br />

razão e de política, estruturadas na idéia de “consenso”, apenas possível, porque à<br />

maioria são negados a racionalidade e o direito à palavra. 11 A razão e a política, na sua<br />

10 NICOLESCU, Basarab. Para uma Educação Transdisciplinar, in LINHARES, Célia et TRINDADE,<br />

Maria Nazaret (Orgs.) Compartilhando o Mundo com Paulo Freire, op. cit., p. 42.<br />

11 RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento: Política e Filosofia, São Paulo: Editora 34, 1996.


forma mais estreita, originaram o pensamento único que enfatiza o desejo de abafar o<br />

“escândalo” que é o povo falar de poder. Apenas aos que, a um tempo, dominam, é<br />

concedida a palavra autorizada, seja em que campo atuem. Vê-se que o pensamento<br />

único tem a sua gênese na elaboração de um discurso constituído a partir do<br />

exclusivismo da palavra e da linguagem submetidas às regras da lógica e da<br />

racionalidade de quem possui o poder de falar e de se fazer ouvir.<br />

O pensamento único, resultado da supressão da divergência do discurso político<br />

em face da imposição da realidade que pretensamente não admite caminhos alternativos<br />

viáveis, frustra sonhos e utopias que foram relegados às margens da memória. No<br />

entanto, é preciso encontrar, nos fragmentos e nos restos que se conservaram, uma outra<br />

história e uma outra tradição, irrealizadas, que poderiam ter sido ou, ainda, que podem<br />

eventualmente vir a ser.<br />

A vida, a espiritualidade e o pensamento franciscanos se desenvolveram e foram<br />

recriados ao longo dos séculos sob o vinco vigoroso e terno da poesia. Daí a sua<br />

aparente fraqueza, em tempos de modernidade, quando a linguagem científica assume<br />

posição privilegiada, já que a ela se confere toda a autoridade e credibilidade.<br />

A abertura de uma nova crise, porém, vem convulsionando os fundamentos da<br />

ciência. Ao contrário do que aconteceu no passado, pensamos que a atual crise não<br />

enseja apenas o surgimento de um novo paradigma que substituirá o anterior. E isso<br />

porque temos consciência do equívoco de afirmar e de impor uma só forma de elaborar<br />

o sentido da vida e o conhecimento da realidade. “O que não podemos admitir, depois<br />

de termos enterrado tantas ilusões modernas, é a procura de uma panacéia<br />

paradigmática, como se o vaso quebrado (...) pudesse ser reinstalado sob um padrão<br />

único e original, mesmo que esse padrão fosse a ausência de padrão”. 12<br />

12 LINHARES, Célia Frazão Soares. Saberes Docentes: da Fragmentação e da Imposição à Poesia e à<br />

Ética, Revista Movimento, <strong>UFF</strong>, Niterói, nº 2, pp. 33-57, set., 2000, p. 51.


O horizonte que se abre aponta para uma pluralidade paradigmática, ou seja,<br />

haverá cada vez mais espaço a variados meios de orientação para a vida no mundo, sem,<br />

todavia, renunciarmos aos cuidados éticos.<br />

Conforme acentuou Norbert Elias, uma investigação de larga duração sobre o<br />

desenvolvimento do conhecimento, mostra, de forma conclusiva, que o conhecimento<br />

científico chegou apenas tardiamente a ser o tipo de conhecimento dominante. Em<br />

épocas anteriores, havia outras formas de conhecimento dominante que cumpriam a<br />

função de orientar a existência humana. Para Norbert Elias, pareceu ser “um grave<br />

equívoco confirmar a teoria do conhecimento à consideração do que na atualidade<br />

chamamos conhecimento científico deixando de lado outras formas de conhecimento”. 13<br />

Do interior do próprio discurso científico, porém, surgiram novas teorias que<br />

desestabilizaram os antigos princípios inferidos de uma lógica binária, linear,<br />

hierárquica que presidiu o ideal de racionalidade assumido pela práxis jesuítica. Essa<br />

mesma lógica excluiu a pluralidade dos enunciados e mesmo outras “razões” ou<br />

“racionalidades” definidas por outros grupos humanos, culturas ou referenciais teóricos.<br />

No início do século passado, a Física descortinou “um mundo de surpresas impossíveis<br />

de serem abrigadas nos conceitos clássicos da ciência”, 14 através das discussões sobre<br />

a teoria da relatividade, a teoria do caos, a teoria quântica, os avanços da física das<br />

estruturas dissipativas e as novas perspectivas do campo eletromagnético. Segundo<br />

Linhares, “as certezas absolutas ficaram canceladas nestes novos tipos de<br />

conhecimento e o processo de captar e traduzir o conhecimento passou a precisar de<br />

recursos mais ágeis e voláteis e, freqüentemente, a poesia passou a auxiliar na tentativa<br />

de aprender os movimentos da vida, na chamada ‘dança do universo’”. 15<br />

13 ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p. 73.<br />

14 LINHARES, Célia. O Ovo Não é Só da Serpente – A Educação nos Labirintos de Tempos e<br />

Espaços Novos. Cadernos de Ensaio e Pesquisa, <strong>UFF</strong>, Niterói, nº 1, pp. 11-30, jul/ago/set, 2000, p. 19.<br />

15 Idem, p. 20.


O desafio maior do nosso tempo é ampliar o uso da racionalidade muito além<br />

daquela instrumental-tecnocrática. Isso não significa o fim da razão, nem a defesa do<br />

irracionalismo, mas o começo de uma pluralidade paradigmática aberta ao gênio<br />

criativo humano que sempre desejou caminhar em liberdade na busca do que lhe dá<br />

sentido existencial para dignificar o seu viver individual e coletivo. E, se criticamos a<br />

razão, o fazemos munidos da própria razão.<br />

Há, aí, certamente, conseqüências de grande relevância para o campo<br />

pedagógico-educacional. Aliás, um traço característico da tradição educacional<br />

franciscana é o de precaver-se do intelectualismo. Os grandes educadores franciscanos<br />

procuraram trazer à luz os valores afetivos em geral: o valor do amor, do sentimento, do<br />

desejo, da tradição, da intuição e, finalmente, da poesia. Como esses valores poderão<br />

tencionar as lutas pela reinvenção da escola?<br />

A razão e a política, tal como concebidas pelos gregos, cristianizadas pela<br />

Escolástica e secularizadas pelo Iluminismo, devem ser reengendradas a partir dos<br />

elementos que estão presentes na própria tradição marginal do Ocidente, mas que não<br />

tiveram chance de vingar e de produzir seus frutos.<br />

Essa razão estreitada, linear, mas com ares de soberania, embora tenha um forte<br />

poder de sedução alimentado por promessas emancipatórias, atua prevalentemente como<br />

um princípio justificador do domínio de uma política, de uma economia, de uma<br />

sociedade, de uma civilização, sobre as outras. Sob o influxo dessa razão e dessa<br />

política, nasceu a Escola constituidora do ser humano civilizado e do cidadão. Assim a<br />

Escola dispõe sobre o que deve ser aprendido e sobre o que deve ser esquecido.<br />

Devemos, hoje, pensar no que ficou fora da escola, nas palavras, nas histórias<br />

não autorizadas pelo saber/poder docente e nos aspectos pedagógicos considerados em<br />

suspeição. Especialmente, no corpo da tradição franciscana, encontramos um rico filão


do pensamento ocidental que foi desconsiderado ou mesmo marginalizado em razão de<br />

outras opções gnosiológicas. E como tudo isso nos toca?<br />

O franciscanismo, enquanto importante patrimônio da nossa tradição ocidental, é<br />

capaz de inspirar novos caminhos para a civilização. Por causa de sua plasticidade e de<br />

sua permeabilidade, é suscetível de amalgamar-se a uma série de outras formas de<br />

pensar. Nesse aspecto, o franciscanismo é fecundo em possibilidades instituintes. O<br />

universalismo franciscano, por sua própria essência, tende a realizar-se aberto à<br />

pluralidade e acolhedor à diferença, não obstante o universalismo também implicar a<br />

relativização de particularismos, à medida que enfatiza a valorização de identidades<br />

abstraídas das formas culturais que se julgam comuns.<br />

Quanto à especificidade do método heurístico utilizado, iniciamos a pesquisa<br />

realizando o levantamento bibliográfico e de documentação relevante, teimando em<br />

acreditar, de antemão, que a quantidade de livros, trabalhos e documentos disponíveis<br />

sobre o franciscanismo, no Brasil, é diminuta.<br />

Partimos à procura e à escolha de documentos já pesquisados, como, por<br />

exemplo, livros de tombo, atas de capítulos conventuais e provinciais, inventários de<br />

conventos, manuscritos, testemunhos escritos e livros de pastorais, todos sob a guarda<br />

do Arquivo Geral da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, em São<br />

Paulo. Infelizmente, todo o esforço dedicado não produziu o esperado. Praticamente não<br />

foram encontradas referências documentais mais específicas acerca da ação educacional<br />

dos franciscanos no ensino formal, ainda que tenhamos tido acesso irrestrito a todos os<br />

arquivos mencionados. De antemão, agradecemos aos frades franciscanos que nos<br />

deram incondicional apoio à parte inicial da pesquisa.<br />

Também remota tornou-se a eventual identificação e uso de documentação<br />

inédita que tenha se conservado nas bibliotecas de antigos conventos, bem como na


Biblioteca Central da Universidade São Francisco, em Bragança Paulista, SP, para onde<br />

foram trasladadas várias bibliotecas de conventos, a partir do ano de 1986.<br />

Para ampliarmos as possibilidades de pesquisa, fomos buscar nos arquivos e<br />

bibliotecas portuguesas, em especial no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, na<br />

Biblioteca Nacional de Lisboa, no Arquivo Ultramarino, no Arquivo e Biblioteca<br />

Regional de Évora, e demais instituições congêneres, as fontes e a documentação<br />

necessárias para levarmos adiante as nossas pesquisas, o que só foi possível graças à<br />

bolsa de Doutrorado Sandwich financiada pelo CNPq.<br />

Nos arquivos e nas bibliotecas portuguesas, encontramos muitos documentos<br />

manuscritos e fontes impressas, em geral, dispersos e sem catalogação. No Arquivo<br />

Nacional da Torre do Tombo, por exemplo, os documentos manuscritos produzidos<br />

pelos franciscanos das Províncias portuguesas que também tiveram atuação missionária,<br />

no Brasil, compõem maços de documentos que, carecendo de organização, precisaram<br />

ser analisados um a um. Na Biblioteca e Arquivo Regional de Évora, onde também há<br />

interessante documentação, o trabalho foi mais facilitado, graças à catalogação de<br />

Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, datada de 1850. Nesse último Arquivo, tivemos a<br />

satisfação de encontrar, nas fichas de pesquisadores, as assinaturas de Jaime Cortesão e<br />

do Padre Serafim Leite que lá estiveram antes de nós. Apesar de trabalharmos em outros<br />

arquivos, devemos destacar a importância das fontes impressas e da bibliografia<br />

contemporânea consultadas na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Biblioteca da<br />

Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.<br />

Textos, documentos, narrações e testemunhos de época foram submetidos à<br />

crítica, na perspectiva de que os documentos também têm a sua história e que não<br />

podem ser lidos sem a ela estarem referenciados. Nesse particular, é interessante<br />

destacar as rivalidades existentes entre as Ordens Religiosas. Franciscanos, jesuítas,<br />

carmelitas, beneditinos, não raras vezes, relacionavam-se com antagonismos e, mesmo


em matéria missionária, viam-se como “competidores”. Daí ser comum que os litígios<br />

freqüentes entre missionários dos vários institutos encontrassem eco nas crônicas de<br />

época. Indiscrições, rivalidades e discórdias são recorrentes. Cronistas destacam as boas<br />

qualidades dos confrades, exaltam os seus métodos e sucessos na conversão dos gentios,<br />

enquanto silenciam ou até diminuem os erros cometidos, e isso quando não exageram os<br />

defeitos e erros dos “concorrentes”, tanto civis quanto eclesiásticos. Há de se ter<br />

cuidado com os deslizes de ufanismo, de apologética e de hagiografia.<br />

Esses dados fundamentais e de extrema riqueza exigem redobrada atenção ao<br />

trabalho de interpretação. Todos eles estão a reclamar sentido. A interpretação,<br />

produtora de sentidos, não analisa exclusivamente a linguagem imanente, o texto<br />

escrito, mas sua exterioridade, relacionando a linguagem aos sujeitos que a falam, aos<br />

seus processos e condições de produção e às situações em que se produz o dizer. 16<br />

Não basta tratar da linguagem ou do texto, mas do discurso, isto é, da palavra em<br />

movimento, do homem falando. Como explica Orlandi, “a análise de discurso concebe<br />

a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social<br />

(...) não trabalha com a língua enquanto sistema abstrato, mas com a língua no mundo,<br />

com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos<br />

enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto membros de uma<br />

determinada forma de sociedade”. 17 É necessário “escutar” outros sentidos exteriores<br />

ao texto, compreendendo como eles se constituem.<br />

Também a memória faz parte da produção do discurso. A memória, quando<br />

pensada em relação ao discurso, segundo Orlandi, é tratada como interdiscurso. “Este é<br />

definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja é o<br />

que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo o dizer e<br />

16 ORLANDI. Eni Puccinelli. Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos, São Paulo: Pontes,<br />

1999, p. 16.<br />

17 Idem, pp. 15s..


que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito que está na base do dizível,<br />

sustentando cada tomada da palavra (...) O fato de que há um já-dito que sustenta a<br />

possibilidade de todo dizer é fundamental para se compreender o funcionamento do<br />

discurso, a sua relação com os sujeitos e com a ideologia”. 18<br />

Numa proposta em que o político e o simbólico se encontram, a análise do<br />

interdiscurso, portanto, nos permite remeter o que é dito a uma memória, e a identificá-<br />

lo em sua historicidade, em sua significância, mostrando seus compromissos com a<br />

política e a ideologia que permeiam a realidade. Como também destaca Orlandi, em<br />

outro trabalho, “a compreensão, na análise de discurso, é política (...) porque se<br />

confronta com a necessidade de abrir conjuntamente a problemática do simbólico e do<br />

político. Ela desterritorializa, assim, a noção de leitura pela noção mesma de discurso<br />

como efeito de sentidos entre locutores”. 19<br />

Finalmente, a análise do discurso confronta-se com a ideologia, visto que não há<br />

discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. “A interpretação é sempre regida por<br />

condições de produção específica que, no entanto, aparecem como universais e eternas.<br />

Pela ideologia, se naturaliza o que é produzido pela história. É a ideologia que produz<br />

o efeito de evidência, e da unidade, sustentando sobre o já-dito os sentidos<br />

institucionalizados, admitidos como ‘naturais’. Há uma parte do dizer, inacessível ao<br />

sujeito, e que fala em sua fala. Mais ainda: o sujeito toma como suas as palavras da voz<br />

anônima produzida pelo interdiscurso (a memória discursiva).” 20<br />

Cabe, ainda, dizer que todos os documentos de época, citados ao longo do<br />

trabalho, tiveram a sua grafia atualizada para o Português contemporâneo.<br />

Convidamos os leitores a iniciar um percurso desafiador em busca da decifração<br />

dos enigmas contidos nos vazios da história educacional brasileira. As palavras, que se<br />

18 Idem, pp. 31s..<br />

19 ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação: Autoria, Leitura e Efeitos do Trabalho Simbólico, 2ª ed.,<br />

Petrópolis: Vozes, 1998, pp. 41s..


multiplicam para reverberar a atividade missionária/educacional jesuítica, rareiam,<br />

quando se trata da ação encetada pelos franciscanos no mesmo cenário nacional.<br />

Partimos com o objetivo de encontrar e de entender os processos de produção dos<br />

silêncios que ofuscaram a ação educacional franciscana no Brasil. A análise<br />

aprofundada dos acontecimentos fará com que percebamos a própria gênese do<br />

pensamento único em educação.<br />

CAPÍTULO I<br />

I - Ação educacional franciscana no Brasil: um enigma políticopedagógico<br />

“Certamente, precisaremos aprender a ver sob neblinas e sombras e a escutar<br />

mais o que é dito para confrontá-lo com o que não é dito, atentando para os<br />

silêncios, as gagueiras, os balbucios, mas também para o uivar dos lobos e os<br />

anúncios de sol ou lua trazidos a cada noite, a cada tarde e a cada manhã”.<br />

Célia Linhares<br />

1. Escovando a história da educação brasileira a contrapelo<br />

“Escovar a contrapelo” a memória educacional brasileira: a metáfora<br />

benjaminiana explica o intento desse capítulo. Isso significa controverter as<br />

reminiscências dos nossos anos escolares, reforçadas pelos manuais e livros didáticos<br />

que, em via de regra, reportam-nos, ao exclusivismo da atividade<br />

20 Idem, p. 31.


missionária/educacional da Companhia de Jesus, a partir de sua chegada à Bahia, em<br />

1549. Desse conjunto de lembranças, a começar pela implantação da escola, no Brasil,<br />

estão destacadas a fundação do Colégio da Companhia de Jesus que deu origem a São<br />

Paulo, maior cidade da América do Sul, a obra evangelizadora/educacional realizada<br />

pelos inacianos entre os guaranis, as figuras dos Padres Manoel da Nóbrega e José de<br />

Anchieta, este denominado Apóstolo do Brasil, com suas biografias estreitamente<br />

vinculadas a nossa história educacional, entre outras.<br />

De fato, os jesuítas empreenderam no Brasil uma significativa obra missionária e<br />

evangelizadora, especialmente fazendo uso de novas metodologias, das quais a<br />

educação escolar foi uma das mais poderosas e eficazes. Em matéria de educação<br />

escolar, os jesuítas souberam construir a sua hegemonia. Não apenas organizaram uma<br />

ampla “rede” de escolas elementares e colégios, como o fizeram de modo muito<br />

organizado, contando com um projeto pedagógico uniforme e bem planejado, sendo o<br />

“Ratio Studiorum” a sua expressão máxima. Os autores que tematizaram a História da<br />

Educação Brasileira, ao considerarem tão expressiva a ação educativa dos jesuítas, entre<br />

1549 e 1759, caracterizaram esse lapso de mais de dois séculos pelo presumível<br />

exclusivismo jesuítico, apesar do protagonismo – em geral, ignorado ou silenciado - de<br />

franciscanos, de beneditinos, de carmelitas, de mercedários, de oratorianos e de outros<br />

religiosos na cena educacional brasileira. É exemplar a obra do espanhol Francisco<br />

Larroyo, “História Geral da Pedagogia”. O Apêndice “Pedagogia no Brasil”, acrescido à<br />

edição brasileira, divide a história da educação, no período colonial, entre antes e<br />

“depois dos jesuítas”, conforme indica, desde os títulos dos capítulos que dividem o<br />

texto. 21<br />

Por que pouco se ouviu falar da iniciativa educacional desses outros grupos, no<br />

Novo Mundo, especialmente dos franciscanos, no Brasil? Quais as possíveis


explicações para um estranho e generalizado silenciamento sobre essa matéria? Livros<br />

didáticos, manuais e compêndios de História da Educação, materiais audiovisuais, sites<br />

da Internet não contêm nem mesmo uma linha, uma imagem sobre a ação educacional<br />

dos franciscanos no Brasil, apesar de tantas pesquisas motivadas por ocasião das<br />

celebrações dos “quinhentos anos do descobrimento”.<br />

A história registra, no entanto, que os primeiros missionários a chegarem ao<br />

Brasil foram franciscanos. Esse acontecimento foi eternizado na tela de Victor<br />

Meirelles, que faz parte do acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro,<br />

retratando a Primeira Missa, celebrada pelo franciscano Henrique Soares de Coimbra.<br />

Esta cena está gravada no imaginário nacional como o acontecimento fundante do<br />

Brasil. Poderíamos fazer uma tentativa de analisar criticamente a obra datada do século<br />

XIX, verificando os elementos do romantismo presentes nas figuras e semblantes dos<br />

indígenas, tão generosos, plácidos, quase angelicais, docemente curiosos, a assistir a<br />

uma sucessão de palavras e ritos ininteligíveis, como a compor, ao lado de plantas e<br />

aves tropicais, o cenário da concórdia paradisíaca. Mas preferimos que tais cenas da tela<br />

de Meirelles sejam confrontadas com os acontecimentos transcorridos em 22 de abril de<br />

2000, em Porto Seguro, quando a força policial foi usada para reprimir os protestos de<br />

índios, negros e trabalhadores que desejavam aproximar-se do local onde era celebrada<br />

Missa, em recordação àquele primeiro sacrifício eucarístico. Esse dia de vergonha<br />

nacional foi a síntese da violência histórica que agride o povo e seus movimentos<br />

sociais, em última instância, que em nada fazem lembrar as cenas edênicas de Meirelles.<br />

Os mecanismos de atribuição e de legitimação de títulos e de adjetivos<br />

identitários a pessoas e a instituições é outra importante discussão. Facilmente atribui-se<br />

ao missionário jesuíta o qualificativo de “educador”. O mesmo se diga de suas missões<br />

e “casas de meninos” adjetivadas de “escolas” ou “colégios”. Por que custa conferir aos<br />

21 LARROYO, Francisco Larroyo. História Geral da Pedagogia. Tomo II, São Paulo: Mestre Jou, 1970,


missionários franciscanos e às suas instituições, congêneres às dos jesuítas, os mesmos<br />

atributos (se é que se deva isso fazer)? Por ventura, o que mandavam construir os<br />

jesuítas pelos braços nativos - choupanas cobertas de palha, casas de pau-a-pique,<br />

terreiro, escola disposta ao lado da igreja - possuía algo objetiva e qualitativamente<br />

diverso capaz de dar-lhe status diferenciado? Teriam sido os açoites, as palmadas e<br />

demais castigos físicos aplicados pelos franciscanos aos índios e aos filhos dos colonos<br />

menos “educativos” ou dolorosos do que aqueles praticados pelos educadores jesuítas?<br />

Mas, a despeito do que se costuma dizer, Custódio e Hilsdorf revelaram que o afamado<br />

colégio jesuítico, em São Paulo (que não se chamava São Paulo, mas Santo Inácio), na<br />

maior parte de sua existência, funcionou como uma casa de meninos, e não como um<br />

colégio completo. 22 Será que exageraram a mão quando, num tom que chega às raias do<br />

ufanismo, convencionou-se atribuir aos jesuítas todos os méritos e também os deméritos<br />

de terem transposto as glórias da cultura letrada e civilizada da Europa aos selvagens e<br />

incultos índios? Afinal, em que diferia a circuncisão cultural das gentes ameríndias<br />

encetada por franciscanos ou jesuítas, sob o mesmo padroado português?<br />

No período colonial, o missionário, seja qual fosse a sua filiação religiosa, foi<br />

também o educador. E, quanto aos franciscanos, por tradição mais remota ou por<br />

relevância da sua produção intelectual e acadêmica, gozariam dos mesmos legítimos<br />

direitos de se deixarem qualificar de mestres educadores. Desde o início da Ordem, no<br />

século XIII, portanto, três séculos antes do surgimento da Companhia de Jesus, os<br />

franciscanos já ocupavam as cátedras das principais universidades medievais e casas de<br />

estudo. Nenhuma outra Ordem deu origem a uma plêiade tão numerosa e original de<br />

sábios e filósofos. A começar por Antônio de Lisboa (+ 1236), primeiro professor da<br />

pp. 881 a 915.<br />

22 CUSTÓDIO, M. Ap. e HILS<strong>DO</strong>RF, M. L. O Colégio dos Jesuítas de São Paulo: que não era<br />

Colégio nem se chamava São Paulo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros-USP, 39 (1996): pp.<br />

169-180.


Ordem Franciscana, continuando com Boaventura de Bagnoregio (+1274), João<br />

Peckham (+1292), Roger Bacon (+1294), Mateus de Aquasparta (+1302), Duns Scotus<br />

(+1308), Raimundo Lúlio (+1316), Guilherme de Ockham (+1349), são nomeadas<br />

apenas algumas das mais importantes expressões da Escola Franciscana, ainda<br />

composta por muitos outros pensadores e mestres.<br />

Em Portugal, antes do movimento da observância, os franciscanos, agrupados<br />

em grandes conventos, mantinham importantes casas de estudos. As escolas de Teologia<br />

dos Conventos de São Francisco de Lisboa e de Coimbra foram célebres e supriram, por<br />

muito tempo, a Faculdade de Teologia que faltava na Universidade portuguesa; em<br />

1453, a de Lisboa foi oficializada como Faculdade Universitária. Após a efervecente<br />

reforma observante, tomando parte nas empresas de expansão marítima, os franciscanos<br />

tiveram presença destacada no ensino, nas ilhas atlânticas: Açores, Madeira, Canárias,<br />

Cabo Verde. Nos Açores, todo o ensino à população foi ministrado pelos franciscanos,<br />

até a fundação dos colégios dos jesuítas de Angra (1570) e de Ponta Delgada (1592).<br />

Posteriormente, a Companhia de Jesus obteve o monopólio do ensino secundário e os<br />

franciscanos continuaram a lecionar as primeiras letras em todas as ilhas e também a<br />

habilitar candidatos para o estado eclesiástico.<br />

Não só a Europa, mas o Continente Americano também traz marcas dos seus<br />

passos em toda a sua extensão geográfica. Mesmo a América do Norte, de formação<br />

protestante, orgulha-se de Frei Junípero de La Sierra como o franciscano representativo<br />

da fase missionária do Oeste, cultuando sua memória na estátua gigantesca da Galeria<br />

do Capitólio, disposta ao lado dos homens que fizeram a nação.<br />

Nomes de franciscanos, como João de Gante, João de Zumarraga, Bernardino de<br />

Sahagun ou Hernando Trejo de Sanábria, são de menção obrigatória quando o assunto é<br />

a história da educação na América.


João de Gante foi o fundador da Escola de São Francisco, o primeiro colégio de<br />

artes e ofícios para índios que funcionou no Novo Continente, ao lado do ensino<br />

elementar.<br />

João de Zumarraga, primeiro bispo do México, não se contentando com as<br />

escolas existentes nos conventos, fundou o Colégio de Santa Cruz de Tlaltelolco, em<br />

1536. O Colégio tornou-se o primeiro centro de cultura superior na América,<br />

consagrado à educação superior dos índios que, ampliando seus estudos, chegaram a ser<br />

mestres. Zumarraga estabeleceu que, no currículo do Colégio de Santa Cruz, ao lado do<br />

ensino de Latinidade, Artes, Teologia, Retórica, Lógica e Filosofia, também estaria o de<br />

Medicina mexicana. Foi ainda formulador de um plano de escolas para a instrução das<br />

meninas, fundando para elas, na Cidade do México, um colégio. O bispo franciscano é<br />

reconhecido como o introdutor da imprensa no México. Com o vice-rei Dom Antônio<br />

de Mendonza, trabalhou para a fundação da Universidade do México que (com a<br />

Universidade de São Marcos, de Lima), é a primeira Universidade da América. 23<br />

Bernardino de Sahagun, eminente mestre e humanista, é considerado o pai do<br />

estudo da língua e literatura náhuatl, sendo o autor do dicionário trilingüe em mexicano,<br />

espanhol e latim e da Gramática Mexicana.<br />

Hernando Trejo de Sanábria tornou-se bispo de Tucuman e fundador da<br />

Universidade de Córdoba, a primeira na Argentina. 24<br />

Bem, e no Brasil? ... O silêncio! Talvez não fosse tão absurdo se defendêssemos<br />

uma anti-tese, ao afirmar que os franciscanos não tomaram parte na história<br />

educacional brasileira!<br />

1.2. Quebrando silêncios: as vozes dos esquecidos<br />

23 A Carta de fundação da Universidade data de 1551, confirmada posteriormente por Felipe II, e entra em<br />

funcionamento em 1553.


O que causa espécie é que o projeto missionário franciscano, na sua<br />

integralidade, bem como na sua especificidade escolar/educacional, em muitos aspectos<br />

revolucionário, possui, para nós, pouca visibilidade e parece silenciado.<br />

Qual seria a causa do esquecimento que ofusca a ação educacional franciscana<br />

no Brasil? Por que até os livros especializados de História e de Educação deixam de<br />

mencionar a atuação dos franciscanos, que nos parece tão significativa?<br />

Terão os franciscanos falhado? Desviaram-se ou se perderam ao longo do<br />

caminho? Seu ideal restaurador amoldou-se aos tempos e foi apaziguado? Por que muito<br />

dos seus sonhos não vingou? E o que teve êxito, como medrou, e por quê?<br />

A história franciscana no Brasil é marginal em decorrência da ausência de<br />

embates políticos com o poder instituído? Essa tênue visibilidade é decorrência da<br />

própria identidade do projeto franciscano que optou conscientemente pelo silêncio<br />

evangélico de modo que “uma mão não saiba o bem que a outra fez”?<br />

São perguntas às quais não podemos fugir, se quisermos resgatar a memória dos<br />

que já se foram. Não se deseja fazer julgamentos, encontrar culpados ou recriminar<br />

vidas e escolhas. Trata-se de trazer, à pauta de discussões de hoje, parte importante da<br />

história educacional brasileira, condenada à penumbra.<br />

Quando se vêem os rumos da política educacional enveredando por caminhos de<br />

mão única, a partir de discursos que soam como coação ideológica, devemos reagir<br />

apontando vertentes político-educacionais que se colocam na contramão do hegemônico<br />

instituído. Resta, então, que tenhamos a coragem acadêmica de tratar de temas como<br />

este que, certamente, servirão de contributo importante para as discussões educacionais<br />

contemporâneas de modo a subsidiá-las com outros elementos históricos dispostos<br />

como contrapontos.<br />

24 CALMON, Pedro. História do Brasil, Vol. I, Rio de Janeiro: José Olympio, 1953, pp. 242 ss.


Como salienta Linhares, há muitas “histórias abertas, que ainda não<br />

encontraram espaços para serem recuperadas e narradas; memória, em que latejam<br />

conhecimento e compromisso como matéria da razão e da imaginação: e só daí pode<br />

resultar a força criativa capaz de instituir um novo tempo e uma nova história, capaz<br />

de inaugurar outros caminhos civilizatórios”. 25 E, nisso, apostamos!<br />

Podemos, com segurança, afirmar que a presença franciscana, no Brasil,<br />

contribuiu decisivamente na formação da nossa cultura.<br />

Para o desenvolvimento desta tese de fundo, apoiamo-nos sobretudo nos<br />

trabalhos do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, especificamente, tomando por<br />

base uma série de palestras sobre a temática da presença franciscana e de sua influência<br />

na formação do Brasil que foram reunidas em livro intitulado “A Propósito de<br />

Frades”. 26<br />

O próprio Freyre faz menção a outros trabalhos que apostam nesta mesma linha<br />

de investigação. 27 Assim destaca o historiador mexicano, Carlos Pereyra, como quem<br />

melhor salienta a ação dos frades no desenvolvimento das sociedades ibero-americanas<br />

do México ao Brasil. Escreve Pereyra, em “Breve Historia de América” 28 , que foram<br />

várias as ordens que se distinguiram nas Américas pelo esforço de pregar, doutrinar,<br />

catequizar, cuidar dos doentes, educar os meninos. Recorda os agostinianos, os<br />

mercedários, os hospitalários, os betlemitas, os dominicanos, os jesuítas. Mas muito<br />

significativamente destaca: “El más señalado papel en la obra de civilizacion<br />

iberoamericana corresponde a los religiosos y entre estos se distinguieron los<br />

franciscanos”. 29<br />

25 LINHARES, Célia Frazão Soares. A Crise do Político na Educação: a Imposição da Estratégia<br />

como Espaço de Servidão Versus a Emancipação de Sujeitos Históricos na Construção da Ética,<br />

Niterói: <strong>UFF</strong>, 1990, p. 7.<br />

26<br />

FREYRE, Gilberto. A Propósito de Frades, Salvador: Universidade da Bahia, 1959.<br />

27<br />

Idem, p. 27.<br />

28<br />

PEREYRA, Carlos. Breve Historia de América, Madrid: 1930, pp. 315s..<br />

29<br />

FREYRE, Gilberto. A Propósito de Frades, Salvador: Universidade da Bahia, 1959, p. 21.


Ao partilhar dessa mesma convicção apoiada na afinidade entre o ethos<br />

ibérico/hispânico 30 e o pensamento franciscano, Freyre ratifica que o Catolicismo<br />

franciscano, como orientação científica e como orientação social, influenciou<br />

decisivamente o esforço colonizador de portugueses e de espanhóis:<br />

“Acontece que dos Catolicismos ligados ao esforço hispânico, nas<br />

Américas, no Oriente e nos trópicos, embora aquele de que mais se fale,<br />

tanto bem quanto mal, tanto justa quanto injustamente, seja o<br />

representado pelo jesuíta, com relação a uns povos, e pelo dominicano,<br />

com relação a outros, talvez não haja exagero em dizer-se hoje, à base<br />

de investigações objetivas e de estudos profundos, que o mais influente<br />

sobre aquele esforço, desde os começos, foi o Catolicismo<br />

franciscano”. 31<br />

O conhecimento produzido pelos frades de São Francisco, em particular aquele<br />

influenciado pela escola de Oxford, foi a ciência ocidental que, por excelência,<br />

favoreceu, esclareceu e orientou a expansão portuguesa no Oriente, nas Áfricas e nas<br />

Américas. Apesar disso, Freyre se recente com o pouco esforço que foi dedicado ao<br />

trabalho de investigação das influências do nominalismo franciscano nos trópicos,<br />

especificamente, no Brasil. Trata-se de uma questão aberta à espera de quem por ela se<br />

devote. 32<br />

30 Segundo Freyre, o brasileiro é uma gente hispânica, assim como é hispânica a sua cultura. Essa idéia é<br />

amplamente desenvolvida em O Brasileiro entre outros Hispanos: Afinidades, Contrates e Possíveis<br />

Futuros nas suas Inter-Relações, Rio de Janeiro: José Olympio/MEC, 1975. Apesar de mencionarmos a<br />

idéia freyreana de um “ethos ibérico/hispânico”, não desejamos engrossar o conceito de “identidade”<br />

como um processo que nutre o ente com ele mesmo. Norbert Elias critica as tentativas de explicar as<br />

formações sócio-históricas através da evocação de forças supra-individuais anônimas, baseadas em<br />

modelos panteístas da história, de corte Hegeliano. Deste modo, imagina-se que formações sociais<br />

específicas sejam habitadas por um espírito supra-individual comum, como o espírito da Grécia antiga ou<br />

da França. Cf. ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, pp. 14<br />

s.<br />

31 FREYRE, Gilberto. A Propósito de Frades, Salvador: Universidade da Bahia, 1959, pp. 57 s. Apesar<br />

da importante menção de Freyre à destacada importância do que chamou de “Catolicismo Franciscano”,<br />

nas Américas, cabe também a ressalva de que devemos ter cuidado com hipóteses que estabelecem<br />

hierarquias do tipo “mais e menos”, difíceis de serem comprovadas sem resvalarmos em atitudes<br />

laudatórias ou apologéticas.<br />

32 Idem, p. 71.


Jaime Cortesão é outro importante pensador a defender que “o franciscanismo<br />

foi e é a alma do Brasil”. 33 No franciscanismo, enraíza-se a inspiração dos<br />

descobrimentos marítimos e o entusiasmo que neles puseram os portugueses. Os<br />

franciscanos foram responsáveis pela “mística dos descobrimentos”, cujos influxos<br />

determinaram o movimento de expansão geográfica.<br />

“Aproximando o homem da Natureza e substituindo um ideal<br />

contemplativo e de aspirações extraterrenas por um cristianismo<br />

amorável, comunicativo e pragmático, o franciscanismo dissipou<br />

a sombra de maldição e terror que pesava sobre a vida e sobre a<br />

Terra e abriu caminho à marcha do homem no planeta”. 34<br />

Parece, no entanto, que esse ponto de vista não tem comovido os pesquisadores<br />

brasileiros, que insistem em tratar, exclusivamente, do jesuitismo. Historiadores e<br />

autores, ao escreverem a História do Brasil, intencionalmente, põem de lado alguns<br />

aspectos que lhes pareceram insignificantes ou sem valor. Uma análise mais detida<br />

verificará que o interesse pelas pedras maiores e que tenham um brilho mais intenso,<br />

muitas vezes, deixa passar despercebidas, como refugo, pedrinhas preciosas que se<br />

misturam ao cascalho. E isto podemos perceber em textos como o que reproduzimos a<br />

seguir:<br />

“Antes da vinda do primeiro governo já atuavam religiosos nas<br />

capitanias, mas individualmente, sem elo da organização e da disciplina<br />

hierárquica. Deixando de considerá-los, portanto, como início da ação<br />

da Igreja Católica no Brasil, ficamos com os autores que datam esse<br />

começo do desembarque dos primeiros padres da Companhia de Jesus<br />

e da criação do bispado de Salvador pela Bula do Papa Júlio III, Super<br />

Specula Militantis Ecclesias (25 de fevereiro de 1550)”. (Grifo nosso) 35<br />

33<br />

CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, Vol. II, Lisboa: Portugália, s/d, p. 252.<br />

34<br />

CORTESÃO, Jaime. Os Descobrimentos Portugueses, Vol. I, Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da<br />

Moeda, 1990, p. 86.<br />

35<br />

TAVARES, Luís Henrique Dias. O Primeiro Século do Brasil: Da Expansão da Europa Ocidental<br />

aos Governos Gerais das Terras do Brasil, Salvador: Edufba, 1999, p. 139.


E quem são esses “religiosos” avulsos “sem elo da organização e da disciplina<br />

hierárquica” senão os franciscanos que, no Brasil, se estabeleceram desde os primeiros<br />

anos da colonização?<br />

Por isso, há grande surpresa quando temos a notícia de que a primeira “escola”<br />

do Brasil foi fundada por dois franciscanos, Frei Bernardo de Armenta e Frei Alonso<br />

Lebron, em Mbyaçá, Laguna dos Patos, Santa Catarina, no ano de 1538, portanto, onze<br />

anos antes da chegada de Nóbrega e de Anchieta. 36 Não se trata de acontecimento<br />

desconhecido dos cronistas e dos historiadores. No entanto, por questões de<br />

nacionalidade (o que, hoje, torna-se injustificável) - tratavam-se os frades de<br />

castelhanos a serviço da Coroa espanhola – não foi considerado como ação<br />

missionária/educativa pertencente ao ciclo lusitano-brasílico.<br />

Diversas cartas jesuíticas dão testemunho da ação franciscana entre os índios<br />

Carijós. Datada de 1553, relata a Carta do Irmão Antônio Rodrigues:<br />

“Há alguns anos foram que dois frades franciscanos [Bernardo e<br />

Alonso] e entraram cerca de 50 léguas daqui desta Capitania, pela terra<br />

dentro, caminho dos Carijós, e a uma Aldeia deles chamaram Província<br />

de Jesus [foi toda a zona que assim chamaram], onde fizeram admirável<br />

fruto”. 37<br />

Duas Cartas do Pe. Manoel da Nóbrega, ambas datadas de 1549, ano da chegada<br />

dos jesuítas ao Brasil, são igualmente preciosas. Falando sobre os índios Carijós, assim<br />

se expressa:<br />

muitos”.<br />

“Entre eles estavam [dois clérigos que têm] convertido e batizado<br />

E em outra missiva:<br />

“Os gentios são de diversas castas, uns se chamam Guaianases, outros<br />

Carijós. Este é um gentio melhor que nenhum desta costa. Os quais<br />

36 ARNS, Alice Bertoli. Mbyaça, a Província de Jesus de Frei Bernardo de Armenta. In: Laguna, uma<br />

Esquecida Epopéia de Franciscanos e Bandeirantes, Curitiba: 1975, p. 47.<br />

37 Carta do Irmão Antônio Rodrigues, in LEITE, Serafim. Páginas de História do Brasil, p. 135.


foram, não há muitos anos, dois frades castelhanos ensinar e tomaram<br />

tão bem a sua doutrina, que têm já casas de recolhimento para mulheres<br />

como de freiras e outros como de frades. E isto durou muito tempo, até<br />

que o diabo levou lá uma nau de salteadores, e cativaram muitos<br />

deles”. 38<br />

Frei Odulfo Van der Vat, analisando as Cartas Jesuíticas, sentiu-se autorizado a<br />

crer que os franciscanos espanhóis ensejaram introduzir a vida religiosa em comunidade<br />

com os indígenas, circunstância que dá à iniciativa especial importância histórica.<br />

Defendeu ainda que o trabalho missionário em Mbyaçá, por constituir-se de forma<br />

metódica, perseverante e organizada, pode ser apontado como uma espécie de<br />

“redução”, protótipo das que mais tarde, em escala maior, realizaram os jesuítas no<br />

Paraguai e no território das Missões. 39<br />

Em 1585, quando foi criada a Custódia de Santo Antônio do Brasil, com sede<br />

em Olinda, Pernambuco, os franciscanos, ali chegados, logo encetaram a catequese<br />

entre os indígenas vizinhos a Olinda. Em 1586, fundaram um internato para os curumins<br />

onde, além de aprenderem a doutrina cristã, eram ensinados a ler, escrever, fazer contas,<br />

cantar e tocar instrumentos musicais. Os alunos do internato acompanhavam os<br />

missionários nas viagens às diferentes aldeias ajudando no ensino do catecismo e<br />

encontrando os termos adequados e as comparações próprias para explicarem aos<br />

adultos os conceitos da religião cristã. 40<br />

De Olinda, avançaram os missionários-educadores na catequese dos índios em<br />

outras partes de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Alagoas, Paraíba, Grão-Pará e<br />

Maranhão. Por via de regra, os missionários erguiam uma escola junto à capela e à<br />

residência. Segundo Frei Vicente do Salvador, nas aldeias que assistiam “era o<br />

principal cuidado dos religiosos, depois de bem instruídos nos princípios da fé, aqueles<br />

38 Manuel da Nóbrega, Cartas do Brasil, p. 81.<br />

39 VAN DER VAT, Frei Odulfo. Os Primeiros Missionários de Santa Catarina, in Revista Vozes de<br />

Petrópolis, Petrópolis: Vozes, 1944, fasc. 5, p. 656 ss.


índios, ensiná-los a ler e escrever, para melhor inteligência sua, e a poderem ensinar<br />

também aos parentes e a paisanos”. 41 Os cronistas franciscanos salientam, entre as<br />

matérias de ensino, a música, elogiando a pronunciada índole dos alunos que chegavam<br />

a cantar e a tocar nos atos religiosos. 42<br />

Desde os primeiros tempos da colonização, além da formação dada aos<br />

indígenas, a partir de 1718, os franciscanos passaram a dedicar-se à educação elementar,<br />

criando escolas de gramática ou primeiras letras nas localidades em que fundavam seus<br />

conventos. Segundo as estatísticas de Frei Apolinário da Conceição, em 1740, apenas os<br />

conventos, eram vinte e nove. 43<br />

Frei Jaboatão dá notícias de que, na Província do norte, funcionavam aulas<br />

gratuitas nos Conventos de Serinhaém, Cairu, São Cristovão, Penedo, Alagoas e<br />

Igarassu. Essas escolas contavam com a ajuda do Rei, a título de retribuição, com<br />

esmolas para a enfermaria do Convento. 44<br />

No Sul, os franciscanos optaram em realizar missões-volantes, não<br />

estabelecendo residência permanente nas aldeias. No entanto, em 1733, existiam aulas<br />

gratuitas de gramática, em que se ensinava também a ler, escrever e contar, nos quatro<br />

conventos do sul, Macacu, Cabo-Frio, Taubaté e Itu; e, por volta de 1740, diz Frei<br />

Apolinário que eram cinco, sem nomear o quinto 45 , supondo Frei Basílio Röwer tratar-<br />

se do Convento de Vitória. 46<br />

40<br />

Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão. Novo Orbe Seráfico Brasílico, Rio de Janeiro, 1859, Parte I,<br />

nº 2, p. 150.<br />

41<br />

Frei Vicente do Salvador. História do Brasil: 1500-1627, 7ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:<br />

Editora da Universidade de São Paulo, 1982, p. 393.<br />

42<br />

Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão. Op. cit. Parte I, nº 2, p. 150.<br />

43<br />

Frei Apolinário da Conceição. Cláustro Franciscano, Ereto no Domínio da Coroa Portuguesa,<br />

Lisboa: 1740.<br />

44<br />

Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão. Op. cit. Parte II, nº 339 e os seguintes 514, 582, 605, 611.<br />

45<br />

Frei Apolinário da Conceição. Epítome do que em Breve Suma Contém esta Província de Nossa<br />

Senhora da Conceição da Cidade do Rio de Janeiro, 1730, parágrafo 27. Idem, Primazia Seráfica na<br />

Região da América, Lisboa, 1733, 84 e Idem, Cláustro Franciscano Ereto no Domínio da Coroa<br />

Portuguesa, Lisboa, 1744, 77.<br />

46<br />

RÖWER, Basílio. A Ordem Franciscana no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1947, p. 150.


Segundo Willeke, “enquanto as escolas dos jesuítas de preferência visavam às<br />

cidades, as escolas dos franciscanos beneficiavam o interior, onde os padres seculares<br />

na qualidade de capelães dos engenhos de açúcar instruíam tão somente os filhos da<br />

chamada ‘Casa Grande’ ficando porém os povoados dependentes da caridade dos<br />

filhos de São Francisco.” 47<br />

Poder-se-á ver, nessa opção de interiorização, a causa que relega a atividade<br />

educacional franciscana a uma menor visibilidade?<br />

Como se verá, adiante, a escassez de documentos é sempre apontada como um<br />

outro sério motivo para que a atividade dos primeiros missionários franciscanos seja<br />

pouco conhecida. Teremos, aqui, uma hipótese promissora?<br />

Haverá, ainda, outras razões, que não conseguimos vislumbrar, neste momento,<br />

a impedir a visibilidade dos franciscanos, no Brasil? Certamente que sim! Mas,<br />

continuemos no nosso breve intento de assinalar a atuação educacional dos<br />

franciscanos.<br />

Quanto ao ensino secundário, propriamente dito, a atuação franciscana só foi<br />

possível após a expulsão dos jesuítas, que, até então, monopolizavam esse segmento.<br />

Em Pernambuco, os franciscanos foram chamados “a abrir aulas nos conventos do<br />

Recife e Olinda, evitando assim que os rapazes estudantes perdessem o tempo”. 48 O<br />

mesmo ocorreu na Paraíba. A pedido do Governador de Pernambuco, os franciscanos<br />

abriram “classes e escolas, sem embargo de não ter acomodações competentes, assim<br />

na referida Vila [de Recife] como nas cidades de Olinda e Paraíba, por serem as<br />

únicas terras desse Governo em que não as tinham, por pertencerem aos Religiosos<br />

47<br />

WILLEKE, Venâncio. Escolas Franciscanas do Brasil. In: Revista da Escola de Belas Artes de<br />

Pernambuco, Recife, 1961, ano V, nº 1, p. 87.<br />

48<br />

MUELLER, Frei Bonifácio. Origem e Desenvolvimento da Província de Santo Antônio, in Vários.<br />

Província Franciscana de Santo Antônio do Brasil: 1657-1957, Volume I, Recife: Provincialado<br />

Franciscano, 1957, p. 174.


Jesuítas”. 49 Em resposta às ações do Governador de Pernambuco, o próprio Conde de<br />

Oeiras, futuro Marques de Pombal, em despacho expedido, em 12 de novembro de<br />

1759, sugere que se dêem aos capuchos mais classes, se preciso, atestando haver “entre<br />

eles quem seja capaz de as reger”. 50 Os estudos secundários para leigos estabelecem-se<br />

progressivamente em conventos franciscanos, e mesmo em aldeias de índios, como<br />

informou Maria do Carmo Miranda. 51<br />

A atividade educacional dos franciscanos também se estendeu aos graus<br />

superiores de ensino. Apesar de vivermos tão agarrados à Cidade Maravilhosa, somos<br />

tomados de espanto ao conhecer a história do convento-universidade de Santo Antônio,<br />

no Rio de Janeiro. Fundado em 1608, no morro de Santo Antônio, já, em 1650,<br />

funcionavam no convento duas Cadeiras de Altos Estudos de Teologia e Filosofia. Em<br />

1776, já eram treze as Cadeiras. Dizia-se que os estudos ombreavam, pela seriedade,<br />

com os de Coimbra e do Porto, e que seus egressos eram disputados por outros colégios<br />

e outras cidades como professores de requintado gabarito.<br />

Após a reforma da instrução pública realizada pelo Marques de Pombal, os<br />

Estatutos do Convento de Santo Antônio - Casa de Estudos da Província Franciscana da<br />

Imaculada Conceição do Brasil - foram reformados e aprovados por alvará régio de 11<br />

de junho de 1776, tomando por base os novos Estatutos da Universidade de Coimbra, de<br />

1772. Essa autorização régia deve ser destacada, por ser uma rara tentativa realizada no<br />

Brasil para a instituição de cursos universitários 52 , especialmente se levarmos em conta<br />

a proibição da existência de estudos superiores na Colônia. Em conseqüência disso, a<br />

nossa história registra que o primeiro curso superior do país – um curso de Direito -<br />

49 Carta do Governador de Pernambuco para Sebastião José de Carvalho e Mello informando-o das<br />

providências tomadas para a substituição dos Jesuítas como professores na Capitania, Arquivo<br />

Ultramarino, Pernambuco, Cx. 52, documento sem número.<br />

50 Despacho expedido pelo Conde de Oeiras para o Governador de Pernambuco dando conta das<br />

vantagens econômicas em ser divulgado o justo motivo da expulsão dos jesuítas, etc., Arquivo<br />

Ultramarino, Pernambuco, Cx. 52, documento sem número.<br />

51 MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Os Franciscanos e a Formação do Brasil, Recife:<br />

Universidade Federal de Pernambuco, , 1969, p. 207.


surgiu apenas em 1827, na Cidade de São Paulo, por decreto da Assembléia<br />

Constituinte e Legislativa do Brasil, de 19 de agosto de 1823, e confirmado por Lei de<br />

11 de agosto de 1827, assinada por Dom Pedro I, cinco anos após a Independência.<br />

Oportuno também destacar que, mesmo este curso de Direito, tido como o primeiro do<br />

Brasil, foi inaugurado, em 1º de março de 1828, nas dependências do Convento de São<br />

Francisco, no atual Largo de São Francisco, cedido ao Governo. Mais tarde, aquela<br />

parte do Convento foi confiscada, inclusive, a biblioteca dos frades.<br />

Os estudos superiores no Convento do Rio de Janeiro constituíam um Curso<br />

Público Superior, único no gênero, composto de matérias literárias, filosóficas e<br />

teológicas. Funcionava como uma espécie de universidade onde se ensinavam História<br />

Eclesiástica, o Grego, o Hebraico, a Retórica, a Filosofia, a Teologia, a Exegética, e<br />

onde foi introduzido o ensino oficial das línguas francesa e inglesa. As aulas eram<br />

freqüentadas por estudantes franciscanos, seminaristas do clero secular e número<br />

considerável de leigos que deixavam vazias as aulas régias. 53<br />

Uma carta de autoria de dois professores régios do Rio de Janeiro, João Marques<br />

Pinto (professor de Grego) e Manoel Ignacio da Silva Alvarenga (professor de<br />

Retórica), dá informa as autoridades do “abatimento em que se acham os estudos<br />

régios”. Acusam os Religiosos, nomeadamente, Beneditinos e Franciscanos, de<br />

“arrancarem industriosamente de nossas aulas para as suas, apesar de nossos<br />

clamores, quantos desses poucos discípulos que nós tínhamos”. Mais adiante, reclamam<br />

do Reitor do Seminário de São José, o Cônego José de Souza Marmelo, “o qual<br />

concedendo licença prontamente aos seus seminaristas para irem estudar a<br />

mencionada filosofia peripatética ao Convento de Santo Antônio, pelo contrário impede<br />

52 Conferir Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 29, parte II, p. 363.<br />

53 RÖWER, Basílio. O Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, Petrópolis: Vozes, 1937.


e repreende, como se tivessem cometido um crime, aqueles que lhe a pedem para<br />

freqüentar as escolas e estudos Régios”. 54<br />

Não apenas fundavam e mantinham escolas os franciscanos que se tornavam<br />

mestres requisitados por outras instituições. É, sobretudo nos cursos superiores que os<br />

vemos prestando cooperação e serviços inestimáveis. 55<br />

• Frei João do Amor Divino, em 1770, foi indicado, pelos Superiores, lente de<br />

Geometria para os militares, a pedido do General da Capitania de São Paulo,<br />

Dom Luís Antônio de Souza;<br />

• Dom Frei Manoel da Ressurreição, bispo metropolitano, em 1777, foi mestre<br />

de Francês de José Bonifácio de Andrada e Silva, e responsável por alargar<br />

ao Patrono da Independência os seus estudos filosóficos, literários,<br />

filológicos e científicos;<br />

• Frei Antônio da Natividade Martins, em 1783, foi nomeado Mestre pela<br />

Congregação do Curso de Filosofia para seculares, aberto no Convento de<br />

Vitória, a pedido da Câmara daquela cidade;<br />

• Em 1810, abriram um curso de Filosofia, no Convento de Taubaté, “pedido<br />

pelo Senado – diz o Livro das Eleições – a benefício daqueles povos, e com<br />

Beneplácito de Sua Alteza Real”. 56 Neste curso lecionaram Frei José de<br />

Santa Miguelina, Frei João de Parma, Frei Manoel do Amor Seráfico, Frei<br />

Domingos de Nazaré, e outros que os documentos não registraram;<br />

• Em 1811, o Convento de Itu já mantinha aulas públicas superiores de Latim,<br />

Filosofia e Matemáticas. Teve, como professores, Frei Inácio de Santa<br />

54<br />

Publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo 65, Parte Primeira, pp. 215 a<br />

223.<br />

55<br />

As informações a seguir foram recolhidas, sobretudo, de ORTMANN, Frei Adalberto. Subsídios para<br />

a História da Província da Imaculada Conceição e de MIRANDA, Maria do Carmo Tavares de. Op.<br />

cit. pp. 206 a 212.


Rosália Alvarenga, Frei Domingos de Nazaré, Frei Inácio de Santa Justina e<br />

Frei Antônio da Assunção;<br />

• Frei Joaquim do Espírito Santo, em 7 de fevereiro de 1877, foi nomeado<br />

professor catedrático de Religião da Escola Normal da Bahia; é dessa época<br />

o seu Parecer sobre a reforma de ensino, o qual permitiu às autoridades<br />

introduzirem modificações na instrução pública. O mesmo frade ocupou, de<br />

1867 até 1874, o cargo de Diretor do Colégio dos Órfãos.<br />

Os franciscanos também foram chamados a prestar ajuda em casas de estudo<br />

para formação de sacerdotes seculares e regulares:<br />

• O Seminário de São José do Rio de Janeiro contou com a cooperação de<br />

diversos mestres franciscanos que receberam convite para ocupar as mesmas<br />

cadeiras que mantinham no Convento de Santo Antônio. Em 1780, Frei<br />

Capistrano de São Bento, possuidor de vasto cabedal de conhecimentos<br />

jurídicos, teológicos e exegéticos, ensinou Sagrada Escritura e Teologia<br />

Moral; de 1789 a 1801, encontramos Frei Antônio de Santa Úrsula<br />

Rodovalho, homem de ciências e letras, tido como o religioso mais sábio que<br />

teve a Província da Imaculada Conceição, exercendo o ensino de Filosofia;<br />

no ano de 1801, Frei Francisco de São Carlos, o mavioso cantor de Nossa<br />

Senhora no poema “Assunção”, é mestre de Eloqüência, e Frei Frei Inácio de<br />

Santa Justina é lente de Teologia Moral e Dogmática; em 1829, o grande<br />

filósofo e orador sacro, Frei Francisco do Monte Alverne, leciona Retórica,<br />

em 1830, é mestre de Filosofia Racional e Moral, até 1836, e, de 1830 a<br />

1831, inclusive, leciona Teologia Dogmática; ainda, entre outros, se<br />

56 Província da Imaculada Conceição, Livro das Eleições, folha 76 verso.


destacam Frei Marcelino de Santa Matildes e Frei Manoel da Encarnação;<br />

em 1835, três franciscanos ocupam cadeiras no referido Seminário.<br />

• O Seminário de Sant’Ana, em São Paulo, fez convite idêntico àquele feito<br />

pelo Seminário do Rio de Janeiro aos franciscanos do Convento de Santo<br />

Antônio; em 1790, Frei Francisco de São Carlos ocupou a cadeira de<br />

Filosofia Dogmática; entre outros franciscanos, mestres do Seminário, avulta<br />

a figura de Frei Inácio de Santa Justina; ali, lecionaram os franciscanos até<br />

1824;<br />

• O Seminário de Olinda, instalado em 1800, teve, como primeiro mestre de<br />

Filosofia, Frei José da Costa Azevedo; posteriormente, o mesmo frade foi<br />

lente de Mineralogia, no Rio de Janeiro, e o primeiro diretor do Museu<br />

Nacional; Salientamos, entre outros mestres franciscanos, Frei Antônio de<br />

São Camilo de Lellis Carvalho, que regeu a cadeira de Latim e de Francês, a<br />

partir de 1855; em 1856, Frei Joaquim do Espírito Santo, pregador honorário<br />

da Capela Imperial, com jurisdição em toda a Diocese do Rio de Janeiro<br />

(assim como vários franciscanos que receberam título idêntico), é mestre de<br />

Eloqüência Sagrada;<br />

• O Seminário dos Carmelitas, em São Paulo, também solicitou o trabalho dos<br />

franciscanos para os seus estudos superiores; de 1808 a 1811, Frei Luiz de<br />

Santa Catarina foi lente de Filosofia e de Teologia; de 1811 a 1814, Frei<br />

Antônio do Bom Despacho Macedo lecionou Filosofia;<br />

• O Seminário da Bahia, em 1880, tem Frei Joaquim do Espírito Santo como<br />

mestre de Filosofia; em 1886, é transferido, a pedido, para a cadeira de<br />

Liturgia; Frei Antônio da Virgem Maria Itaparica, reconhecido poeta<br />

clássico, no mesmo Seminário, foi catedrático de Teologia.


Há que se destacar outros franciscanos ilustres pelos seus invulgares<br />

conhecimentos em diversos ramos da ciência: Frei Vicente do Salvador, baiano, foi o<br />

autor da primeira “História do Brasil”, por isso, chamado, por Capistrano de Abreu, o<br />

“Herótodo” brasileiro, 57 Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, o frade pernambucano a<br />

quem sempre recorremos neste trabalho; Frei José Mariano Veloso, brasileiro, célebre<br />

naturalista, autor de “Flora Fluminense”, em onze volumes, e de muitas outras<br />

publicações; Frei Francisco de Santa Teresa de Jesus Sampaio, reconhecido como um<br />

dos próceres da Independência, entre tantos.<br />

É importante destacar que, raro exceções, os frades pertencentes às Províncias<br />

brasileiras não iam a Portugal realizar estudos, como o faziam, freqüentemente, os<br />

sacerdotes seculares. Toda a formação recebiam nas casas de estudo da própria<br />

Ordem. 58<br />

Esta ação acadêmica dos franciscanos terá marcado a educação brasileira na<br />

segunda metade do século XVIII e começos do século XIX? Caso seja positiva a<br />

resposta, por que suas marcas foram apagadas da nossa história da educação?<br />

Ordem Franciscana, presente no Brasil, desde 1500, sobretudo, a partir da<br />

segunda metade do século XVIII, sentiu o peso do braço do Estado. Muitas vezes os<br />

57 Capistrano de Abreu não conferiu à História da Província de Santa Cruz, de Pero de Magalhães de<br />

Gândavo, editada em 1576, o estatuto de “História”, por considerá-la “antes natural que civil”. O texto<br />

modernizado de Gândavo foi reeditado, no Brasil, com o título “A Primeira História do Brasil: História da<br />

Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil”, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.<br />

58 Tivemos acesso a recente tese de doutorado intitulada Processo de Decadência da Província<br />

Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil e Tentativas de Reforma – 1810-1855, defendida por<br />

Sandro Roberto da Costa, na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, no ano de 2000. Com grande<br />

riqueza documental, encontrada nos mesmos arquivos brasileiros que pesquisamos, e em outros fora do<br />

país, particularmente, no Vaticano e na Cúria Geral da Ordem dos Frades Menores, em Roma. Outro<br />

trabalho interessante é a dissertação de Frei Gentil Avelino Titton, intitulado A Reforma da Província<br />

Franciscana da Imaculada Conceição: 1738-1740 apresentado a mesma Pontifícia Universidade<br />

Gregoriana, em 1972. Ver também MULLER, Ivo. Os Franciscanos na História da Educação<br />

Brasileira. Monografia apresentada a Universidade do Sagrado Coração, Bauru, no ano de 1988.


frades eram obrigados a seguir à risca as determinações régias, uma vez que eram tidos<br />

como “funcionários” do Estado Português, de cujo os cofres saíam o sustento da<br />

comunidade e o patrocínio das missões. Nos anos pombalinos, a intervenção do Estado<br />

sobre as questões internas da Ordem foi muito mais grave. Os franciscanos e as demais<br />

famílias religiosas sofreram as conseqüências da proibição de manterem-se os<br />

noviciados, a partir de 1758.<br />

Mas foi sob o império brasileiro que a Ordem Franciscana quase extinguiu-se.<br />

Mais uma vez, a indébita interferência do poder temporal nos negócios da Ordem, a lei<br />

da “Altenativa” 59 e os títulos e isenções conferidas aos frades que, não raro, feriam a<br />

disciplina monástica, são apontadas como causas da decadência que atingiu não apenas<br />

os franciscanos, mas todas as Ordens Religiosas estabelecidas no Brasil. Há que se levar<br />

também em conta o espírito do tempo, marcado pelas idéias liberais do Iluminismo e<br />

pelo anti-clericalismo da sociedade, pouco complacente com as Ordens religiosas.<br />

Para sermos justos, além dos fatores externos já apontados, situações ad intra<br />

também devem ser apontadas como impeditivo da consecução de projetos. O<br />

afrouxamento da vida religiosa, em diversos períodos, conduziu os frades a uma vida<br />

relaxada e pouco recomendável. Uma carta do Bispo de Pernambuco, datada de 20 de<br />

abril de 1760, endereçada ao Conde de Oeiras, explicita o estado de “superfluidade” e<br />

de “soltura que há em grande parte e parte deles”, “principalmente Carmos e<br />

Capuchos”. Em relação aos Capuchos da Província de Santo Antônio, afirma o Bispo<br />

serem “altivos, e os mais ricos”, de forma que “deixaram a capuchice em Portugal”. A<br />

carta também faz menção a “um sumário das culpas de concubinato de um frade”,<br />

organista do convento da Vila de Alagoas, “onde era muito escandaloso”, encaminhado<br />

59 Esta lei foi introduzida em 1719 e tinha a finalidade de regularizar a distribuição eqüânime dos ofícios e<br />

a recepção de candidatos brasileiros e portugueses. O seu escopo era apaziguar os ânimos dos frades,<br />

entre os quais se notava também a explosão do nativismo, que era geral nos princípios do século XVIII.


ao Provincial dos Capuchos, que repelira as acusações como falsas. 60 O afrouxamento<br />

do espírito religioso também era notado entre os frades da Província da Imaculada<br />

Conceição. No “Livro das Pastorais”, acham-se vários documentos dos superiores<br />

admoestando os frades a “extirpar abusos e relaxações” e a “restaurar a formosura da<br />

Província afeada, da Província que nos passados anos lograva entre outras da Ordem<br />

o gloriosíssimo título de Província Santa”. 61<br />

A Província da Imaculada Conceição, 62 ficou reduzida a um único frade, Frei<br />

João do Amor Divino Costa, após o falecimento de Frei Francisco de São Diogo, em<br />

1886, enquanto a Província de Santo Antônio contava com apenas nove religiosos.<br />

Graças à atuação enérgica de Frei João, diante do governo imperial, que tentava<br />

apropriar-se de todos os conventos existentes, o patrimônio da Província foi preservado<br />

em mãos franciscanas. Em 1891, Frei João recebeu os primeiros frades restauradores<br />

vindos da Província de Santa Cruz da Saxônia.<br />

A idéia de restauração, em verdade, partiu dos remanescentes da Província de<br />

Santo Antônio. O seu Provincial, Frei Camilo de Lelis, encaminhou pedido de ajuda à<br />

Santa Sé. 63<br />

Na mesma ocasião, a florescente Província da Saxônia, com grande número de<br />

religiosos e totalmente refeita dos males causados pela Kulturkampt, 64 dirigia também à<br />

60 Carta do Bispo de Pernambuco ao Secretário de Estado dos Negócios de Estado dos Negócios do<br />

Reino, Conde de Oeiras, etc. Arquivo Ultramarino, Cx. 53, documento sem número. É conhecido o fato<br />

de que os frades alemãs que vieram ao Brasil, no final do século XIX, para restaurar as Províncias<br />

mantinham vida comunitária separada dos brasileiros a fim de não se deixarem influenciar pela vida<br />

desregrada que levavam.<br />

61 Cópia da Pastoral que anuncia à Província a eleição feita na pessoa do Ir. Preg., Ex-Definidor Fr.<br />

Joaquim de Jesus e Maria, Ministro Provincial da mesma Província, e as Atas capitulares do Capítulo<br />

Celebrado aos 24 de setembro de 1796. Livro das Pastorais da Província da Imaculada Conceição, ff.<br />

39ss. Conferir também as cópias das Pastorais que tratam de assunto de mesmo teor, nas folhas 2 ss; 28<br />

ss.; 39v ss.<br />

62 O Brasil possuía duas Províncias Franciscanas: a que abrangia as regiões Norte e Nordeste, chamada de<br />

Santo Antônio, e a da Imaculada Conceição, cujo território compreendia as Regiões Sudeste e Sul. Ambas<br />

foram restauradas pelos frades alemães, originários da Província da Saxônia.<br />

63 Segundo testemunho escrito de Frei Humberto Themans, um dos quatro primeiros frades a chegar ao<br />

Brasil com a missão de restaurar as duas Províncias decadentes, o pedido de ajuda foi encaminhado no<br />

início da década de 80. A missão foi aceita em 1890, especialmente quando ficou clara a relação do


Santa Sé o pedido de destinar-lhe um campo de trabalho no exterior. Como bem<br />

destacou Röwer, houve uma “feliz coincidência: da Terra de Santa Cruz pediam-se<br />

Religiosos; a Província de Santa Cruz oferecia-os”. 65<br />

Novo rebento de esperança vicejava, novo ardor missionário se acendia, novos<br />

métodos de evangelização eram implantados nas terras brasileiras pelos jovens<br />

franciscanos da Província de Santa Cruz. 66<br />

Como os seus antecessores portugueses e espanhóis, os frades alemães<br />

revelaram autêntica vocação de educadores e fundadores de escolas. É sabido que os<br />

restauradores da Província da Imaculada Conceição, no início do século XX, primeiro<br />

procuraram levantar a escola paroquial e só depois a igreja matriz.<br />

Foram muitas as escolas paroquias criadas pelos franciscanos como nucleadoras<br />

da comunidade e fonte de evangelização. Algumas destas escolas desapareceram,<br />

quando outras tiveram condições de substituí-las, ou se desenvolveram como entidades<br />

próprias e autônomas. 67 O depoimento de Frei Neotti confirma esta quase obstinação<br />

dos seus confrades restauradores: “Dificilmente se encontrará entre nossos confrades<br />

velhos – os que ainda conheceram a desobriga – que não tenha fundado uma ou mais<br />

escolas neste Sul do Brasil”. 68<br />

Quanto à presença educacional dos franciscanos, na atualidade, vale salientar<br />

que ela continua a se dar em todos os níveis de ensino.<br />

Estado com a Igreja, após a Proclamação da República. Os frades, no entanto, foram enviados só em maio<br />

de 1891.<br />

64 Kulturkampt, ou luta pela cultura, consistiu no litígio entre a Igreja Católica e os governos de língua<br />

alemã, especialmente o governo da Prússia. Seu expoente máximo foi Bismark, chanceler do império<br />

alemão e primeiro ministro da Prússia. Leis sancionadas durante o período da Kulturkampt (1871-1886),<br />

limitavam a liberdade religiosa, secularizavam e expulsavam os religiosos, confiscavam bens e<br />

propriedades da Igreja e das Ordens Religiosas, inclusive os colégios que mantinham, além de uma série<br />

de supressões de outros direitos.<br />

65 RÖWER, Basílio. Páginas de História Franciscana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1941, p. 5.<br />

66 Ao Brasil, chegavam religiosos muito jovens, vários deles estudantes com profissão simples, diáconos e<br />

neo-sacerdotes. Um número significativo destes jovens frades vieram a falecer pouco tempo após a sua<br />

chegada, principalmente em conseqüência da malária.<br />

67 NEOTTI, Clarêncio. Uma Palavra de Introdução. In: Franciscanos na Educação, São Paulo: DEC -<br />

Província Franciscana da Imaculada Conceição, 1985.<br />

68 Idem.


A conhecida Editora Vozes, a maior editora católica da América Latina,<br />

completando cem anos de existência, em 2001, teve seu começo no porão do Convento<br />

do Sagrado Coração de Jesus, Petrópolis (RJ). Com uma pequena impressora, os frades<br />

educadores produziam cartilhas e livros didáticos para os alunos da sua Escola Gratuita<br />

São José. E, de lá para cá, não pararam de editar grande parte dos livros que estão nas<br />

mãos dos estudantes, professores, pensadores, intelectuais e também do povo mais<br />

simples. 69<br />

Estamos diante de fatos e situações grandiloqüentes que permeiam quinhentos<br />

anos de história ininterrupta. As páginas da história franciscana no Brasil estão plenas<br />

de aventuras, de heroísmo, de utopias, como também de decadências, de mediocridades,<br />

de traições aos ideais. Deparamo-nos com forças poderosos encarnadas em homens<br />

capazes de trocar a sua pátria por outra, de restaurar tradições, memórias e projetos<br />

seculares, de superar perseguições, dificuldades e privações em nome de sua fé. Vários<br />

sofreram o martírio. Jovens frades, alguns com menos de dezoito anos, nos tempos de<br />

restauração das Províncias brasileiras, entregaram suas mal começadas vidas,<br />

sucumbindo à malária e demais endemias. Através da criação de escolas de níveis<br />

diversos, ao longo destes 500 anos, educaram os filhos da terra e os que aqui chegaram.<br />

A utopia de restauração atravessa a saga dos franciscanos no Brasil e na América.<br />

Muito do que fizeram estes franciscanos só é possível remontar através do<br />

testemunho de terceiros. Como diz Willeke, os testemunhos dados por pessoas<br />

estranhas apresentam apenas uma pálida imagem da realidade enfrentada durante<br />

séculos pelos seráficos apóstolos da fé, cuja maior parte caiu nas trevas do<br />

esquecimento e entrou no rol de heróis anônimos. 70<br />

69 Lembramos, aqui, da popular Folhinha do Sagrado Coração de Jesus, com mais de cem mil exemplares<br />

editados anualmente.<br />

70 WILLEKE, Venâncio. Missões Franciscanas no Brasil (1500-1975), Petrópolis: Vozes, 1974.


Ao buscar fontes documentais e bibliográficas sobre a educação brasileira,<br />

entendendo-as como elaborações complexas de memórias e de projetos plurais,<br />

deparamos com uma realidade asfixiante, que parece contrapor-se à diversidade, na<br />

própria História da Educação Brasileira: o predomínio da narrativa histórica num tipo de<br />

influência educacional que desvaloriza as contribuições que divergiram do padrão<br />

dominante.<br />

A presença dos franciscanos na educação brasileira é um tema quase intocado.<br />

Para vir a lume, há que se juntar pedaços, reconstituir fragmentos, identificar e<br />

valorizar indícios considerados secundários, reler documentos e fontes, sob nova<br />

perspectiva, estabelecer conexões entre acontecimentos nacionais e supranacionais.<br />

É bom que se diga logo, neste capítulo inicial, que não é nossa intenção fazer<br />

apologia à ação fransciscana nas Américas. Franciscanos, jesuítas, beneditinos,<br />

mercedários, carmelitas, oratorianos e todos os missionários aqui chegados não<br />

deixaram de ser agentes do sistema de conquista e de dominação da Europa sobre o<br />

Novo Mundo e sua gente. Nem mesmo aqueles que utilizaram métodos pacíficos para<br />

evangelizar os indígenas escaparam do processo de demolição e satanização das<br />

culturas autóctones. Pois, conforme afirma Boff, “a violência doce mata tanto quanto a<br />

violência crua do genocídio direto”. 71<br />

Basta lembrar que os franciscanos foram os primeiros a implantar os<br />

aldeamentos ou reduções que, mais tarde, foram amplamente utilizados pelos jesuítas.<br />

Trata-se de um método violento de “destribalização” e desenraizamento de sua terra e<br />

de suas tradições no intento de fazer com que os indígenas passassem pela “circuncisão”<br />

cultural ibérica, da língua, dos costumes, da forma de trabalhar e de organizar a vida.<br />

O resgate da tradição educacional franciscana, no Brasil, já seria uma tarefa<br />

altamente relevante. Assumo-a, não ao modo do historiador, mas como educador, mais


propriamente como um pesquisador de filosofia política da educação e, portanto, em<br />

diálogo com a historiografia. Sobretudo nos move a convicção de que, no corpo da<br />

tradição franciscana, há elementos valiosos que nos ajudarão a propor alternativas<br />

educacionais viáveis ao caminho pavimentado em mão única, em razão do discurso<br />

uníssono e fatalista que respalda as atuais políticas educacionais.<br />

Este esforço também acena para as modificações profundas que teremos que<br />

empreender em toda a cultura e a sociedade, particularmente na formação e na prática<br />

dos professores. Já não podemos formar professores somente com o acervo de<br />

conhecimentos reconhecidos até agora, sem embates e conflitos. Os câmbios e a<br />

diversificação dos processos históricos cobram ineditismos que incluem a construção de<br />

novos conceitos que, pela complexidade de suas articulações, contradizem os esquemas<br />

lineares. As pesquisas, no campo da Educação, precisam dar conta de incorporar os<br />

conhecimentos tradicionalmente construídos e aqueles instituintes que ainda não<br />

possuem o reconhecimento mais amplo e a estruturação conceitual desejada.<br />

Pensamos, todavia, que a luta dos educadores para reinventar a escola,<br />

considerada como um dos eixos motrizes do projeto de uma sociedade nova, plural,<br />

justa e solidária, pode representar uma hipótese e uma brecha histórica mais fecunda<br />

para superação da crise atual.<br />

Tudo isso corresponde a percursos de rememoração que vão dando oportunidade<br />

de encontrar versões diferentes, confluentes, mas também antagônicas e, até,<br />

excludentes para um mesmo fato ou acontecimento. A tradição franciscana poderá<br />

provocar o pensamento, oferecendo matizes pouco conhecidos da realidade brasileira, e,<br />

sobretudo, um exercício de confrontos e comparações em que os lugares dos<br />

interlocutores – com suas memórias e projetos – definirão perspectivas do problema<br />

para uma análise que precisa ser endereçada ao futuro, à medida que, à luz dos<br />

71 BOFF, Leonardo. 500 Anos de Evangelização na América Latina – V Assembléia dos Centros


problemas presentes, fazemos do passado tema de reflexão para prospectar novos<br />

caminhos.<br />

Se enfatizamos as especificidades, as aproximações e os confrontos entre<br />

franciscanismo e o jesuitismo, desejamos escapar das armadilhas que o próprio<br />

pensamento a que estamos acostumados nos coloca. O reducionismo binarista que<br />

separa e polariza, em lados opostos, o bem do mal, o justo do injusto, o certo do errado,<br />

o verdadeiro do falso, e, por conseqüência, os jesuítas dos franciscanos, ou vice-versa,<br />

será substituído pela análise mais complexa que percebe franciscanismo e jesuitismo<br />

como metáforas de modos de pensar e de viver que não são exclusivos nem mesmo de<br />

franciscanos ou de jesuítas, porque a realidade atesta a sua inseparabilidade.<br />

II – O problemas da fontes<br />

CAPÍTULO II<br />

Franciscanos da América Latina. Petrópolis: Cefepal: 1991, p. 3.


“A história, conhecimento do homem pelo homem, é uma apreensão do<br />

passado por um pensamento humano, vivo, comprometido: é um complexo, um<br />

misto indissolúvel de sujeito e objeto. É assim a condição humana e assim a<br />

natureza humana”. H. Marrou<br />

“A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando os há. Mas<br />

pode fazer-se, deve fazer-se com tudo o que o engenho humano do historiador<br />

lhe pode permitir utilizar... Portanto, com palavras. Com sinais. Com<br />

paisagens e com telhas. Formas de campos e ervas daninhas. Eclipse da Lua e<br />

cabrestos de tiro. Exames de pedras por geólogos e análise de espadas de<br />

metal pelos químicos”. L. Fébvre<br />

2.1. Desafiando consensos e unanimidades: contra a escrita apolínea da história<br />

A investigação e a escrita sobre a ação educacional/missionária da Ordem dos<br />

Frades Memores (franciscanos), no Brasil, em especial, no período colonial, é uma<br />

tarefa, no mínimo, complexa. O desafio, no entanto, é extensivo às Ordens Religiosas<br />

que marcaram presença, no Brasil, algumas desde o século XVI: além dos franciscanos,<br />

referimo-nos aos beneditinos, carmelitas, mercedários, oratorianos. Também não se<br />

trata de peculiaridade da historiografia brasileira, porque a África e a Ásia carecem de<br />

produções, quando o assunto é a missionação protagonizada por algumas das referidas<br />

Ordens. A Companhia de Jesus é a única exceção.<br />

No caso brasileiro, apesar de importantes avanços da historiografia, nos últimos<br />

tempos, não se pôde fazer tudo de uma só vez. Em se tratando da História da Educação<br />

Brasileira, sobretudo quando nos referimos ao período colonial, há uma significativa<br />

interseção com a História Eclesiástica, em razão da significativa e quase exclusiva<br />

atuação educacional das Ordens Religiosas, em nome e às expensas da Coroa<br />

Portuguesa.<br />

Nesse campo de investigação, deparamo-nos com uma série de problemas que<br />

vão desde a exigüidade de fontes documentais às cristalizações de conceitos<br />

equivocados construídos ao longo do tempo, ainda, hoje, persistentes. Sobre o pouco do<br />

que foi escrito, podemos dizer que boa parte não conseguiu livrar-se das armadilhas de


uma escrita apolínea da história. O discurso predominante deu atenção às definições<br />

consensuais, às conclusões que não punham em risco uma unanimidade desejada, e,<br />

sobretudo, não ameaçassem o controle exercido por um tipo de conhecimento onisciente<br />

que neutralizou a possibilidade de abrir novas perguntas e outras respostas, num<br />

movimento de domesticação do discurso. O produto final foi uma história sem arestas,<br />

perfeita em sua forma.<br />

Pisamos em terreno pouco afeito aos equívocos da palavra, ao pluralismo das<br />

idéias, aos dissensos políticos, não obstante ser a história da Igreja, no Brasil, marcada<br />

por disputas declaradas pela posse do poder temporal e espiritual, por conflitos<br />

intestinos entre a hierarquia e as Ordens Religiosas, e destas entre si, sem nos<br />

esquecermos de toda a violência física e simbólica que resultou da imposição do<br />

cristianismo e da ocidentalização dos povos autóctones.<br />

Atentos a tão comum “pasteurização” da nossa história eclesiástica, escrita de<br />

modo muito semelhante ao da história sagrada, percebemos que a contingência da<br />

temporalidade e as contradições humanas, em nome de um fim escatológico, foram<br />

interpretadas como imperfeições a serem suprimidas. Uma espécie de razão<br />

transcendente preside a produção intelectual, que tem a missão de redimir a história, na<br />

confirmação de que, após o combate, o bem vence sempre o mal.<br />

Impressão semelhante compartilha Baeta Neves. 72 Ao analisar os livros de<br />

história eclesiástica, no Brasil, constatou que tudo se passa como se houvesse uma<br />

“definição consensual e consabida” sobre os acontecimentos históricos. Os autores -<br />

ainda que pouco enunciada por eles - partem da certeza de que falarão da série de fatos<br />

que, em sua infinita seqüência, acabarão por constituir a história de um continuum. Para<br />

os que acreditam nesta continuidade necessária, a história é vista como uma “busca de<br />

identidade”, ou melhor, “como confirmação de uma identidade aprioristicamente


assumida”. Trata-se de uma ideologia da história que acredita na síntese promovida por<br />

um princípio unificador.<br />

“Este Eu onipresente impõe seu império a todas as diferenças,<br />

dissemelhanças, aberrações como elementos perturbadores de perfis<br />

para sempre traçados e que é preciso manter sob pena da instauração da<br />

ininteligibilidade, da morte do Homem, da volta ao caos. (...) A idéia de<br />

identidade se articula com a de unidade; a identidade que se busca não é<br />

exatamente a de um conjunto de fatores díspares, de ruturas, distâncias,<br />

diferenças, ínfimas capilaridades. O que se procura é ver de que maneira<br />

princípios organizadores unificam a história, tornando-a coesa,<br />

redonda, lisa.” 73<br />

Dessa forma, por exemplo, “catolicismo” torna-se um objeto monolítico,<br />

tranqüilo e inquebrantável, em que não se reconhece a possibilidade de recortes<br />

internos; e “Igreja” passa a ser um todo indiferenciado, uma “grande instituição” na qual<br />

não se conseguem distinguir hierarquia eclesiástica, ordens religiosas, administração de<br />

bens profanos, colégios, casas de caridade, figuras mistificadas/santificadas, tradição<br />

romana, liturgia, arquitetura, poder político etc. 74<br />

A dificuldade de construir conceitos internos e de empreender uma compreensão<br />

minuciosa e precisa do que, efetivamente, está contido sob um determinado conceito<br />

gera este tipo de “rarefação teórica generalizada”. Então, na História da Educação, é<br />

pacífico falar de um “período jesuítico”, absolutizando o fator preponderante, ao mesmo<br />

tempo em que desconsidera as demais vertentes educacionais identificadas a outros<br />

grupos.<br />

Os livros de História da Educação Brasileira são também portadores de muitos<br />

silêncios. Em geral, os autores não dão muita importância ao período colonial, pois,<br />

como levam a crer, nada houve de tão significativo durante quase três séculos, a não ser<br />

a atividade educacional dos jesuítas, porém expulsos de Portugal e do Brasil, em 1759.<br />

72<br />

NEVES, Luiz Felipe Baêta. Vieira e a Imaginação Social Jesuítica: Maranhão e Grão-Pará no<br />

século XVII, Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.<br />

73<br />

Idem, pp. 45s.


Após rápidas considerações sobre os tempos da ilustração pombalina, e a malsucedida<br />

tentativa de substituição do sistema jesuítico pelas aulas régias, os esforços e as<br />

atenções são, então, desviados para o período que se inicia, na década de trinta do<br />

século XX, com o movimento da escola nova. Todos, sem exceção, seguem o mesmo<br />

esquema:<br />

1. Os primeiros e, parece, únicos educadores foram os jesuítas que fundaram<br />

um número significativo de escolas elementares e colégios, aos moldes dos<br />

que existiam na Europa, pois, como escreveu Theobaldo Miranda Santos,<br />

“Os jesuítas foram os primeiros educadores do Brasil. Pioneiros<br />

da Contra-Reforma na sua reação vigorosa contra a revolução<br />

protestante, eles colocaram a catequese dos silvícolas e a<br />

educação das novas gerações como principais objetivos da sua<br />

Companhia. Estavam solidamente preparados para essa missão.<br />

Possuíam fé religiosa viva e inquebrantável, aliada a uma cultura<br />

humanística ampla e profunda”. 75<br />

2. Depois um interregno, em conseqüência da reforma de Pombal que, no juízo<br />

geral, lavrou a sentença de morte do ensino na Colônia. 76 Entre muitos<br />

outros, é o que afirma Fernando de Azevedo:<br />

“Não foi um sistema ou tipo pedagógico que se transformou ou se<br />

substituiu por outro, mas uma organização escolar que se<br />

extinguiu sem que essa destruição fosse acompanhada de<br />

74<br />

Idem, p. 59.<br />

75<br />

SANTOS, Theobaldo Miranda. Noções de História da Educação, 13ª edição, Volume 2, São Paulo:<br />

Companhia Editora Nacional, p. 409.<br />

76<br />

Contra essa opinião que se consagrou, destacamos o que disse Hélio Viana em trabalho intitulado A<br />

Educação do Brasil Colonial, apresentado ao I Congresso da História da Expansão Portuguesa no<br />

Mundo, acontecido em Lisboa, em 1937, cuja cópia encontramos na Biblioteca Nacional de Lisboa:<br />

“Exagerou o Visconde de São Leopoldo (citado por Afonso d’E Taunay na biografia de Pedro Tanques<br />

com que abre a “História da Capitania de São Vicente”) ao dizer que ‘a expulsão da Companhia<br />

inaugurou terrível período de ignorância em nossa terra, de Norte a Sul’. Pelo contrário, numerosas<br />

foram as escolas de primeiras letras, as aulas e cadeiras de gramática, geografia, latim, grego, hebraico,<br />

retórica, poética, filosofia, matemáticas etc, abertas em todo o país, até em pequenas vilas, a partir da<br />

reforma pombalina”. Acrescenta, finalmente, que “a política educacional portuguesa relativamente ao<br />

Brasil colonial caracterizou-se por atender, rigorosamente, às necessidades do meio americano e da<br />

época em que se processou”, inclusive “em seguida à expulsão dos jesuítas”.


medidas imediatas, bastante eficazes para atenuar os efeitos ou<br />

reduzir sua extensão”. 77<br />

3. Fatos significativos, na educação brasileira, os teríamos, a partir da década de<br />

trinta, já que as poucas escolas criadas no Império e no início da República<br />

acentuavam um sistema dualista: de um lado, o ensino primário vinculado às<br />

escolas profissionais, para os pobres, e, de outro, para os ricos, o ensino<br />

secundário articulado ao ensino superior. Essa é a percepção seguida por<br />

Otaíza de Oliveira Romanelli, autora de um dos livros mais adotados para o<br />

estudo da História da Educação no Brasil, chegado à 28ª edição, em 2003:<br />

“A mobilidade social favorecida com a nova ordem políticoeconômica,<br />

a contar da década de 30, vem quebrar, em parte, a<br />

rigidez do sistema social predominantemente dualista,<br />

estabelecendo novas oportunidades, quer para as camadas<br />

intermediárias incipientes, quer para os imensos estratos<br />

agregados à lavoura, em vias de mobilizar-se em direção aos<br />

centros urbanos, ou já nesses estabelecidos. O rompimento das<br />

barreiras que separavam nitidamente, do restante da população,<br />

uma enriquecida e poderosa classe de donos da terra e<br />

comerciantes significou, por seu lado, modificações mais ou<br />

menos profundas no sistema educacional que, até 30, fora<br />

composto de compartimentos estanques a serviço de uma<br />

estratificação social rígida”. 78<br />

Quanto aos franciscanos, em relação a sua presença escolar ou, ao menos, a sua<br />

atividade educacional mais ampla, nem Santos, nem Azevedo, nem muito menos<br />

Romanelli, ou qualquer outro autor fazem menção. As referências, sejam entusiásticas<br />

ou críticas, recaem exclusivamente sobre os jesuítas. Conforme o esquema de Maria<br />

Lucia Hilsdorf 79 , quanto aos jesuítas, os autores seguiram as seguintes tendências:<br />

77<br />

Apud SANTOS, Theobaldo Miranda. Op.cit, pp. 414 s..<br />

78<br />

ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil, 28ª edição, Petrópolis: Vozes,<br />

2003 pp. 66s..<br />

79<br />

HILS<strong>DO</strong>RF, Maria Lucia Spedo. História da Educação Brasileira: Leituras, São Paulo: Pioneira<br />

Thomson Learning, 2003, p. 3.


1. A bibliografia tradicional, que vai da década de 30 (com a obra do Padre<br />

Serafim Leite, S.J.), até a década de 60 (englobando os que seguem esse<br />

historiador oficial da Companhia de Jesus, como Fernando de Azevedo, e os<br />

autores que se apóiam em ambos, inclusive a volumosa produção aparecida<br />

por ocasião do IV Centenário de São Paulo, nos anos 50), aborda a atuação<br />

dos jesuítas, em uma vertente positiva, destacando o jesuitismo civilizador.<br />

2. A bibliografia das décadas de 70 e 80 possui uma vertente mais crítica e<br />

negativa, mostrando o “jesuitismo guerreiro”. Muitos desses autores<br />

surgiram no interior da própria Igreja, como Riolando Azzi e Eduardo<br />

Hoornaerte. Outros, como Luiz Felipe Baêta Neves, vieram de diferentes<br />

campos do conhecimento, em particular das ciências sociais.<br />

3. A bibliografia contemporânea adota posição mais equilibrada, procurando<br />

ver os jesuítas como homens do seu tempo. A própria autora se coloca nesse<br />

rol de autores.<br />

Apesar dos velhos esquemas interpretativos, algo de novo surge no campo da<br />

História da Educação Brasileira. É o que aponta Thais Fonseca, quando trata da<br />

perspectiva de análise que tem como elemento central o conceito de passeur culturels,<br />

expressão cunhada por Serge Gruzinski, traduzida pela autora como “mediadores<br />

culturais”. 80 Perscrutando indícios e possibilidades para compreensão dos encontros<br />

entre culturas diversas, principalmente no que diz respeito aos ocorridos nos<br />

movimentos da colonização européia na América, na África e na Ásia, entre os séculos<br />

80 LIMA e FONSECA, Thais Nívia. História da Educação e História Cultural, in VEIGA, Cynthia<br />

Greive et LIMA e FONSECA, Thais Nívia (Org.). História e Historiografia da Educação no Brasil,<br />

Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 68.


XV e XIX, Gruzinski e demais pesquisadores têm dado passos importantes para a<br />

compreensão daqueles processos. O interesse de Gruzinski voltou-se sobre as culturas<br />

mestiças, no México colonial, no contexto da mundialização promovida pela expansão<br />

ibérica iniciada no século XV. Os diversos movimentos de encontros e de circulação das<br />

culturas em contato desde o início da colonização européia favoreceram os processos de<br />

mestiçagem cultural. Os passeurs culturels são os elementos – pessoas e objetos – que<br />

atuam como mediadores entre tempos e espaços diversos, favorecendo a elaboração e a<br />

circulação das representações e do imaginário. Por seu forte enraizamento cultural e sua<br />

grande mobilidade, tais mediadores atuam como catalizadores de idéias, organizando<br />

sentidos e criando um sistema de conexões no universo cultural no qual transitam. A<br />

atuação desses mediadores culturais permite entender como os diversos universos<br />

culturais se entrecruzam. 81<br />

Fonseca dá notícia de que estão surgindo, no Brasil, diversos estudos de autores<br />

ligados a essa vertente da História Cultural, privilegiando o período colonial. E, mesmo<br />

que não tenham ligações diretas com a História da Educação, acabam tocando em temas<br />

que interessam aos estudiosos desse campo. Diante da nova perspectiva, Fonseca<br />

defende a necessidade de ampliação das análises sobre os temas tradicionais da História<br />

da Educação Brasileira, no período colonial – a presença dos jesuítas na América<br />

Portuguesa e a política mais sistemática implementada pela administração pombalina,<br />

na segunda metade do século XVIII - , para outras dimensões desse processo, que não<br />

incluem, necessariamente, a chamada escolarização formal.<br />

“Trata-se de considerar processos educativos que, realizados<br />

intencionalmente ou não, implicavam no estabelecimento de<br />

relações nas quais alguma forma de saber circulava e era<br />

apropriada. Este processo ocorria, em geral, mas não<br />

exclusivamente, entre pessoas de grupos sociais subalternos, no<br />

amplo espectro que incluía os brancos livres pobres, os<br />

81 GRUZINSKI, Serge. A Colonização do Imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.


indígenas, os negros livres e escravos e a população mestiça.<br />

Essa população estava quase sempre afastada da escola, ou pelas<br />

restrições impostas pelas condições materiais ou pelo<br />

preconceito. Não obstante a exclusão do espaço escolar, uma<br />

parcela dessa população envolveu-se em alguma forma de<br />

processo educativo e de muitas maneiras soube dele se<br />

beneficiar”. 82<br />

No contexto colonial, em especial em cenários quinhentistas, é míope a pesquisa<br />

que dá atenção exclusiva aos processos educativos formais, deixando de lado outros<br />

âmbitos e mediações educativas muito mais abrangentes, cujos influxos arrebatavam<br />

praticamente todos os segmentos populacionais da Colônia. Afinal, era<br />

esmagadoramente maior o contingente populacional que não freqüentava a escola: as<br />

mulheres, os escravos índios e negros, os negros foros e os brancos não pertencentes à<br />

elite colonial. E, mais que míope, chegando às raias da cegueira, são aqueles que<br />

consideram o exclusivo da ação educativa formal movida pelos jesuítas, pois, com o<br />

passar do tempo, a obra da catequese, que, em princípio, constituía o objetivo principal<br />

da presença da Companhia de Jesus, no Brasil, acabou, gradativamente, cedendo lugar,<br />

em importância, à educação da elite. E foi com essa característica que ela se firmou<br />

durante todo o período em que os jesuítas estiveram presentes, no Brasil; e, com essa<br />

mesma característica, ela sobreviveu à própria expulsão dos padres inacianos, ocorrida<br />

na segunda metade do século XVIII.<br />

Havemos de considerar que, apesar dos silêncios dos livros, os jesuítas não eram<br />

os únicos a manter escolas formais. É verdade que a escola secundária e os estudos de<br />

nível universitário - em geral mantidos, em primeiro lugar, com a finalidade de formar<br />

os próprios quadros da Companhia, mas que também eram freqüentados pelos jovens<br />

filhos da elite – constituíam monopólio dos jesuítas, mas o mesmo não se pode dizer das<br />

escolas elementares. Assim é que Hilsdorf chama a atenção para uma hipótese<br />

82 Idem, pp. 68s..


interessante. Pombal, quando expulsou os jesuítas, em 1759, não procurou logo criar<br />

aulas de primeiras letras. Vai fazê-lo apenas depois de 1772. Qual a razão?<br />

“Talvez porque, na prática, as aulas elementares não estivessem nas<br />

mãos dos jesuítas, como as secundárias e universitárias, mas fossem<br />

ministradas, como mostrou Francisco Adegildo Férrer, pelos professores<br />

particulares leigos, oratorianos e membros de outras ordens religiosas e<br />

pelos professores pagos por impostos municipais, regulares ou<br />

sazonais”. 83<br />

Mas, para além da escola formal, é importante considerar outras modos de<br />

educar representados pelos símbolos e arquétipos criados para o povo pela religião<br />

oficial e pela religiosidade popular, pelos sermões dos missionários, pelas festas e<br />

devoções, pela vida de santos que serviam de modelo e de referência, inclusive para os<br />

negros, como São Benedito e Santa Efigênia, ou Santo Antônio, grande taumaturgo, e<br />

sempre requisitado para as guerras e batalhas contra os invasores, chegando a ganhar<br />

patentes e soldos correspondentes. Em tudo isso, destacaram-se os franciscanos, sempre<br />

plásticos na criação desses símbolos que, ainda hoje, povoam o imaginário popular.<br />

A necessidade de dar explicações racionais ao que é racionalmente inexplicável,<br />

muitas vezes favoreceu a tomada da parte pelo todo. Não apenas se instituíram juízos de<br />

valor e versões dos acontecimentos, dando-lhes o status de história - entendida como<br />

tematização científica e explicativa incontestável da realidade - como, em conseqüência<br />

dessa opção, se relegaram ao esquecimento as memórias e as fontes consideradas<br />

desprezíveis ou sem significado aparente.<br />

A história dos franciscanos foi escrita à base de muitos preconceitos, de pouca<br />

crítica e, ousaria dizer, de uma renitente preguiça. Em boa parte das vezes, levou-se em<br />

conta tão-somente a autoridade dos autores, trasladando-se, de um papel a outro,<br />

informações de autenticidade duvidosa, elevadas ao grau de “verdades históricas”, sem


a devida consideração de que os documentos também têm a sua história. Isso é<br />

extremamente grave, em terreno de conflito, tal como foi o palco da ação dos<br />

franciscanos no Brasil.<br />

Assim, tornou-se costume afirmar que os franciscanos do Brasil escreveram a<br />

sua história na areia. Essa quase unanimidade entre os pesquisadores, escorada na<br />

declarada escassez de fontes documentais da Ordem, e na ausência de crônicas ou<br />

histórias escritas sobre a sua presença secular em terras brasileiras, justificaria o fato de<br />

a ação franciscana ser pouco estudada e reconhecida como importante na formação da<br />

nossa identidade nacional.<br />

2.2. Exigüidade das fontes franciscanas?<br />

Pesquisadores que dedicaram boa parte de suas vidas à escrita da história dos<br />

franciscanos no Brasil, como é o caso do Frei Basílio Röwer, reclamam, às vezes, de<br />

forma resignada, da falta de documentos e da concisão do pouco e disperso material<br />

existente: “...calam-se os documentos ou limitam-se a ligeiras referências, porque não<br />

era o lado forte dos confrades que nos precederam transmitir à posteridade o muito que<br />

fizeram em honra de Deus e pela salvação das almas. Satisfaziam-se em trabalhar,<br />

esperando, não o louvor dos homens, mas a recompensa eterna”. 84<br />

Essa unanimidade entre os pesquisadores, a falta de fontes, fez com que Gilberto<br />

Freyre sugerisse um outro método de investigação, de modo a procurarmos os vestígios<br />

dos franciscanos “menos na história erudita que no folclore; menos na prosa dos<br />

historiadores que na poesia dos analfabetos; menos nos livros dos doutos que nos<br />

contos que os velhos contam aos meninos; menos nas estátuas dos artistas acadêmicos<br />

83 HILS<strong>DO</strong>RF, Maria Lucia Spedo. Op. cit., p. 20. O livro referido de Férrer, trata-se de O<br />

Obscurantismo Iluminado: Pombal e a Instrução em Portugal e no Brasil – Século XVIII, São<br />

Paulo: FEUSP, 1998.<br />

84 RÖWER, Basílio. Os Franciscanos no Sul do Brasil, Petrópolis: Vozes, 1944, p. 6.


que nas imagens dos santeiros ingênuos, outrora tão inclinados, entre nós, a fazer<br />

todos os santos se parecerem com Santo Antônio, que é como São João e mais, talvez,<br />

do que São Pedro, o santo mais querido da gente do povo no Brasil”. 85<br />

De fato, a inexistência de fontes documentais é um problema; todavia, deve ser<br />

tratado com cuidado. Se levarmos em conta a abundância das fontes jesuíticas, há uma<br />

verdadeira indigência das fontes franciscanas. Em seção posterior, teremos<br />

oportunidade de tratar diretamente sobre os motivos que tornaram os jesuítas uma<br />

exceção na produção de documentos que, na atualidade, são utilizados como as<br />

principais e, não raras vezes, as únicas fontes em que se apóia a escrita da história sobre<br />

o Brasil.<br />

Se tomarmos como parâmetro outras Ordens Religiosas que tiveram participação<br />

em nossa história, beneditinos, mercedários, carmelitas, apenas para citar as mais<br />

antigas, os documentos franciscanos ou sobre os franciscanos são relativamente<br />

numerosos, tanto no Brasil, quanto em Portugal. Documentos há, ainda que dispersos,<br />

desorganizados e mal cuidados, remanescentes de um passado pouco consciente sobre a<br />

importância de preservá-los aos pósteros. 86<br />

Os franciscanos têm uma história um tanto incomum com as letras. São<br />

Francisco de Assis, quando fundou a Ordem, não desejava que os seus frades<br />

possuíssem livros e muito menos se dedicassem aos estudos. O Santo de Assis talvez<br />

visse uma incompatibilidade entre a forma de vida franciscana, cujo mote principal<br />

baseava-se na pobreza, na simplicidade de vida e na humildade, e a vida de quem<br />

conhecia as letras, em geral um privilegiado, um mestre e guia das massas ignorantes.<br />

Francisco considerava que os simples, os que não tinham grande ciência, mais<br />

85 Idem, pp. 15 s.<br />

86 Com relação às fontes documentais dos franciscanos em Portugal, ver o primoroso trabalho do Frei<br />

Fernando Félix Lopes, Colectânea de Estudos de História e Literatura, Lisboa: Academia Portuguesa<br />

da História, 1996.


facilmente podiam participar da simplicidade misteriosa do Crucificado 87 , porque a<br />

ciência, muitas vezes, torna os doutos pouco inclinados à perfeição, conferindo-lhes<br />

uma certa rigidez que não se compatibiliza aos ensinamentos humildes.<br />

Francisco colocou para si esse problema: “também eu fui tentado a ter livros”.<br />

Diz a legenda que para conhecer a vontade do Senhor, depois de ter rezado, abriu o<br />

Evangelho, e lhe caiu sob o olhar aquela palavra de Cristo: “A vós é concedido conhecer<br />

o mistério do reino de Deus, mas aos outros ele é proposto em palavras” (Mt 4, 11). E<br />

acrescenta: “São tantos os que querem subir os degraus da ciência, que bem-<br />

aventurado será o que a ela renunciar, por amor ao Senhor Deus”. 88<br />

O tema dos estudos na Ordem tornou-se sinal de contradição. Ainda, hoje, são<br />

colocadas algumas interrogações: São Francisco viu nos estudos um caminho de<br />

progresso para seu movimento religioso ou, ao contrário, perigo de alienação e de<br />

rejeição essencial da novidade evangélica que ele tinha recuperado? Como os estudos<br />

podem ser assumidos autenticamente pelo franciscanismo? Como a novidade de ser e de<br />

sentir da forma de vida inaugurada por São Francisco pode exprimir-se nos estudos?<br />

Esta perguntas foram respondidas de maneira oposta, seja pelas correntes do movimento<br />

franciscano (espirituais e frades da comunidade), seja por biógrafos e estudiosos antigos<br />

e modernos. Certamente estamos diante de um problema de fundo do franciscanismo.<br />

O estudo, entendido como atividade intelectual, por exemplo, o estudo da<br />

teologia, é uma questão mais debatida nas biografias que nos escritos de São Francisco,<br />

de modo que o juízo dos biógrafos sobre o assunto irá variar de acordo com a tendência<br />

partidária com a qual se alinha.<br />

87 Segunda Vida de Tomás de Celano, nº, 189, in São Francisco de Assis. Escritos e Biografias de São<br />

Francisco de Assis, Crônicas e Outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano, Petrópolis:<br />

Vozes/Cefepal, 1982, pp. 420s.<br />

88 Legenda Perusina, nº 73, idem, p. 803.


Nos escritos do próprio Francisco encontramos poucas alusões ao estudo. A<br />

carta que escreveu a Santo Antônio é de longe o documento mais evocado pelos<br />

defensores dos estudos das ciências:<br />

“Eu, Frei Francisco, saúdo a Frei Antônio, meu bispo. Gostaria<br />

muito que ensinasses aos irmãos a sagrada teologia, contanto<br />

que nesse estudo não extingam o espírito de santa oração e da<br />

devoção, segundo está escrito na Regra. Passar bem”. 89<br />

Essa é a única vez que encontramos nos escritos de Francisco o substantivo<br />

estudo. No seu Testamento, escreve: “E devemos honrar e respeitar todos os teólogos e<br />

os que nos ministram as santíssimas palavras divinas como a quem nos ministra<br />

espírito e vida”. 90 Essa é a única vez que encontramos nos escritos do santo o termo<br />

teólogo.<br />

Nos dois textos citados, privilegia-se o espírito. O estudo de teologia precisa<br />

servir ao espírito, que não pode ser extinto. O pensamento de Francisco a esse respeito<br />

está bem claro na Regra Bulada: “Os que não têm estudos não os procurem adquirir,<br />

mas cuidem que, antes de tudo, devem desejar o espírito do Senhor e seu santo modo de<br />

operar”. 91 O que Francisco chama de espírito do Senhor não está necessariamente<br />

vinculado aos estudos, e os frades, para possuí-lo, não devem sentir-se obrigados a<br />

empreender estudos.<br />

Por outro lado, a expressão de Francisco “desejo” ou “agrade-me” da Carta a<br />

Santo Antônio testemunha a valorização que aquele confere aos estudos, não somente<br />

em termos intelectuais, mas também do coração. Os que consideram Francisco inimigo<br />

das ciências ou alguém que desconfia dos estudos devem levar em consideração a carta<br />

dirigida a Antônio e a douta pregação desse santo franciscano.<br />

89 Escritos de São Francisco, Idem, p. 75.<br />

90 Escritos de São Francisco, Testamento, nº 13, idem, p. 168.<br />

91 Escritos de São Francisco, Regra Bulada, Capítulo 10, 8-9, idem, p. 138.


Todo esse enredo criado a partir de um determinado habitus da pobreza, o que, a<br />

nosso ver, teria muito de zelo escrupuloso, criou um estado de desconforto, dentro da<br />

Ordem, para os que teimavam em compatibilizar o cultivo das letras com o ideal<br />

franciscano, bem como justificava a mediocridade preguiçosa de alguns. Esse espírito,<br />

mais tipicamente medieval, permaneceu, de certo modo. Já os primos dos franciscanos,<br />

os dominicanos, nascidos à mesma época, e seu instituto conhecido oficialmente como<br />

Ordem dos Pregadores, desde logo enveredaram nos estudos das ciências teológica e<br />

humana, para bem cumprir a sua missão de defender a Igreja das heresias,<br />

especialmente do catarismo. O mesmo se diga dos jesuítas, surgidos no século XVI,<br />

portanto, já integrados ao espírito moderno, e que utilizaram a escrita e a imprensa,<br />

como ninguém, a favor da causa a que foram chamados.<br />

Fato é que os franciscanos não se preocuparam em escrever a sua história, diria<br />

que ainda hoje, também não se preocupam. E muito do pouco que produziram, por falta<br />

de cuidado, perdeu-se descomposto nas prateleiras pelo tempo e pelos inimigos naturais<br />

do papel.<br />

2.3. Para além de fogos, mofos, traças, baratas e cupins<br />

A traça (Thysanura, Fam. Lepismatidae), a barata (Blattarinae, Fam. Blattidae, a<br />

térmite ou cupim (Isoptera, Fam. Rhinotermitidae) e a broca (Caleoptera, Fam.<br />

Anobídeos) foram classificados por Monsenhor Joaquim Nabuco como os principais<br />

inimigos dos nossos arquivos e bibliotecas que “vêm sendo, neste século de ciência e de<br />

progresso, arruinados por vorazes bibliófagos”. 92 Não é só no Brasil que os insetos<br />

92 NABUCO, Joaquim. A Conservação de Nossos Arquivos e Bibliotecas. Rio de Janeiro, 1943, p. 15.


tanto mal vêm fazendo às bibliotecas. A bibliografia universal registra inúmeras obras<br />

que tratam especificamente deste assunto. 93<br />

O calor, a umidade e o mofo, típicos do nosso clima tropical, bem como o ar<br />

salitrado do litoral foram igualmente apontados como causadores da decomposição do<br />

papel dos documentos e dos livros.<br />

O fogo, implacável, quando propiciado pela incúria dos homens, tem destruído,<br />

no todo e em parte substancial, várias bibliotecas e arquivos brasileiros, como o que<br />

atingiu a Cúria Episcopal de São Paulo, a Biblioteca Pública de Salvador, as Bibliotecas<br />

da Faculdade de Direito de São Paulo e da Faculdade de Medicina da Bahia, o Instituto<br />

Júlio de Castilhos, de Porto Alegre, o pequeno arquivo de Itanhaém, em São Paulo, e o<br />

Senado da Câmara, no Rio de Janeiro. Na reforma do Palácio do Governo de<br />

Pernambuco, em 1922, foi jogada, no Rio Capibaribe, a maior parte do material do<br />

arquivo público iniciado na administração do Conde de Boa Vista, em 1842.<br />

Mas os incêndios, foram, do mesmo modo, danosos em muitas partes do<br />

mundo, desde a célebre Biblioteca de Alexandria. Capistrano de Abreu lamentou “o<br />

desbarato dos arquivos portugueses, que devido ao terremoto de Lisboa, tornou<br />

impossível o conhecimento preciso dos primeiros tempos de nossos anais”. 94 Seguido<br />

ao terremoto de 1755, os incêndios destruíram numerosas bibliotecas e arquivos<br />

lisboetas.<br />

A falta de catálogos ou índices, que permitam um amplo conhecimento das<br />

fontes documentais e do material bibliográfico disponíveis sobre os assuntos mais<br />

diversos que possam interessar àqueles dedicados à história eclesiástica brasileira,<br />

segundo José Honório Rodrigues, completaria o elenco dos graves obstáculos<br />

93 Harry B. Weiss e Ralph H. Carruthers, no livro intitulado Insect Enemies of Books (publicação da The<br />

New York Public Library, 1937), relacionaram 493 publicações acerca dos insetos bibliófagos.<br />

94 Introdução à obra de Frei Vicente do Salvador. História do Brasil, São Paulo, 1918, p. 70.


encontrados pelos pesquisadores. 95 A falta desses essenciais instrumentos de trabalho,<br />

de um lado, fez com que a pesquisa histórica brasileira ficasse “à mercê da iniciativa e<br />

do esforço pessoal de cada estudioso, que deve por si só, sem nenhuma ajuda, examinar<br />

milhares de documentos, alguns de nenhum interesse para a sua tarefa”. De outro,<br />

favoreceu uma atitude preguiçosa “de eliminar a pesquisa, sempre árdua, e limitar-se o<br />

estudioso a compilar material impresso mais acessível”. 96 A nosso ver, esse último<br />

efeito indesejável trouxe graves conseqüências sobre a história dos franciscanos, no<br />

Brasil, como veremos mais adiante.<br />

Se, como dissemos, os franciscanos, no Brasil, não foram o melhor exemplo de<br />

preservação da sua própria história, e a isso somados o descaso e a falta de zelo dos<br />

responsáveis pelos espólios, estamos muito longe dos quadros mais favoráveis para a<br />

nossa pesquisa. Mas nem tudo está perdido. No Brasil, bem como em Portugal,<br />

conserva-se um acervo documental e bibliográfico significativo para amparar um<br />

estudioso da ação dos franciscanos, ainda a salvo da voracidade dos insetos, da<br />

proliferação dos fungos e das contingências do tempo.<br />

As baratas, assim como os cupins, as traças e seus assemelhados, não possuem<br />

outra “ideologia”, a não ser comer, em nome de sua sobrevivência e proliferação. E,<br />

porque não sabem ler, concluímos que lhes é indiferente devorar um documento<br />

carmelita, jesuítico ou franciscano, de modo que teriam algumas dessas Ordens se<br />

beneficiado com um pouco mais ou menos de sorte?<br />

Se não podemos superar de todo o problema das fontes, então, cabe perguntar:<br />

que outras causas podem explicar o silenciamento a que foram submetidos os<br />

franciscanos, na História do Brasil, e, em especial, na História da Educação Brasileira?<br />

Sim, porque, se, da diminuta produção documental dos filhos do Poverello, há<br />

95 RODRIGUES, José Honório. A Pesquisa Histórica no Brasil, Rio de Janeiro: Instituto Nacional do<br />

Livro, 1952.<br />

96 Idem, pp. 155 e 156.


consideráveis salvados dos insetos e das contingências do tempo, somos obrigados a ter<br />

que encontrar explicações adicionais.<br />

2.4. Falar dos franciscanos é difícil<br />

São Francisco de Assis é o pai do que convencionamos chamar de<br />

franciscanismo. Para resumir suficientemente o processo de conversão de Francisco de<br />

Assis, cabe destacar os anos imediatamente posteriores aos onze meses amargados por<br />

ele na prisão de Perugia, após a derrota sofrida pelas tropas de Assis em Collestrada. O<br />

jovem Francisco retorna gravemente enfermo à casa paterna, após pagamento de resgate<br />

cobrado como parte das indenizações devidas ao senhores peruginos, em conseqüência<br />

ao frustrado levante que ultimava a autonomia da vizinha Assis.<br />

Recuperado da longa doença, Francisco rompe com seu pai, devolve-lhe o nome<br />

e todos os bens, até mesmo a roupa do corpo, para seguir um novo estilo de vida que<br />

deu origem ao movimento franciscano. Seu maior e mais ardente desejo, conforme as<br />

próprias palavras conservadas em seu Testamento, foi o de abandonar o mundo e deixar<br />

que o Senhor o conduzisse para entre os pobres.<br />

A experiência solitária de Francisco logo foi partilhada por homens e mulheres<br />

de sua cidade e arredores. De alguma forma, Francisco de Assis soube encarnar em sua<br />

pessoa as aspirações dos seus contemporâneos. Em certo aspecto, o seu estilo de vida se<br />

situa no prolongamento dos movimentos pauperísticos do século XII, mas, como<br />

destaca André Vauchez, “não se poderia esquecer que a sua vida foi um desses<br />

acontecimentos que, sem ser inexplicáveis, revolucionaram entretanto o curso da<br />

história”. 97<br />

97 VAUCHEZ, André. A Espiritualidade na Idade Média Ocidental: séculos VIII a XIII, Jorge Zahar,<br />

Rio de Janeiro: 1995, p. 127.


O franciscanismo nasceu e nunca deixou de afirmar-se como movimento.<br />

Francisco é o iniciador de um impulso múltiplo, mas bem definido, que foi acolhido,<br />

partilhado e ressignificado por milhares de homens e mulheres, ao longo dos séculos.<br />

Na linguagem da espiritualidade, o carisma de Francisco nunca foi algo seu, próprio,<br />

mas dom do espírito, fecundo para também inspirar, no Amor do Evangelho, todos os<br />

que se lançaram na aventura do seguimento do Cristo pobre e crucificado. Tomás de<br />

Celano, primeiro biógrafo de São Francisco, na sua extraordinária plasticidade de<br />

hagiógrafo medieval, descreveu o franciscanismo como o despertar de uma nova<br />

primavera:<br />

“Nele e por ele operou-se na terra um esperado despertar de<br />

fervor e a santa renovação com o germe da autêntica religião<br />

rejuvenesceu os ramos já velhos e ressequidos. Infundiu-se um<br />

novo vigor no coração dos eleitos, e no meio deles espalhou-se<br />

uma salutar unção”. 98<br />

A originalidade do movimento franciscano, constituído oficialmente como<br />

Ordem dos Frades Menores, reside em sua vocação de viver uma vida pobre e<br />

peregrina, a exemplo de Cristo, que se traduziu numa recusa de possuir bens, não só<br />

individualmente – o que era o caso dos monges -, mas também em comum. Assim é<br />

expresso o ideal de vida franciscana: “A Regra e a vida destes irmãos é esta: viver em<br />

obediência, em castidade e sem propriedade: e seguir a doutrina e as pegadas de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo”. 99<br />

Escolhendo a condição de minores (que nas comunas italianas era o designativo<br />

das classes inferiores da população, desprovidas de poder), Francisco e seus<br />

companheiros fazem uma opção de mudança de lugar social. Francisco, antes rico<br />

98 1Cel., nº 89.<br />

99 Regra Não-Bulada 1, 1. Grifo nosso, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São<br />

Francisco de Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano, 2ª ed.,<br />

Petrópolis: Vozes / Cefepal, 1982.


mercador, abandonou efetivamente a sua classe social, a ordem dominante daquele<br />

tempo; deixa a sociedade dos “maiores” e decide fazer-se um “menor”.<br />

Para os que desejassem abraçar o modo de vida de Francisco, havia uma<br />

primeira condição: distribuir aos pobres o que acaso possuíam. 100 Isto significa que a<br />

maioria dos seus primeiros companheiros tinha um patrimônio para distribuir. Há,<br />

portanto, aqui, uma indicação preciosa sobre a origem social dos primeiros irmãos.<br />

Como atesta Desbonnets 101 , os companheiros de primeira hora de Francisco, em<br />

sua maioria, eram pertencentes aos estratos sociais mais altos da cidade. Angelo<br />

Tancredo de Rieti, Masseo de Marignano e Rufino eram miles, cavaleiros, no sentido<br />

exato do termo. Bernardo de Quintavale, Pedro de Cattani, Morico, Felipe Longo, João<br />

de San Constanzo, Bernardo de Vigilante são originários de famílias que deixaram<br />

marcas nos arquivos de Assis, a respeito das transações de bens imobiliários, e fazem<br />

parte da burguesia.<br />

Esse pequeno grupo de homens intuiu um modo de vida pobre e simples, mas<br />

que, dada a velocidade com que recebeu adesões, logo teve que se institucionalizar.<br />

Essa intuição deu origem ao que, posteriormente, veio a se chamar Regra de Vida. Em<br />

verdade, tal regra é fruto de uma construção coletiva. Foi sendo gestada ao longo dos<br />

anos, mais especificamente de 1209, com a aprovação verbal do Papa Inocêncio III, ao<br />

que o próprio fundador da Ordem diz ter escrito “com poucas palavras e de modo<br />

simples e o Senhor Papa mo confirmou” 102 , até ganhar a sua forma definitiva aprovada<br />

por Honório III, em 1223, e hoje conhecida como Regra Bulada.<br />

A nota permanente na história do movimento franciscano é a insatisfação e o<br />

desejo profético de renovação. Esse espírito inquieto dos franciscanos abalou as<br />

estruturas internas do movimento sempre que essas descambaram para o cômodo<br />

100 Regra Não-Bulada, 2, 4.<br />

101 DESBONNETS, Théophile. Da Intuição à Instituição, Petrópolis: Cefepal, 1987, p. 33.


imobilismo. Por isso podemos compreender que a história do franciscanismo foi<br />

composta de períodos atormentados, de lutas contínuas por um ideal, de reformas e de<br />

cisões.<br />

Para um observador superficial, a constância de brigas e de dissidências entre os<br />

franciscanos parece incompreensível:<br />

“(...) que uma ordem religiosa, cuja característica é o amor e que<br />

se define como ‘fraternidade’, tenha quebrado diversas vezes a<br />

unidade interna. Visto em seu significado real, porém, tudo isso é<br />

um sinal de força que impede o cansaço, uma busca sem tréguas<br />

de uma renovação adaptada, mediante a fidelidade a um ideal. A<br />

reforma pertence, em certo sentido, à própria essência das<br />

instituições franciscanas”. 103<br />

Pensamos que essa característica tem a ver com o modo pelo qual os frades<br />

conceberam o governo e exerceram a política no interior da Ordem. É difícil afirmar<br />

que uma Ordem Religiosa, surgida na Idade Média, cuja obediência é um dos seus<br />

fundamentos inalienáveis, seja regida por princípios democráticos. No entanto, estudos<br />

mais recentes, como o de David Flood, levaram-nos a crer que o exercício do poder, no<br />

interior de uma instituição nascente que se definiu como “fraternidade de menores”,<br />

onde todos desejavam viver como irmãos, independentemente se clérigos ou leigos,<br />

nobres ou plebeus, letrados ou iletrados, ricos ou pobres, era exercido de forma mais<br />

diluída, menos centralizada na pessoa do fundador.<br />

Flood empreendeu um criativo estudo sobre as origens do movimento<br />

franciscano, a partir da análise da chamada Regra Não-Bulada, documento<br />

preciosíssimo que é capaz de revelar o espírito mais genuíno do movimento e de<br />

permitir uma arqueologia em busca dos vestígios mais antigos deste projeto inicial. Tal<br />

escrito foi uma espécie de documento-base para Francisco e seus companheiros.<br />

102 Testamento, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco de Assis, Crônicas<br />

e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano.<br />

103 IRIARTE, Lázaro. Vocação Franciscana, Petrópolis: Vozes, 1976, p. 24.


Discutido, modificado, acrescido durante os Capítulos anuais da recém criada Ordem,<br />

esse texto existiu aberto, sob diferentes formas, de 1210 a 1223. Mas a Ordem se<br />

transformou numa instituição forte e importante na Igreja, razão pela qual aquele texto<br />

emendado e reemendado, sem preocupações de constituir-se como uma peça jurídica,<br />

em 1223, foi substituído por um outro documento oficial, tornando-se a Regra definitiva<br />

da Ordem.<br />

O texto da Regra Não-Bulada, tal qual o conhecemos, é resultado do trabalho<br />

dos Capítulos que tinham caráter de assembléia “constituinte”, de modo que seria um<br />

erro considerá-lo como produto da cabeça de Francisco, como tornou-se comum pensar<br />

após a sua canonização.<br />

O Capítulo, reunião dos religiosos que habitam um mesmo mosteiro, ou dos<br />

abades e priores de uma Ordem, cujos mosteiros se localizam numa região, é uma<br />

instituição antiga e originária do monaquismo. Desbonnets deixou clara a diferença que<br />

existia entre os capítulos das Ordens Monásticas e os da nascente Ordem Franciscana,<br />

tomando por base uma carta de Jacques de Vitry, datada de outubro de 1216, onde lê-se:<br />

“Uma vez por ano, os homens desta Ordem se encontram num lugar<br />

combinado para se alegrar no Senhor e comer juntos: é de grande<br />

proveito para todos. Valendo-se do auxílio de conselheiros corretos e<br />

virtuosos, redigem, promulgam e levam à aprovação do Senhor Papa<br />

santas instituições; em seguida, se separam novamente por um ano e se<br />

espalham através da Lombardia, Toscana, Apúlia e Sicília”. 104<br />

Desbonnets destaca o caráter inédito e incomum dos capítulos franciscanos. A<br />

instituição capitular monástica era oligárquica, uma vez que apenas os abades e priores<br />

dele tomavam parte. Reuniam-se com a finalidade de “organizar, vigiar e sancionar”.<br />

Mas os capítulos franciscanos têm como primeira finalidade proporcionar o encontro<br />

festivo/celebrativo, reunindo os irmãos “para se alegrar no Senhor e comer juntos”. São


também democráticos, porque participados por todos os irmãos, em igualdade de<br />

condições. 105 O capítulo geral de 1217, acontecido em Santa Maria dos Anjos, na<br />

cidade de Assis, segundo o testemunho de Boaventura de Bagnoregio, reuniu mais de<br />

cinco mil frades. 106 Tal capítulo ficou conhecido como “capítulo das esteiras”,<br />

aludindo à forma encontrada para acomodar tantos frades, em simples esteiras<br />

estendidas pelo chão.<br />

Como observa Desbonnets, contrariamente ao que Tomás de Celano insiste em<br />

fazer acreditar, Francisco não tinha a última palavra na hora de tomar as decisões<br />

capitulares. Francisco fazia parte do grupo, mas sua voz nem sempre era a<br />

predominante.<br />

Não é nosso propósito trabalhar sobre os aspectos centrais do carisma<br />

franciscano, ou seja, dos elementos fundamentais e constituintes da espiritualidade do<br />

movimento, a não ser enquanto nos ajudem a compreender os caminhos percorridos<br />

pelo novo grupo religioso. Se os franciscanos tomam uma decisão cuja motivação<br />

essencial é de cunho místico e religioso, ela deve se exprimir, igualmente, em práticas<br />

concretas assumidas num tipo de sociedade que impõe as suas determinações históricas.<br />

A Regra de Vida dos franciscanos não surgiu, portanto, apenas como uma<br />

satisfação devida às autoridades eclesiásticas que cobravam um texto capaz de traduzir a<br />

identidade e a natureza de um grupo de leigos que pleiteava a aprovação canônica para<br />

o seu modo de vida inovador. Tratava-se também da necessidade mais pragmática de<br />

regular a organização de um grupo já numeroso, quanto à sua espiritualidade, ideais<br />

comuns, governo, direitos e obrigações, e as particularidades da vida cotidiana, como o<br />

104 VITRY, Jacques. Este documento possui enorme importância por tratar-se de um testemunho escrito<br />

por alguém estranho à Ordem Franciscana. A Carta de Jacques de Vitry é também o primeiro documento<br />

histórico referente a São Francisco e à sua Ordem.<br />

105 Cf. Anônimo Perugino, cap. 8, nº 37 e Legenda dos Três Companheiros, cap. 14, nº 57, in São<br />

Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco de Assis, Crônicas e outros Testemunhos<br />

do Primeiro Século Franciscano.<br />

106 Legenda Maior, capítulo 4, nº 10, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco<br />

de Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano.


modo de cuidar dos enfermos ou de receber os candidatos, ou ainda, de prover a<br />

subsistência do grupo.<br />

Se desejavam “abandonar o mundo” e “seguir Jesus Cristo pobre e<br />

crucificado”, os franciscanos não deixaram materialmente a cidade. Sabem também que<br />

Jesus Cristo não está em lugar algum fora de Assis. Pois é o próprio Cristo quem<br />

“empresta” sua face sofredora aos leprosos e aos demais pobres dos quais Francisco e<br />

seus companheiros ocupavam-se. Pois como bem escreve Flood:<br />

“Para concretizar a decisão que fazia com que estes homens rompessem<br />

tão claramente com o seu ambiente, Francisco e seus irmãos não podiam<br />

se contentar em repetir frases do Evangelho. Uma vez tomada a decisão,<br />

a vida continuava. Era-lhes necessário resolver questões como as do<br />

trabalho e do salário, do alimento e das vestes, dos lugares onde<br />

deveriam morar e da vida em comum”.<br />

Em outras palavras, a espiritualidade evangélica de Francisco e de seus frades<br />

precisava ser encarnada concretamente na realidade, inspirando, sobretudo, o modo de<br />

organização da base material do grupo. Nesse particular, reside a dificuldade. Enquanto<br />

discutimos ideais, em geral, há o império da unanimidade, mas quando a exigência da<br />

vida nos obriga a ter que pensar o modo concreto de realizá-los, surgem reinos de<br />

discórdias. E como divergiram os franciscanos: desde o modelo ou cor do hábito<br />

religioso, ao modo de viver o espírito de pobreza! Ainda que posições radicais e<br />

insuperáveis fragmentassem o movimento, acreditamos que, aí, residiu a riqueza do<br />

franciscanismo, contra entendimentos únicos e padronizados.<br />

Esse ímpeto, ao modo do vento que ninguém segura, a espalhar para todos os<br />

lados as sementes que vicejam nos solos mais diferenciados, é uma boa imagem para o<br />

franciscanismo. Floresceu numeroso e criativo, desde a origem aos dias atuais, e sua<br />

variedade demonstra a inexaurível potencialidade e a sua capacidade de adaptação às


necessidades e às condições de vida das mulheres e dos homens. Portanto, não podemos<br />

jamais falar em um, mas em muitos franciscanismos, assim como não há uma, porém<br />

numerosas instituições franciscanas: todos e todas, filhos legítimos do Pai Seráfico de<br />

Assis. A reunião de tantos irmãos e irmãs, constituídos em suas respectivas<br />

fraternidades, é o que, hoje, chamamos de Família Franciscana. Está composta pelos<br />

diversos ramos da Ordem Primeira: Observantes, Conventuais, Capuchinhos e<br />

Regulares; da Ordem Segunda: as Damas Pobres ou Clarissas; da Ordem Terceira ou<br />

Ordem Franciscana Secular, em geral, integrada por leigos; para além dessas<br />

designações, a Família Franciscana é também constituída por inúmeras Congregações<br />

Religiosas, Institutos de Vida Consagrada e Associações de leigos, tanto masculinas,<br />

quanto femininas, que não cessam de se acrescentar ao número das já existentes.<br />

Para mais informações sobre a história franciscana, recomendamos o trabalho de<br />

Lázaro Iriarte que, até hoje, é uma boa referência. 107 Interessa-nos, ainda, compreender<br />

como os franciscanos estavam organizados nos tempos coloniais no Brasil e em<br />

Portugal.<br />

Os franciscanos chegaram à Península Ibérica, logo após o Capítulo Geral de<br />

1219. Em 1239, estava a Província da Espanha dividida em três: a de Castela, a de<br />

Aragão e a de Santiago. Esta última, além dos conventos portugueses, reuniam os<br />

conventos de Galiza e de Leão. Os conventos do território português, em razão do cisma<br />

do Ocidente, constituíram-se em Província autônoma, já que Portugal, em 1384,<br />

decidira pela obediência de Roma, e não à de Avinhão, como foi o caso de Galiza e<br />

Leão. Essa divisão também possuiu fortes ingredientes políticos, haja vista as<br />

pretensões de independência do Reino de Portugal. Quando se remediou o cisma na<br />

Igreja e na Ordem, em 1417, foi canonicamente sancionada a divisão. Na maior parte<br />

dos seus conventos vivia-se em regime claustral e eram da claustra os governantes. A


vida franciscana claustral caracteriza-se pelas comunidades religiosas que habitavam<br />

grandes conventos, em geral organizadas como casas de estudo. As Escolas de Teologia<br />

dos Conventos de São Francisco de Lisboa e de Coimbra foram célebres e supriram por<br />

muito tempo a Faculdade de Teologia que faltava à universidade portuguesa. Em 1453,<br />

a de Lisboa foi mesmo oficializada como Faculdade Universitária.<br />

Para outro entendimento da vida franciscana, a conventualidade favorecia o<br />

esquecimento da vida pobre dos eremitérios e o esfriamento do desejo de serem os<br />

frades peregrinos e viandantes. Essa percepção está na origem da Observância, um<br />

movimento de reforma, iniciado nos fins do século XIV, pelo Frei João de Guadalupe, e<br />

posteriormente, por São Pedro de Alcântara. Na Espanha, tal movimento ficou<br />

conhecido como reforma dos “descalços” 108 – tornando também célebres personagens<br />

como Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz, ambos reformadores do carmelo - ou<br />

dos “alcantarinos”, pela influência de São Pedro de Alcântara no movimento. Em<br />

Portugal, os observantes eram chamados de membros do “Instituto Capucho” ou,<br />

simplesmente, “capuchos” (por causa do formato pontiagudo do capuz do hábito que<br />

vestiam), “antoninos” ou “antoninhos” (os das Províncias de Santo Antônio e da<br />

Conceição), “arrábidos” ou “capuchinhos” 109 (os da Província da Arrábida), “padres de<br />

Santo Antônio”. No Brasil, os frades também eram chamados de “capuchos” e de<br />

“padres de Santo Antônio”.<br />

Em Portugal, começaram a pulular os eremitérios da Observância, espalhando<br />

um novo fervor. Conforme o estilo do tempo, formavam Vigairarias, em 1447; a partir<br />

107 IRIARTE, Lázaro. História Franciscana. Petrópolis: Vozes/Cefepal, 1985.<br />

108 Porque os mais rigorosos nem sequer usavam sandálias.<br />

109 Tal designativo popular, mas que também consta das Letras Apostólicas, às vezes, é causa de<br />

confusão, porque, aqui, “capuchinho” alude ao hábito dos arrábidos, do ramo da Observância, que pedem<br />

ao Papa que conceda o uso do capucho à semelhança dos frades capuchinhos da Itália, e não que sejam os<br />

frades arrábidos da família dos Frades Menores Capuchinhos (OFM Cap).


de 1517, com os conventos claustrais reformados pela Observância, foram elevados a<br />

Província (Província de Portugal da Regular Observância, sendo também comum o<br />

designativo “da mais estreita e regular observância”), no intuito de marcar a austeridade<br />

de vida dos franciscanos reformados. Num primeiro momento, a Província de Portugal<br />

reunia quer os da conventualidade, quer os da observância, até que, em 1567, por pedido<br />

de D. Henrique (Cardeal), então regente do Reino, ao Papa Pio V, os conventuais foram<br />

obrigados a reformarem-se na observância. Na Espanha aconteceu o mesmo por<br />

influência de Felipe II.<br />

Desde começos do século XVI, os franciscanos se desenvolveram sobremaneira<br />

em Portugal. Quase todas as cidades e vilas fundaram conventos. E, assim, para o seu<br />

bom governo, foi preciso desmembrar a Província de Portugal em diversas outras:<br />

Piedade (1517), Algarves (1532), Arrábida (1560), Santo Antônio de Portugal (1568);<br />

mais tarde, surgiram as Províncias da Soledade (desmembrada da Piedade, 1673), e da<br />

Conceição de Portugal (desmembrada de Santo Antônio, 1705).<br />

Não só no continente os franciscanos se espalharam, mas por toda a orla do mar;<br />

depois nas ilhas que no Atlântico se descobriram - Açores, Madeira, Canárias, Cabo<br />

Verde - e até nas terras firmes da Guiné. Pareciam fascinados pelo mar os franciscanos<br />

observantes portugueses. Integraram-se nas expedições dos Descobrimentos que<br />

rasgaram horizontes mais largos à tradicional vocação missionária da Ordem. Já no<br />

século XIII os franciscanos iniciaram atividade missionária em Marrocos, onde, em<br />

1220, padeceram os cinco protomártires da Ordem, fato determinante para o ingresso do<br />

mais popular Santo de Portugal, Antônio de Lisboa, entre os menores. 110 A presença de<br />

um franciscano entre as figuras do Monumento dos Descobrimentos, em Belém,<br />

exprime essa realidade histórica em vigorosa linguagem plástica.<br />

110 O próprio Santo Antônio bem como São Francisco também estiveram no norte da África, entre os<br />

muçulmanos, e do sultão El-Kamil o Fundador se fez amigo, em Damieta, no Egito.


O florescimento da Ordem, em Portugal, num renovado espírito evangélico, foi<br />

importante condição para a intensa missionação empreendida, na África, nas Índias<br />

Orientais e no Brasil, a partir do século XVI. O desejo de pregar o Evangelho a toda<br />

humana criatura e o fato de, nas cátedras dos seus conventos, se ministrar um ensino<br />

todo impregnado de fraterna confiança pelas criaturas, levaram o escritor Jaime<br />

Cortesão a pensar que também no franciscanismo enraizava a inspiração dos<br />

descobrimentos marítimos e o entusiasmo que neles puseram os portugueses.<br />

Nas Índias foi erigida a Província da Madre de Deus; nos Açores, a Província de<br />

São João Evangelista; na Ilha da Madeira, a Custódia de São Tiago Menor; nas Ilhas de<br />

São Miguel e de Santa Maria, a Custódia de Nossa Senhora da Conceição; no Brasil, as<br />

Províncias de Santo Antônio e da Imaculada Conceição; no Maranhão e Grão Pará, os<br />

Comissariados das Províncias de Santo Antônio de Portugal, da Piedade de Portugal e<br />

da Imaculada Conceição de Portugal.


Os franciscanos ocuparam um lugar de destaque, não apenas pelo expressivo<br />

número de membros espalhados mundo afora, mas pelo tipo de presença influenciadora<br />

de novidades, especialmente sobre a sensibilidade popular, na Europa e no Ultramar:<br />

seu espírito liberal, de grande compreensão e tolerância, sua plasticidade criadora de<br />

símbolos, devoções e ritos de uma religião para o povo, sua empatia com os sofredores<br />

e deserdados da vida dos quais foram mitigadores fraternos das aflições ou defensores<br />

dos direitos, por cuja vitória não hesitaram em imiscuir-se muitas vezes com os<br />

movimentos de revolta. Na ótica de Jaime Cortesão, o franciscanismo tornou-se a<br />

mística dos descobrimentos, tal o desejo impetuoso de fundar pelo amor à comunidade<br />

de todos os seres da criação, origem do naturalismo científico no campo da especulação<br />

científica, filosófica e política, desde São Boaventura a Guilherme de Ockham. 111 No<br />

entanto, por parte dos historiadores, não houve um cuidado proporcional à importância<br />

do franciscanismo. Por que não se deu? É o que tentaremos responder.<br />

2.5. As imprecisões, conseqüência da preguiça<br />

Conforme dissemos no título anterior dessa subdivisão, falar dos franciscanos é<br />

difícil, haja vista as peculiaridades desse grupo religioso. Tudo isso gera algumas<br />

confusões e leva os pesquisadores a imprecisões históricas, em especial, quando tratam<br />

da ação missionária dos franciscanos no Brasil e no Maranhão.<br />

Em 1621, o Maranhão e o Pará tornaram-se um Estado independente do Brasil,<br />

com governo próprio e diretamente ligado à jurisdição de Lisboa. Após a expulsão dos<br />

franceses do Maranhão, a criação de um Estado independente foi considerada a melhor<br />

medida para povoar e desenvolver a região Amazônica. Em verdade, a Carta Régia de<br />

111 CORTESÃO, Jaime. Os Descobrimentos Portugueses, Volume I, Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa<br />

da Moeda, 1990, pp. 76-86.


Felipe II, ordenando que o governo do Maranhão fosse separado do Brasil, é datada de<br />

20 de junho de 1618. Na mesma Carta Régia, os religiosos da Província de Santo<br />

Antônio são chamados para acompanhar o recém-nomeado governador.<br />

Em termos de organização eclesiástica, no período colonial, pode-se falar de três<br />

“Brasis”: o da região amazônica, área com predominância de população indígena,<br />

agrupada nos aldeamentos missionários e regida pelas leis e regimentos de missão, com<br />

suas dioceses em São Luís e em Belém, sufragâneas não do arcebispado da Bahia, mas<br />

de Lisboa (as Ordens Religiosas, durante muito tempo, gozaram de autonomia na<br />

administração do poder espiritual e temporal nos vastos territórios das aldeias que<br />

missionavam, origem dos muitos conflitos que tiveram com os Governos Gerais, a<br />

Coroa e a hierarquia eclesiástica); um segundo, constituído pelo Brasil dos engenhos,<br />

das fazendas e das cidades do litoral, com população majoritariamente escrava,<br />

missionado pelas Ordens Religiosas, mas também atendido por paróquias, cujas<br />

dioceses, sufragâneas da arquidiocese da Bahia, se regiam pelas Constituições Primeiras<br />

do Arcebispado da Bahia (1707); e um terceiro, nas regiões de Minas Gerais, Goiás e<br />

Mato Grosso, com numerosa escravaria e vida litúrgica e devocional centrada nas<br />

igrejas das irmandades e ordens terceiras leigas, atendidas pelo clero secular, sem<br />

nenhuma presença de ordens religiosas, proibidas pela Coroa de aí se estabelecerem.<br />

Referente a esse último Brasil é que se cunhou a expressão caracterizadora de um<br />

catolicismo de “muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre”. 112<br />

O Maranhão, a partir do século XVII, torna-se uma nova fronteira de missão e<br />

palco de uma série de eventos que terão implicações importantes nos destinos do país<br />

que, mais tarde, consolidou as suas dimensões continentais. Infelizmente, conhecemos<br />

menos do que devíamos sobre a história do Maranhão e do Grão-Pará. Talvez, aí, resida<br />

a raiz das imprecisões históricas que identificamos, mesmo nos livros dos mais eruditos


autores. E elas avultam, quando se trata dos franciscanos. É o que estaremos<br />

exemplificando a seguir.<br />

Arlindo Rupert, autor de “A Igreja no Brasil” 113 , em capítulo que trata das<br />

missões no Maranhão, no Pará e na Amazônia, comete o deslize de dizer: “Na parte<br />

jurídica em 1705, Clemente XI erige a Província de Santo Antônio, separando-a da<br />

Província portuguesa da Beira e Minho”. Justo o contrário: da Província de Santo<br />

Antônio de Portugal, separam-se os conventos do Norte daquele País, formando-se a<br />

Província da Imaculada Conceição de Portugal.<br />

De igual forma, é comum perceber que autores confundem a atividade<br />

missionária dos franciscanos da Custódia de Santo Antônio do Brasil (1647) e sua<br />

subseqüente Província (1657), com os capuchos da Província de Santo Antônio de<br />

Portugal (mãe da Província brasileira do mesmo nome), no Maranhão. Acresce a essa<br />

circunstância o fato de outras Províncias do mesmo ramo e Ordem (os Observantes<br />

Reformados ou capuchos) também exercerem o apostolado no Brasil, nomeadamente no<br />

Estado do Maranhão e Grão-Pará, como é o caso dos frades da Província da Piedade.<br />

Em começos do Século XVIII, outra reforma interna da Ordem na Metrópole<br />

levou a uma nova subdivisão territorial dos capuchos, com a ereção da Província da<br />

Imaculada Conceição de Portugal (1705), congregando os conventos sitos ao norte do<br />

Rio Mondego, menos o de Cantanhede, alinhando-se ao grupo da mais estreita<br />

observância. No Maranhão e Grão-Pará, não sem conflitos internos, as missões também<br />

foram repartidas entre os Comissariados das Províncias de Santo Antônio de Portugal e<br />

da Imaculada Conceição de Portugal (essa também confundida com a Província de<br />

mesmo nome, Imaculada Conceição do Brasil, mas que todavia se desmembrou, da<br />

112 É comum encontrar essa expressão nos livros que tratam sobre aspectos da Sociologia da Religião.<br />

113 RUPERT, Arlindo. A Igreja no Brasil, Volume III, Santa Maria: Livraria Editora Palloti, 1981, p.<br />

199.


Província de Santo Antônio do Brasil, de forma definitiva, em 1677), conforme<br />

havíamos mencionado acima. 114<br />

As imprecisões ficam ainda mais patentes na obra de Eduardo Hoornaert, em co-<br />

autoria, intitulada “História da Igreja no Brasil”, com o subtítulo de “Ensaio de<br />

Interpretação a Partir do Povo”. 115 Afirmam os autores: “No ano de 1692 entraram os<br />

Religiosos do Comissariado da Piedade, de Portugal, e em 1705, os da Conceição,<br />

também portugueses. Entraram também os de Santo Antônio do Brasil”.<br />

Como é sabido, a Província de Santo Antônio do Brasil jamais empreendeu ação<br />

missionária no Maranhão. Ademais, as duas datas citadas estão erradas, e devem ser<br />

retificadas para 1693 e 1707.<br />

Em outro caso, Sérgio Buarque de Holanda, em “História Geral da Civilização<br />

Brasileira” 116 , no capítulo em que versa acerca da conquista do Maranhão, afirma que<br />

Jerônimo de Albuquerque se fez acompanhar de “dois capuchinhos portugueses às<br />

aldeias de índios para os persuadir de saírem na frota”. Os referidos religiosos eram os<br />

Frades Cosme de São Damião e Manoel da Piedade, que, em 1614, acompanharam as<br />

tropas portugueses com o objetivo de expulsar os franceses de São Luís. De fato, ambos<br />

eram portugueses de nascimento e filhos da Província de Santo Antônio de Portugal.<br />

Todavia, designá-los de “capuchinhos”, longe de ser mera filigrana, pode levar a um<br />

entendimento equivocado de que se filiavam ao mesmo instituto franciscano que<br />

acompanhavam os franceses invasores. Esses últimos, de fato, pertenciam à Ordem dos<br />

Frades Menores Capuchinhos, ao contrário dos frades portugueses que eram capuchos<br />

do ramo da Observância. Tratam-se, como sabemos, de dois grupos em tudo<br />

114 AMORIM, Maria Adelina de Figueiredo Batista. Missão e Cultura dos Franciscanos no Estado do<br />

Maranhão e Grão-Pará – Século XVII – Ao Serviço de Deus, de Sua Majestade e Bem das Almas,<br />

Dissertação de Mestrado em História e Cultura do Brasil apresentada à Universidade de Lisboa, Lisboa:<br />

1997, Volume I, p.30.<br />

115 HOORNAERT, Eduardo et alii. História da Igreja no Brasil: Ensaio de Interpretação a Partir do<br />

Povo, Petrópolis: Vozes, 1983.


independentes, com governos e orientações institucionais diferentes, ainda que<br />

adotassem a mesma Regra franciscana.<br />

erro:<br />

É curioso que, antes de Holanda, Júlio Maria havia incorrido no mesmo tipo de<br />

“Os Capuchinhos, cuja primeira introdução foi devida a<br />

Jerônimo de Albuquerque, chegaram ao Recife, onde tomaram<br />

conta da ermida de N. S. das Neves, em 1585; organizaram-se em<br />

província independente, que se dividiu depois em duas – uma na<br />

Bahia, outra no Rio de Janeiro”. 117<br />

Pelos breves exemplos apresentados, pode-se verificar como é difícil a qualquer<br />

estudioso dessas matérias “dominar tantos dados sem incorreções, motivadas na maior<br />

parte das vezes pela falta de uma história geral de cada uma das Ordens e, também<br />

pela repetição dos factos e análises, distorcidos ou viciados”. 118 Certamente, os autores<br />

continuarão a preferir a uniformidade jesuítica. Dá menos trabalho!<br />

2.6. Preconceitos e Omissões<br />

Além das imprecisões, deparamo-nos com os preconceitos e as omissões dos<br />

autores sobre a atividade dos franciscanos. Enquanto as imprecisões talvez se<br />

justifiquem pela falta de informação sobre matéria tão complexa, os preconceitos e as<br />

omissões são devidos às paixões que tolheram o espírito crítico dos autores de crônicas,<br />

relatos, cartas e demais documentos de época, assim como dos pesquisadores<br />

contemporâneos. Não foram poucas as vezes em que se rotulou a atuação franciscana no<br />

Brasil como ineficaz, escravagista, cerceadora da liberdade dos índios, anti-jesuítica,<br />

pró-colonial.<br />

116 HOLANDA, Sérgio Buarque. História Geral da Civilização Brasileira, Tomo I – A Época Colonial,<br />

1º Volume – Do Descobrimento à Expansão Territorial, 2ª ed., São Paulo: Difusão Européia do Livro,<br />

1963, p. 226.<br />

117 MARIA, Júlio. O Catolicismo no Brasil. Rio de Janeiro: Agir, 1950, p. 104.<br />

118 AMORIM, Maria Adelina de Figueiredo Batista. Op.. Cit., p. 31.


Sem a pretensão de fazer uma coleção de escritos malditos que silenciam ou<br />

desabonam a atividade dos franciscanos, torna-se importante analisarmos algumas<br />

asserções.<br />

Pedro Calmon, em prefácio à “Conquista Espiritual da Amazônia”, de Artur<br />

César Reis 119 , ao elogiar a obra e as ações dos missionários, na Amazônia, enumera-os<br />

da seguinte forma:<br />

“(...) catequistas de palavra milagrosa; frades estadistas;<br />

missionários-construtores; jesuítas-fundadores de cidades;<br />

carmelitas-sertanistas; salesianos-taumaturgos (...) discípulos do<br />

Padre Figueira, precursor do Padre Santo-Maior – mártir, do<br />

Padre Vieira, general e oráculo da cruzada branca”.<br />

É importante destacar que o autor da obra, Artur César Reis, é um dos<br />

historiadores que mais se tem dedicado ao estudo da ação dos franciscanos no<br />

Maranhão, que ombrearam em significado e em importância os jesuítas na atividade<br />

missionária naquele Estado. No entanto, o prefaciador, Calmon, é traído por um<br />

esquecimento sintomático. Por que não fez uma simples referência aos franciscanos?<br />

Por que também não se referiu aos mercedários? Por que considerou suficiente a<br />

diluição de diferenças importantes com o termo “frades”? Por que apenas nomeou e<br />

exaltou os jesuítas?<br />

Na mesma linha do esquecimento, temos mais alguns exemplos.<br />

Citando “os que melhor estudaram no berço da nacionalidade a língua dos<br />

Aborígenes do Brasil”, Macedo Soares transcreve parte de artigo de autoria de Plínio<br />

Airosa, publicado no jornal “O Estado de São Paulo” (edição de 17 de fevereiro de<br />

1937):<br />

119 CALMON, Pedro, in REIS, Artur César. A Conquista Espiritual da Amazônia. São Paulo: Escolas<br />

Profissionais Salesianas, s. d., p. IV.


“Aos jesuítas ilustres José de Anchieta, Luís Figueira e Antônio<br />

Ruiz de Montoya devemos, incontestavelmente, o melhor e o mais<br />

precioso acervo lingüístico relativo à língua formosa e rica que<br />

vulgarmente chamamos tupi-guarani. Do primeiro recebemos a<br />

interessantíssima ‘Arte de Gramática da Língua Mais Usada na<br />

Costa do Brasil’, escrita na segunda metade do século XVI e<br />

impressa em Coimbra por António de Mariz, em 1595; do Padre<br />

Luís Figueira, como um dos documentos mais valiosos do falar<br />

indígena do extremo norte do País, recebemos também a ‘Arte de<br />

Gramática da Língua Brasileira’, editada provavelmente em<br />

1621, em Lisboa; e de Montoya, além do inestimável ‘Tesouro’,<br />

herdamos a ‘Arte e Vocabulário de la Lengua Guaraní’, dados à<br />

estampa em Madrid por Juán Sánchez, no ano de 1640”. 120<br />

Concordamos com as elogiosas e detalhadas referências de Airosa sobre os<br />

ilustres jesuítas. Mas, por que apenas se ateve aos inacianos, quando sabe-se que<br />

franciscanos, contemporâneos aos citados, também escreveram gramáticas das línguas<br />

faladas no Brasil?<br />

Frei Francisco do Rosário, o primeiro que pisou as terras do Maranhão, escreveu<br />

um “Tratado sobre os Ritos, Costumes e Línguas dos Brasis” e, na língua indígena, um<br />

“Catecismo para o Gentio do Brasil”, livros que se perderam. Das várias obras de Frei<br />

Cristovão de Lisboa, destacamos a sua “História dos Animais e Árvores do Maranhão”.<br />

Frei João de Santo Atanásio, o iniciador das missões franciscanas no Jari, compôs um<br />

“Roteiro Moral” para missionários e mais um “Roteiro Doutrinal”. Frei Boavista de<br />

Santo Antônio escreveu artes e vocabulários das línguas Aruan e Sacaçá. Frei Joaquim<br />

da Conceição e Frei Mateus de Jesus Maria fizeram catecismos, súmulas, gramáticas e<br />

vocabulários dos Aruans, Aracajus e Maraumi. Frei Mateus e Frei João de Jesus<br />

ocuparam-se com a língua geral. 121 Tantos! Mas não se cita um sequer...<br />

120 AIROSA, Plínio, apud SOARES, José Carlos de Macedo. Op. Cit., p. 28.<br />

121 RÖWER, Basílio. A Ordem Franciscana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1947, pp. 110 s..


Ainda mais recente, Max Justo Guedes, em artigo intitulado “A Relevância da<br />

Acção Missionária na Expansão Geográfica do Brasil”, interpreta o papel dos vários<br />

institutos religiosos, como elemento fundamental no alargamento e na fixação das<br />

fronteiras brasileiras. No entanto, presume-se que o autor não fale tanto quanto diz<br />

saber: “Na conquista do vale amazônico, onde, sabemos todos, foi capital a actuação<br />

das ordens religiosas, nomeadamente Jesuítas, Carmelitas e Mercedários”. 122<br />

Dos esquecimentos, vamos aos preconceitos.<br />

Pedro Calmon, ao tratar da história das missões paraibanas, assinalada pelas<br />

contendas entre os missionários franciscanos e jesuítas, em fins do século XVI, refere-se<br />

à entrada dos capuchos, na Paraíba, de forma desdenhosa. Conforme a afirmação de<br />

Calmon, os franciscanos “tinham entrado a Paraíba, para ‘missionar’ tribos<br />

amansadas”. 123 Repare-se que esse autor põe o verbo missionar entre aspas.<br />

Certamente intencionou dizer que os jesuítas, que haviam estabelecido a missão de<br />

Braço do Peixe, já teriam pacificado os bravos índios Potiguares, quando da entrada dos<br />

franciscanos, naquela Capitania. Entretanto, a pacificação dos Potiguares foi o que<br />

motivou o chamado à Paraíba dos Frades Menores, que, lá chegados, receberam cinco<br />

missões. O Padre Serafim Leite, ao tratar do assunto, atestou que a Companhia de Jesus<br />

se recusara a aceitar, na Paraíba, outras missões além da do Braço do Peixe, motivo por<br />

que foram confiadas aos franciscanos. 124<br />

Segundo Willeke, a declaração do Governador Frutuoso Barbosa, em elogio ao<br />

Frei Antônio do Campo Maior, datada de 19 de setembro de 1589, é prova substantiva<br />

de que os franciscanos estabeleceram missões em lugares nunca antes palmilhados por<br />

missionários:<br />

122 GUEDES, Max Justo. A Relevância da Acção Missionária na Expansão Geográfica do Brasil, in<br />

Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, Braga: 1993, p. 698.<br />

123 CALMON, Pedro. História do Brasil, Volume II, Rio de Janeiro: José Olympio, 1963, p. 304.<br />

124 Padre Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil, Vol. I, op. cit, p. 505.


“ao muito revdo. Senhor padre guardião fr. Antônio do Campo<br />

Maior em nome de seus prelados ... porquanto passou comigo<br />

pessoalmente e com todo o seu gentio a fazer o forte dalem dos<br />

rios dentro da terra do inimigo aonde nunca outrem passou ... (e)<br />

atualmente eu com o dito padre estamos hoje”. 125<br />

Os trinta anos de atividades missionárias dos franciscanos na Paraíba (1589-<br />

1619) foram marcados pelas rivalidades entre ambas as Ordens. Enquanto Frei Jaboatão<br />

atribui as hostilidades a “emulações de Religiosos de outra Família”, Frei Manuel da<br />

Ilha avaliou que, pelo teor das patentes e dos alvarás – transcritos na sua “Narrativa da<br />

Custódia de Santo Antônio do Brasil: 1884-1621” – por serem sempre favoráveis aos<br />

franciscanos, podia-se entender o motivo da “antipatia dos Padres e oficiais da justiça<br />

das aldeias, que inquietavam todos os nossos, atemorizando-os se subiam à nossa<br />

doutrina; molestando e perturbando nossos Religiosos, pretendiam que não ensinassem<br />

doutrina nas aldeias a eles entregues pelo rei e seus ministros. Eles, porém, não se<br />

conformavam, inventando os obstáculos que podiam”. 126 Por sua vez, o Padre Serafim<br />

Leite atribuiu as rivalidades entre as Ordens à falta de nítida delimitação dos distritos<br />

missionários. 127<br />

Com a chegada do novo Governador, Feliciano Coelho de Carvalho, as<br />

hostilidades só se agravaram. Este referiu o caso a Filipe II, que, em resposta, ordenou<br />

instaurar um inquérito, cujo resultado atribuiu as responsabilidades da contenda aos<br />

jesuítas. Em conseqüência, por decreto de 15 de março de 1593, os Padres da<br />

Companhia foram obrigados a abandonar a Paraíba e substituídos pelos franciscanos, na<br />

missão do Braço do Peixe. Nem por isso, houve paz. Em 1619, os próprios franciscanos<br />

abandonaram as missões, estimadas, nessa época, em número de dezoito, por causa das<br />

perseguições que continuavam, principalmente por serem particulares defensores da<br />

125 WILLEKE, Venâncio. Missões Franciscanas no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1974, p. 46.<br />

126 Frei Manuel da Ilha. Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil: 1584-1621, Edição<br />

Bilingüe, Petrópolis: Vozes, 1975, nº 101, p. 123.<br />

127 Padre Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil, Vol. I, op. cit, p. 505.


liberdade dos índios. 128 Jaboatão atribui terem os capuchos deixado as missões a<br />

“causas particulares, violências dos que governam, ambição dos principais, interesse<br />

dos Párocos e emulação de Religiosos de outra Família, de que se seguiam aos nossos,<br />

súditos e Prelados, turbações, contendas, calúnias e outros grandes e cotidianos<br />

incômodos”. 129<br />

Bem mais desabonatórias, pela gravidade e generalização das afirmações, são as<br />

opiniões de Hoornaert e colaboradores:<br />

“Os Franciscanos entendem missão como dilatação das<br />

fronteiras do serviço católico, como expansão religiosa, em<br />

primeiro lugar, enquanto os jesuítas, tiveram uma verdadeira<br />

procura do indígena e da defesa da sua ‘liberdade’. Não se<br />

descobre isso nos documentos que conhecemos acerca da missão<br />

franciscana (sic), pelo contrário, vemos os Franciscanos<br />

acompanhar os passos da conquista do litoral nordestino do Rio<br />

Grande do Norte até Alagoas, benzer os estabelecimentos de<br />

engenhos de açúcar, acompanhar as bandeiras que caçam<br />

indígenas, e mesmo animar as guerras regulares contra os<br />

indígenas”. 130<br />

Não vamos, já aqui, cabalmente, contestar as afirmações dos autores. Antes,<br />

cabe fazer algumas considerações importantes.<br />

Conforme declaram os próprios autores, suas afirmações não estão baseadas<br />

“nos documentos que conhecemos acerca da missão franciscana”. De fato, na página<br />

44, declaram que, nas matérias atinentes à questão missionária, utilizam as informações<br />

jesuíticas constantes nos estudos do historiador inaciano, o Padre Serafim Leite, aliás,<br />

autor de obras de grande envergadura, desde então, obrigatoriamente referenciadas,<br />

quando o assunto é a história eclesiástica e missionária.<br />

128 ROMAG, Frei Dagoberto. História dos Franciscanos no Brasil: 1500-1659, Curitiba, 1940, p. 39.<br />

129 Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão. Orbe Seráfico Novo Brasílico, Lisboa: na Oficina de Antônio<br />

Vicente da Silva, 1761, Capítulo XXVIII, nº 373, p. 223. Cópia impressa do Arquivo Nacional da Torre<br />

do Tombo, Série Preta, nº 907.<br />

130 HOORNAERT, Eduardo. Op. Cit., pp. 54s.


Um trabalho que apenas utiliza os documentos e a bibliografia produzida pelos<br />

jesuítas, o que é comum na nossa historiografia 131 , peca pela parcialidade, porque – ao<br />

deixar de considerar um dado fundamental e necessário, o antagonismo entre<br />

franciscanos e jesuítas, patenteado nas muitas disputas apaixonadas entre as duas<br />

Ordens, nos campos de missão, no Brasil, e no cenário internacional - não problematiza<br />

as fontes. Quem, em sã consciência, pode aceitar que se trate, com isenção, de temas tão<br />

litigiosos, quando, sem chance ao contraditório, os únicos testemunhos considerados são<br />

de uma das partes que se antagonizam?<br />

No caso brasileiro, as contendas entre franciscanos e jesuítas, iniciadas na<br />

Paraíba, ganharam relevo, em São Paulo e no Maranhão, por peculiaridades que, em<br />

seção específica, teremos mais tempo para expor. Mas, adiantamos, já aqui, o tema, para<br />

evidenciar a parcialidade dos autores. Tratando do que chamaram de “ciclo<br />

maranhense” das missões, tendo como coordenadas temporais a segunda metade do<br />

século XVII e a primeira metade do século XVIII, fazem recair em Luís Figueira,<br />

Antônio Vieira e Bettendorff, as “figuras expressivas”, “todos jesuítas”, conforme<br />

referem. Quanto aos outros institutos missionários, a sua existência no Maranhão é,<br />

assim, resumida: “entraram igualmente outras ordens”. 132<br />

Os autores não poderiam omitir-se em relação a Frei Cristovão de Lisboa, figura<br />

eminente, de grandes capacidades morais e intelectuais, intransigente defensor dos<br />

índios, e de estatura comparável à do Padre Vieira. No entanto, citam-no de forma<br />

desabonadora. Apesar de extenso, convém transcrever todo o trecho:<br />

131 Capistrano de Abreu explicitou, arbitrariamente, essa dependência ao declarar que não se podia<br />

escrever a história do Brasil, antes da história da Companhia de Jesus. Segundo Jaime Cortesão, “estaria<br />

Capistrano na verdade se dissesse que a história do Brasil não podia escrever-se sem acompanhar-se a<br />

história de todas as Ordens Religiosas que educaram o espírito português e brasileiro”. Cf.<br />

CORTESÃO, Jaime. Introdução à História da Bandeiras. Lisboa: Portugália, Segundo Volume, s/d, p.<br />

243.<br />

132 Idem, p. 43.


“Veio de Portugal na companhia do Governador [Francisco<br />

Coelho de Carvalho], Frei Cristovão de Lisboa, em 1624, que era<br />

da Província portuguesa da Piedade, qualificador do Santo<br />

Ofício, Comissário da sua Província em Portugal e primeiro<br />

Custódio da Província no Maranhão. Percorreu o norte do atual<br />

Brasil como Comissário do Santo Ofício e Visitador eclesiástico e<br />

foi ele que procurou organizar as missões no Maranhão antes da<br />

chegada dos jesuítas: chamou cinco franciscanos da Província de<br />

Olinda para orientar os companheiros que tinham chegado de<br />

Portugal e não dominavam a língua brasílica. Frei Cristovão de<br />

Lisboa estava inteiramente engajado nos projetos coloniais, de<br />

sorte que hostilizou o grande missionário jesuíta Luís Figueira,<br />

chamando suas palavras de ‘mentiras’ numa carta do dia 26 de<br />

outubro de 1626. Ele era contrário ao tema da ‘liberdade dos<br />

índios’ mas, estranhamente, se interessava por eles de um ponto<br />

de vista ‘científico’: redigiu uma História Natural e Moral do<br />

Maranhão e Grão-Pará com preciosas informações etnológicas e<br />

antropológicas. Ele pertence ao grupo de homens que se<br />

interessam pelos ‘restos mortais’”. 133<br />

Contrária à opinião repetida por Hoornaert e co-autores, Amorin, a partir de<br />

alentada pesquisa historiográfica, demonstrou, em capítulo específico de seu trabalho,<br />

como a figura de Frei Cristovão de Lisboa tem sofrido injustiça duplamente: “É-o pelo<br />

desconhecimento da sua obra, pela omissão sistemática da sua actuação e, sobretudo<br />

quando sobre ele se fazem juízos de valor baseados em leituras oblíquas, deformadas,<br />

sem qualquer recurso à documentação original”. 134<br />

No Maranhão, trinta anos antes do Padre Vieira, comprovou Amorim que Frei<br />

Cristovão de Lisboa foi pioneiro na defesa dos direitos e das liberdades dos índio, e que<br />

“o caminho de precursor que iniciou, cabe-lhe por direito”. 135<br />

A pesquisadora não esteve só nessa tarefa de deixar às claras a imparcialidade<br />

consignada por certa historiografia. Faz menção especial a Luísa da Fonseca, que, no<br />

seu estudo “Frei Cristovão de Lisboa, O.F.M., Missionary and Natural Historian of<br />

Brasil”, analisa a ação do primeiro Custódio franciscano no Maranhão, integrando-a no<br />

processo de colonização do Estado e de conversão dos índios, tendo, ainda, o mérito de<br />

133 Idem, p. 77.<br />

134 AMORIM, Op. Cit., p. 44.


haver publicado duas cartas do próprio missionário, que revelam a sua face de defensor<br />

dos mesmos. E da mesma autora, destaca o artigo “In Defense of the Maranhão Indians<br />

of Colonial Brasil: a Report of Frei Cristovão de Lisboa”, no qual revela manuscritos<br />

autênticos do Custódio, existentes no Arquivo Ultramarino. 136 Amorim também<br />

transcreve os referidos documentos no seu anexo documental.<br />

Na mesma ótica, está o trabalho de Bartolomé Bennassar e Richard Marin, que<br />

não escondem os litígios entre franciscanos e jesuítas, datados desde o século XVI.<br />

Referem-se à pregação antiescravagista dos franciscanos, na cidade de Belém, “onde o<br />

governador possuía trezentos escravos índios causou-lhes dissabores”, destacando os<br />

onze anos de intensa atividade pastoral de Frei Cristovão de Lisboa, que não hesitou em<br />

dar conta de suas convicções ao rei Dom João IV: “Todas as conquistas de territórios<br />

índios supõem o recurso à violência porque os indígenas são os legítimos donos da<br />

terra, não fizeram nada de mal e não se opuseram à pregação da fé cristã. Portanto é<br />

inevitável que odeiem os portugueses e repudiem a religião católica se se vêem<br />

injustamente atacados”. 137<br />

Vítor Hugo, em “Desbravadores”, afirma peremptoriamente que as várias<br />

Ordens Religiosas se insurgiram contra a crueldade dos colonos em favor dos índios.<br />

Baseando-se no trabalho de Matias Kiemen, “The Indian Policy of Portugal in the<br />

Amazon Region (1614-1693)”, o autor também destaca as rivalidades e as divergências<br />

de pontos de vista entre os vários institutos religiosos. Refere-se à atuação dos jesuítas<br />

que buscavam obter o monopólio do trabalho indígena, indiciando a pretensão da<br />

Companhia de submetê-los incondicionalmente, eximindo-os de toda a jurisdição<br />

civil. 138 Esboça-se, por parte dos franciscanos, uma certa reação a esse poder da<br />

135<br />

Idem, p. 246.<br />

136<br />

Idem, pp. 44s.<br />

137<br />

BENNASSAR, Bartolomé et MARIN, Richard. História do Brasil – 1500 –2000. Lisboa: Teorema,<br />

s/d, p. 133.<br />

138<br />

HUGO, Vítor. Desbravadores, São Paulo: próprios, pp. 16s.


Companhia, crescentemente manifesto, sobretudo após a entrada de Vieira no<br />

Maranhão. 139<br />

Em relação às divergências entre franciscanos e jesuítas, desde os alvores do<br />

Estado do Maranhão, que classifica de “guerra fria e tenaz”, Vítor Hugo transcreve<br />

pequenos trechos das Cartas de Frei Cristovão de Lisboa ao Padre Luís Figueira que<br />

foram o estopim da longa querela. 140<br />

Mas, retornemos ao texto encimado por Hoornaert. Há uma flagrante<br />

contradição quando afirma que “quando Frei Cristovão de Lisboa quis pôr em<br />

execução, no ano de 1624, o alvará régio proibindo a escravidão africana (sic) (15-5-<br />

1624), a câmara e o povo se revoltaram contra ele”. 141<br />

Na época mencionada, foi Frei Cristovão ao Maranhão, tendo em mãos plenos<br />

poderes para administrar no temporal e no espiritual as aldeias de índios, como os<br />

próprios autores atestam na página 90. E isso, antes mesmo dos jesuítas, uma vez que os<br />

franciscanos capuchos foram os primeiros missionários a entrar naquele Estado.<br />

A primeira coisa a esclarecer é que o citado alvará régio não tratava da<br />

escravidão africana. É custoso crer que os autores se atrapalhassem com a expressão de<br />

época, muito usada, referenciando-se aos indígenas como os “negros da terra”. Qual<br />

outra explicação para erro tão elementar?<br />

A segunda, como poderá um frade contrário à liberdade dos índios, ao mesmo<br />

tempo abrir um conflito aberto com as autoridades e com os colonos por querer<br />

proclamá-la publicamente? Por causa da intransigente defesa da liberdade dos índios, os<br />

franciscanos, liderados por Frei Cristovão, sofreram perseguições e atentados contra a<br />

sua integridade física, tal qual, mais tarde, também sofreram os jesuítas, sendo a acerba<br />

139 Idem, p. 18.<br />

140 Idem, p. 19.<br />

141 HOORNAERT, Op. Cit., p. 90.


oposição um dos motivos que levaram à interrupção dos trabalhos de missão<br />

recentemente iniciados pelos capuchos.<br />

A defesa da liberdade dos índios também foi luta dos capuchos. Vários<br />

documentos comprovam a posição dos franciscanos, no Maranhão, que chegaram a<br />

incorrer em desobediência às ordens do Governador e do Rei para proteger os nativos.<br />

142 A Carta Régia de 7 de julho de 1710, dá ordens ao Governador do Maranhão para<br />

que expulsasse a Frei Pedro do Redondo, missionário da Província Capucha da Piedade,<br />

no primeiro navio que zarpasse para o Reino, e lá chegado, fosse mandado para o mais<br />

remoto convento da Província, por ter negado índios para o “real serviço”. 143<br />

Nas palavras de Jaime Cortesão, “não passa de farisaísmo” invocar a favor dos<br />

jesuítas uma decantada defesa da liberdade humana, no seu amplo sentido filosófico,<br />

político ou social. Como eximi-los da acusação de escravagistas, uma vez que<br />

“aconselhavam e praticavam a escravatura do negro, e em cujos engenhos e fazendas<br />

escravos africanos laboravam”? 144 E não apenas do negro, mas também dos índios. É o<br />

que podemos concluir, na análise de uma Provisão, de 7 de abril de 1726, que concedia<br />

aos Padres da Companhia, no Maranhão, licença para que pudessem resgatar trinta ou<br />

quarenta escravos índios para serviço dos seus colégios e fazendas, em cada uma das<br />

entradas que se fizessem aos sertões. 145<br />

Deixando de lado os erros crassos, as considerações preconceituosas de<br />

Hoornaert não causam surpresa. Apenas refletem a má vontade dos autores em<br />

aprofundar seus estudos em direção ao que ultrapasse a Companhia de Jesus, seja para<br />

falar bem quanto mal. É como que bastasse referir-se aos jesuítas, tratados de<br />

142 O Arquivo Ultramarino conserva um “Requerimento do Custódio e mais religiosos do Maranhão a<br />

Felipe II, queixando-se dos capitães que exploram os índios, alugando-os, fazendo-os trabalhar e<br />

chegando a tomar-lhes mulheres e filhos”, de 17 de outubro de 1623, Maranhão, Cx.1; a Biblioteca<br />

Pública de Évora guarda várias Cartas Régias, do século XVIII, reclamando dos capuchos que negavam,<br />

sistematicamente, entregar índios para “o real serviço”: CXV/2-18, f. 322; f. 356 v.; f. 440v., f. 445v.<br />

143 Biblioteca Pública de Évora CXV/2-18, f. 449.<br />

144 CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras. II Volume, Lisboa: Portugália, s/d, p.<br />

248.


epresentantes máximos da ação missionária e protótipos do missionário, para dar conta<br />

do capítulo que sempre deve tematizar a catequese dos índios e dos colonos. Em geral,<br />

nos textos didáticos, o exemplo jesuítico é considerado suficiente, não havendo motivo<br />

para tratar das demais Ordens Religiosas, sem incorrer em “redundâncias” de um texto<br />

que deve cobrir ainda tantas outras coisas.<br />

A “História do Brasil”, do grande mestre que foi Rocha Pombo, exemplifica<br />

nossa afirmação. Em capítulos intitulados “Catequese dos Selvagens” e, noutro mais<br />

explícito, “Os Colonos e os Jesuítas”, disserta elogiosa e exclusivamente sobre os<br />

inacianos. Sobre os demais missionários, escreve de modo genérico, o que não condiz<br />

com a verdade: “Os poucos frades, que raramente apareciam, muito pouco se<br />

dedicavam à catequese naqueles primeiros tempos; e ainda depois, alguns preferiam o<br />

retiro do claustro às penosas vicissitudes do sertão”. 146<br />

E, logo, em seguida, afirma sobre os jesuítas, :<br />

“Era preciso contar, pois, com um zêlo apostólico incomparável,<br />

que excedesse a tudo quanto até ali se poderia esperar da<br />

abnegação e da caridade de criaturas humanas”.<br />

“É feliz nestas condições que, ao lado do poder político, vem<br />

entrar em cena, no drama da conquista, a figura do<br />

missionário”.<br />

“Uma fortuna ainda maior para a América foi esta de haver<br />

coincidido, com os primeiros esforços do europeu na obra<br />

colonial, a instituição da célebre Ordem Religiosa que tanto<br />

abalou o mundo”. 147<br />

A exclusividade de Pombo conferida aos jesuítas repete-se por suas obras<br />

didáticas que atingiram grande número de edições. A que acabamos de citar foi<br />

145 Arquivo e Biblioteca Pública de Évora, CXV/2-12, f. 141.<br />

146 POMBO, Rocha. História do Brasil, 11ª ed., São Paulo: Edições Melhoramentos, 1963, pp. 81.<br />

147 Idem, grifo nosso.


destinada aos “cursos superiores e estudantes das Escolas de Filosofia” (onde se<br />

formavam os professores), e recomendada “ao manuseio de mestres primários e de<br />

professores de ginásio para o preparo das aulas e mais largos estudos”. 148 No ano de<br />

1963, atingiu a décima primeira edição, revista e atualizada por Hélio Viana, superando<br />

mais de sessenta mil exemplares. Outras duas, “Nossa Pátria”, e a homônima “História<br />

do Brasil”, foram preparadas respectivamente para o “curso primário” e ao “primeiro<br />

ciclo do ensino secundário”. Imaginemos o poder que essas obras tiveram na formação<br />

dos nossos conceitos...<br />

As interpretações dasabonatórias dos franciscanos, além de considerá-los<br />

contrários à liberdade dos índios, atravessam outros aspectos pontuais, como é o caso da<br />

“riqueza” dos frades e da sua inoperância pastoral. Em verdade, essa é a grande<br />

tendência entre os historiadores. Os autores os julgam a partir de aspectos secundários<br />

na suposição equivocada de que a riqueza das igrejas forradas a ouro denunciam uma<br />

riqueza velada, em contradição com a regra franciscana que obrigava a um rigor no<br />

desprendimento dos bens materiais. Em via de regra, a ereção e a preservação de certas<br />

igrejas da época colonial eram entregues a doadores particulares ou a irmandades e<br />

confrarias de leigos, por gerações sucessivas, a troco de esmolas. Essas organizações<br />

religiosas foram os responsáveis diretos pela opulenta decoração dos templos. A<br />

desconsideração dessa realidade levou alguns a confundir o fausto dos templos com as<br />

disponibilidades financeiras dos missionários. Mas não podemos dizer que esse foi o<br />

caso de Márcio Moreira Alves, autor de “A Igreja e a Política no Brasil”:<br />

148 Prefácio da Editora à obra citada.<br />

“Os Franciscanos e os seus parentes Capuchinhos (sic), que se<br />

instalaram no Recife em 1585, tornaram-se as ordens mais<br />

numerosas do país, posição que mantêm até hoje. A profusão de<br />

ouro na decoração das suas igrejas, tal como nas igrejas das


confrarias leigas que organizavam, atesta a prosperidade dos<br />

irmãozinhos dos pobres na época colonial”. 149<br />

Pode-se dizer que o referido autor também não foi preciso nem isento quando dá<br />

a entender que “os franciscanos e seus parentes capuchinhos” (na verdade, foram os<br />

capuchos que chegaram na data aludida ao Recife), ricos e numerosos do passado<br />

colonial mantiveram ao longo dos séculos, “até hoje”, um posição de invejável<br />

prosperidade. Quem conhece a história franciscana no Brasil percebe a maldosa<br />

intenção do autor.<br />

Na mesma obra, duas páginas adiante, Alves refere-se ao papel das irmandades,<br />

atestando claramente que tomavam conta das igrejas, cuidavam da decoração e da<br />

manutenção das mesmas, “pagando o salário dos padres e dos sacristães”. 150<br />

Há quem, ainda, suponha de forma inadvertida que a simplicidade do burel<br />

esteja a revelar espíritos intelectualmente despreparados, e, por conseguinte, de<br />

tendência voluntariosa e fundamentalista.<br />

Longe de ser uma unanimidade, essa “corrente de críticas acríticas ou o vazio<br />

de informações”, para usar uma expressão de Amorim 151 , é contrariada por outras<br />

fontes de opinião que conferem à ação franciscana um papel meritório.<br />

Um exemplo é o de Paulo Florêncio Camargo, em “História Eclesiástica do<br />

Brasil”. Refere-se aos abusos que deturpavam a lei que permitia a escravização dos<br />

índios contra os quais se lançava a chamada “guerra justa”:<br />

“O índio não tinha proteção dos juízes. Os missionários de todas<br />

as ordens religiosas, máxime os Franciscanos e Jesuítas,<br />

levantaram-se contra esses abusos, protestando e lutando perante<br />

a autoridade da metrópole e apelando até Roma contra a<br />

desalmada e injusta (agressão desferida) pelos colonos”. 152<br />

149<br />

ALVES, Márcio Moreira. A Igreja e a Política no Brasil, Lisboa, 1977, p. 11.<br />

150<br />

Idem, p. 13.<br />

151<br />

AMORIM, Op. Cit., p. 47.<br />

152<br />

CAMARGO, Paulo Florêncio da Silveira. História Eclesiástica do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1955, p.<br />

206.


Há quem, numa atitude cautelosa, mantenha a dúvida científica por falta de<br />

documentação ou de sua divulgação. Tal é o caso de José Honório Rodrigues, em<br />

“História da História do Brasil”. Considerando a falta de fontes para o estudo dos<br />

franciscanos, compara a ausência de produção documental dessa Ordem, com a atitude<br />

da Companhia de Jesus. Segundo o autor, os jesuítas mantiveram uma posição ativa<br />

perante a história, como que a precaver-se de um julgamento futuro, uma espécie de<br />

veredicto da história como justiça transcendental, “baseada na bondade ou maldade do<br />

seu produto”, pois “não há produção a que não corresponda uma crônica, um relato,<br />

um registro”.<br />

“Os autores jesuíticos acreditam na justiça histórica e na<br />

sobrenatural, e os religiosos de outras ordens não parecem crer<br />

muito na primeira. Essa é a justificativa que nos faz compreender<br />

como tanta ação dos Religiosos Franciscanos, Carmelitas e<br />

outros, se dilui nos documentos oficiais contemporâneos e pouco<br />

deixou escrito que fixasse para o futuro a benemerência de sua<br />

atividade”. 153<br />

Praticamente, desde sua origem, os jesuítas foram obrigados a estabelecer uma<br />

estratégia que podemos chamar de “defesa afirmativa” contra os seus históricos<br />

inimigos. Faziam isso através da propaganda maciça, utilizando habilmente a escrita e a<br />

imprensa, propalando aos quatro ventos as glórias e os fatos edificantes que exaltavam<br />

os méritos e a grandeza da Companhia ad majorem Dei gloriam (para maior glória de<br />

Deus), conforme o lema jesuítico, abreviado pela sigla A.M.D.G.<br />

Compreendemos, então, o porquê das opiniões pró-jesuíticas da maioria dos<br />

autores, e contrárias ou negativas, quando, ao menos, não silenciam sobre as demais<br />

Ordens. Entendendo que a melhor defesa é o ataque, os jesuítas, com seu espírito<br />

militar, que não se esquiva, antes busca o combate, desde o século XVI, empreenderam


um hábil trabalho de fabricação de uma história sempre favorável ao seu instituto<br />

religioso. Seus efeitos, até hoje, são sentidos, de forma indelével, na escrita da nossa<br />

história nacional: eis a raiz da grande deformação de juízo que impede, ao que nos<br />

parece, descortinar o seu sentido profundo.<br />

O Padre José de Acosta, S.J., através da sua obra “De Procuranda Indorum<br />

Salute”, estampada a primeira vez, em 1588, sem dúvida, é o primeiro formulador da<br />

teoria de que os religiosos regulares, à exceção dos jesuítas, não são os mais indicados<br />

para assumir a tarefa missionária entre os índios.<br />

No Capítulo XVI, intitulado “Convém Entregar aos Religiosos Regulares as<br />

Paróquias dos Índios?”, lança as seguintes perguntas: “As paróquias de índios, convém<br />

que as tenham religiosos regulares? Quem está mais qualificado para encarregar-se da<br />

direção e do governo eclesiástico dos recém convertidos: eles ou os sacerdotes<br />

regulares? É uma questão que alguns discutem com ciúme e má intenção”. 154<br />

De modo afirmativo, Acosta responde à primeira pergunta:<br />

“Não há porque considerar como algo estranho a uma instituição<br />

religiosa o que em alguma ocasião o amor a Cristo e à salvação<br />

de alguns irmãos se sobreponha à estrita observância da vida em<br />

comum e da regra, especialmente quando o Vigário de Cristo<br />

interpreta nesse sentido as leis públicas e privadas”. 155<br />

Há, aqui, uma velada alusão ao “quarto voto” que distingue, entre todos, os<br />

jesuítas, que devem obediência ao Papa, por força da sua profissão religiosa.<br />

A resposta à segunda pergunta, fica bem respondida com o trecho destacado:<br />

153<br />

RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil, I Parte – Historiografia Colonial, Rio de<br />

Janeiro: MEC, 1979, p. 297.<br />

154<br />

ACOSTA, José de. De Procuranda Indorum Salute, Madrid: Consejo Superior de Investigaciones<br />

Cientificas, 1987, p. 301.<br />

155 Idem, p. 303.


“Ninguém pode ser tão irracional nem tão inflamado inimigo dos<br />

regulares que não reconheça paladinamente que os esforços e<br />

trabalhos dos religiosos foram base fundamental para criar a<br />

Igreja nas Índias. (...) Ademais, tampouco se pode negar que os<br />

religiosos instruem aos índios com maior sentido religioso e mais<br />

acertadamente e, em geral, ajudam-lhes com melhor exemplo de<br />

vida que os seculares”. 156<br />

No entanto, apesar de “tantas e tão decisivas vantagens” dos regulares sobre os<br />

seculares, o Padre Acosta não deixa de apresentar duas desvantagens que, em razão da<br />

extensão do texto, consideramos explicitar, sem prejuízo ao entendimento do leitor, com<br />

o destaque dos seguintes textos abaixo numerados:<br />

1. “Como os regulares estão isentos [da jurisdição ordinária]<br />

por seus privilégios, não chegam a se entender demasiado<br />

bem com os bispos à hora de reger as paróquias de índios. Os<br />

graves males que daí sugiram, apenas eles podem dizer”.<br />

2. “O segundo inconveniente, em minha opinião, não é menos<br />

importante que esse, e eu creio que afeta aos próprios<br />

regulares. Também eles mesmos pensam assim e o lamentam.<br />

Os mais prudentes e melhores entre eles deploram que as<br />

ordens religiosas tenham sofrido um colapso por haver se<br />

encarregado das paróquias de índios. Isso produziu um<br />

relaxamento da disciplina, até inclusive aboli-la, e uma perda<br />

quase de sua boa fama, de maneira que já não resta nada dos<br />

primitivos institutos regulares, salvo hábitos de uma cor<br />

determinada e uma tonsura mais ou menos ampla. Não estou,<br />

aqui, exorbitando o naufrágio de nenhum dos frades em<br />

particular. O que advirto é que assim se esquece totalmente a<br />

razão de ser de seu instituto, que é ajudar a Igreja de Cristo<br />

Nosso Senhor para que, como disse o Sábio, se façam<br />

fiadores de seu amigo como é sua obrigação”. 157<br />

Ao contrário do que poderíamos pensar inadvertidamente, nada do que foi posto<br />

é afeto à Companhia de Jesus, a não ser e tão-somente às demais ordens religiosas. Pois<br />

como afirma Acosta:<br />

156 Idem.<br />

157 Idem, pp. 306 s.


“A Companhia de Jesus foi fundada basicamente para servir à Igreja de<br />

Deus indo às missões em diversas zonas de todo o orbe. Essa função lhe<br />

é tão própria como a nenhuma outra o é mais. Tem de cumpri-la com<br />

todas as forças em qualquer povoado e lugar, mas em nenhum outro<br />

lugar tanto como entre os povos indígenas, porque, ao menos assim creio<br />

eu, foi fundada por divina inspiração com a finalidade primordial de<br />

ganhar a Cristo esses povos. (...) Por conseguinte, se a Companhia<br />

desiste dessa função porque as dificuldades a vencem, ou se fica<br />

paralisada pela negligência, eu não duvido que incorrerá em grave<br />

ofensa a Deus e aos homens, mais que as outras ordens religiosas”. 158<br />

Penso ser desnecessário fazer qualquer tipo de comentário ao texto.<br />

Os escritos de Acosta correram mundo, e sua “teoria”, melhor dizendo, sua<br />

ideologia institucional fez escola, inspirando outros seus irmãos de hábito a defender o<br />

direito de a Companhia sobrepor-se às demais ordens religiosas, inclusive na defesa do<br />

monopólio missionário dos jesuítas em determinadas regiões, tal como ocorreu no<br />

polêmico caso do Japão, não sem reação e protestos dos franciscanos.<br />

2.7. A imprensa: uma poderosa tecnologia a serviço da expansão da Companhia<br />

Os jesuítas foram grandes produtores de documentos e hábeis em divulgá-los,<br />

lançando mão da nova e revolucionária tecnologia: a imprensa. Boa parte do que<br />

escreviam e publicavam tinha o objetivo de atingir o maior número de pessoas, a partir<br />

dos estratos mais influentes das sociedades européias. Ainda que utilizemos termos<br />

extemporâneos, os jesuítas, certamente, foram a primeira das organizações a perceber e<br />

a utilizar eficazmente o grande poder da imprensa para influenciar a opinião pública a<br />

seu favor. Em especial, as cartas ânuas da Companhia, divulgadas aos quatro cantos da<br />

terra, tornaram-se um grande fenômeno de mídia a constituir uma das primeiras<br />

campanhas propagandísticas dos tempos modernos.<br />

158 Idem, 310 s.


Por forças das próprias constituições da Companhia, formuladas pelo fundador,<br />

Inácio de Loyola, os seus membros eram obrigados periodicamente a escrever cartas aos<br />

seus superiores, como declarado “meio de unir com a cabeça e entre si aqueles que<br />

estão dispersos”. 159 Ora, a Companhia de Jesus, em curto período de tempo, tornou-se<br />

uma empresa internacional, não somente no tocante à destinação de suas atividades<br />

missionárias, mas também com relação à variada origem nacional de seus membros.<br />

“De facto, a Companhia não pode manter-se, nem ser governada, nem por conseguinte<br />

atingir o fim que pretende para a maior glória de Deus, se os seus membros não<br />

estiverem unidos entre si e com a cabeça”. 160<br />

A obediência, tema recorrente ao longo de toda a peça jurídico-canônica e que<br />

dispõe de um capítulo próprio a ela dedicado, constitui o principal voto daquele instituto<br />

religioso e primeiro garantidor do vínculo de união entre os seus membros. 161 Além dos<br />

outros dois votos, castidade e pobreza, estabelecendo o tríplice fundamento da vida<br />

religiosa, os jesuítas ainda faziam o chamado “quarto voto”, o de obediência ao Sumo<br />

Pontífice, que assim se define:<br />

“(...) voto explícito de ir a qualquer parte onde sua Santidade<br />

mandar, quer entre fiéis, quer entre infiéis, para qualquer fim de<br />

que diga respeito ao culto divino ou ao bem da Religião cristã,<br />

sem escusa alguma, nem exigência de ajuda material para a<br />

viagem”. 162<br />

A leitura das Constituições dá-nos a exata dimensão da obediência, por exemplo,<br />

quando confrontada ao voto de castidade, tão laconicamente referido:<br />

“O que diz respeito ao voto de castidade não precisa de<br />

interpretação, pois é bem claro quão perfeitamente se deve<br />

guardar, esforçando-se todos a imitar a pureza dos Anjos com a<br />

159 SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus, Lisboa, 1975, nº 655, p.<br />

221.<br />

160 Idem.<br />

161 Idem, nº 659, p. 222.<br />

162 Idem, nº 7, p. 35.


integridade de corpo e alma. Pressuposto isto, passamos a falar<br />

da santa obediência”. 163<br />

Temos, aqui, a idéia inicial que presidiu a Companhia: uma milícia de homens às<br />

ordens da Igreja, prontos para qualquer empresa à que o Papa ou os Superiores os<br />

queiram lançar. A obediência é que há de ser o princípio da ação de todo o corpo.<br />

Qualquer que seja a enumeração dos votos, a obediência é o primeiro no pensamento de<br />

Santo Inácio de Loyola: “Muito especialmente apliquemos todas as forças na virtude da<br />

obediência – ao Sumo Pontífice em primeiro lugar, depois aos Superiores da<br />

Companhia”. 164<br />

A doutrina sobre a obediência de Loyola esgarça ao máximo o entendimento da<br />

forma do seu dever, à qual estão obrigados a sujeitar-se todos os seus súditos:<br />

“Persuadamo-nos que tudo isso é justo, abnegando com obediência cega, qualquer<br />

opinião e juízo pessoal contrário, em tudo o que é mandado pelo Superior”. 165<br />

Outra metáfora, de maior força expressiva, é exposta pelas mesmas<br />

Constituições: “Persuada-se cada um que os que vivem em obediência devem deixar-se<br />

guiar e dirigir pela Providência, por meio do Superior como se fosse um cadáver que<br />

se deixa levar seja para onde for, e tratar à vontade”. 166<br />

Não basta executar o que se ordena (obediência de execução); é necessário a<br />

quem obedece que queira a mesma coisa que aquele que manda (obediência de<br />

vontade); e mais, é preciso, a quem obedece, que se deixe tomar pelo mesmo sentir de<br />

quem manda, e “acha estar bem mandado aquilo que se manda” (obediência do<br />

entendimento), pois “a obediência é imperfeita quando há execução, mas não há<br />

163 Idem, nº 547, p. 185.<br />

164 Idem, nº 547, p. 186.<br />

165 Idem, nº 547, p. 186s. Grifo nosso.<br />

166 Idem, nº 547, p. 187. Grifo nosso.


conformidade de querer e de sentir entre quem manda e quem obedece”. 167 Maior<br />

violência psicológica talvez não encontremos similar.<br />

O governo da Companhia, conforme o espírito de acerba obediência, desde seu<br />

surgimento, foi centralizado na pessoa do seu Superior Geral, a quem os inacianos,<br />

“tanto por causa das grandes vantagens da ordem, como por causa do nunca demais<br />

louvado exercício contínuo da humildade, devem sempre obedecer em tudo o que<br />

pertencer ao instituto da Companhia, e nele reconhecer Cristo, como presente, e<br />

respeitá-lo como convém”. 168<br />

Apesar de os jesuítas organizarem-se político-administrativamente em<br />

Províncias, nem por isso deixaram de conceder ao Governo Geral um grande poder de<br />

decisão e de comando sobre toda a Ordem, ao modo muito semelhante das corporações<br />

transnacionais da contemporaneidade. Esse caráter centralizado e hierárquico de<br />

administração, é verdade, deu grande agilidade aos objetivos expansionistas da<br />

Companhia.<br />

Para que a desejável união dos súditos entre si e com o governo da Companhia, a<br />

“cabeça”, mantenha-se sempre em seu vigor, é necessário que a administração geral<br />

possa contar, “o quanto possível”, com pessoas “bem exercitadas na obediência”. Em<br />

especial, “os que têm cargos mais importantes na Companhia distingam-se entre os<br />

outros pelo bom exemplo nesta virtude (da obediência), sendo muito unidos com seu<br />

Superior”. 169 O bom governo da Companhia, portanto, dependia de uma bem azeitada<br />

engrenagem hierárquica de subordinação.<br />

“À mesma virtude da obediência está ligada a subordinação bem<br />

guardada aos Superiores, uns com relação aos outros, e dos<br />

súditos com relação aos Superiores. Assim, os que vivem numa<br />

casa ou colégio recorram ao Superior local ou Reitor, e deixem-<br />

167 Idem, nº 550, p. 187.<br />

168 Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, in Santo Inácio de Loyola, op. cit, nº 6, p. 25.<br />

169 Idem, nº 659, p. 222.


se em tudo dirigir por ele; e os que vivem dispersos pela<br />

Província recorram ao Provincial, ou a algum Superior local<br />

mais próximo, conforme as ordens recebidas. E todos os<br />

superiores locais ou Reitores estejam em comunicação estreita<br />

com o Provincial, e deixem-se guiar em tudo por ele. Procedam<br />

da mesma forma os Provinciais com relação ao Geral. Assim,<br />

guardada a subordinação, manter-se-á a união que por ela em<br />

primeiro lugar se realiza, com a graça de Deus Nosso Senhor”. 170<br />

De outro lado, é preciso estar atento para afastar os que não se submetem ao<br />

“modo de proceder” da Companhia:<br />

“Quando vir que algum é causa de divisão entre os que vivem<br />

juntos, quer entre si, quer deles com a cabeça, deve ser<br />

cuidadosamente separado da comunidade, pois é uma peste que<br />

pode infestá-la terrivelmente, se não se lhe puser logo<br />

remédio”. 171<br />

Entendemos, assim, que a unidade pretendida se tratava, propriamente, de<br />

uniformidade, não havendo margem para qualquer dissidência interna. As<br />

Constituições explicitam que a desejável uniformidade se daria na sua forma mais<br />

ampla possível: “Também muito pode ajudar a uniformidade, tanto interiormente – na<br />

doutrina, juízos e vontades, na medida do possível, - como exteriormente – no vestir,<br />

cerimônias da Missa e em tudo o mais – quanto o permita a variedade de pessoas,<br />

lugares etc”. 172<br />

O segundo, e não menos importante, meio de manutenção da união é a<br />

instituição epistolar:<br />

170 Idem, pp. 224s. Grifos nossos.<br />

171 Idem, nº 664, p. 225.<br />

172 Idem, nº 671, p. 227.<br />

“Concorrerá também de maneira muito especial para esta união<br />

a correspondência epistolar entre súbditos e Superiores, com o<br />

intercâmbio freqüente de informações entre uns e outros, e o<br />

conhecimento das notícias e comunicações vindas das diversas<br />

partes.” 173


As Constituições prescrevem o modo como essa instituição epistolar deve se<br />

processar. Em primeiro lugar, esse encargo pertence aos Superiores, em particular ao<br />

Geral e aos Provinciais. “Eles providenciarão para que cada sítio se possa saber o que<br />

se faz nas outras partes, para consolação e edificação mútua em Nosso Senhor”. 174 Por<br />

sua vez, os Superiores locais e os Reitores, assim como os enviados para as terras de<br />

missão, eram obrigados a escrever, semanalmente, aos seus Provinciais, se tivessem<br />

possibilidade. De igual modo, os Provinciais e os outros Superiores deveriam escrever<br />

todas as semanas ao Geral, se ele estivesse perto. Caso residissem no estrangeiro,<br />

levando-se em conta as dificuldades de comunicação, a recomendação era escrever uma<br />

vez por mês. 175<br />

Para que as notícias da Companhia pudessem comunicar-se a todos, inclusive<br />

fora dos círculos do instituto, os religiosos das diversas casas e colégios deveriam<br />

escrever, cada quatro meses, uma carta em língua vernácula, que contivesse apenas<br />

notícias de edificação e outra em latim no mesmo teor. Uma e outra, em duplicada,<br />

seriam enviadas ao Provincial, e esse remeteria ao Geral um dos exemplares em latim e<br />

outro em vernáculo, ajuntando uma carta sua a contar os fatos importantes ou<br />

edificantes omitidos nas primeiras. Do mesmo exemplar tirar-se-iam tantas cópias<br />

quanto necessárias para dar conhecimento delas aos outros membros da Província.<br />

Os superiores locais e Reitores, tendo em vista agilizar a comunicação, também<br />

poderiam despachar as suas cartas em latim e em língua vernácula diretamente para o<br />

Geral, mandando ao seu Provincial uma cópia delas.<br />

O Geral, que centralizava todas as correspondências, comunicava as notícias das<br />

Províncias, umas às outras, produzindo os exemplares necessários para tal.<br />

173<br />

Idem, nº 673, p. 227.<br />

174<br />

Idem.<br />

175<br />

Cf. Idem, nº 674, p. 228.


Evidente que os jesuítas criaram um instrumento eficaz de controle a fim de<br />

garantir a conformidade das suas práticas missionárias às normas institucionais. Com a<br />

expansão da atividade missionária para a Ásia e a América, a partir de 1540, a troca de<br />

correspondências tornou-se crucial à administração interna da ordem. A hierarquia<br />

jesuítica mantinha-se permanentemente informada sobre tudo que acontecia com os seus<br />

membros espalhados pelo mundo. Essa supervisão constante permitia, por um lado, que<br />

os Superiores avaliassem o êxito das missões e planejassem sua organização e<br />

expansão. Por outro lado, a necessidade de comunicação constante com a Europa<br />

forçava os jesuítas a prestarem contas de suas práticas e a monitorarem as atividades dos<br />

outros irmãos.<br />

No entanto, considerando-se as distâncias entre as Províncias do ultramar e a<br />

Europa, bem como as nem sempre regulares partidas de navios e os longos percursos<br />

das viagens marítimas e terrestres, não se pode pensar que esse processo de<br />

comunicação fosse tão ágil. “Um ciclo completo de troca de correspondências que<br />

incluísse uma primeira carta enviada à Europa, sua réplica e uma tréplica poderia<br />

demorar mais de meia década para ser completada”. 176<br />

No caso brasileiro, acredita-se que, de 1549 a 1610, mais de seiscentas cartas<br />

foram enviadas para Portugal e para o resto da Europa. Aproximadamente quatrocentas<br />

dessas cartas foram preservadas. Desse total, a metade foi escrita por jesuítas que<br />

viviam nas vilas de São Vicente e da Bahia. O restante da correspondência partiu de<br />

povoados costeiros de Pernambuco, Ilhéus, Porto Seguro, Rio de Janeiro e Espírito<br />

Santo. O ritmo dessa comunicação, na maior parte das vezes, era determinado pela<br />

disponibilidade e freqüência das partidas dos navios, não obstante as normas que<br />

regulavam a instituição epistolar. 177<br />

176 EISENBERG, José. As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno – Encontros<br />

Culturais, Aventuras Teóricas, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000, p. 48.<br />

177 Idem.


Ademais, a circulação das correspondências jesuíticas, especialmente daquelas<br />

que narravam somente as notícias edificantes e apresentavam os aspectos bem-<br />

sucedidos e virtuosos da empresa missionária, e, portanto, omitiam os problemas<br />

institucionais que eram encaminhados in pectoris aos Superiores, em outro tipo de<br />

missiva, cumpriam uma finalidade institucional, com o intuito explícito de serem lidas<br />

por um público cada vez mais amplo. Funcionando como material de publicidade e de<br />

promoção da Companhia dentro da Igreja e das cortes européias, os textos edificantes<br />

acabaram por criar uma imagem idealizada das atividades dos jesuítas. Segundo a<br />

afirmação de Eisenberg, sempre muito simpático aos jesuítas, “esses relatos eram<br />

verdadeiros instrumentos de propaganda em pleno século XVI, ‘vendendo’ as missões<br />

para aqueles que as financiavam e, ao mesmo tempo, impedindo que os problemas e<br />

ineficiências da empreitada viessem a público”. 178 De fato, as cartas edificantes dos<br />

jesuítas, já no século XVI, ganhavam suas primeiras impressões sob o patrocínio da<br />

própria Companhia.<br />

Evidentemente, o conteúdo das cartas ou relatos edificantes não eram publicados<br />

sem antes passar pelo crivo e pela censura do Governo Geral da Companhia. As<br />

coletâneas das cartas que eram publicadas sofriam um trabalho editorial elaborado “feito<br />

de seleção e de censura, destinado a fornecer uma determinada imagem e a controlar<br />

rigorosamente as reações dos leitores”. 179 A expansão e o sucesso das atividades<br />

missionárias dos jesuítas no Ultramar bem como o ingresso de noviços e o aumento do<br />

fluxo de recursos materiais e financeiros para as missões dependiam da publicidade dos<br />

seus feitos ao grande público, especialmente nas cortes dos reis e na Cúria Papal.<br />

As crônicas e as narrativas de autoria de grandes nomes da Companhia,<br />

estampadas a partir do século XVI, em Portugal, como as dos Padres Simão de<br />

178 Idem, p. 56.<br />

179 PROSPERI, Adriano. O Missionário, in VILLARI, Rosario. O Homem Barroco, Lisboa: Presença,<br />

1995, p. 148.


Vasconcelos, Fernando Cardim, José de Morais, Jacinto de Carvalho, entre outros, e que<br />

tiveram por base as cartas edificantes produzidas desde o século anterior (ainda hoje,<br />

uma das principais portas de entrada dos historiadores ao cotidiano do Brasil<br />

quinhentista), surgiram na forma de produção muito mais elaborada, todavia, com o<br />

mesmo intuito de consolidar a hegemonia dos jesuítas.<br />

Em verdade, o tom laudatório de muitos escritos jesuíticos apenas refletiram um<br />

espírito apologético, tão comum à época o que está longe de ser uma particularidade da<br />

Companhia. Em geral, as ordens religiosas tradicionais, entre elas a franciscana,<br />

esmeravam-se, até mais, quanto ao caráter excepcional atribuído aos seus feitos. O que<br />

marca a diferença dos jesuítas das demais Ordens é a sua eficácia na produção e na<br />

difusão dos seus textos, através do uso da imprensa.<br />

O aparecimento da imprensa, em meados do século XV, é fulcral para a<br />

compreensão do quadro de transformações na transmissão da cultura na época Moderna.<br />

Se considerarmos que a imprensa só se torna possível pelo aparecimento de aquisições<br />

de caráter técnico, a prensa e o fabrico de papel, é também imprescindível vê-la como<br />

resposta a necessidades culturais específicas. A pressão da procura sobre a produção<br />

monástica de manuscritos, nomeadamente por parte dos quadros universitários, alarga-<br />

se às necessidades de uma rede administrativa em crescimento, à constituição das<br />

bibliotecas humanistas, ao interesse pelo livro por parte das camadas sociais cada vez<br />

mais amplas, e até às mutações na espiritualidade no sentido de uma devoção individual<br />

com base no livro.<br />

Interessa-nos perguntar sobre o desenvolvimento da imprensa em Portugal.<br />

Como terá sido a sua implantação, ao longo dos séculos XV e XVI? A imprensa chega a<br />

Portugal, a partir de 1480, de forma muito tímida. Durante todo o século XVI, o<br />

desenvolvimento da atividade editorial continua pouco notável. Calcula-se que, até o<br />

ano de 1535, eram editados em média 0,6 títulos anuais, verificando-se depois um


crescimento apreciável até 1565, em que se registram trinta edições, seguido de uma<br />

desaceleração até 1580 e um novo crescimento que atinge o seu pico, até final do<br />

século, entre 1586 e 1590. 180<br />

Por outro lado, em termos de conteúdo, a estatística sobre as obras impressas em<br />

Portugal, nos séculos de nosso interesse, revela uma percentagem significativa de temas<br />

religiosos (teológicos e litúrgicos), característica, aliás, geral em toda a Europa.<br />

O manuscrito mantém, pois, necessariamente, um espaço de circulação<br />

significativo: pode-se mesmo afirmar que, nas quatro primeiras décadas do século XVI,<br />

o livro manuscrito predominou em Portugal sobre o livro impresso. A tipografia era<br />

recurso excepcional ao serviço da Igreja, da Coroa e da Universidade, e não agente de<br />

uma dinâmica cultural importante. Há certa relutância em aceitar o livro impresso, o que<br />

pode ser exemplificado através das postergações das ordens dos monarcas, desde D.<br />

Sebastião, reiteradas por Felipe II, que recomendavam a urgente impressão das<br />

“Chronicas dos Reys passados” que se guardavam na Torre do Tombo, “para exemplo e<br />

esforço dos presentes, e vindouros”. A esmagadora maioria das crônicas régias, apesar<br />

da sua importância ideológica na afirmação de um Estado em construção e na<br />

constituição de uma memória coletiva, no entanto, permaneceu manuscrita até muito<br />

tarde. 181<br />

Lucien Febvre e Henri-Jean Martin, na magistral obra “O Aparecimento do<br />

Livro” 182 , caracterizaram a difícil vida dos livreiros e impressores ao longo dos séculos<br />

XV, XVI e XVII. Naqueles tempos, as oficinas tinham que se estabelecer em local onde<br />

houvesse uma clientela estável e suficientemente ampla, a fim de garantir algum lucro.<br />

Essa foi a razão por que, de início, as oficinas se multiplicaram e prosperaram nas<br />

180<br />

BUESCU, Ana Isabel. Memória e Poder. Ensaios de História Cultural (Séculos XV-XVIII),<br />

Lisboa: Edições Cosmos, 2000, p. 39.<br />

181<br />

Idem, p. 45.<br />

182<br />

FEBVRE, Lucien et MARTIN, Henri-Jean. O Aparecimento do Livro, Lisboa: Fundação Calouste<br />

Gulbekian, 2000.


grandes cidades universitárias. A clientela universitária não foi a única a atrair livreiros<br />

e impressores. A presença de um clero numeroso e rico, nas cidades arquiepiscopais e,<br />

às vezes, na sede dos grandes bispados, produz com freqüência o mesmo efeito; e, mais<br />

ainda, em certas cidades, a existência de jurisdições importantes, à volta das quais<br />

gravitavam homens de leis. São os legistas, tanto quanto os eclesiásticos, talvez até mais<br />

do que eles, os melhores clientes dos livreiros: desejavam possuir não somente obras<br />

religiosas, mas também coleções de costumes, livros de direito e, sobretudo, obras<br />

profanas. Assim, livreiros e impressores instalavam-se nas proximidades dos tribunais.<br />

A presença de uma universidade ou de um tribunal supremo, com tudo o que<br />

isso representa de clientela certa, nos séculos XV e XVI, com freqüência, atrai os<br />

impressores e os livreiros: eis a origem de muitos centros tipográficos importantes. Mas,<br />

a partir dos finais do século XVI e no século XVII, na maior parte da Europa, e<br />

principalmente na Europa católica, já não é assim: nesses tempos, a escassez monetária<br />

e a perda da importância das universidades provocaram a ruína de muitas oficinas que<br />

se tinham estabelecido perto delas. Daí em diante, os impressores e os livreiros que<br />

desejam instalar-se são atraídos para outros lugares, freqüentemente para cidades menos<br />

importantes. Em busca de clientela estável, fixam-se, já não próximo de um tribunal<br />

supremo, mas de uma comarca secundária, de uma sede episcopal, de um município<br />

importante; vivem, antes de mais nada, da impressão de documentos administrativos e<br />

religiosos, num tempo em que se multiplica a papelada.<br />

A ação dos jesuítas, iniciada em Portugal, na primeira metade do século XVI,<br />

mesmo antes da oficialização da Ordem 183 , ensejou a fundação dos seus colégios por<br />

toda a Europa católica, por vezes substituindo as universidades, bem como o<br />

183 Dom João III (1502-1557), insatisfeito com os mestres da Universidade Portuguesa, convidou o grupo<br />

de Inácio de Loyola, natural da Espanha, para empreender uma reforma universitária, mesmo antes da<br />

aprovação papal que, meses depois, seria concedida à nascente Companhia. O apreço e a proteção de D.<br />

João aos jesuítas foram determinantes para que, logo, fossem admitidos em outros reinos europeus. Além<br />

do Colégio das Artes, em Coimbra, os jesuítas também se estabeleceram na Universidade de Évora.


estabelecimento de suas casas com boas bibliotecas. A expansão das atividades da<br />

Companhia estimulou a criação de novas tipografias. Em especial, foram os colégios<br />

jesuítas o novo filão explorado pelos profissionais do livro, os quais imprimem apostilas<br />

e manuais para os alunos, assim como as obras de piedade ou de controvérsias,<br />

necessárias à sua missão. Em algumas cidades onde os jesuítas fundavam colégios,<br />

mandavam vir os tipógrafos que chegaram a adotar a marca da Companhia. 184<br />

Em Portugal, os jesuítas, logo que assumiram o Colégio das Artes, perceberam a<br />

necessidade de modificar o método tradicional de ensino. Numa época do livro raro,<br />

como caracterizou-se o tempo da civilização medieval, os indivíduos eram, em termos<br />

de transmissão da cultura e do saber escolástico, essencialmente “auditivos”. Esse<br />

caráter é também amplamente visível nas práticas da cultura popular, em que a<br />

constituição da memória social mantinha-se predominantemente oral e alheia ao livro.<br />

Em geral, nas universidades, por muitos séculos, o professor foi o lente – literalmente,<br />

“aquele que lê”. Aos alunos exigiam-se boa memória e destreza para anotar as<br />

alocuções dos mestres, ao passo que a leitura silenciosa e privada era interdita nas aulas,<br />

tal como a oração silenciosa se mantém, à mesma época, quase desconhecida na liturgia<br />

da Igreja.<br />

Convenciam-se os modernos mestres jesuítas do despropósito do tempo<br />

desperdiçado e do esforço excessivo dos alunos ocupados com as cópias. Resolveram,<br />

então, reunir um grupo seleto de padres da Companhia para elaborar um curso de letras<br />

(filosofia) para ser impresso e distribuído aos alunos. Assim nasceu o célebre Curso<br />

Conimbricense. O grupo de redatores partiu do aproveitamento das próprias lições<br />

manuscritas que constituíam o corpo da doutrina filosófica ministrada no Colégio das<br />

Artes. Os tratados que constituíram os Conimbricenses constavam de oito comentários<br />

às principais obras de Aristóteles sobre o domínio da filosofia natural, da ética e da<br />

184 Idem, p. 240.


lógica. Tiveram grande divulgação em Portugal e no estrangeiro, nos centros<br />

universitários e colégios da Companhia. Os novos métodos e práticas de ensino,<br />

posteriormente, foram consolidados no famoso “Ratio Studiorum”.<br />

Enquanto os jesuítas não hesitaram em lançar mão dessa formidável ferramenta,<br />

a imprensa, os franciscanos, por exemplo, não tiveram uma percepção imediata sobre a<br />

sua importância. A maior parte dos escritos franciscanos permaneceu manuscrita e, por<br />

se tratar, às vezes, de exemplares únicos, perderam-se para sempre. A “História do<br />

Brasil”, do nosso Heródoto, Frei Vicente do Salvador, que permaneceu manuscrita, até<br />

ser achada e publicada por Capistrano de Abreu, é um exemplo típico. Já a sua crônica<br />

sobre os franciscanos do Brasil, perdeu-se, infelizmente. De igual modo, permaneceram<br />

manuscritos vários textos do contemporâneo do Padre Vieira, o Frei Cristovão Severim<br />

de Lisboa. Bem mais do que humildade, a pobreza dos frades e os altos custos das<br />

edições inviabilizaram muitos projetos editoriais.<br />

CAPÍTULO III<br />

III – Disputas franciscano-jesuíticas: a produção dos silêncios<br />

“Como o gentio da América, e com muita especialidade este das partes do<br />

Brasil, era, entre todas as nações do mundo, aquela gente, que só se podia<br />

chamar naturalmente pobre, ou pobre por gênio da natureza, pois vivendo, e<br />

dando-lhes Deus para moradia uma Região a mais rica, e abastada do mundo<br />

todo, eles entre o ouro e a prata, pedras preciosas, toda a mais, e grande<br />

riqueza do Brasil, viviam entre ela com um natural desprezo de tudo, como<br />

verdadeiros pobres; assim determinou também o Céu, que para primeira e<br />

principal conversão de uns tais pobres como estes, fossem outros pobres os<br />

primeiros; e com uma tão alta Providência, como sua: porque se há<br />

semelhança, é causa do amor, e as virtudes umas com as outras têm simpatia,<br />

com que, respirando influências, unem entre si os seus sujeitos; que melhor<br />

Pregador para um pobre, que outro pobre, e que mais eficaz atrativo para<br />

arrastar a uns homens nus de todos os bens da natureza, como era o Gentio do<br />

Brasil, do que uns homens despidos, e desapossados de todos os interesses do<br />

mundo, como os Filhos de São Francisco; (...) E por isso sem dúvida que a<br />

esses nossos, entre todos os mais, deu o mesmo Céu a primazia na conversão<br />

deste Gentio, e que eles no largo tempo de quarenta e nove para cinqüenta<br />

anos, desde o de 1500, em que aportou em Santa Cruz o P. Fr. Henrique e os


3.1. O caso da primazia<br />

seus Companheiros”, até o ano de 1549 que chegaram à Bahia os Padres<br />

Jesuítas, fossem os cultivadores desta vinha”. Frei Jabotão<br />

“O bojo do instituto da Companhia não se limita a região ou nação alguma,<br />

por mais remota e desacomodada que pareça; e muito mais a esta, que por<br />

algumas congruências se considerava particular empresa sua, por se começar<br />

a descobrir misteriosamente quase no mesmo ano, em que nosso Santo<br />

Patriarca tinha nascido ao mundo: como se Deus o empenhasse desde seu<br />

nascimento para a conquista espiritual desta vastíssima região, que nascia por<br />

notícia juntamente com ele; e já tanto antecipadamente se lhe preparasse e<br />

assegurasse o campo, onde sua Sagrada Religião havia de combater e lucrar<br />

com o inimigo infernal, privando-o da antiga posse, em que por tantos séculos<br />

se havia injustamente introduzido, e feito senhor absoluto de tantos milhares<br />

de almas: logrando nesta parte divinamente ambiciosa a Companhia, aquela<br />

dita por que suspirava Alexandre, ouvindo dizer ao Filósofo Anaxágoras, que<br />

havia muitos mundos, não sendo ele ainda senhor de um; e guardando Deus<br />

este novo (por segredos ocultos de sua Providência) para o descobrir neste<br />

tempo, e dar nova matéria de conquistar aos soldados daquele Capitão que<br />

soube trocar a milícia temporal pela do Espírito, com tão seguros acertos, e<br />

não menos gloriosas vitórias”. Pe. Simão de Vasconcelos<br />

Chama a atenção a insistente ênfase com a qual os autores franciscanos referem-<br />

se à dita “primazia” dos seráficos no Brasil. Para o observador mais atento, essa<br />

afirmação reiterada dos escritos franciscanos é indício de que há problemas quanto à<br />

aceitação da legitimidade da propalada primazia. Afinal, não foram os franciscanos os<br />

primeiros missionários a atuar nas terras de Santa Cruz? Se não pairassem dúvidas sobre<br />

o fato, precisariam os franciscanos repetir tantas vezes que eles, e não outros, foram os<br />

primevos?<br />

Obras antigas ou modernas, cujos títulos dão o mote para as crônicas ou obras<br />

científicas sobre a presença franciscana, no Brasil, deixam patente a questão. Vale<br />

mencionar: “Primazia Seráfica na Região da América”, de Frei Apolinário da<br />

Conceição, OFM (1733), “Novo Orbe Brasílico Seráfico”, de Frei Antônio de Santa<br />

Maria Jaboatão, OFM (1761), “Princípios da Igreja no Brasil”, de Frei Odulfo van der<br />

Vat, OFM (1952), e “Primórdios da Fé no Brasil”, de Frei Venâncio Willeke (OFM)<br />

(1970).


No Prólogo de “Primazia Seráfica na Região da América”, Frei Apolinário<br />

explicita seus objetivos:<br />

“Sendo primeiramente o destino desse Tratado, mostrar a<br />

Primazia, que na gloriosa conversão da América tem a minha<br />

Seráfica Ordem, me pareceu conveniente referir também as<br />

memórias dos Santos, e ilustres Religiosos, que nisto se<br />

empregaram, e as de outros, que depois lhe sucederam, uns no<br />

mesmo ministério apostólico, e outros na exemplaridade de suas<br />

vidas”. 185<br />

Frei Apolinário, irmão religioso, dedicou-se a escrever diversas obras sobre<br />

temas franciscanos, inclusive uma Crônica sobre a sua Província, a da Imaculada<br />

Conceição do Brasil. Não é um autor original a quem se pode atribuir um gênio criativo,<br />

senão um exímio compilador que se serviu de crônicas, documentos e demais obras<br />

produzidas pelos seus confrades. Seu grande mérito foi reunir informações e memórias<br />

significativas sobre os franciscanos, inclusive dados numéricos sobre as diversas<br />

Províncias que, ainda hoje, são importante fonte de referência para os pesquisadores.<br />

Como se percebe no texto acima citado, Frei Apolinário ressona as vozes dos que, antes<br />

dele, preocupavam-se em defender uma glória, certamente mais humana que celeste,<br />

que julgavam, por direito, pertencer-lhes.<br />

Sem dúvida, os textos mais veementes sobre a primazia dos franciscanos no<br />

Brasil são de autoria de Frei Jaboatão, cujo trecho que transcrevemos inicia-se sobre o<br />

capítulo intitulado “Mostra como se verifica dos Frades Menores, depois dos<br />

Descobridores da espiritual Conquista do Brasil, serem eles só os primeiros também<br />

que a cultivaram, pelo dilatado espaço de cinqüenta anos”:<br />

“(...) aqui acrescentaremos agora, como em lugar próprio, tudo o<br />

que achamos ser bastante para que deles se possa verificar não<br />

só a sua primazia nesta espiritual conquista, mas também como a<br />

185 CONCEIÇÃO, Frei Apolinário da. Primazia Seráfica na Regiam da América, Lisboa Ocidental,<br />

1733, Prólogo, sem paginação.


cultivaram desde aqueles princípios, por espaço de cinqüenta<br />

anos, e dos grandes trabalhos, que nisso padeceram”. 186<br />

As palavras veementes de Frei Jaboatão, nitidamente, brotam de um sentimento<br />

de indignação. A favor dos filhos seráficos se levanta, mas contra quem brada? Quem os<br />

assombra com o fantasma da usurpação de um fato, para eles, tão líquido e certo?<br />

É curioso notar que, por intencional ênfase ou por lapso de memória, típica em<br />

certos estados de afetação, Jaboatão incorre em repetições sobre o mesmo assunto: a<br />

reafirmação de que os franciscanos foram, sem dúvida, os primeiros a descobrir e a<br />

conquistar o novo Orbe. Em uma e outra partes, as palavras do seu texto são<br />

praticamente as mesmas. Pela primeira vez, aparecem sob Título da Estância III da<br />

Digressão I, nº 8, pp. 7 e 8, e a segunda, surge no Volume II, Capítulo II, nº 9, p. 10,<br />

estas últimas, as que transcrevemos, ainda que pese a sua extensão:<br />

“Eles [os franciscanos] foram os primeiros, que a descobriram,<br />

como fica advertido; eles os primeiros, que santificaram com o<br />

tremendo Sacrifício do Altar, celebrando a primeira Missa um<br />

daqueles Religiosos, companheiro do P. Fr. Henrique; eles os<br />

primeiros, que plantaram nela a semente do Evangelho, e<br />

Palavra de Deus, pregando na mesma ocasião este Venerável<br />

Padre, primeiras funções Eclesiásticas, e Divinas, que viram com<br />

espanto, e assistiram com admiração os Naturais do Brasil, e<br />

celebraram com júbilo excessivo da alma os Filhos de Francisco.<br />

Eles foram os primeiros que para que a sementeira da Pregação<br />

se multiplicasse frutuosa, a regaram logo com o próprio sangue,<br />

derramando-o pela Fé dois Religiosos Menores no mesmo lugar<br />

de Porto Seguro, poucos anos depois. Eles os primeiros que<br />

levantaram nela Templo, e Casa para Deus, e para que fosse o<br />

Senhor servido, e louvado nelas; sendo também os primeiros eles<br />

(sic), que na terra do Brasil administraram os Sacramentos do<br />

Batismo, Penitência, Matrimônio, e os mais da Santa Igreja, não<br />

ficando finalmente Capitania, menos uma ou outra, ou lugar<br />

notável em que não fossem os Religiosos Menores os primeiros<br />

para a Pregação do Evangelho, Luz da Fé, e conhecimento de<br />

Deus, como irão mostrando os Capítulos seguintes”.<br />

186 JABOATÃO, Frei Antônio de Santa Maria. Novo Orbe Serafico Brasilico,Volume II, Rio de Janeiro:<br />

Typ. Brasiliense de Maximiniano Gomes Ribeiro, 1858, nº 8, pp 9s..(Reimpressão por ordem do Instituto<br />

Histórico e Geográfico Brasileiro).


Mas parece que as palavras de Jaboatão não foram suficientes, antes, nem foram<br />

levadas em conta. Os historiadores elegeram, de fato, as fontes jesuíticas. As afirmações<br />

de Innocêncio Francisco da Silva, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa, e<br />

organizador da segunda edição da Crônica do Padre Simão de Vasconcelos, não deixam<br />

margem para dúvida. Justifica a reimpressão da “Crônica” porque “continua a ser<br />

procurada com avidez, quer em Portugal, que no Brasil, como uma das mais notáveis e<br />

estimadas no seu gênero”. Segundo sua opinião, “ninguém poderá negar” que se trata<br />

de uma ampla e curiosíssima fonte de notícias “para tudo o que diz respeito às<br />

primeiras conquistas e estabelecimentos coloniais dos portugueses em Terras de Santa<br />

Cruz” e que esses são devidos “às trabalhosas fadigas dos primeiros missionários na<br />

catequese e na civilização dos índios”. Conclui ser “inegável o proveito que das<br />

narrativas do Padre Vasconcelos (...) recolheram os que em diversos tempos se<br />

ocuparam mais detidamente das História do Brasil, como o antigo Rocha Pitta, e o<br />

moderno Suthey”. 187<br />

O próprio texto do Padre Vasconcelos, de forma sub-reptícia, também induz o<br />

leitor à idéia da primazia jesuítica, no Brasil. Talvez, Innocêncio da Silva tenha sido um<br />

desses ilustres leitores iludidos pelos estratagemas do autor que não afirma com letra o<br />

que deixa transparecer nas entrelinhas. Assim é que, em várias das suas partes, podemos<br />

ler:<br />

• nº 24, p. 18 – “Antônio Cardoso de Barros (...) primeiro provedor do<br />

Brasil”;<br />

• nº 25, p. 18 - “era este o primeiro Governador Tomé de Souza”;<br />

187 Preâmbulo de Innocêncio Francisco da Silva à obra de VASCONCELOS, Simão. Crônica da<br />

Comapnhia de Jesus do Estado do Brasil, 2ª edição correta e aumentada, Lisboa: A J. Fernandes<br />

Lopes, 1865. Publicada à primeira vez em 1663. Grifos nossos.


• nº 33, p. 23 – “o primeiro descobridor desta Bahia foi Christovão<br />

Jacques”;<br />

• nº 34, p. 24 – “o primeiro povoador português foi outro fidalgo por nome<br />

Francisco Pereira Coutinho”;<br />

• nº 35, p. 25 – “Diogo Alvarez, o Caramuru (...) o primeiro povoador da<br />

Vila Velha”;<br />

• nº 37, p. 27 – “o primeiro bispo do Brasil D. Pedro Fernandez<br />

Sardinha”;<br />

• nº 42, p. 42 – “Pedro Borges, o primeiro Ouvidor Geral do Brasil”.<br />

Tantas primazias para, logo em seguida, no n.º 43, apresentar a chegada do<br />

Padre Manoel da Nóbrega:<br />

“Depois do Governador, saíram também à terra os Religiosos da<br />

Companhia (...) fazendo o seu primeiro sacrifício, o mais solene<br />

que puderam, em ação de graças. Mandou o Padre Nóbrega<br />

arvorar uma fermosa (sic) cruz, sinal propício àqueles infiéis de<br />

sua salvação (...) bradava o Céu, e confundia-se na consideração<br />

de tão escondido juízo, que criasse Deus tantas almas, com a<br />

mesma bondade, e amor, que todas as outras do universo, e que a<br />

estas acudisse com tantos meios de sua salvação, e deixasse a<br />

deste novo mundo, seis mil e tantos anos, sem notícia de Deus, da<br />

Fé, ou de outra vida!”.<br />

Restarão dúvidas de que, antes dos jesuítas, que vieram encerrar mais de “seis<br />

mil anos” de “gentilidade brasílica”, jamais estiveram, aqui, outros missionários, nem<br />

tampouco os franciscanos?<br />

Não pode negar Vasconcelos a presença de missionários franciscanos, em São<br />

Vicente, na Região de Patos. Dá notícias que, para lá, foi enviado o Padre Leonardo<br />

Nunes a fim de restituir a liberdade aos índios “que os Portugueses haviam cativado<br />

contra a justiça, ou em caminhos, ou em suas terras, ou de outro qualquer modo (em<br />

especial os Cristãos, que tinham doutrinado e batizado os Religiosos de S. Francisco


Castelhanos)”. 188 No entanto, não se refere a datas, nem faz cronologia; omite as<br />

informações de Nóbrega, que dão conta da presença franciscana, naquela região, antes<br />

da chegada da Companhia.<br />

Desde os contemporâneos de Vasconcelos, há uma certa convicção formada<br />

acerca da primazia dos jesuítas. Lê-se, na Licença do Santo Ofício, à edição de 1663, a<br />

cargo do Frei Duarte da Conceição, o seguinte: “Trata dos primeiros conquistadores, e<br />

descobridores do Novo Mundo, e mais em particular do Estado do Brasil”. 189<br />

A defesa da primazia franciscana, no Brasil, possui uma longa história, com<br />

ramificações internacionais. Os primeiros fogos dessa polêmica foram acesos, no<br />

Maranhão, nos inícios do século XVII, também por causa de uma disputa que envolvia a<br />

primazia missionária naquela região. De lados opostos estavam, é claro, franciscanos e<br />

jesuítas, antigos adversários. Ambas as Ordens, por largo espaço de tempo,<br />

reivindicavam-na, com extrema paixão.<br />

Em verdade, a querela entre franciscanos e jesuítas, no Maranhão, deu-se à<br />

época de uma nova repartição das missões entre os vários institutos religiosos. Baseado<br />

na “antigüidade” dos jesuítas, o diploma régio de 19 de março de 1693 demarcou o<br />

território das missões, atribuindo aos jesuítas a parte mais requisitada, adjacente ao Rio<br />

Amazonas, em direção ao sul, e aos franciscanos, as regiões periféricas e de fronteiras,<br />

como era o caso do Cabo do Norte, atual Amapá.<br />

“Aos Padres da Companhia assinala por distrito tudo o que fica<br />

para o Sul do Rio das Amazonas, terminando pela margem do<br />

mesmo rio, e sem limitação para o interior dos sertões, por ser a<br />

parte principal e de maiores conseqüências do Estado, com a<br />

razão de serem os mais antigos nele, e de grande atenção que<br />

merecem as suas muitas virtudes”. 190<br />

188 Idem, nº 73, p. 45.<br />

189 Texto microfilmado, na Biblioteca Nacional de Lisboa, sob a referência F 6360.<br />

190 Biblioteca Pública de Évora, Cód. CXV/2-18, f. 178.


A alegação do motivo da entrega da “parte principal e de maiores<br />

conseqüências do Estado” aos jesuítas, “por serem os mais antigos”, portanto,<br />

declarados os primeiros a chegar àquela Capitania, dá-nos a exata dimensão do que<br />

representava o reconhecimento da primazia. Mais que uma questão de prestígio<br />

institucional, aos primeiros estavam reservados o melhor quinhão de terras e de<br />

financiamento provisionado pela Coroa, bem como outros privilégios que implicavam<br />

na liderança da administração das missões. Assim era a mentalidade do tempo em que<br />

aos primeiros e aos primogênitos concediam-se todos os privilégios e benesses. A<br />

declaração da Coroa de que os jesuítas foram os primeiros missionários naquele Estado<br />

levou os franciscanos a ingressar com uma ação, junto ao Ouvidor, a fim de provar,<br />

judicialmente, que eles, e não outros, foram os primeiros a entrar no Maranhão e Grão-<br />

Pará.<br />

Interessante documento manuscrito da Casa de Candaval, em Lisboa, intitulado<br />

“Razões que Sua Majestade teve para Resolver que as Missões do Maranhão Fossem<br />

Entregues à Companhia” nos ajuda a aquilatar a trama - à base de juízos não apenas<br />

maliciosos, mas, no mínimo, discutíveis, pelo seu caráter subjetivo - que pôs os<br />

franciscanos em segundo plano. A primeira razão era a de ter feito a Companhia mais<br />

conversões que os Antoninos, “porque o instituto da religião da Companhia é converter<br />

almas, e os da religião de Santo Antônio ainda que muito santo, não é este”. Outra<br />

causa era a da experiência ter mostrado que Deus ajudava mais os padres da Companhia<br />

na domesticação e doutrina dos índios, e por esse fato tinham os Capuchos abandonado<br />

as aldeias sob a sua administração. Alegava-se também que os frades não podiam<br />

observar as normas da Ordem numa canoa, ou numa choupana, como acontecia com os<br />

jesuítas, porque precisavam do “coro”. Finalmente, “porque os Padres da Companhia<br />

tinham muitos religiosos que conheciam a língua da terra, e possuíam uma regra<br />

especial do seu estatuto que os obrigava a aprendê-la, enquanto que nenhum religioso


de Santo Antônio sabe a língua (...)”. 191 Parece que, também, por aqui, a teoria do<br />

Padre Acosta fez escola.<br />

Os atritos entre franciscanos e jesuítas, no Maranhão, retrocedem mais algumas<br />

décadas. Para entender o contexto da disputa sobre a primazia, temos que remontar às<br />

desavenças entre o Frei Cristovão de Lisboa e o Padre Luís Figueira, e a outras travadas<br />

no campo das produções das memórias, entre os cronistas e os biógrafos das respectivas<br />

ordens.<br />

Conforme tivemos a oportunidade mencionar em parte anterior, em 1618, a<br />

mesma Carta Régia que criou o Estado do Maranhão, mandando separá-lo do Governo<br />

do Brasil, determinou que, com o primeiro Governador, fossem os religiosos de São<br />

Francisco, da Província de Santo Antônio de Portugal, a quem – palavras textuais –<br />

“compete aquela comissão”. 192 Entre a ordem de Madrid ao Governo e Lisboa, e a<br />

partida do Governador designado, Francisco Coelho de Carvalho, mediaram seis anos.<br />

Dessa forma, pelo mesmo tempo ficou postergado o embarque dos religiosos capuchos.<br />

No Pará, já em 28 de julho de 1617, antes, portanto, da criação do novo Estado,<br />

e após dois anos de fundada a Cidade de Belém, no delta do Rio Amazonas,<br />

estabeleceram-se os franciscanos capuchos, em número de quatro religiosos, alojando-<br />

se no forte do Presépio, modesta praça de armas; passaram, em seguida, para Una, onde<br />

construíram o seu modesto hospício de Una, e, aos 20 de julho de 1618, receberam a<br />

autorização oficial para missionar os índios da região. Desde o início, os franciscanos<br />

enfrentaram forte resistência da parte dos portugueses, porque os repreendiam pelo<br />

191 “Razões que Sua Majestade Teve para Resolver que as suas Missões do Maranhão Fossem<br />

Entregues à Companhia. Biblioteca da Casa de Candaval, Papéis Vários, T. 23, cod. 976 (K VIII IR), fl.<br />

83-84.<br />

192 Carta Régia de Felipe II Ordenando que o Governo do Maranhão seja separado do do Brasil;<br />

nomeia Governador, que deverá ser acompanhado por Religiosos de São Francisco, da Província de<br />

Santo Antônio, 20 de junho de 1618. Documentos para a História do Brasil e Especialmente do Ceará,<br />

Ceará: 1909, Vol. 2, Doc. 102, pp. 190 s.


desumano tratamento que dispensavam aos índios. O próprio Governador Castelo<br />

Branco era um dos que mais se serviam do trabalho escravo dos nativos.<br />

O alvará de nomeação dos franciscanos para o Maranhão, no entanto, foi<br />

expedido em 14 de setembro de 1622:<br />

“(...) como mais convém ao serviço de Deus e meu, pelo que<br />

mando aos ditos Governadores e mais ministros e pessoas<br />

eclesiásticas e seculares declarados no princípio deste alvará que<br />

ora são e diante forem, que hajam os ditos religiosos por<br />

enviados por mim às terras do dito governo para o dito feito de<br />

conversão do gentio e cultivação dos fiéis, e que os deixe tratar<br />

de tudo o que tocar à dita missão, dando-lhes toda a ajuda e<br />

favor para, com mais fruto da sua assistência o poderem<br />

conseguir e pregar a santa fé católica entre aquelas gentes e<br />

plantar bons costumes nos fiéis cristãos, o que tudo se cumprirá<br />

na forma declarada nesse alvará que lhe mandei passar”. 193<br />

Por fim, em 1624, chegaram ao Maranhão uma leva de quinze frades, de quem<br />

foi Custódio Frei Cristovão Severim de Lisboa, irmão do historiador Manuel Severim<br />

de Faria. Frei Cristovão foi enviado ao novo Estado com plenos poderes concedidos<br />

pelas autoridades reais e eclesiásticas: além do encargo das Missões para sua<br />

administração espiritual e temporal, levava o de Visitador Eclesiástico e de Comissário<br />

do Santo Ofício, incumbência geralmente reservada aos jesuítas. Daqui se vê que,<br />

segundo a intenção da Metrópole, a preeminência devia pertencer aos franciscanos.<br />

Com toda certeza, a chegada de Frei Cristovão, com tantos poderes, deu lugar para que<br />

mais se acirrasse a emulação entre as Ordens rivais.<br />

Uma vez chegados a São Luís, os franciscanos encontram os Padres da<br />

Companhia de Jesus, lá instalados, desde 1622; eram três ao todo, entre eles, o Padre<br />

Luís Figueira, com quem conviveu às turras Frei Cristovão de Lisboa.<br />

193 Padres de Santo Antônio de Portugal para o Maranhão. Alvará da sua Nomeação, 14 de<br />

setembro de 1622. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Chancelaria de Felipe III, Livro XI, fl. 35 Vº -<br />

36.


Logo, a relação entre os dois prelados ficou estremecida. Em diversas cartas Frei<br />

Cristovão faz graves acusações ao Capitão-Mor Bento Maciel e ao próprio Luís<br />

Figueira, a quem acusa de, com aquele, estar mancomunado para prejudicar os<br />

franciscanos. Em carta destinada a um Superior, datada de 20 de outubro de 1626,<br />

lemos:<br />

“Ele [Bento Maciel] e Luís Figueira temiam bravamente minha<br />

ida, porque receavam que eu fosse ao Reino dar conta das<br />

exorbitâncias de ambos (...) Luís Figueira é o atiçador das mais<br />

dessas coisas, só com intento de ficar com as aldeias. Já escrevi a<br />

Vossa Caridade da maçada que fez, entre esse Capitão-mor e este<br />

de cá, e o vigário do Pará. (...) Na praia tivemos outro reencontro<br />

com os Tremenbezes, estando a ponto de rompermos. Escolhemos<br />

fazer as pazes. Eis, aqui, o descanso que cá tive, dos trabalhos<br />

que lá passei, com os negócios de Bento Maciel, com iguaria das<br />

tramas e enredos do Padre Luís Figueira”. 194<br />

E, em outra missiva, de 20 de janeiro de 1627, endereçada ao seu irmão Manuel<br />

Severim de Faria, Frei Cristovão escreve sobre o Padre Figueira:<br />

“O maior pregador que cá temos é Luís Figueira, Padre da<br />

Companhia, e já o foi dos nossos frades no Brasil. Aqui me tem<br />

feito contra os que tenho, tantos conluios, que nem soldado usa<br />

de tais desaforos. Perdoei-lhe tudo e passados quarenta e um dias<br />

atrás, já o vi ter feito coisas indignas de repetirem-se”. 195<br />

As cartas de Frei Cristovão revelam alguns – não todos – motivos que<br />

justificavam as brigas entre os dois religiosos, porque julgou que “nas cartas não se<br />

pode dizer a mínima parte do que se passa. Muitas coisas não são lícitas, tratar<br />

nelas”. 196 A seu irmão, diz preferir que o próprio portador relate “o que cá faz Luís<br />

Figueira contra nós, como sempre costumou no Brasil, e aqui com mais soltura por ser<br />

194 Carta de Frei Cristovão de Lisboa a um Superior Narrando Trabalhos de Missões no Brasil e<br />

Queixando-se de Agravos Praticados pelo Capitão-Mor Bento Maciel e Pelo Padre Luís da<br />

Figueira. Biblioteca Nacional de Lisboa, Fundo Geral, Ms. 29, nº 32.<br />

195 Carta de Frei Cristovão de Lisboa a seu Irmão, Manuel Severim de Faria, 20 de janeiro de 1627.<br />

Biblioteca Nacional de Lisboa, Fundo Geral, Ms. 29, nº 28.<br />

196 Carta de Frei Cristovão de Lisboa a um Superior etc, op. cit..


prelado”. 197 Luís Figueira é acusado de tramar uma série de situações que resultavam<br />

em prejuízo para os frades, desde a grave conivência com a falsificação de documentos,<br />

urdida por Bento Maciel, até a criação de situações menores, mas não menos<br />

embaraçosas, quando, contra o parecer dos capuchos, autorizava o consumo de carne de<br />

jaboti, nos dias de abstinência, declarando, no púlpito, tratar-se de peixe, de modo que<br />

os franciscanos levassem a pecha de rigoristas, ante uma posição que pareceria mais<br />

liberal, da parte dos jesuítas. Cristovão acusa-o, ainda, de não respeitar a sua autoridade,<br />

em assuntos eclesiásticos, e de justificar teologicamente o deslocamento dos índios,<br />

caso eles aceitassem livremente trabalhar, por tempo determinado, negando-se a<br />

perceber que, na realidade, não havia quem respeitasse a lei, nem os mínimos direitos<br />

humanos dos que eram considerados selvagens. Distinguia-se, entre a compra da pessoa<br />

e a do trabalho, uma fraude que Frei Vicente do Salvador condenara com toda a<br />

veemência. Assim eram anulados, por Figueira, os esforços dos franciscanos em<br />

defender a liberdade dos índios.<br />

Em que pese ao juízo do prelado franciscano, Luís Figueira passou à história<br />

como grande herói da Companhia, especialmente por causa de sua morte prematura<br />

pelas mãos dos índios que habitavam a costa do Maranhão. 198 Afinal, o sangue<br />

derramado pela fé não é capaz de tornar alva a alma dos mártires?<br />

O Padre Luís Figueira, sem dúvida, foi um obstinado. A maior parte da sua vida,<br />

como Padre da Companhia, foi consagrada à conquista do Maranhão. No entanto, as<br />

suas tentativas de realizá-la frustraram-se todas. O seu primeiro intento de entrar no<br />

Maranhão, através da Serra de Ibiapaba, parece ter sido malogrado, nos inícios de 1608,<br />

logo após o martírio do companheiro, Padre Francisco Pinto. Nesse particular, cabe<br />

197 Carta de Frei Crsitovão de Lisboa a seu Irmão etc, op. cit..<br />

198 O Padre Serafim Leite dedicou um trabalho ao Padre Figueira, intitulado Luiz Figueira: a sua Vida<br />

Heróica e a sua Obra Literária, Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca / Agência Geral das<br />

Colônias, 1940.


ainda perguntar: terão realmente entrado ou não os Padres Luís Figueira e Francisco<br />

Pinto no Maranhão?<br />

Qualquer que seja a resposta, não livra os que com ela se envolvem a ter que<br />

tratar de uma sucessão de casuísmos e sutilezas. 199 Assim foi, desde a época da ação<br />

judicial dos franciscanos junto à Ouvidoria (fins do século XVII), em que se ouviu os<br />

prelados das outras religiões sobre a matéria em disputa, ou seja, quais tinham sido os<br />

primeiros missionários a entrar no Maranhão. Quando inquirido, o Superior da<br />

Companhia, Padre Antônio Coelho, eximiu-se de declarar resposta, com a<br />

fundamentação de que tal assunto “não punha nem tirava”, e que, só no caso de<br />

prejuízo para a Companhia, romperia o silêncio. 200 Também, sem dar diretamente a sua<br />

opinião, em pequena nota de rodapé, tocou a questão o Padre Serafim Leite. 201<br />

Com mais coragem, Amorin pronunciou-se desfavorável aos jesuítas. 202 Para<br />

afirmar que o “descobrimento” do Maranhão, pelos Padres Luís Figueira e Francisco<br />

Pinto, foi “gorado”, entre outros argumentos, lançou mão das palavras do Padre Jacinto<br />

de Carvalho, autor da “Crônica da Companhia de Jesus no Maranhão” 203 , o que<br />

conferiu maior crédito à sua interpretação. Amorin mostrou que, para o próprio autor da<br />

Crônica, a chegada dos Padres à Serra de Ibiapaba, limite entre o Ceará e o Maranhão,<br />

não configurou a entrada no Maranhão. 204<br />

199 Um exemplo é a questão das divisas do Maranhão e a localização político-geográfica da Serra de<br />

Ibiapaba, no Ceará. O Ceará foi integrado ao Maranhão, na ocasião de sua criação, portanto, após 1618,<br />

fazendo, até aí, parte do Brasil. Ora, caso se discuta a questão da chegada dos jesuítas à Serra cearense,<br />

levando-se em conta a data em que ocorreu, 1607, a mencionada Serra não fazia parte do Maranhão; mas,<br />

caso se leve em conta a data em que se discutia a questão, a dita Serra já pertencia ao Estado do<br />

Maranhão. É o que faz o Padre Serafim Leite, quando afirma “no tempo em que isso se discutia” e não<br />

naquele em que ocorreu, como se poderá conferir no Volume IV da História da Companhia de Jesus,<br />

página 136, nota 2.<br />

200 Treslado, em Pública Forma, de Certidão Comprovativa de Terem Sido os Religiosos de Santo<br />

Antônio os Primeiros Religiosos que Entraram no Estado do Grão-Pará e Maranhão. Arquivo da Torre do<br />

Tombo, Província de Santo Antônio, Província, maço 18, doc. 15.<br />

201 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Vol. IV, p. 136, nota 2.<br />

202 AMORIN, Maria Adelina de Figueiredo Batista, op. cit, pp. 146 a 149.<br />

203 CARVALHO, Jacinto. Crônica da Companhia de Jesus no Maranhão. São Luís, s/d.<br />

204 Afirmou Jacinto de Carvalho que os Padres não podiam permanecer entre os índios de Ibiapaba,<br />

devido à “ordem que levavam de passarem até o Maranhão que eles chamavam Tapucuru”,<br />

acrescentando que, no caminho “onde haviam de passar para o Maranhão”, impediam-nos índios da


Uma segunda tentativa de conquista do Maranhão foi encetada, por Luís<br />

Figueira, em 1643, após cerca de sete anos de preparações. De 1636 até 1643, Figueira<br />

se conservou na Metrópole, negociando com as autoridades uma série de subsídios e<br />

concessões que julgava indispensável para a missão da Companhia, no Maranhão: a<br />

independência do poder civil, a administração espiritual e temporal das aldeias dos<br />

índios e a supremacia no governo eclesiástico para a Companhia. A vitória mais<br />

expressiva de Figueira foi consubstanciada pelo alvará de 25 de julho de 1638 que<br />

criava a administração eclesiástica do Maranhão, Grão-Pará e Rio das Amazonas, e<br />

entregava a sua administração aos jesuítas; anteriormente, eram os franciscanos os<br />

responsáveis por essas áreas. O Alvará chegou a conceder poderes episcopais ao<br />

Superior da Companhia, sendo esse ponto objeto de veto posterior, por ter sido<br />

considerada excessiva a atribuição de poderes tão latos. 205<br />

Em 1643, Luís Figueira e mais quatorze companheiros partiram de Lisboa com<br />

destino ao Maranhão. Chegados próximos a costa, não conseguiram aportar em São<br />

Luís, por causa da ocupação holandesa, e foi preciso tomar porto no Pará. Mas, à<br />

entrada da Baía do Sol, a nau sossobrou. Luís Figueira e mais onze religiosos, com uma<br />

jangada feita a partir dos destroços da nau, foram arrastados pela correnteza e ventos<br />

para a Ilha de Joanes, onde pereceram vítimas dos índios Aruaus. Tragicamente,<br />

terminou o sonho de conquista de Luís Figueira, consternando toda a Companhia.<br />

Triste acontecimento que, no entanto, deu novo tonos à luta dos jesuítas,<br />

alimentada pelo sangue dos que deixaram a vida. É desta forma que entendemos o<br />

movimento obstinado dos jesuítas em conseguir, de uma vez por todas, a hegemonia<br />

missionária no Maranhão. Ao modo que padeceram os franciscanos, já à época de Frei<br />

nação tapuia. Acrescenta o Cronista que, depois do regresso do Padre Luís Figueira, retirado para o<br />

Ceará, sem prosseguir viagem, “vendo o governador do Brasil frustrados os intentos de descobrimento do<br />

Maranhão com a morte do Padre Francisco”, enviou Martim Soares ao Ceará para levantar uma<br />

fortificação e dar início a relações de amizade com os índios.


Cristovão, os jesuítas também entraram em rota de colisão com o Governo e com os<br />

colonos. O fulcro das desavenças era sempre a liberdade dos índios. E nessa matéria,<br />

não podemos ser maniqueístas, pois se houve mal, nunca esteve polarizado nos<br />

paisanos, já que também as Ordens serviam-se dos índios, desejosos em tê-los todos sob<br />

seu domínio, daí a pertinência das acusações de monopólio dirigidas aos religiosos<br />

acerca do trabalho indígena.<br />

Para a Companhia, especialmente pelo tamanho e importância que tomou a sua<br />

empresa missionária, não houve trégua. Suas prósperas aldeias e fazendas, contrastavam<br />

com a miséria das vilas. E não demorou para que fossem identificados como<br />

responsáveis pela pobreza generalizada no Estado, uma vez que eram um sério entrave<br />

para a utilização da mão-de-obra indígena. Por duas vezes, os jesuítas foram expulsos<br />

do Maranhão: a primeira, em 1661, inclusive o Padre Vieira, e a segunda, em 1684,<br />

durante motim popular que passou à história como a Revolta de Beckman.<br />

Paradoxalmente, a aparente derrota dos jesuítas representou a sua redenção no<br />

Maranhão. Após cada uma das expulsões, voltavam cada vez mais fortalecidos.<br />

Habilidosos nas articulações políticas e gozando de grande influência na Corte<br />

portuguesa, os inacianos conquistavam da Coroa novos e mais abrangentes privilégios,<br />

conforme teremos a oportunidade de tratar mais adiante.<br />

3.2. A produção jesuítica da história<br />

Não apenas no plano político atuaram com eficiência os jesuítas. Também o<br />

fizeram no âmbito da produção da história, através das suas crônicas. Voltemos ao<br />

ponto anterior, retomando a Crônica do Padre Jacinto de Carvalho. Não podendo ele<br />

afirmar que o Padre Figueira chegou ao Maranhão, resolveu utilizar outra estratégia: a<br />

205 O Alvará mencionado foi transcrito no apêndice documental da obra de Serafim Leite, dedicada ao


omissão de fatos relevantes. Determinado em corroborar a primazia inaciana em solo<br />

maranhense, dedicou um capítulo à conquista do Maranhão, por Jerônimo de<br />

Albuquerque, sem fazer referência alguma aos frades capuchos que, na qualidade de<br />

capelães, acompanharam o Capitão-Mor na jornada das tropas portuguesas que<br />

empreenderam a expulsão dos franceses. Alude tão-somente à presença dos Padres<br />

Manuel Gomes e Diogo Nunes como “os primeiros padres que entraram no<br />

Maranhão”, em 1615. 206 Aos mesmos padres, Jacinto de Carvalho atribui o mérito da<br />

vitória.<br />

Em primeiro lugar, porque afirma terem os jesuítas “em breve tempo” ajuntado<br />

“um grande número de índios que voluntariamente comovidos com as práticas dos<br />

padres, se vieram a oferecer” a lutar contra os franceses. 207 Os invasores,<br />

“desesperados de poderem sem os índios da terra terem o sustento”, não tiveram outra<br />

alternativa, a não ser “passarem para a França”. 208 Por último, afirma que os<br />

combatentes portugueses, após terem tomado posse do forte e da terra que ocupavam os<br />

franceses, renderam “graças aos padres pelo que tinham obrado com os índios,<br />

confessando que a eles se devia a principal parte deste bom sucesso, (...) e é sem dúvida<br />

que se os padres não reduzissem os tupinambás, senhores da Ilha, nunca Jerônimo de<br />

Albuquerque chegaria a sitiar por terra o forte e reparos dos franceses”. 209<br />

Pelo exposto, quis fazer entender o cronista que tudo foi decidido pela astuta<br />

atuação dos padres jesuítas, evitando-se a violência e o derramamento de sangue, o que<br />

é completamente equivocado. Sabemos que o diálogo, se houve, não bastou, e as<br />

batalhas foram sempre muito sangrentas.<br />

Padre Figueira, à que nos referimos acima, às páginas 215 a 218.<br />

206 CARVALHO, Jacinto. Op. cit., p. 87.<br />

207 Idem, pp. 87s..<br />

208 Idem, p. 89.<br />

209 Idem, p. 89.


Ora, uma série de documentos dá-nos base para afirmar que, um ano antes,<br />

portanto, em 1614, quando ocorreu a decisiva batalha de Guaxenduba, saindo<br />

vitoriosos, sobre os franceses, os portugueses, dois frades capuchos, Frei Cosme de São<br />

Damião e Frei Manuel da Piedade, inequivocamente, tomaram parte naqueles capítulos<br />

decisivos da nossa história, e, portanto, foram os primeiros religiosos portugueses a<br />

entrar no Maranhão. Mas, a bem da verdade, a primazia deveu-se aos frades<br />

franciscanos franceses que acompanhavam os invasores, nunca, antes, aos jesuítas.<br />

As provas, diremos, são mais que suficientes para dirimir as dúvidas. Vamos às mais<br />

relevantes, por seu grau de isenção, ao terem sido produzidas por elementos externos à<br />

Ordem Franciscana:<br />

1. “Treslado, em Pública Forma, de Certidão Comprovativa de Terem Sido os<br />

Religiosos de Santo Antônio os Primeiros Religiosos que Entraram no Estado do<br />

Grão-Pará e Maranhão”, cuja conclusão é datada em Belém, aos 21 dias de<br />

junho de 1702, constituiu riquíssima e relevante peça documental. As várias<br />

petições constantes, encaminhadas pelo Comissário de Santo Antônio às<br />

autoridades jurisdicionais do Estado, solicitam, “por modo de certidão, em<br />

forma que faça fé”, a coleta de testemunhos de “homens velhos daqueles tempos,<br />

que sabem da verdade de tudo como é presumível”; ou, ainda, que “pessoas<br />

mais velhas e qualificadas desta cidade” justifiquem alguns artigos que vão<br />

declarados. Essa reunião de testemunhos diretos e de memórias trasladados, sem<br />

dúvida, seriam as provas utilizadas “para bem de certa diligência que têm no<br />

Reino” os franciscanos contra os jesuítas. 210<br />

210 Arquivo da Torre do Tombo, Província de Santo Antônio, Província, maço 18, doc. 15.


Para percebermos o tipo de memórias que desejavam reconstituir os<br />

franciscanos, a partir dos mais velhos, vale a pena transcrever os artigos que<br />

seriam necessários apresentar às pessoas para que sobre eles se pronunciassem:<br />

“Primeiro: que os filhos da sua religião seráfica foram os primeiros<br />

missionários que vieram a este Estado mandados pelos senhores de<br />

Portugal, Castela e França.<br />

Segundo: que eles foram os primeiros descobridores e<br />

conquistadores do Grande Rio das Amazonas, assim da parte das<br />

Índias de Castela, como de nossa de Portugal.<br />

Terceiro: que eles foram os primeiros missionários gerais que sobre<br />

os índios tiveram toda a jurisdição temporal e espiritual neste<br />

Estado, as que por causas racionais a deixaram.<br />

Quarto: que eles foram os primeiros que continuaram pazes com as<br />

nações dos belicosos Aruãs, de que têm descido muitas aldeias para<br />

uma que fizeram populíssima, muito perto dessa cidade e andam<br />

fazendo outra semelhante.<br />

Quinto: que eles foram e são os primeiros que ensinaram aos índios<br />

a ler e a escrever, e contar e falar português. 211<br />

Sexto: que eles têm as missões mais doentias de todo o Estado.” 212<br />

2. “Ofício do Governador Francisco Coelho de Carvalho para Filipe III”, em 18 de<br />

julho de 1624. Antes de chegar a São Luís, como primeiro Governador do<br />

Estado do Maranhão, Francisco Coelho de Carvalho demorou alguns meses em<br />

Pernambuco devido à guerra com a Holanda. Nesse espaço de tempo fez contato<br />

com Frei Cosme de São Damião e Frei Manuel da Piedade que, segundo o<br />

Governador, “ajudaram a ganhar o Maranhão”. 213<br />

3. “Carta de Manuel Gomes, Superior dos Jesuítas ao Provincial”, datada de 30 de<br />

outubro de 1625. O documento, além de ser produzido por uma testemunha<br />

ocular, torna-se ainda muito mais relevante por ser escrito pelas mãos de um<br />

jesuíta; isso o consagra como um exemplar de isenção.<br />

211 Grifo nosso. Creio que falar em colégio, como o faziam os jesuítas, em situações tão precárias quanto<br />

adversas, parece-nos eufemismo. Mas, porque não usavam o termo, teriam sido desqualificados os<br />

franciscanos como educadores? Educação e ensino constituíam prática diária em suas próprias aldeias,<br />

como se vê.<br />

212 Treslado, em Pública Forma, de Certidão etc. Op. cit..


“Quando chegávamos a este forte de São Luís, nos agasalhávamos<br />

com os religiosos franceses de S. Francisco, que tratavam com<br />

extraordinário rigor, caridade, humildade e zelo das almas, e<br />

representavam bem a perfeição da sua religião. Eu os mandei visitar,<br />

logo que chegamos, com o melhor presente que pude. Eles nos<br />

vieram buscar ao forte, que é um pedaço, e isto faziam todas as vezes<br />

que a ele chegávamos, não consentindo comermos ou agasalharmonos<br />

em outra parte, e assim fomos verdadeiros amigos, andando à<br />

competência quem havia de mostrar mais amor. Agora, continuamos<br />

com os religiosos de S. Francisco, capelães que foram da primeira<br />

armada, na mesma forma”. 214<br />

4. “Relação de Jacome Raymundo de Noronha, sobre as Coisas Pertencentes ao<br />

Maranhão”, de 1637. O autor da “Relação” foi Governador do Maranhão, entre<br />

os anos de 1636 e 1638, após a morte de seu antecessor, Francisco Coelho de<br />

Carvalho. Consta que sua relação com os franciscanos era profundamente<br />

litigiosa. Ao informar sobre a situação da Colônia, declara:<br />

“A coisa mais necessária que há naquelas partes, para ter o gentio<br />

dela sujeito, é visitá-lo, e ampará-lo dos Religiosos Capuchos de<br />

Santo Antônio, aos quais todo o gentio tem muita veneração e os<br />

amam como único remédio de suas necessidades, porque conhecem<br />

deles a caridade com que os tratam e os perigos em que se põem<br />

para os defenderem, assim na paz como na guerra, e os que tem<br />

experimentado em todas as que houve naquela conquista, que sempre<br />

nela se acharam por seu remédio os religiosos desta religião, como<br />

foi nos princípios e tomada do Maranhão aos Franceses, o Padre<br />

Frei Cosme e Frei Antônio de Merceana e o Padre Custódio Frei<br />

Cristovão de Lisboa e o Padre Frei Cristovão de São José”. 215<br />

Não obstante, a Jacinto de Carvalho, seguiram outros cronistas, adotando a<br />

mesma versão: o mérito da entrada primeira no Maranhão coube aos Padres da<br />

Companhia. A título de exemplo, podemos citar os jesuítas José de Morais e André de<br />

Barros, esse último biógrafo do Padre Vieira. 216<br />

213<br />

Apud AMORIM, Maria Adelina de Figueiredo Batista, op. cit., p. 168.<br />

214<br />

Idem, p. 169.<br />

215<br />

Idem, pp. 167s..<br />

216<br />

Em se tratando de textos de contemporânea antigüidade, podemos mencionar: a “Crônica da<br />

Companhia de Jesus da Missão do Maranhão”, do Padre Domingos de Araújo, datada de 1720, e que


O primeiro é, presumivelmente, o autor dos “Apontamentos para a História da<br />

Companhia de Jesus no Estado do Maranhão”. Trata-se de um manuscrito, em forma de<br />

códice, encontrado na Biblioteca Nacional de Lisboa. 217 A lápis, estão grafados a data,<br />

1750, o autor, José de Morais, e, ao lado do nome, em grafia diferente, “não é”, cremos,<br />

referindo-se à autoria que se julgou indevida. No entanto, Serafim Leite atesta ser o<br />

Padre José de Morais, de fato, o autor do manuscrito. 218<br />

O segundo foi autor de “Vida do Apostólico Padre Vieira”, editado, em 1746. 219<br />

Contra a sua versão dos fatos concernentes à entrada dos jesuítas no Maranhão, insurge-<br />

se Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, com o seu “Novo Orbe Seráfico Brasílico”,<br />

impresso em 1761.<br />

Se levarmos em conta que as obras de André de Barros e de Jaboatão foram<br />

estampadas, como observado, no ínterim de menos de quinze anos, bem como as<br />

dificuldades na preparação das edições, naqueles tempos, a reação franciscana foi,<br />

praticamente, imediata.<br />

Vamos expor a controvérsia, tendo como ponto de partida o mal-estar de<br />

Jaboatão ante os escritos de André de Barros, para, em seguida, analisar o texto de<br />

Morais, dando atenção ao processo de construção do seu discurso.<br />

dedica dois capítulos (o V e o VI) para provar “que os religiosos da Companhia de Jesus foram os<br />

primeiros missionários do Estado do Maranhão”. O manuscrito conserva-se na Biblioteca Pública de<br />

Évora, Cod CXV/2-11, às fls. 209, 69 folhas. fol.; “Maranhão Conquistado a Jesus Cristo, e a Coroa de<br />

Portugal pelos Religiosos da Companhia de Jesus”, fragmentos de uma crônica por letra do Padre Bento<br />

da Fonseca, escritos no ano de 1757, também conservados na Biblioteca Pública de Évora, Cod. CXV/2-<br />

14, a nº 1, 25 folhas. fol.<br />

217 Biblioteca Nacional de Lisboa, Cod. 4516.<br />

218 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Vol. IV, p. 322. Ainda sobre a questão,<br />

encontra-se, na Biblioteca Pública de Évora, a volumosa “História da Companhia de Jesus da Província<br />

do Maranhão e Pará”, escrita pelo mesmo Padre José Xavier de Morais da Fonseca Pinto, no ano de<br />

1759, Cod. CXV/1-27, 1 Vol. Fol, 771 páginas. Possui seis livros. No livro primeiro, lê-se como título do<br />

capítulo 13: “Notícia cronológica do tempo em que a Companhia, e mais Religiões Sagradas entraram no<br />

Estado do Maranhão”. Título homônimo possui o capítulo 17 do manuscrito da Biblioteca Nacional de<br />

Lisboa: “Reflexão cronológica em que se dá notícia do tempo em que a Companhia, e as mais Sagradas<br />

Religiões entraram no Estado do Maranhão”. Daí, nossa opinião de que a autoria desses Apontamentos<br />

para uma crônica seja mesmo atribuída ao Padre Morais.<br />

219 BARROS, André. Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da Companhia de Jesus, Chamado<br />

por Antonomásia, o Grande, Lisboa: Nova Officina Sylvania, 1746.


Em parte específica sobre a entrada dos franciscanos no Maranhão, em 1614,<br />

Jaboatão afirma que, quando já tinham “completas e assentadas” as Estâncias XVII e<br />

XVIII do seu “Novo Orbe Seráfico”, “e tudo o que nelas fica exposto”, chegou-lhe às<br />

mãos “um livro, ou História da vida do grande Padre Antônio Vieira, no qual falando o<br />

seu grave, e douto Autor da Conquista do Maranhão”, ensejou anunciar “notícia<br />

oportuna, e ainda não escrita em nossas Histórias”.<br />

Jaboatão tem plena consciência de que mergulha na torrente caudalosa das<br />

paixões. Não nega o perigo, assume-o sem medo dos riscos, tomando em seu auxílio “a<br />

pena desapaixonada” de Bernardo Pereira de Berredo, autor de “Anais Históricos do<br />

Estado do Maranhão” 220 , para que “não pareça aos que isso lerem, falamos neles [seus<br />

confrades, Frei Cosme e Frei Manoel] com afeto de irmãos”.<br />

De modo análogo do que já havia ocorrido em outra parte do seu texto, Jaboatão<br />

incorre em novas repetições, fazendo alusão ao motivo do seu estupor, provocado pelas<br />

notícias controversas de André de Barros, em dois momentos diferentes do Primeiro<br />

Volume: no número 181 e, depois, no número 204. Novamente perguntamos se o fez<br />

deliberadamente.<br />

Transcreve Jaboatão o texto polêmico de André de Barros:<br />

“É bem que saiba o mundo, que não só no espiritual, senão<br />

também no temporal, devem as terras do Maranhão à Religião da<br />

Companhia de Jesus a felicidade que lograram. No ano de 1615,<br />

governando o Brasil Gaspar de Souza, que então residia em<br />

Pernambuco, foi mandado o Capitão-Mor Alexandre de Moura, a<br />

dar fim à guerra, que no ano antecedente tinha participado<br />

Jerônimo de Albuquerque contra os franceses do Maranhão. Íam<br />

na armada os Padres Manoel Gomes e Diogo Nunes da<br />

Companhia de Jesus”. 221<br />

220 Uma edição mais moderna dos “Anais” foi publicado em Florença, em 1905.<br />

221 BARROS, André, apud JABOATÃO, op. cit, nº 181, p. 195s..


Percebe-se que, apesar de o autor circunstanciar os nomes dos governantes e dos<br />

seus padres, e mesmo fazendo referência ao início da guerra, quando à frente da tropa<br />

estava Jerônimo de Albuquerque, “no ano antecedente”, portanto, 1614, em flagrante<br />

omissão, não faz referência alguma aos dois capelães franciscanos que os<br />

acompanharam, “animando os soldados” e enfrentando “os perigos da batalha”, na<br />

forma que alude Jaboatão, na esteira de Berredo. Continuando o texto:<br />

“Chegou a armada a avistar o Maranhão, e como se julgava<br />

seria Senhor do terreno quem tivesse por si os naturais, os<br />

primeiros homens que, por ordem do Capitão-Mor, pisaram a<br />

terra, foram os ditos Padres com os seus Índios (...)”. 222<br />

Contra-argumenta Jaboatão: “Quem lhe faltará advertência para não perceber<br />

os encarecidos termos, com que fazem as sobreditas expressões, opostas ao que<br />

deixamos referido, e tirado em substância, e às vezes, ad literam, especialmente no que<br />

toca aos nossos Padres, do mesmo Autor dos apontados Anais do Maranhão”. 223<br />

“(...) e com a fortuna de César, o mesmo foi ter fala com o<br />

Gentio, que reduzi-lo à sujeição, e amizade dos Portugueses.<br />

Desamparada desse arrimo a ousadia francesa, no mesmo dia,<br />

cedeu à nossa fortuna, entregando a seu pesar a terra, de que o<br />

nosso descuido, mais que o seu valor, os fizera possuidores<br />

injustos”. 224<br />

E, num misto de ceticismo e de fina ironia, rebate o autor seráfico: “E quem<br />

poderá, ainda sem a lição desses Anais, capacitar-se, que no mesmo dia, em que<br />

chegou ao Maranhão a Armada de Alexandre de Moura, saltassem logo em terra os<br />

Padres Jesuítas com os seus índios, pregassem ao gentio e os comovessem contra os<br />

franceses, e que estes vendo-se sem socorro daqueles se entregassem no mesmo dia?<br />

222 Idem.<br />

223 JABOATÃO, op.cit. nº 182, p. 196.<br />

224 BARROS, André, apud JABOATÃO, op. cit, nº 181, p. 195s..


Mas assim o devia escrever seu Autor, porque só assim se podiam aproveitar os seus da<br />

fortuna de César”. 225<br />

Em absoluto, não é crível que os portugueses tenham vencido os franceses sem<br />

assalto e sem combate, e que esses, por falta de socorro dos índios, tenham se<br />

entregado, no mesmo dia, em razão de uma prédica. Seria injusto, caso não houvesse<br />

agravo à verdade, atribuir aos dois Padres da Companhia todo o mérito da vitória e da<br />

primazia da empresa, na consideração de serem os primeiros portugueses a pisar as<br />

terras maranhenses.<br />

Mas, de todos os textos mencionados, nesta parte do trabalho, o mais<br />

interessante, são os “Apontamentos” do Padre José de Morais. Por se tratar de um<br />

copião original, não editado, portanto, repleto de rabiscos, emendas, acréscimos e<br />

supressões, enseja-nos a possibilidade de realizar uma análise ímpar das etapas de<br />

construção do texto, até se chegar à forma que o autor considerou a mais apropriada<br />

para dar a sua versão sobre os fatos.<br />

Nossa análise concentra-se no capítulo dezessete, cujo título já sofre emendas:<br />

“Reflexão cronológica em que se dá notícia do tempo em que [as Religiões (riscado)] a<br />

Companhia e as mais Sagradas Religiões entraram no Estado do Maranhão”. Lógico,<br />

para um jesuíta, discriminar e mencionar, em primeiro lugar, a Companhia, e não<br />

considerá-la num indiferenciado genéricos “as Religiões”. Em caso análogo, repete-se<br />

emenda ao capítulo seis, quando o título, completamente riscado, “Dos primeiros<br />

Padres que entraram no Maranhão”, é substituído por “Tomam os Portugueses posse<br />

do Maranhão da mão dos Franceses e dos primeiros Padres da Companhia que [foram<br />

(riscado)] entraram no dito Estado”.<br />

Morais inicia o capítulo dezessete mencionando “um libelo (...) no qual o RR. P.<br />

Fr. Jerônimo N., Comissário da Sagrada Religião reformada de S. Francisco da<br />

225 JABOATÃO, op.cit. nº 182, p. 196.


Província de Santo Antônio pretendeu justificar perante o D. Ouvidor Geral do Pará<br />

serem os Religiosos da sua Religião os primeiros Missionários que entraram no Estado,<br />

e nele estabeleceram Missões”. 226<br />

Morais atesta a precedência dos franciscanos sobre os jesuítas, mas,<br />

contraditoriamente, afirma que, no caso do Maranhão, tal não se pode dizer.<br />

“Não duvido nem posso duvidar que os Seráficos Religiosos de S.<br />

Francisco sempre foram, são e serão os primeiros, e que a<br />

Companhia de Jesus é a mínima entre todas as Religiões; porém<br />

na entrada do Maranhão [à margem esquerda da página,<br />

escreve: a formar missões e estabelecer casas no tempo dos<br />

portugueses] não tem razão alguma o Reverendo P. Comissário<br />

Fr. Jerônimo de N., e só o intentar isto seria querer [texto<br />

interrompido]”.<br />

Logo abaixo, segue um trecho, circundado por margens, e riscado com dois<br />

grandes traços, deixando claro a sua supressão:<br />

“Não [duvido (riscado)] há dúvida que os Religiosos<br />

Barbadinhos 227 Franceses foram os primeiros que com o R. P. Fr.<br />

Cláudio Abevile entraram no Maranhão e nele fizeram grande<br />

serviço a Deus nos Franceses e Índios, no tempo em que aqueles<br />

estiveram no Maranhão, que foi desde 1611 até 1615. Porém,<br />

antes disto, e no ano de 1607 tinha o Venerável P. Francisco.<br />

Nem eu pretendo neste capítulo [texto interrompido]”.<br />

É notória a contradição do autor que vacila, ao longo do texto, em busca da<br />

melhor forma de convencer o leitor do despropósito da versão franciscana. Tem<br />

consciência de que os franciscanos franceses foram os primeiros a entrar no Maranhão e<br />

que prestaram relevante serviço missionário: seu próprio texto é indubitável. Mas,<br />

tendo-o escrito, percebe que produziu uma armadilha que fez tropeçar os seus próprios<br />

objetivos apologéticos. Fez com que o período de permanência dos “barbadinhos”<br />

226 Trata-se, como sabemos, da ação movida por Frei Jerônimo de São Francisco contra os jesuítas.<br />

227 O termo refere-se aos Franciscanos Capuchinhos, fazendo alusão à barba que usavam como um dos<br />

“emblemas” dos membros da Ordem.


franceses se dilatasse ao máximo, até 1615, ano da entrada dos Padres Manuel Gomes e<br />

Diogo Nunes, que chegaram na companhia de Alexandre de Moura, mas sem mencionar<br />

o ano de 1614, quando se dissera haver entrado com Jerônimo de Albuquerque os dois<br />

capuchos. Depois, no mesmo trecho, tenta iniciar nova argumentação referindo-se à<br />

viagem do Padre Francisco, mas desiste da idéia, antes mesmo de completar seu<br />

sobrenome. Não. Assim vê que não pode ficar! Decide pela integral supressão dessa<br />

parte do texto.<br />

Bem, a melhor defesa para ser mesmo o ataque. O autor volta a fazer críticas ao<br />

que houvera nomeado de “libelo” de Frei Jerônimo. Pretende desviar a atenção do leitor<br />

para uma produção atribuída a “historiadores antigos” sobre “os princípios do<br />

Maranhão”, sem indicar, no entanto, uma referência objetiva sequer.<br />

“Nem o Reverendo Comissário poderia escurecer com a sua<br />

justificação a torrente comum dos historiadores antigos que<br />

escreveram dos princípios do Maranhão, e muito menos os<br />

acentos autênticos que se acham nos livros das Câmaras das<br />

Cidades do Maranhão e Pará”.<br />

Sentimo-nos frustrados, inclusive os que desejam ter como verdade as palavras<br />

do autor; não apresentou os documentos, e nós, agora, é que dizemos: “nem muito<br />

menos os acentos autênticos” a que fez alusão. Talvez, por falta deles, teve tanta<br />

facilidade em modificar seu texto, às vezes, de forma tão radical. E, na continuação:<br />

[(riscado): “Não pretendo neste capítulo, mais que referir<br />

sinceramente a verdade que acho escrita em documentos<br />

autênticos] E por essa causa não era a minha intenção neste<br />

capítulo outra coisa mais que dar uma sincera notícia cronológica<br />

da entrada da Companhia no Maranhão”.<br />

Não precisamos de grande perspicácia para perceber que o autor, incomodado,<br />

tenta esboçar uma justificação racional para encobrir as emoções que motivam o seu<br />

agir. A notícia que deseja comunicar não é, de fato, como declarado, a mais sincera.


Intenta novo começo: “No ano de 1607 estabeleceram os Padres Francisco<br />

Pinto e Luís Figueira a Missão da Serra de Ibiapaba que era, e foi pertencente ao<br />

Estado do Maranhão até o ano de 1720”. 228 Sim. Agora, encontra o caminho mais<br />

adequado, engatando acontecimentos datados de 1615: “Em 1615, chegaram ao<br />

Maranhão, em companhia do Capitão-Mor Alexandre de Moura os Padres Manuel<br />

Gomes e Diogo Nunes, por sinal que foram estes os primeiros que entraram na Ilha<br />

com os índios que levavam de Pernambuco a praticar os Tupinambazes e mais índios”.<br />

O Padre Morais desejou deixar bem marcada a sua defesa da primazia dos<br />

jesuítas sobre os franciscanos. Por isso, investe contra os que contradizem a sua versão.<br />

Criticou Bernardo Pereira de Berredo por haver dito que “os Reverendos Padres de<br />

Santo Antônio foram os primeiros religiosos que, em forma regular se estabeleceram na<br />

cidade de S. Luís e no conventinho dos Padres Barbadinhos Franceses, quando os<br />

Padres da Companhia foram os que se ocuparam do dito Conventinho por doação de<br />

Alexandre de Moura”. 229<br />

Igualmente, tentou rechaçar o que escreveu Frei Gabriel do Espírito Santo, autor<br />

do Prólogo de “Jardim da Sagrada Escritura”, obra que reúne diversos sermões de Frei<br />

Cristovão de Lisboa, postumamente publicada. Frei Gabriel escreve sobre a ida de Frei<br />

Cosme de São Damião e Frei Manuel da Piedade, ao Maranhão, em 1614. Trasladando<br />

parte do Prólogo, o Padre Morais afirma que o seu autor “foi mal informado”. Mas, se<br />

ainda pairam dúvidas, recomendamos o retorno aos documentos que apresentamos em<br />

parte anterior.<br />

228 Conferir a nota 105.<br />

229 Se o convento de São Luís, dos capuchinhos franceses, passou ao capuchos ou aos jesuítas é uma<br />

questão ainda em aberto, mas que pode ser solucionada se for verídica a afirmação de Frei Apolinário da<br />

Conceição, em Cláustro Franciscano, Lisboa: 1740, p. 86. Segundo Apolinário, os capuchos que<br />

herdaram o tal conventinho desistiram de sua posse e o passaram a Francisco Mendes Roma, “como se vê<br />

do despacho do Governador Alexandre de Moura, passado no Forte de São Felipe aos 10 de dezembro<br />

de 1615, o que consta dos papéis que se acham no arquivo do dito convento e, agora, seus fiéis traslados<br />

passados por Índia e Mina no Conselho Ultramarino”. A quem muito interessar possa, terá como


Entendemos a preocupação de Morais em citar o texto do “Prólogo” – de teor<br />

claramente apologético – dado que, desta vez, quem dispara contra os jesuítas é o<br />

próprio Frei Espírito Santo, acusando-os, nas entrelinhas, de oferecidos intrujões:<br />

“Pelo que em o ano de mil e seiscentos e dezessete, foram<br />

mandados desta Província [do Maranhão] por ordem del Rei<br />

Filipe Terceiro (não aceitando aos Padres da Companhia, que<br />

então se ofereciam para esta missão, como sempre) quatro<br />

Religiosos (...) obraram com favor divino na conversão daquela<br />

gentilidade com a virtude dos Apóstolos sagrados, que sendo<br />

poucos, em pouco tempo converteram todo o mundo. (...) Desta<br />

breve narração consta os frades Reformados, que em Espanha<br />

chamam Descalços, em Portugal Capuchos, tem Províncias, e<br />

Custódias na Nova Espanha, nas Filipinas, na Ásia, na China, na<br />

América, no Brasil, e Maranhão. Diga agora o Padre Nigrono,<br />

querendo ilustrar a Companhia, e escurecer as outras Religiões:<br />

‘Sunt enim quidam Ordines, qui nullam aut exiguam varietatem<br />

nationum habent: ut discalccatorum Sancti Francisci in Hispania,<br />

ex qua non est egressus’”. 230<br />

Ante as provocações do frade, a reação de Morais. Como se percebe, estamos<br />

envolvidos numa verdadeira guerra literária.<br />

Não desiste o Padre José de Morais de impor a sua justificação, com outra<br />

tentativa de situar cronologicamente a entrada da Religiões no Maranhão:<br />

“[(...) (riscado) já disse que logo em 1614, com Jerônimo de<br />

Albuquerque] que em 1611 foram ao Maranhão quatro<br />

[(riscado) Barbadinhos ] Religiosos Barbadinhos Franceses (...)<br />

pois no ano de 1614 com Jerônimo de Albuquerque [(riscado) ou<br />

em 1615 com Alexandre de Moura se colhe que foram nas naus<br />

alguns, um ou mais Religiosos, como se infere da carta do<br />

Padre Manuel Gomes que] foram // alguns religiosos de São<br />

Francisco // que o P. Fr. Gabriel falta à verdade pelo que diz da<br />

Companhia no Livro acima citado, natural é que fossem os<br />

religiosos que não nomeia, o Padre Manuel Gomes, os<br />

Reverendos Padres Frei Cosme de São Damião e Frei Manuel da<br />

Piedade”.<br />

verificar a existência desse documento microfilmado, do Arquivo Ultramarino, no Instituto Histórico e<br />

Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro, RJ.<br />

230 ESPÍRITO SANTO, Frei Gabriel. Prólogo, in LISBOA, Frei Cristovão de. Jardim da Sagrada<br />

Escritura, Disposto em Modo Alfabético, Lisboa: Paulo Craesbeek, 1653, pp. 10s.


É muito difícil o autor manter a sua posição; começa a ceder, inclinando-se a<br />

aceitar a presença dos dois franciscanos, que faz coincidir, temporalmente, com a vinda<br />

dos Padres da Companhia, uma vez que, em carta do Padre Manuel Gomes, há uma<br />

alusão a outros religiosos na Armada de Alexandre de Moura. Erra o Autor, porque é<br />

sabido que se trata de carmelitas os frades da expedição, e não franciscanos. Quanto à<br />

cronologia que fica por fazer, jesuítas e carmelitas entraram à mesma época no<br />

Maranhão.<br />

Finalmente, José de Morais decide marcar, em definitivo, a data de ida dos<br />

frades capuchos, em 1617 e em 1624, respectivamente, quando se fundou o<br />

Comissariado franciscano e assistiu-se à chegada de Frei Cristovão de Lisboa.<br />

O que podemos dizer de todos esses autores, sem excluir os franciscanos? Cada<br />

um deles, conforme as suas filiações institucionais e ideológicas, produziu as narrações<br />

que consubstanciam as convicções dos seus respectivos grupos. Ninguém os iludiu, a<br />

ilusão é deles. Tais produções tipificam o que Eduardo Gianotti caracterizou como<br />

“auto-engano”. Trata-se do ponto central da relação do humano com os semelhantes. O<br />

embuste dos outros pode ser desmascarado, mas o auto-engano pode eternizar-se,<br />

sobretudo quando se marca como convicção. “Para nosso bem e nossa ruína, o auto-<br />

engano permeia grande parte das opções e dos julgamentos que fazemos. É o pano de<br />

fundo das nossas paixões amorosas, de nossas crenças religiosas e políticas, de nossos<br />

sucessos e fracassos”, escreve Gianotti. 231 O auto-engano move montanhas, promove<br />

guerras, produz quimeras, falácias, revoluções, transforma o embusteiro em gênio, o<br />

falso messias em salvador. Longe de propor a sua desqualificação, esses autores<br />

precisam ser compreendidos como espelhos de nós mesmos, para que sejamos capazes<br />

231 GIANOTTI, Eduardo. Auto-Engano. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


de perceber as miragens auto-induzidas que disfarçam a realidade e nos conduzem a<br />

tantos equívocos.<br />

3.3. Franciscanos e colonos contra os jesuítas: São Paulo, Rio de Janeiro e<br />

Maranhão<br />

“Ninguém ignora que as duas Ordens, a de S. Francisco e a de<br />

Santo Inácio, foram e são antagônicas. Pode seguir-se através da<br />

história, ora surda ora declarada, essa oposição. E a nós<br />

acrescentamos: as lutas, tão asperamente disputadas no Brasil,<br />

entre colonos e jesuítas, refletem, em grande parte, o<br />

antagonismo de espírito e processos que opõe uma à outra, as<br />

duas Ordens”. Jaime Cortesão<br />

As inimizades entre franciscanos e jesuítas se deram, praticamente, em todos os<br />

lugares onde as ordens rivais se estabeleceram. No caso brasileiro, as rivalidades se<br />

deram, nos tempos iniciais das missões, na Paraíba, como já visto, e também, mais<br />

tarde, em São Paulo e Rio de Janeiro, em 1640, e, no Maranhão e Grão-Pará, em 1661 e,<br />

de novo, em 1684. Em São Paulo, bem como no Norte, envolveram os colonos e as<br />

câmaras locais, aliados dos franciscanos contra os jesuítas. Afirma Rocha Pombo que,<br />

no extremo norte, “quase em Regra se punham os frades ao lado dos colonos contra os<br />

jesuítas”. 232<br />

São Paulo e Maranhão eram áreas de pouca expressividade econômica no<br />

conjunto da Colônia. Naquela época, por serem regiões pobres, não comportavam o<br />

preço elevado do escravo africano, ao passo que o emprego da mão-de-obra indígena<br />

era a única acessível. Se, de um lado, os religiosos se opunham à escravidão dos<br />

indígenas, de outro, os colonos julgavam que os religiosos, em especial, os jesuítas, se<br />

beneficiavam, de forma privilegiada, do braço nativo, haja vista os sinais de<br />

232 POMBO, Rocha. História do Brasil, 11ª ed., São Paulo: Melhoramentos, 1963, p. 206.


enriquecimento de seus aldeamentos. Os moradores de São Paulo, justificando-se<br />

perante o Rei, por terem expulsado os jesuítas, em 1640, começam por alegar:<br />

“‘Os reverendos padres da Companhia de Jesus, que residem<br />

nesta província do Brasil, em paga e satisfação dos moradores<br />

lhes haverem dado o melhor, em que situaram colégios e casas,<br />

feitas sem dispêndio da sua fazenda, e depois se verem ricos,<br />

prósperos e poderosos, impedem sub-repticiamente um breve de<br />

Sua Santidade’, pelo qual, diziam, em resumo, tentaram esbulhálos<br />

dos índios das aldeias, tornando-se mais que doutrinantes e<br />

senhores deles”. 233<br />

Por essa mesma época e justificando fatos semelhantes, o procurador da Câmara<br />

do Rio acusava os padres jesuítas de monopolizar, em seu proveito, o trabalho dos<br />

índios “com que ficam sendo senhores de toda esta repartição do Sul, tendo só nesta<br />

cidade mais de 50.000 cruzados de renda...” 234<br />

No Estado do Maranhão, as missões religiosas também enriqueceram. Os sinais<br />

de prosperidade das Ordens Religiosas, em especial, dos jesuítas que sobrepujavam a<br />

todas, em número e valor das propriedades, enquanto a colonização secular minguava a<br />

olhos vistos, tornou-se motivo de escândalo e de inveja dos paupérrimos moradores e<br />

governantes, impotentes no seu esforço de levantarem a comunidade do abatimento em<br />

que jazia. 235 O povo, impedido de utilizar os braços dos “negros da terra” para suas<br />

necessidades econômicas, acusava os religiosos de monopolizar o trabalho indígena. E a<br />

censura não era exclusiva aos jesuítas; atingia outras Ordens. 236 O escândalo chega ao<br />

233<br />

CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, op. cit. p. 247.<br />

234<br />

Idem.<br />

235<br />

A Biblioteca Pública de Évora conserva um alentado memorial, organizado em quatro partes, dirigido<br />

ao Rei, “pelos povos do Maranhão”, em 24 de junho de 1734, inclusive, remontando com extensão, os<br />

tempos do Padre Antônio Vieira; na terceira parte, é transcrita, em castelhano, a “Monita Secreta”. Cód.<br />

CXV/2-13 a fl. 1.<br />

236<br />

Outro documento congênere conservado na Biblioteca de Évora é o “Cálculo do Importantíssimo<br />

cabedal que embolção os RR. Missionários, os seus Prelados e Comunidades das negociações que<br />

fazem com os índios e índias nas aldeias chamadas Missões, nas cidades, vilas e fazendas que tem no<br />

Estado do Maranhão etc” acusando jesuítas, carmelitas, capuchos e mercedários. Cód. CXV/2-13 a f.<br />

224.


ponto de mandarem retirar das missões os Padres das Mercês e do Carmo, “por ser<br />

certo se estão servindo dos índios como escravos para suas granjearias e comércios”,<br />

conforme se lê na Provisão ao Governador, de 13 de abril de 1723, conservada na<br />

Biblioteca de Évora. 237 Outra Provisão, de 20 de agosto de 1729, proibia<br />

terminantemente aos Religiosos que lavrassem com os neófitos “canaviais, tabacos ou<br />

engenhos, de nenhuma maneira em tempo algum”. 238<br />

Em São Paulo e no Rio de Janeiro, os conflitos se acirraram, em 1640, a partir da<br />

notícia da publicação do Breve “Commissum Nobis”, promulgado em 22 de abril de<br />

1639, pelo Papa Urbano VIII, sobre a liberdade dos índios da América, que proibia o<br />

cativeiro indígena, sob pena de excomunhão. O documento papal continha ordens<br />

rígidas e expressas:<br />

“(...) que daqui por diante não ousem ou presumam cativar os<br />

sobreditos índios, vendê-los, comprá-los, trocá-los, dá-los,<br />

apartá-los de suas mulheres e filhos, privá-los de seus bens e<br />

fazenda, levá-los e mandá-los para outros lugares, privá-los de<br />

qualquer modo de liberdade, (...), vós não obedecerem,<br />

incorrerão na sobredita excomunhão, e também impedindo por<br />

outras censuras e penas eclesiásticas”. 239<br />

A notícia de que missionários espanhóis de Guairá – que tinham ido à Europa<br />

queixar-se dos bandeirantes – haviam desembarcado, no Rio de Janeiro, trazendo bula e<br />

carta régia mandando restituir aos padres os índios escravizados, causou conflitos e<br />

revoltas, tanto nessa cidade, quanto em São Paulo. As pessoas que desembarcavam no<br />

porto eram revistadas, para evitar que uma cópia do documento pudesse entrar na<br />

Colônia. No Rio, ao publicar-se a Bula, houve tumultos violentíssimos; o povo e a<br />

câmara da cidade se opuseram à execução do Breve; o Colégio dos Jesuítas, no Morro<br />

do Castelo, foi incendiado e os padres foram expulsos, por horas, da cidade; graças ao<br />

237 Biblioteca Pública de Évora, Cód. CXV/2-13, f. 615.<br />

238 Biblioteca Pública de Évora, Cód. CXV/2-13, .<br />

239 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo VI, p. 569.


Governador Salvador de Sá Corrêa Benevides, amigo e protetor dos jesuítas, evitou-se a<br />

expulsão dos inacianos do Rio; foram, porém, constrangidos a desistir de quaisquer<br />

direitos que da Bula lhes pudessem vir, e a declarar que não se envolveriam mais na<br />

administração dos índios, exceto nas Aldeias. 240<br />

Em São Paulo, assim que se teve notícia do que se passara no Rio, alarmaram-se<br />

os colonos; reunindo uma junta de câmaras, logo resolveram que era preciso tomar uma<br />

medida decisiva contra os jesuítas; os membros das câmaras e o povo vão ao Colégio<br />

dos Jesuítas intimar os padres a se retirarem “para fora” da capitania, num prazo de seis<br />

dias; como recalcitrassem os padres, o prazo lhes foi dilatado. Por não obterem êxito,<br />

novo tumulto se formou em frente ao Colégio para fazer sair à força os oito padres que<br />

ali se faziam presentes; só retornaram os inacianos treze anos depois, em 1653.<br />

O Padre Jacinto de Carvalho acusa “os frades de São Francisco”, como “é<br />

pública voz e fama”, de terem sido “os principais que contrariaram a Bula, publicando<br />

contra ela muitas coisa falsas”, além de dizerem “contra a Companhia muitas coisas,<br />

dizendo e incitando aos homens a botar fora da terra os Padres da Companhia,<br />

falando-lhes à vontade, só a fim de terem mais facilmente um pão de esmola”.<br />

Inclusive, dá os nomes dos frades franciscanos: “seu Custódio Frei Manuel de Santa<br />

Rita e um pregador que está na vila de Santos, chamado Frei Francisco de Coimbra, e<br />

outro pregador e presidente na Vila de São Paulo, chamado Frei Francisco Escoto, que<br />

antigamente foi despedido da Companhia, os quais diziam que botassem fora os Padres<br />

da Companhia, como é público”. 241<br />

Frei Jaboatão também dá a sua versão dos fatos, não negando o envolvimento<br />

dos frades nos acontecimentos “para lançarem fora de São Paulo aos ditos Padres da<br />

240 BEOZZO, José Oscar. Leis e Regimentos das Missões, São Paulo: Loyola, 1983, p. 19.<br />

241 Pe. Jacinto de Carvalho. Certidão sobre a expulsão dos Padres da Companhia de Jesus da Capitania<br />

de São Vicente, por causa da publicação da Bula que passou Sua Santidade acerca da liberdade dos<br />

índios orientais e Ocidentais, in LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo VI,<br />

op. cit. p. 262.


Companhia”; no entanto, atribui aos inacianos atirarem sobre os frades, em especial,<br />

Frei Francisco dos Santos, “calúnias e falsas imposturas que lhe acumulavam os tais<br />

Padres”, de modo que o referido frade foi obrigado a “renunciar a prelazia, e passar ao<br />

Reino, de onde voltou livre”, enquanto “os Padres da Companhia não tornaram a São<br />

Paulo senão daí a muitos anos, depois de esquecidas aquelas controvérsias”.<br />

Segundo Jaboatão, os Padres da Companhia, “sobre a publicação de umas<br />

Letras (...) pela qual inovava uma Bula do Sumo Pontífice Paulo III”, alegavam<br />

“algumas premissas falsas”; em seguida, “teve o povo de São Paulo, e a sua câmara a<br />

notícia de que os ditos Padres intentavam publicar essas letras na sua Vila, como<br />

haviam feito em Santos e no Rio de Janeiro, clandestinamente, depois de ter a câmara,<br />

e o povo pedido vistas das tais letras”; no entanto, apesar de os Padres, no Rio de<br />

Janeiro, terem se comprometido a não publicar as letras, “por conselho dos ditos Padres<br />

começar o Gentio a amotinar-se contra os moradores, foi o povo com a câmara ao seu<br />

colégio, e violentamente obrigaram aos tais Padres a saírem todos dele e retirarem-se<br />

para o Rio de Janeiro”. Pelo testemunho de Jaboatão, a reação da população paulista<br />

não se deu sem motivo.<br />

No Maranhão, as desavenças de décadas entre colonos e jesuítas, tendo como<br />

pivô a utilização do trabalho escravo dos índios, provocaram, em 1661, a primeira<br />

expulsão dos jesuítas para o Reino, inclusive a do Padre Antônio Vieira. Rocha Pombo,<br />

novamente, assinala que os chefes da rebelião contra os jesuítas contavam com o apoio<br />

“de outras Ordens e do clero secular”. 242<br />

Essa acusação contra os franciscanos foi ainda mais contundente, na revolta de<br />

1684, quando os jesuítas foram expulsos, uma segunda vez, do Maranhão. O estopim do<br />

que passou à história como a “Revolta de Beckman” contra o Estado, o Governador e os<br />

242 POMBO, Rocha. Op. cit. p. 207.


padres da Companhia de Jesus – esses últimos atacados por terem a administração<br />

temporal dos índios – deu-se a pretexto da concessão de privilégio exclusivo de<br />

comércio de todo o Estado (estanco), por espaço de vinte anos, dado à Companhia de<br />

Comércio do Maranhão, para lidar com a transação de mão-de-obra escrava negra e de<br />

outros gêneros de consumo; por essa concessão, era o comércio “geral e absolutamente<br />

proibido a todos os vassalos”; em relação aos índios, o caso tornava-se curioso, pois,<br />

esquecida a lei de 1680, que abolira a escravidão do gentio e confiava aos jesuítas toda a<br />

jurisdição espiritual e temporal nas aldeias, autorizava a Corte à tal Companhia de<br />

Comércio “empregar no seu serviço os casais de que precisasse...e a fazer no sertão<br />

quantas entradas quisesse”. 243<br />

Os revoltosos contaram logo com o apoio dos franciscanos e dos carmelitas.<br />

Afirma Pombo, seguindo o que disse João Francisco Lisboa, que os conjurados<br />

celebravam os seus “‘conciliábulos no convento dos Capuchos’ e que ‘todos os dias<br />

amanheciam pasquins e trovas pelas esquinas... convidando o povo à revolta; e do alto<br />

do púlpito, muitos meses havia que os frades não faziam outra coisa nos seus sermões’.<br />

‘Frade houve que chegou a bradar publicamente em uma praça – que lhe dessem<br />

quatro homens resolutos que ele, em poucas horas, se obrigava a livrar o Maranhão do<br />

cativeiro’” . 244<br />

Padre Serafim Leite cita, em nota, a declaração de Frei Francisco de Nossa<br />

Senhora dos Prazeres que “os sediosos se juntavam pela meia noite na cerca do<br />

convento de Santo Antônio (então ainda fora da cidade), entrando nela por uma<br />

brecha, que o tempo havia feito no muro”, deixando em suspenso a dúvida se os<br />

franciscanos “não sabiam do intento ou o desprezavam, introduzindo-os na sobredita<br />

junta e casa de religiosos”. 245<br />

243 POMBO, Rocha. Op. cit., p. 208.<br />

244 Idem, pp. 208 ss..<br />

245 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo IV, p. 74.


Em outra nota, Serafim Leite cita, nominalmente, os frades que “conspiravam”<br />

contra os jesuítas e as respectivas Ordens a que pertenciam, reproduzindo uma acusação<br />

proferida pelo Padre Superior da Missão: “Franciscani, Carmelitae, Mercenarii et<br />

Clerici eam a populo extorquerunt”; e conclui que, “a pedido dos mesmos Padres da<br />

Companhia, El-Rei perdoou ‘aos clérigos culpados’”. 246<br />

Não há como negar: a revolta capitaneada por Beckman, contra o estanco e a<br />

Companhia de Jesus, foi tramada, em sucessivas reuniões, no próprio convento dos<br />

franciscanos. Afirmou Jaime Cortesão, sem subterfúgios, que “o mosteiro (dos<br />

franciscanos) tornara-se o quartel general da mais violenta das revoltas populares<br />

realizadas no Brasil, durante o século Seiscentos”. 247<br />

Em ambas as ocorrências, logo depois, voltavam os jesuítas, ainda mais<br />

fortalecidos. Em 1662, retornaram eles ao Maranhão, com o novo Governador Rui Vaz<br />

da Siqueira, “encarregado de restabelecer a ordem, reparar as injustiças, restituir os<br />

Padres e oferecer um perdão geral ao povo, que não era o mesmo que impunidade”,<br />

arremata Serafim Leite. 248 Em 1693, por influência dos jesuítas, o Rei resolveu<br />

empreender uma nova repartição das missões; foi quando, conforme acima já havíamos<br />

dito, a Companhia recebeu a melhor parte, em nome da polêmica declaração de os seus<br />

padres “serem os mais antigos”, e todos os privilégios que daí eram conseqüentes.<br />

O próprio Serafim Leite, baseado em Crônica escrita pelo Padre João Filipe<br />

Bettendorff, não esconde que, quando esse esteve em Lisboa (de 1684 a 1687),<br />

“ventilou-se a questão da repartição de tão desmedido campo apostólico pelos diversos<br />

Institutos Religiosos, já então existentes no Maranhão e Pará, além da Companhia, os<br />

de Santo Antônio, Mercês e Carmo. E ele próprio [Bettendorff] propôs a El-Rei a sua<br />

246 Idem, p. 75.<br />

247 CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, op. cit. p. 252.<br />

248 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo IV, Rio de Janeiro / Lisboa:<br />

Instituto Nacional do Livro/Livraria Portugália, 1943, p 69.


epartição. (...) Assim pois, vendo El Rei a falta de Missionários, e que o próprio<br />

Bettendorff era inclinado à repartição das Missões, encarregou o Ministro Roque<br />

Monteiro Paim, com informação de Gomes Freire de Andrade, de estudar o melhor<br />

modo dela”. 249<br />

Novas vitórias dos jesuítas foram conquistadas com a publicação do Regimento<br />

das Missões, de 1686, e com a carta régia de D. Pedro II, datada de 21 de abril de 1702,<br />

essa valendo-lhes com uma explícita declaração real de que foram os primeiros<br />

fundadores das missões do Maranhão. Azevedo chama a atenção para a estratégia<br />

jesuítica, baseada em sutilezas. Ora, não podiam negar os jesuítas haverem chegado<br />

segundos; então, alegam terem sido os primeiros, não a chegar, mas a fundar missões. 250<br />

Todavia, no campo literário, tudo farão para passarem à história como os primeiros a<br />

conquistar e a missionar as terras e as gentes daquele Estado.<br />

O Regimento das Missões, de 21 de dezembro de 1686, entregou aos jesuítas<br />

não só o governo espiritual das aldeais, como também o temporal e o político, objeto de<br />

suas antigas e constantes diligências, desde o tempo de Luís Figueira. Conforme<br />

escreveu Azevedo, “Os jesuítas, expulsos da colônia, triunfavam de seus desafetos com<br />

o Regimento chamado das Missões”. 251<br />

Os pontos de maior importância, em que esses se afastavam das disposições<br />

anteriores, eram, além do citado governo temporal, os seguintes: abolia-se o privilégio<br />

da Companhia de Jesus, que excluía as outras ordens religiosas das missões novas e das<br />

entradas no sertão; criava-se um registro de matrícula e mudava-se a forma de<br />

repartição dos índios; concediam-se vinte e cinco casais a cada um dos missionários,<br />

para o serviço das aldeais, em vez de ser repartida entre eles a terça parte de todos os<br />

249<br />

Idem, pp. 33s.. A esses quatro Institutos, vieram também se juntar os franciscanos da Província da<br />

Piedade.<br />

250<br />

AZEVE<strong>DO</strong>, J. Lúcio de. Os Jesuítas no Grão-Pará. Suas Missões e a Colonização, 2ª edição<br />

revista, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930, pp. 44s.<br />

251<br />

Idem, pp. 187s..


descimentos, conforme lei de 1680; por último – e aqui verdadeiramente estava a vitória<br />

dos jesuítas – criavam-se dois lugares de Procurador dos Índios: um, na cidade de São<br />

Luís, outro, em Belém, ambos nomeados pelo Governador, mas escolhidos cada um de<br />

uma lista de dois nomes indicados pelo Superior da Companhia. Tanto valia isso, como<br />

entregar diretamente nas mãos da Companhia toda a jurisdição relativa aos cativeiros. 252<br />

E concluiu Azevedo que tudo isso deveu-se “à influência do Padre Manuel<br />

Fernandes, confessor de D. Pedro II e Presidente do Tribunal ou Junta das Missões,<br />

instituído por D. João IV, provavelmente a instâncias de Vieira”. 253 Na Corte<br />

portuguesa, ao longo do século XVII e na primeira metade do XVIII, em se tratando dos<br />

jesuítas, não houve precedente em matéria de influência.<br />

Uma última pergunta para qual, ainda, não temos resposta: por que todas as<br />

Ordens religiosas, ao lado do povo, colocaram-se contrários aos jesuítas? Afirmar que<br />

os jesuítas eram os únicos missionários a defender a liberdade dos índios, enquanto os<br />

demais religiosos eram mais condescendentes com a instituição da escravidão, é, no<br />

mínimo, simplificar a questão. Os conflitos, envolvendo a população, frades e jesuítas,<br />

continuaram, até a expulsão da Companhia, pelo Marques de Pombal, em 1759.<br />

3.4. As conexões internacionais do problema<br />

Por se tratarem de Ordens Religiosas com presença internacional, as disputas e<br />

as rixas entre franciscanos e jesuítas acompanharam-nos por onde quer que estivessem.<br />

Assim foi também no Oriente, Índia, China e Japão. Nessas partes do mundo, as<br />

querelas entre os religiosos se afastam do problema da primazia, concentrando-se sobre<br />

252 Baseamo-nos em cópia manuscrita do Regimento das Missões, encontrada no Arquivo da Torre do<br />

Tombo, nos espólios dos franciscanos: OFM, Província de Santo Antônio, Província, maço 7, macete 7. O<br />

Regime das Missões foi publicado pelo Padre Serafim Leite, em apêndice de letra D, no Tomo IV, da<br />

História da Companhia de Jesus no Brasil, op. cit., pp. 369 a 375.<br />

253 AZEVE<strong>DO</strong>, J. Lúcio de. Op. cit., p. 188.


os métodos missionários utilizados pelos diferentes grupos e a questão do monopólio<br />

jesuítico no Japão.<br />

Também, no Oriente, detectam-se as mesmas formas de silenciamento da ação<br />

franciscana. Os franciscanos, desde a primeira hora, acompanharam os portugueses às<br />

Índias Orientais. 254 Com dificuldade, os portugueses foram se estabelecendo, primeiro,<br />

criando feitorias consentidas em Cochim, Cananor e Coulão, e, depois, fazendo<br />

portuguesas algumas nesgas de terras ribeirinhas. Aos poucos, as populações hindus<br />

começaram a se abrir à catequese cristã iniciada pelos franciscanos. E, nessas terras<br />

portuguesas, floresciam cristandades, e outras eram rascunhadas na Costa da Pescaria,<br />

nas Molucas e no Ceilão.<br />

Quarenta e dois anos depois, chegaram à Índia São Francisco Xavier e seus<br />

companheiros Jesuítas. “Num fervor de Pentecostes”, segundo a expressão utilizada por<br />

Félix Lopes, na Introdução da “Conquista Espiritual do Oriente”, escrita pelo<br />

franciscano Frei Paulo da Trindade, deram os jesuítas “de povoar de mais pressas os<br />

caminhos de apostolado que levavam longe até ao Japão e à China”. 255 Desde então,<br />

começaram a correr mundo as notícias “dos miríficos trabalhos realizados e dos<br />

surpreendentes frutos recolhidos neste fervor de tantas pressas”. 256<br />

O jornal que tudo contava, já o sabemos, eram as cartas ânuas que circulavam<br />

por todas as casas da Companhia e saíam impressas para também o público cristão nelas<br />

se poder edificar. Os missionários, que as cartas jesuíticas mostravam a implantar a<br />

cristandade pelos quatro cantos o Oriente, “tomaram proporções de heróis<br />

254 Os franciscanos, desde 1500, começaram a freqüentar a Índia. Os oito franciscanos que vieram na<br />

esquadra de Cabral, após breve estada no Brasil recém-descoberto, continuaram viagem para a Índia, seu<br />

destino original.<br />

255 LOPES, Fernando Félix, Introdução e notas à obra de Frei Paulo da Trindade, Conquista Espiritual<br />

do Oreinte, em que se dá relação de algumas coisas notáveis que fizeram os Frades Menores da<br />

Santa Província de S. Tomé da Índia Oriental, em mais de trinta reinos, do Cabo da Boa Esperança<br />

até às remotíssimas Ilhas do Japão, Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1962, primeira<br />

edição impressa de manuscrito datado de 1636.<br />

256 Idem.


demiurgos”. 257 E foi tal o entusiasmo despertado pelas cartas jesuíticas que, em pouco<br />

tempo, a Companhia de Jesus mobilizou a Europa inteira para as empresas missionárias<br />

de Portugal. Todos os anos, partiam de Lisboa, nas caravelas da Índia, levas de jesuítas<br />

de diversas nações européias que se espalhavam pela imensidão do Oriente aonde<br />

chegava o Padroado de Portugal. Embalados na exaltação moça do Instituto que mal se<br />

fundara, as narrativas divulgadas pela cartas lidas na Europa criavam um clima de<br />

epopéia. Dentro em pouco, à volta desses heróis de epopéia, tudo se diminuía e apagava.<br />

Foi assim que Maffei, “num jeito de quem aplana a cena para erguer o canto<br />

heróico”, 258 abriu o seu “Historiarum Indicarum Liber Duodecimus”:<br />

“Até ao tempo em que aportaram à Índia S. Francisco Xavier e<br />

companheiros, não haviam ali promovido a evangelização nem os<br />

soldados e governantes assoberbados pelos cuidados da<br />

conquista nem os já ali estabelecidos Franciscanos, presos que<br />

estavam a cantar em suas igrejas as litúrgicas salmodias e os<br />

responsos pelos mortos”. 259<br />

O que Maffei afirmara, logo apareceu generalizado a todos os tempos no “livro<br />

que certo autor compôs em italiano e imprimiu em Roma, em que com não menos<br />

temeridade que ousadia, se atreveu afirmar que os frades de S. Francisco na Índia não<br />

se ocupavam em fazer Cristandades, mas somente em enterrar defuntos e cantar missas<br />

de Requiem”, conforme acusa, de saída, Frei Paulo da Trindade, no seu “Prólogo ao<br />

Leitor”. Tamanha “calúnia e afronta” serviu de “principal motivo” que moveu o frade<br />

“a tomar o trabalho // de escrever esta história [Conquista Espiritual do Oriente]. E<br />

pelo conseguinte o assunto dela será mostrar ao mundo a falsidade do sobredito autor<br />

que, com tão pouca razão, quis pôr taxa nesta santa Província em matéria em que ela<br />

257 Idem.<br />

258 Idem.<br />

259 Seguimos na versão de Frei Félix Lopes que traduz trecho em latim da obra de MAFFEI, G. P.<br />

Historiarum Indicarum Libri XVI, Antuérpia, 1605, p. 326, constante na Introdução à Conquista<br />

Espiritual do Oriente, op. cit.


está merecendo muitos louvores”, conclui, em tom de desagravo e de defesa da honra<br />

dos seus antecessores seráficos. 260<br />

Em verdade, o intento de Frei Paulo não surtiu, nem de longe, o efeito esperado.<br />

Todo o seu esforço, segundo suas próprias palavras, ancorado num “desejo que há anos<br />

tenho de, com minhas fracas forças, sair em honra desta Santa Província de São<br />

Tomé”, tornou-se vão. Ora, Frei Paulo jamais conseguiu imprimir sua obra, nem mesmo<br />

seus sucessores. Todas as suas tentativas foram frustradas. Chegou a ter licença do<br />

Santo Ofício que lhe deu a Inquisição de Goa; e, para a censura da Ordem e do Paço,<br />

mandou-se exemplar a Madrid, mas a impressão nunca se fez. Ou faltou quem custeasse<br />

as despesas, demasiadas para a pobreza do autor, ou, então, foi emperrada pela própria<br />

censura, o que não custa crer, pois tratava-se de uma obra de sonoro e autorizado<br />

protesto contra opiniões propaladas por literatura vasta, além de tocar, com destemor e<br />

liberdade, em assuntos de governo e de missões.<br />

Ainda que alguns manuscritos da “Conquista” tenham sido utilizados ou<br />

referidos por vários autores franciscanos, com as vicissitudes dos tempos e sobretudo<br />

com a destruição e dispersão dos arquivos e bibliotecas conventuais, nos séculos XVIII<br />

e XIX, em Portugal, Espanha e Itália, todos os exemplares manuscritos desapareceram.<br />

Somente em 1924, descobriu-se que, na Biblioteca Vaticana, se conservava a cópia que,<br />

em 1679, se fizera em Madrid para a Biblioteca da Cúria Geral da Ordem, no Convento<br />

de Aracéli, em Roma. 261 Frei Paulo da Trindade foi silenciado, durante mais de três<br />

séculos, até que, baseado no manuscrito bem conservado encontrado, no Vaticano, Frei<br />

Felix Lopes trouxe-o a público, a primeira vez, e em língua portuguesa.<br />

Enquanto os trabalhos dos jesuítas avultavam na benemérita e entusiasmada<br />

síntese do “Oriente Conquistado a Jesus Cristo”, do Padre Francisco de Sousa, S.J. –<br />

260 Frei Paulo da Trindade. Op. cit, pp. 5s..


que tem servido quase de manual único no estudo da missionação portuguesa no Oriente<br />

– o labor de todos os demais que, por séculos, andarilharam aquelas regiões,<br />

franciscanos, dominicanos, agostinianos, oratorianos e numeroso clero diocesano,<br />

apenas se adivinhava em algum documento conhecido, ou, de forma vaga e imprecisa,<br />

se acrescentava nos livros publicados.<br />

Mas as desavenças entre franciscanos e jesuítas foram muito mais adiante,<br />

ultrapassando ao campo metodológico da atividade educativo-missionária, tanto no<br />

Japão, quanto na China. No caso japonês, é quase unânime a idéia de que a querela<br />

missiológica apenas encobria as rivalidades luso-espanholas, motivadas por interesses<br />

comerciais antagônicos entre Portugal e Espanha, justo no período da união ibérica, de<br />

1580 a 1640.<br />

Através do Breve “Ex Pastorali Officio”, de 28 de janeiro de 1585, a Santa Sé<br />

sancionou o regime de exclusividade missionária em favor da Companhia de Jesus, que,<br />

desde 1549, evangelizava o Japão sob o Padroado Português do Oriente. O próprio Rei<br />

Filipe II, de Espanha, e I, de Portugal, em Cédula enviada ao Vice-Rei da Índia, em 12<br />

de abril do seguinte ano, ordenou “que por nenhuma maneira vão Clérigos nem outros<br />

Religiosos ao Japão senão os Padres da Companhia”. 262<br />

Ao contrário do que se poderia pensar, a união ibérica não representou uma<br />

diluição da identidade lusíada no mundo hispânico, nem sequer a subordinação do<br />

aparelho administrativo de Portugal e do seu império aos seus congêneres espanhóis,<br />

pelo que também o direito de Padroado da Coroa lusa não se confundiu com o de<br />

Patronato da Coroa espanhola. O Rei Filipe jurara, em Tomar, respeitar a<br />

261 Sobre a questão, conferir a Introdução à obra de autoria do Frei Fernando Félix Lopes, p. XII.<br />

262 Cédula Del Rey Dom Phelippe o prudente; primeiro de Portugal em abril de 1585, ao Vice-Rei da<br />

Índia Dom Duarte de Meneses Conde de Tarouca; como se mostra pela provisão que o mesmo Vice-Rei<br />

fez ao Capitão da Viagem ao Japão pela qual ordena que não podem entrar no dito Japão senão os Padres<br />

da Companhia que vão pela Índia Oriental. Apud, OLIVEIRA E COSTA, João Paulo. A Rivalidade<br />

Luso-Espanhola no Extremo Oriente e a Querela Missionológica no Japão, in O Século Cristão do<br />

Japão – Atas do Colóquio Internacional Comemorativo dos 450 Anos de Amizade Portugal-Japão (1543-<br />

1993), Lisboa, 1994, pp.518 s..


individualidade dos seus novos súditos, e procurou, de fato, defendê-la, mesmo na outra<br />

extremidade do mundo. Fiel a esse princípio, o Rei não hesitou em confirmar o<br />

monopólio jesuítico-português relativo à missão japonesa.<br />

Na história da missões, não foi raro ver os missionários acompanhados dos<br />

mercadores e vice-versa, ainda que visassem a objetivos diversos. Também o caráter<br />

universal do cristianismo nem sempre foi imune aos interesses materiais e políticos de<br />

grupos comerciais e de Reinos. No Brasil e no Maranhão, como também no extremo<br />

Oriente, em particular, no Japão, não foi diferente. A influência política e o sucesso<br />

comercial dos portugueses sediados em Macau ou em Nagasaqui, por um lado, e o<br />

sucesso da evangelização jesuítica, por outro, estavam intimamente associados. Os<br />

primeiros controlavam um eixo comercial riquíssimo, cujos lucros elevados dependiam<br />

do monopólio de que desfrutavam. Os segundos, que haviam beneficiado os interesses<br />

econômicos dos senhores japoneses para poderem dar curso às missões, através do<br />

chamado “método de acomodação cultural”, colhiam os primeiros frutos das<br />

conversões. Compreende-se, assim, que uns e outros não vissem com bons olhos o<br />

aparecimento de intrusos, empenhando-se em conseguir, junto às autoridades civis e à<br />

Cúria Papal, a confirmação do monopólio da Companhia sobre a empresa missionária<br />

nipônica.<br />

Desde o tempo de D. Sebastião, no próprio seio da Companhia de Jesus, havia<br />

restrições à entrada de jesuítas espanhóis no Japão. O italiano Alexandre Valignano,<br />

S.J., Visitador da Companhia na Índia Oriental, defendeu a colocação de todos os<br />

padres jesuítas espanhóis que residiam no Japão em “lugares muito remotos e distantes<br />

dos portos do mar de onde não possam ter nenhum tipo de comunicação com os<br />

castelhanos”. 263 Essas palavras ratificavam a atitude anticastelhana das autoridades<br />

portuguesas que receavam que os seus vizinhos e rivais tentassem avançar para sua área


de jurisdição e temiam que a solidariedade nacional levasse os jesuítas espanhóis a<br />

apoiarem os mercadores, seus compatriotas, que aparecessem nos portos monopolizados<br />

pelos portugueses.<br />

Uma carta do Padre Francisco de Monclaro, redigida em Goa, a 26 de outubro<br />

de 1593, e dirigida ao Provincial da Companhia, não deixa dúvidas sobre a intenção de<br />

afastar toda a influência espanhola da ação missionária sob exclusivismo português,<br />

mesmo em se tratando de membros da própria Companhia:<br />

“Tinha o Rei Dom Sebastião expressamente mandado que<br />

nenhum Padre da Companhia que fosse castelhano fosse ao<br />

Japão nem a Maluco, pelo receio que tinha de usurparem para si<br />

o comércio dos Portugueses naquelas partes por via de Nova<br />

Espanha (México) e Filipinas. E tendo o Rei nosso senhor<br />

informação dessas partes, e vendo o dano que se fazia à coroa de<br />

Portugal havendo essa comunicação, como rei e senhor que é<br />

tanto de uma coroa quanto de outra, tem mandado por suas<br />

provisões sob gravíssimas penas não vão castelhanos à China e<br />

ao Japão”. 264<br />

Mas, a despeito de Leis e de Breves, as outras ordens mendicantes ligadas à<br />

autoridade espanhola sediada em Manila, nas Filipinas, em especial os franciscanos,<br />

intentavam instalar-se no arquipélago. Ora, uma assembléia de teólogos reunida em<br />

Manila, em 1593, considerava que o Breve de 1585 não abrangia os filhos de São<br />

Francisco. Segundo os franciscanos, por ter sido a Provisão e demais letras impetradas a<br />

partir de informações falsas e apresentadas ao Vice-Rei, de forma sub-reptícia, tratava-<br />

se de instrumentos nulos, sem efeito nem vigor. Essa posição determinou o<br />

desembarque dos primeiros franciscanos no Japão, no mesmo ano, contrariando não só<br />

o breve papal, mas também os decretos reais.<br />

Se já havia animosidade dos jesuítas portugueses para com os seus próprios<br />

confrades de nacionalidade espanhola, é fácil compreender a violência da reação<br />

263 Apud, OLIVEIRA E COSTA, João Paulo. Op. cit., p. 485.<br />

264 Idem, p. 491.


jesuítica, quando, no Japão, entraram membros de uma Ordem rival. Mal estabelecidos<br />

em Quioto, os franciscanos já encontraram a resistência dos jesuítas que passaram a<br />

censurar-lhes os métodos utilizados. Na mesma altura, o Padre Gnecchi-Soldo<br />

Organtino recusou-se a auxiliar financeiramente a construção da primeira igreja dos<br />

franciscanos na cidade.<br />

A questão metodológica, mote das desavenças entre franciscanos e jesuítas, no<br />

Extremo Oriente, deu origem à interessante “Apologia de Valignano”, verdadeiro libelo<br />

antifranciscano. A Apologia escrita por Valignano tinha por objetivo a defesa da<br />

Companhia, em face das informações prestadas pelos franciscanos em justificativa ao<br />

seu ingresso no Japão, mesmo contra as determinações reais e eclesiásticas. Ao longo da<br />

Apologia, o Visitador teve o cuidado de citar ipsis litteris os trechos dos documentos<br />

franciscanos e rebatê-los de forma minuciosa, o que a torna uma interessantíssima peça<br />

documental. Os documentos mencionados são: a resposta de Frei Martin Ignacio e<br />

outros frades contra o Breve papal e a Provisão do Rei; uma Carta de Frei Jerônimo de<br />

Jesus escrita a D. Pedro Mizi, bispo do Japão; finalmente, dois tratados escritos por Frei<br />

Martin Loines da Ascensão, e suas cartas dirigidas a Miguel Roxo. A análise dos<br />

referidos papéis fez Valignano qualificá-los de “caluniosos e prejudiciais a nossa<br />

Companhia”. Procura não apenas defender a exclusividade dos jesuítas, mas também<br />

provar que o método utilizado pela Companhia é o mais eficaz e desejável naquelas<br />

partes do Oriente.<br />

Após a primeira passagem do Padre Alexandre Valignano, na qualidade de<br />

Visitador (1579-1582), a acomodação cultural tornou-se método oficial da missão<br />

jesuítica, no Japão. Valignano deixou esse método teorizado nas instruções que<br />

compilou para os missionários do arquipélago, texto que Josef Franz Schütte estudou e


publicou no livro “Il Cerimoniali per i Missionari del Giappone di Alexandro<br />

Valignano”, Roma, 1946.<br />

Curioso é que mesmo os autores contemporâneos colocam-se contra os<br />

franciscanos, taxando os seus métodos de “eurocêntricos”, tal como fez João Paulo<br />

Oliveira e Costa: “Com efeito, a maioria dos missionários da Companhia instalados<br />

fora dos centros político-militares europeus procuraram identificar-se com as culturas<br />

nativas, enquanto as ordens mendicantes (leia-se os franciscanos) nunca alteraram os<br />

seus princípios predominantemente eurocentristas, apesar dos esforços em contrário<br />

dalgumas vozes dissonantes como a do franciscano Bernardino de Sahagun”. 265<br />

Pensamos que, assim como se deu no Brasil, por motivos semelhantes, houve<br />

um rápido e fácil alinhamento dos autores às versões, por vezes únicas, em que se<br />

baseavam para formar uma já cristalizada opinião desfavorável aos franciscanos. Ainda<br />

que essas interpretações surjam da análise de documentos, em geral sempre os mesmos<br />

referidos, somos levados a discordar das opiniões que se consagraram. Não é de menor<br />

importância que, do outro lado do Mundo, franciscanos e jesuítas voltem a discutir<br />

sobre os pontos de vista emitidos pelo Padre Acosta no já referido Procuranda Indorum<br />

Salute. A Apologia de Valignano argumentará, na defesa do autor jesuíta, que Frei<br />

Martin fez uma leitura equivocada do texto produzido pelo Provincial do Peru, porque<br />

“ou não o viu ou não entendeu bem o que ele disse”. 266 E, talvez, essa incapacidade de<br />

compreensão não seja apenas uma dificuldade particular de Frei Martin.<br />

Batiam-se os jesuítas contra as demais Ordens, e, de efetivo, contra os<br />

franciscanos, em nome da preservação de um monopólio garantidor de uma requerida<br />

uniformidade para os métodos missionários, que estaria ameaçada, caso outras Ordens<br />

entrassem no Japão. É em nome dessa uniformidade, a ser defendida com o<br />

exclusivismo jesuítico, que Filipe I publica a sua Cédula:


“E receando que por ser uma Cristandade tão tenra e nova e tão<br />

apartada, e eles serem de costumes e qualidades tão diferentes e<br />

contrárias às nossas de Europa, e que uma e a principal causa<br />

porque os Japoneses se movem a fazer Cristãos, e conhecer que<br />

suas leis são falsas é verem a uniformidade da doutrina e modo<br />

de proceder dos ditos Padres; e pelo contrário a diferença de<br />

sitas que tem os seus Bonzos, e assim mesmo a ir nascendo<br />

novamente aquela Cristandade, e a gentilidade ser tão liure , e<br />

pouco acostumada a preceitos divinos e humanos, e por isso ser<br />

necessária muita prudência e experiência e mui grande cautela<br />

em publicar nossa sagrada doutrina e obriga aos seus preceitos<br />

positivos de nossa santa fé Católica e ser assim mesmo<br />

necessária a uniformidade nas opiniões e dissensões dos casos<br />

na publicação de diversos preceitos, e nas dispensações que se<br />

hão de conceder ou negar para que nossa lei lhe não apareça<br />

demasiadamente pesada nem aja diverso modo de proceder nas<br />

ditas coisas; porque o contrário seria a principal causa para se<br />

os gentios não converterem; e juntamente mui grande ocasião de<br />

divisões, desordens, escândalos, e cismas naquela nova<br />

Cristandade; e havendo Sua Majestade tratado com Sua<br />

Santidade de modo // [fl. 240 v.] que se devia guardar para evitar<br />

semelhantes desordens, que impedem o fruto que se faz; por<br />

conselho de Sua Santidade determinou que por hora não fossem<br />

Clérigos seculares ao Japão, nem religiosos doutras ordens,<br />

senão Padres da Companhia que foram os que primeiro abriram<br />

a porta àquela Cristandade do Japão, para que sendo guiada por<br />

eles se veja bem essa uniformidade tão necessária para aquela<br />

nova Igreja, e não se usem diversos hábitos, diversos modos de<br />

proceder, e diversas opiniões etc”. 267<br />

O documento acima não deixa dúvida de que a diferença é característica<br />

indesejável. Em tempos da Contra-Reforma, estratégias formuladas pelo Concílio de<br />

Trento (1545-63) pretendiam fortalecer o Papado e marcar a centralização institucional<br />

e a unidade doutrinária da Igreja Católica ameaçada pelo movimento de reforma<br />

protestante. Por seu turno, os Reis ibéricos partilham da mesma mentalidade,<br />

procurando, todavia, expandir a cristandade, o que equivalia a alargar seus domínios e<br />

poder político, econômico e comercial. Os jesuítas surgiram como principal braço do<br />

265 Idem, pp. 477 s..<br />

266 Apologia de Valignano, fl. 30.<br />

267 Idem, pp. 518 s. Grifos nossos.


Papado contra-reformista, mas, na prática, eram sumamente dependentes dos Reis<br />

Católicos, em termos administrativos e econômicos.<br />

Imbuídos desse espírito, desejosos em apagar as diferenças, seu comportamento<br />

procura instaurar a semelhança que reflete a unidade da criação divina. Manter e<br />

propagar a fé católica, garantir a ortodoxia – discurso único e válido –, numa fase em<br />

que a tradição é contestada pela Reforma e pelas religiões orientais e dos povos<br />

americanos, é executar a missão para qual foram criados. Os jesuítas querem tornar o<br />

outro, o não-cristão, seja japonês, indiano, chinês, africano, indo-americano, em cristão,<br />

para tornar os homens o mais possível iguais. Não percebem, no entanto, que apagar as<br />

diferenças é o mesmo que negar a alteridade, a existência do outro.<br />

Enquanto os jesuítas agarram-se à defesa da uniformidade, os franciscanos, para<br />

seu interesse, defendem a tese da diversidade missionária. Essa posição fica clara nas<br />

palavras de Frei Martin Ignacio, transcritas pelo próprio Valignano:<br />

“ E quanto a dizer que a diversidade dos hábitos e religião podem<br />

causar escândalo, e que parece mal, a isso se responde que, por<br />

nome diversos enredem contrariedade, é heresia dizer que nos<br />

estados Eclesiásticos há contrariedade, pois todos eles confessam<br />

ser bons e aprovados, e claro está que o bem não pode ser<br />

contrário assim: contrários se dizem os Mouros e Cristãos: mas<br />

se entendem por nome de diversos, variedades, isto concedemos<br />

que há nos estados fiéis, mas dizer que esta variedade é fealdade,<br />

e que parece mal, responde-se, que esta parece proposição<br />

errônea e contrária à verdade, pois consta que a formosura do<br />

Universo consiste em haver variedade de coisas”. 268<br />

Para defender a diversidade como sinal da perfeição da Igreja, Frei Martin<br />

Ignacio recorreu ao capítulo doze da Segunda Epístola de São Paulo aos Coríntios.<br />

268 Apologia de Valignano, Capítulo 4º, fls. 16 e 16v.. Grifos nossos.


Assim lemos, conforme as palavras de Frei Martin, novamente, transcritas, em<br />

minúcias, por Valignano, não deixando de lado nem sequer as anotações à margem: 269<br />

“Para poder dar relação das coisas do Japão, é necessário<br />

pressupor primeiro que, na Igreja de Deus, é necessário haver<br />

diversos estados e religiões, porque (como disse S. Paulo), a<br />

Igreja militante é um corpo perfeito, cuja cabeça é Cristo e os<br />

membros são os estados diferentes, que há nela: de, como o corpo<br />

humano e humanal tem muitos membros de diversas qualidades e<br />

temperamentos para diversos ofícios, assim este corpo místico da<br />

Igreja há de ter estados e religiões diferentes, que são membros<br />

seus (...) Nem todos os membros do corpo hão de ser olhos, nem<br />

todos pés, nem todos ouvidos, nem todos mãos etc. Antes os olhos<br />

hão de ser diferentes das mãos, e as mãos dos pés etc. Assim<br />

neste corpo místico, nem todos hão de ser casados, nem todos<br />

Religiosos, nem todos bispos, e dos Religiosos, nem todos hão de<br />

ser Dominicanos, nem todos Agostinianos, nem todos<br />

Franciscanos, nem todos Teatinos (jesuítas)”. 270<br />

Contra os argumentos de Frei Martin, que via na diversidade o modo de se<br />

realizar a perfeição da Igreja, Valignano defendeu outra interpretação para o mesmo<br />

trecho da Escritura. Segundo o Visitador, São Paulo não estaria tratando da diversidade<br />

das Religiões, nem suas palavras poderiam provar que tal diversidade seria necessária<br />

para a perfeição da Igreja, “porque a perfeição da Igreja não a põe S. Paulo na<br />

diversidade dos ministérios, mas na união dos membros deste corpo místico entre si e<br />

com sua cabeça”; e que, portanto, apesar de ser de muito ornamento, beleza e proveito<br />

da Igreja, a diversidade de Religiões é apenas “perfeição acidental e não substancial e<br />

necessária”. 271<br />

Perceba-se que, para além dos interesses de cada grupo e das emoções que<br />

ensejam a formulação e a defesa de argumentos racionais antagônicos, como não<br />

269 Valignano faz questão de transcrever as notas de Frei Martin, especialmente, porque, de forma<br />

inadvertida, cita a Primeira Carta ao invés da Segunda de São Paulo aos Coríntios, no intuito de<br />

desqualificar a capacidade do frade.<br />

270 Apologia de Valignano, Capítulo 9º, fl. 54 v..<br />

271 Idem, Capítulo 10º, fls. 55 e 55v.. Grifo nosso.


poderia deixar de ser, a contradição uniformidade/diversidade fala de duas lógicas<br />

diferentes a caracterizar a ação e o pensamento de jesuítas e de franciscanos.<br />

A missão jesuítica no Oriente adotou como método a acomodação cultural.<br />

Tratava-se, afinal, de executar o antigo preceito missionário de São Paulo de “fazer-se<br />

todo a todos”, o que equivaleria a tornar-se chinês entre os chineses, ou japonês entre os<br />

japoneses, na língua, na indumentária, na comida, na habitação etc. A missionação,<br />

portanto, deveria começar pela acomodação dos missionários às novas realidades<br />

culturais, de modo a estabelecer o diálogo e a busca de pontos em que a religião cristã<br />

se aproximava ou se distanciava da cultura anfitriã. Só depois se passaria à catequização<br />

propriamente dita. O diálogo proposto pelos missionários deveria ser estabelecido, em<br />

primeiro lugar, com as elites locais, uma vez que se cria apenas ser possível a adesão<br />

das populações ao cristianismo, em grande escala, quando essas elites, persuadidas pela<br />

argumentação dos missionários, tivessem também elas abraçado a religião cristã. Nessa<br />

altura, a seara estaria madura e seriam colhidos abundantes frutos de conversão.<br />

Tratava-se, portanto, de um plano cuja plena realização se colocava muito a longo<br />

prazo.<br />

O Padre Matteo Ricci, grande impulsionador desse método na China, após<br />

dezesseis anos de missão, aos que, ansiosamente, o questionavam sobre o número de<br />

conversões, respondia que ainda não era tempo de, naquela seara, se começar a recolher<br />

e nem sequer a semear, porque se estava na fase de devastar os cerrados bosques e de<br />

combater as feras e as cobras venenosas que nele se escondiam. 272<br />

Mesmo no seio da Companhia, havia muitas resistências à adoção do método de<br />

acomodação. A dúvida também se estendia sobre quem seriam os destinatários<br />

primeiros da ação missionária. Enquanto a estratégia hegemônica dos jesuítas dava<br />

272 MARTINS <strong>DO</strong> VALE, A. M. Entre a Cruz e o Dragão. O Padroado Português na China no<br />

Século XVIII, Vila Nova de Gaia: Fundação Oriente, 2002, p. 33.


prioridade à cooptação das elites, para garantia e progresso do cristianismo, era prática<br />

comum aos franciscanos priorizar a evangelização a partir dos pobres.<br />

Tendo em vista o sucesso da estratégia jesuítica, era necessário que os padres a<br />

serem introduzidos no Oriente fossem selecionados entre os mais inteligentes e os mais<br />

versados em matérias científicas, a fim de poderem estabelecer conversações de alto<br />

nível com os letrados e os sábios da China, da Índia e do Japão. Em especial, na China,<br />

acima de tudo, os padres deveriam ser exímios na filosofia, particularmente no domínio<br />

da dialética, e seria ainda muito conveniente que possuíssem algum conhecimento de<br />

astronomia. 273<br />

Tudo de acordo com o modo de proceder da Companhia, talvez, agora, realizado<br />

de forma mais sofisticada, na consideração de que Inácio de Loyola apresentava como<br />

uma das causas de impedimento de entrada no Instituto “a falta de instrução ou de<br />

aptidão de inteligência e de memória para adquirir ou falta de expressão para<br />

ensinar”. E, conforme, ainda, as Constituições, “o fim que a Companhia tem<br />

diretamente em vista é ajudar as almas próprias e as do próximo a atingir o fim último<br />

para o qual foram criadas (...) devem-se procurar os graus de instrução e o modo de a<br />

utilizar para ajudar a melhor conhecer e servir Deus nosso Criador e Senhor” . Para os<br />

jesuítas é pela argúcia e pela inteligência que se vence, sendo somente pela luz da razão<br />

que o homem conhece a verdade e consegue distinguir o bem do mal.<br />

Longo e, por vezes insólito, foi o caminho que os jesuítas começaram a<br />

percorrer, no Oriente. O aprendizado da língua e a aquisição de fluência no idioma eram<br />

essenciais para a sua pretensão de manter com os letrados debates de natureza filosófica,<br />

política e religiosa. Apesar da simpatia e da admiração que a maioria dos mandarins e<br />

dos letrados chineses manifestavam em relação aos inacianos, nem por isso os<br />

missionários estavam conseguindo contagiar as massas populares. Essas mantinham-se


desconfiadas daqueles estrangeiros que haviam se estabelecido na sua terra. Ao<br />

contrário daquilo que esperavam os jesuítas, no início da sua missão, as camadas<br />

populares não estavam a ser arrastadas pelo exemplo das elites que se encantavam ao<br />

ver o conhecimento dos sábios do Ocidente. Mesmo entre os maiorais, os jesuítas não<br />

eram uma unanimidade. Em 1589, tiveram a sua casa, em Zhaoqing confiscada pelo<br />

Vice-Rei.<br />

Essa constatação levou o Visitador da Companhia, Padre Alexandre Valignano,<br />

a avaliar que o futuro da missão estava dependente da benevolência do soberano chinês.<br />

Tentou o Visitador valer-se de sua influência em Roma para pedir ao Papa que enviasse<br />

uma embaixada ao imperador da China e o sensibilizasse para a necessidade de<br />

conceder liberdade de ação aos missionários. Não foi bem sucedido, porém, no seu<br />

intento de conseguir a embaixada pontifícia. No entanto, o Padre Ricci, por meios da<br />

própria Companhia, conseguiu ser admitido na corte de Pequim. Apesar do muito tempo<br />

que era obrigado a dedicar às ilustres visitas à corte, o Padre Ricci conseguiu traduzir<br />

para o chinês os “Elementos de Geometria”, de Euclides, os “Exercícios Espirituais”, de<br />

Santo Inácio, bem como a versão latina dos “Quatro Livros”. 274<br />

Ricci, reconhecido como sábio do Ocidente, discutia com os letrados chineses<br />

qualquer assunto de natureza intelectual. Mas, não obstante o respeito e a admiração que<br />

nutriam pela sua erudição, continuavam a associar os padres, que envergavam o seu<br />

hábito religioso, aos monges budistas. Ricci percebeu ser necessária uma mudança.<br />

Aproveitou sua ida a Macau, em 1592, para discutir, com Valignano, o abandono do<br />

hábito religioso. Valignano acatou sua argumentação a autorizou a mudança de hábito<br />

que tornou-se efetiva quando, em 1595, Ricci entrou em Nanquim. Foi nessa cidade<br />

273 Idem, p. 32.<br />

274 Os quatro livros são: Anacletos de Confúcio (Lunyu), A Grande Escola (Xue), O Livro de Mêncio<br />

(Mengzi) e A Doutrina do Meio (Zhongyong).


que, pela primeira vez, se apresentou como letrado do Ocidente, passando a vestir-se de<br />

seda e a deslocar-se em liteira. 275<br />

Não precisamos ir mais longe para caracterizar o quadro contra o qual investiram<br />

os franciscanos. Em primeiro lugar, os mendicantes, bem como alguns membros da<br />

Companhia de Jesus, não endossavam o método de acomodação defendido por Ricci.<br />

Apesar da polêmica ter-se iniciado no Japão, foi na China que se tornou mais aguda,<br />

após a morte do seu maior incentivador, o Padre Ricci. Portanto, se, de um lado,<br />

tínhamos um grupo convicto da perfeita conciliação entre a cultura clássica chinesa e o<br />

cristianismo, de outro havia quem rejeitasse toda e qualquer semelhança entre as antigas<br />

concepções chinesas e as da Bíblia.<br />

Neste alargado leque de posições, a discussão sobre a prática missionária, na<br />

China, no ano de 1610 e 1620, abrangia temas como a adoção dos termos chineses mais<br />

adequados para designar o nome de Deus e a natureza das cerimônias celebradas em<br />

honra de Confúcio, dos defuntos e dos antepassados, mas também a promoção do clero<br />

nativo, a celebração da liturgia em chinês e, ainda, questões menores, como o uso da<br />

seda, do traje dos letrados chineses e do palanquim adotado por Ricci e recomendado<br />

aos missionários que se lhe seguiam. 276<br />

Os franciscanos também acusavam os jesuítas de se envolverem com “grosso<br />

comércio”, alcançando grandes lucros com o negócio da seda trazida da China e<br />

vendida no Japão. Segundo as palavras de Valignano, Frei Martin – “que tão bem sabe<br />

afear e exagerar” – acusa, infundadamente, que “os Padres da Companhia do Japão de<br />

Pregadores do Evangelho, se fizeram mercadores” 277 e compara a casa dos jesuítas em<br />

275 MARTINS <strong>DO</strong> VALE, .A. M. Op. cit., p. 36.<br />

276 Sobre a querela dos ritos, recomendamos a leitura do Capítulo A Querela dos Ritos Chineses e a<br />

Legação do Cardeal de Tournon, in MARTINS <strong>DO</strong> VALE, A. M. Op. cit., pp. De 126 a 250.<br />

277 Apologia de Valignano, fl. 89.


Nagasaqui à “aduana de Sevilha”. 278 Valignano não nega que, de fato, os jesuítas,<br />

através de seus procuradores, adquiriam do comércio da seda as rendas necessárias para<br />

financiar a sua ação missionária no Japão, já que não poderiam depender apenas das<br />

provisões da Coroa. Ao longo de todo o capítulo 17, Valignano limita-se a justificar que<br />

as tais rendas não eram tão vultosas quanto diziam os franciscanos.<br />

Cabe notar que as mesmas acusações sofreram os jesuítas, no Maranhão, não<br />

pelos franciscanos, mas pelo Governador Geral, na época pombalina. Lá eram acusados<br />

de grosso comércio, no seu armazém do Colégio de São Luís, antes mesmo de os<br />

produtos chegarem à aduana, implicando em grandes prejuízos para a Fazenda real,<br />

como mais tarde trataremos, em parte mais própria.<br />

Nesse contexto de polêmica, os franciscanos, em oposição aos métodos<br />

empregados pelos jesuítas, afirmam sua prática missionária baseada nos mesmos<br />

padrões aprendidos e praticados, ao longo dos séculos, desde o tempo em que o próprio<br />

fundador, São Francisco de Assis, foi para entre os muçulmanos. Nessa direção vão as<br />

palavras de Frei Jerônimo de Jesus:<br />

“(...) a pobreza evangélica e a ‘descalcez’ de São Francisco é<br />

muito boa e ainda melhor para a pregação do Evangelho no<br />

Japão, do que a sabedoria e a riqueza(...); e que mais movem os<br />

pés descalços, o hábito remendado e a renúncia do ouro e da<br />

prata, que tudo quanto os homens podem com prudência<br />

dizer”. 279<br />

Em outro trecho, Frei Jerônimo deixa vir à tona os antigos ideais espirituais,<br />

retomados pelos frades reformados no movimento da estrita observância, pouco afeitos<br />

ao cultivo das letras, ao uso do dinheiro e à posse de bens, por não se coadunarem com a<br />

perfeição evangélica que se devia buscar através dos rigores de uma vida ascética e<br />

pobre, tanto no aspecto individual quanto comunitário.<br />

278 Aplogia de Valignano, fl. 90.


“A virtude supõe penitência e vida de muita austeridade, míngua<br />

e necessidade, e de tudo isto está muito longe a Companhia,<br />

porque como professam letras, e as letras necessitam de regalo<br />

corporal, e com este não pode haver muita cruz, e sem muita cruz<br />

não há muita perfeição (...)”. 280<br />

Finalmente, o frade franciscano opõe as metodologias empregadas pelos dois<br />

grupos rivais, destacando que formas de proceder tão díspares provocam a dúvida e o<br />

descrédito:<br />

“E assim isto causou tanta novidade no Japão, como se pode crer<br />

causaria ver em gente religiosa e pregadora tão diversos modos e<br />

maneiras. Ver a Companhia com grandes tratos e mercancias;<br />

ver os religiosos descalços e sem dinheiro; ver a Companhia<br />

andar em liteiras e ombros de homens; ver os frades andar a pé<br />

descalços, ver uns em poderosos cavalos com muitos criados<br />

armados de espada e lança, e ver outros andar a pé, vestidos de<br />

sacos remendados e rotos. Daqui levantavam os japoneses<br />

algumas dúvidas; e a primeira dúvida era, se éramos todos de um<br />

Deus”. 281<br />

É preciso tomar muito cuidado em terreno tão cheio de armadilhas, pois, como<br />

vimos, anteriormente, a cobiça e a avidez são acusações reproduzidas de século para<br />

século, e caracterizaram um dos aspectos recorrentes do chamado “mito jesuíta”. A<br />

mesma acusação, com argumentos idênticos, será formulada contra os judeus. Antes da<br />

crítica franciscana, os jansenistas, antigos opositores dos jesuítas, já desde o tempo da<br />

criação da Companhia, atribuem-lhes desmesurado espírito de posse e amor pelas<br />

riquezas. 282<br />

Por sua vez, os franciscanos, através dos seus textos, procuraram, claramente,<br />

opor a “prudência carnal”, atribuída aos jesuítas, à “loucura espiritual”, encarnada<br />

279<br />

FREI JERÔNIMO DE JESUS. Restaurador das Missões do Japão. Suas Cartas e Relações (1595-<br />

1604), Padre Lorenzo Pérez, OFM (Editor), Florença: Typ. Collegii S. Bonaventura, 1929, p. 53.<br />

280<br />

Idem, p. 97.<br />

281<br />

Idem, pp. 77s..<br />

282<br />

Segundo a legenda negra que dá origem ao mito jesuíta, as riquezas são adquiridas pela concorrência<br />

desleal feita ao comércio, ou simonia, mas também através da espoliação das famílias, apossando-se dos


pelos filhos de São Francisco, ou, conforme outras categorias do Evangelho, mostrar<br />

que uns agiam “segundo a carne”, e outros, “segundo o espírito”. A origem dessa pecha<br />

atribuída aos jesuítas advém da fórmula encontrada pela Companhia para o<br />

financiamento das missões.<br />

CAPÍTULO IV<br />

IV – Dois métodos, dois modos de pensar<br />

“Bem mostra a experiência o espírito de Deus, que o movia, porque ainda que<br />

os Colégios da Bahia e do Rio de Janeiro têm fundação de El-Rei, contudo era<br />

impossível sustentarem-se com ela, se não foram as terras e vacas, que o Pe.<br />

Nóbrega com tanta caridade foi granjeando, que é a melhor sustentação que<br />

despojos dos órfãos e das viúvas, e da herança dos jovens noviços que entram para a Companhia. Cf.<br />

LEROY, Michel. O Mito Jesuíta: de Béranger a Michelet, Lisboa: Roma Editora, 1999, p. 131.


agora têm, com que se criam tantos Irmãos, que fazem tantos serviços a Deus<br />

no Brasil”. Pe. José de Anchieta<br />

“Ordeno a todos os meus irmãos, tanto clérigos como leigos, ao irem pelo<br />

mundo, ou morarem em lugar fixo, que de modo algum criem animal, nem<br />

junto a si mesmos, nem com outra pessoa, nem de qualquer outra forma.” São<br />

Francisco de Assis<br />

4.1. As Estratégias de Financiamento das Missões Jesuítas<br />

A Companhia de Jesus pode ser classificada entre as ordens religiosas<br />

mendicantes. As próprias Constituições da Companhia previam o recurso à esmola,<br />

como forma de subsistência da comunidade, ao modo dos demais institutos<br />

mendicantes: “Devem estar prontos a mendigar de porta em porta quando a obediência<br />

ou a necessidade o exigirem”. As Constituições também instituíram a função de<br />

esmoler, “uma ou mais pessoas encarregadas de pedir esmolas para sustento dos<br />

membros da Companhia”. 283<br />

Quanto à pobreza, as Constituições eram rigorosas e dispunham de um artigo<br />

cautelar para que a inspiração e as ordens instituídas pelos primeiros fundadores não<br />

pudessem ser alteradas ou relaxadas. Para se evitarem “as inovações não conformes ao<br />

seu primitivo espírito (...) todos os que nesta Companhia fizerem a profissão hão-de<br />

prometer nada alterar do referente à pobreza nas Constituições, a não ser para tornar<br />

mais rigorosa, se se vir no Senhor que as circunstâncias o pedem”. 284<br />

As mesmas Constituições vedavam que as casas ou igrejas possuíssem rendas<br />

sob nenhum título 285 , nem sequer bem algum, nem em particular nem em comum 286 , e<br />

todos que nelas habitassem deveriam viver de esmolas. 287 De modo análogo às demais<br />

ordens mendicantes, não era lícito pedir ou aceitar “estipêndio nem esmola alguma, em<br />

283 SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Constituições, nº 569.<br />

284 Idem, nº 553.<br />

285 Idem, nº 555.<br />

286 Idem, nº 561.<br />

287 Idem, nº 560.


ecompensa de missas, confissões, sermões, lições sacras, visitas, ou qualquer outro<br />

ofício”. 288 Recomendava, ainda, que não houvesse caixas para depósito de esmolas nas<br />

igrejas “para evitar toda a aparência de cobiça”. 289<br />

As Constituições preocupavam-se até com detalhes mais sutis, coibindo a prática<br />

“de fazer-se a pessoas importantes pequenos presentes que se costumam oferecer para<br />

obter delas coisas maiores”, bem como se abster “de visitas a tais pessoas”, salvo por<br />

motivos apostólicos. 290 E, “para que a pobreza seja mais bem guardada em toda a sua<br />

integridade”, vedou-se que membros da Companhia, ou casas, ou igrejas ou colégios,<br />

recebessem heranças dos professos ou coadjutores, o que, até à 1ª Congregação Geral da<br />

Companhia, era lícito se permitir. 291<br />

Os mesmos rigores compatíveis com a pobreza evangélica eram postos pelas<br />

Fórmulas do Instituto da Companhia de Jesus, aprovadas por Carta Apostólica de Paulo<br />

III, em 1540, e confirmadas, com alterações, por Carta Apostólica de Júlio III, em 1550.<br />

Assim se expressam as Primeiras Fórmulas de 1540:<br />

“Sabemos nós por experiência, ser a vida tanto mais alegre, pura<br />

e apta para a edificação do próximo, quanto mais afastada de<br />

todo contágio da avareza e quanto mais semelhante for à pobreza<br />

evangélica; e porque sabemos que Nosso Senhor Jesus Cristo aos<br />

seus servos, que procuram apenas o reino de Deus, há de dar o<br />

necessário para a alimentação e o vestido, façam todos e cada<br />

um voto de perpétua pobreza, declarando que não só em<br />

particular mas nem mesmo em comum, podem adquirir para a<br />

sustentação e uso da Companhia, qualquer direito civil a<br />

quaisquer bens estáveis, frutos ou rendimentos; antes se<br />

288 Idem, nº 565.<br />

289 Idem, nº 567.<br />

290 Idem, nº 568.<br />

291 Idem, 572. A 1ª Congregação Geral suprimiu a seguinte declaração que Santo Inácio tinha<br />

acrescentado a esse número: “O fato de não herdar nem possuir nada como próprio, há-de ser<br />

universalmente observado. Contudo, se algum, impelido pela devoção e pelo desejo santo de maior<br />

glória, antes da profissão tivesse obtido da Sé Apostólica a faculdade de herdar – ele ou a casa onde fez<br />

a profissão – isso não seria tido como contrário a esta Constituição, nem ao seu espírito, contanto que<br />

não fosse para seu uso pessoal, mas para obras pias e de obrigação, remetendo-se tudo ao Superior<br />

Geral”. Esse instrumento inaciano valeu aos jesuítas a pecha de serem caçadores de heranças e de<br />

espólios, para o seu enriquecimento.


contentem em usar somente das coisas que lhes vierem a ser<br />

dadas, para satisfazer às sua necessidades”. 292<br />

A única exceção eram os colégios, pois, uma vez que estavam autorizados a “ter<br />

rendas, frutos ou propriedades, para serem aplicados ao uso e necessidades dos<br />

Estudantes”. 293<br />

Como todas as demais ordens sob o regime do padroado português, a<br />

Companhia de Jesus assegurava o sustento de seus membros e o financiamento de suas<br />

atividades missionárias através do provisionamento direto da Coroa ou através de<br />

impostos criados para esse fim. No caso brasileiro, a Coroa consignava uma verba<br />

mensal de um cruzado para o sustento de cada missionário, fornecia víveres e apoiava a<br />

construção de templos, residências e colégios. Apesar do apoio oficial e particular do<br />

governador-geral e da generosidade de alguns colonos, nem sempre se obtinham os<br />

recursos suficientes para uma mais rápida expansão das atividades missionárias. Além<br />

do que tornava a Companhia muito dependente da vontade e das disponibilidades das<br />

autoridades régias.<br />

Essa fórmula de financiamento oficial desagradava ao Padre Nóbrega, primeiro<br />

Provincial da Companhia no Brasil (1549-1559). Percebeu que as crescentes<br />

necessidades de custeio, tais como construção de igrejas e de casas, sustento dos<br />

meninos órfãos, provimento de vestuário, de ferramentas e de artigos metálicos para as<br />

aldeias de índios, e de outros bens, exigiam outras fontes de renda. Acabou, então, por<br />

aceitar terras cedidas pela Coroa, responsabilizando-se os padres da Companhia pelo<br />

seu arroteamento e, com a venda dos produtos excedentes, especialmente mandioca e<br />

gado, obter os recursos adicionais para financiar as suas atividades missionárias. Foi<br />

com esse objetivo que Tomé de Sousa, em 1550, concedeu ao Colégio da Bahia uma<br />

292 Fórmula do Instituto da Companhia, dada pelo Papa Paulo III na Carta Apostólica Regimini Militantis<br />

Ecclesiae, em 27 de setembro de 1540, nº 7.


primeira sesmaria, chamada de Água dos Meninos, doação confirmada aos jesuítas pelo<br />

terceiro Governador-Geral, Mem de Sá, a 30 de setembro de 1569. 294<br />

A posse de terras infligia à Companhia um importante problema. Os padres, até<br />

1553, em número de dez, não podiam dedicar-se pessoalmente aos trabalhos agrícolas e<br />

pecuários, nem havia homens livres a contratar. Optaram pelo trabalho escravo. Como<br />

não era conveniente utilizar mão-de-obra indígena, restou que pedissem ao Rei, Dom<br />

João III, em carta datada de 14 de setembro de 1551, que lhes desse “alguns escravos da<br />

Guiné à casa para fazerem mantimentos, porque a terra é tão fértil, que facilmente se<br />

manterá e vestirão muito meninos, se tiverem alguns escravos que façam roça de<br />

mantimentos e algodoais”. 295 Se, num primeiro momento, essa solução levantava<br />

escrúpulos morais, parece que os jesuítas logo os superaram. Assim é que Nóbrega, em<br />

carta dirigida ao Provincial, em 10 de julho de 1552, pede mais alguns negros da Guiné:<br />

“Se El-Rei favorecer [o Colégio da Bahia] e lhe fizer igreja e casas, e mandar dar os<br />

escravos que digo (e me dizem que mandam mais escravos a esta terra, de Guiné; se<br />

assim for, podia logo vir provisão para mais três ou quatro além dos que a casa<br />

tem)”. 296<br />

Com a chegada, ao Brasil, do Padre Luís da Grã, acompanhado do segundo<br />

Governador-Geral, Duarte da Costa, a 13 de julho de 1533, as estratégias de Nóbrega<br />

começaram a ser questionadas. O Padre Grã, antigo reitor do Colégio de Coimbra, e<br />

nomeado adjunto do Provincial do Brasil, possuía idéias bastante diferentes em relação<br />

ao seu superior hierárquico. Menos pragmático que Nóbrega e defensor de métodos<br />

pautados pelo rigor, ascetismo e pobreza, segundo o espírito mais genuíno das<br />

293<br />

Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, dada pelo Papa Júlio III, na Carta Apostólica Exposcit<br />

Debitum, em 21 de julho de 1550, nº 8.<br />

294<br />

Vale conferir o trabalho de Jorge do Couto, intitulado “As Estratégias de Implantação da Companhia<br />

de Jesus no Brasil, São Paulo: Universidade de São Paulo, outubro de 1992, em quem nos baseamos para<br />

essa parte.<br />

295<br />

Cartas do Brasil e Mais Escritos do Padre Manuel da Nóbrega (Opera Omnia), introdução e notas<br />

históricas e críticas do Padre Serafim Leite, Coimbra: 1955, p. 101.


Constituições jesuíticas, o Padre Grã não considerava útil a existência de colégio de<br />

meninos órfãos, reprovava o fato de a Companhia possuir bens de raiz, dedicar-se a<br />

atividades agrícolas e à criação de animais e utilizar mão-de-obra escava; também não<br />

concordava com o ritmo demasiado rápido de evangelização e de batismo dos<br />

indígenas.<br />

A oposição do Padre Luís da Grã provocou a inflexão da estratégia missionária e<br />

expansionista até então adotadas. Nóbrega parece ter acolhido, ao menos por um tempo,<br />

as posições do seu confrade. A mudança dos métodos pode ser verificada em carta<br />

dirigida por Nóbrega ao Provincial de Portugal, em maio de 1556, para que<br />

intercedesse, junto ao Rei Dom João III, no sentido de que o apoio da Coroa às<br />

atividades missionárias dos jesuítas fosse facultado em dízimos e não através da<br />

concessão de terras, cujo aproveitamento implicava o recurso à mão-de-obra escrava. 297<br />

No entanto, as dificuldades financeiras da Coroa parecem não ter permitido outras<br />

fórmulas de auxílio além das já concedidas.<br />

Cercado do apoio de muitos companheiros, o Padre Nóbrega resolveu dar<br />

continuidade aos seus métodos. Em carta datada de 2 de setembro de 1557, comunicou<br />

ao provincial de Portugal, com o parecer favorável dos padres do Colégio da Bahia, que<br />

tinha decidido aceitar todas as doações feitas à Companhia, “até palhas”. Pedia, em<br />

seguida, uma “boa dada de terras” e escravos da Guiné. Os negros cultivariam as terras,<br />

criariam gado, pescariam, colheriam vegetais e frutos e obteriam água para abastecer os<br />

colégios, liberando os irmãos dessas tarefas e tornando-os disponíveis para outras<br />

atividades diretamente relacionadas com a missionação. 298<br />

296 Cf. idem, p. 121-123.<br />

297 Idem, pp. 207-215.<br />

298 Idem, pp. 260-278.


Em janeiro de 1560, porém, de acordo com as instruções recebidas de Lisboa,<br />

Nóbrega entregou o governo provincial ao Padre Luís da Grã (1559-1571) e partiu, um<br />

tanto desgostoso, para São Vicente, na companhia do terceiro Governador-Geral, Mem<br />

de Sá. Como era de se prever, a orientação imprimida pelo segundo provincial divergia<br />

substancialmente daquela que, até então, tinha sido delineada pelo fundador da<br />

Província do Brasil.<br />

Estruturavam-se, assim, duas correntes no seio da Província do Brasil. A<br />

primeira, encabeçada pelo Padre Manuel da Nóbrega, adotava uma atitude pragmática e<br />

considerava que a expansão da Companhia implicava a posse de bens de raiz e o recurso<br />

à mão-de-obra escrava; a segunda, cuja figura mais representativa era o Padre Luís da<br />

Grã, privilegiava a via da pobreza e do ascetismo, recusando a possibilidade de a<br />

Companhia aceitar bens de raiz e recorrer a utilização de escravos, quando muito, em<br />

caso de manifesta necessidade, ao emprego de trabalhadores assalariados.<br />

A carta escrita por Nóbrega, na Vila de São Vicente, em 12 de julho de 1561, e<br />

endereçada ao Geral da Companhia, Padre Diego Laínez (1558-1565), expunha as suas<br />

divergências de opinião com o Padre Grã. É, no mínimo, curioso o que lemos ao longo<br />

da missiva. Nóbrega, mesmo não tendo esse objetivo, acaba por caracterizar dois<br />

métodos distintos de empreender as missões: um, o franciscano; outro, o jesuítico.<br />

“O Padre Luís da Grã parece querer levar isso por outro espírito<br />

muito diferente e quer edificar a gente portuguesa destas partes,<br />

por via da pobreza, e converter esta gente da mesma maneira que<br />

S. Pedro e os Apóstolos fizeram e como S. Francisco ganhou<br />

muitos por penitência e exemplo de pobreza, e esta opinião me<br />

persuadia sempre, quando eu tinha o cargo, e ainda agora<br />

desejava introduzi-lo quanto fosse possível, e sempre teve<br />

escrúpulos, porque é ele muito zelador da santa pobreza, a qual<br />

queria ver em não possuirmos nós nada, nem granjearias, nem<br />

escravos, pois éramos poucos, e sem isso com as esmolas<br />

mendigadas nos podíamos sustentar, repartidos por muitas partes<br />

e desejava casas pobrezinhas. (...) Estamos em terra tão pobre,<br />

que nada se ganha com ela, porque é gente tão pobre, que por<br />

mais pobres que sejamos, somos mais ricos que eles. Não é


poderosa toda a gente do Brasil a sustentar-nos aos da<br />

Companhia de vestido, ainda que seja mais vil que a de frades de<br />

S. Francisco”.<br />

Nóbrega sugere, então, a adoção de outro método que mais se coaduna às<br />

necessidades dos jesuítas.<br />

“Esta opinião do Padre [Grã] me fez muito tempo não firmar bem<br />

o pé nestas coisas, até que resolvi e sou de opinião (salva sempre<br />

a determinação da santa obediência) de tudo o contrário, e me<br />

parece que a Companhia deve ter e adquirir justamente meios,<br />

que as Constituições permitem, quanto puder para nossos<br />

Colégios e Casas de Rapazes; e, por muito que tenham, farta<br />

pobreza ficará aos que discorrerem por diversas partes. E não<br />

devemos de querer que sempre El-Rei nos proteja, que não<br />

sabemos quanto isso durará, mas por todas as vias se perpetue a<br />

Companhia nestas partes, de tal maneira, que os operários<br />

cresçam e não ninguém”.<br />

Para impor seu argumento, Nóbrega demoniza o primeiro método: “E temo que<br />

fosse esta grande invenção do inimigo vestir-se de santa pobreza para impedir a<br />

salvação de muitas almas”.<br />

A argumentação de Nóbrega demoveu o Padre Geral, Diego Laínez, que,<br />

aprovando as medidas tomadas pelo ex-Provincial do Brasil, reconheceu a utilidade de a<br />

Companhia possuir bens de raiz e desenvolver atividades econômicas, designadamente<br />

a criação de gado, como forma de assegurar o sustento dos meninos índios e mamelucos<br />

dos colégios, além dos padres, irmãos e escravos. Também a posse de escravos ficou em<br />

suspenso.<br />

Em verdade, ainda não havia consenso sobre a estratégia de financiamento da<br />

Companhia. As divergências atravessaram todo o governo do Padre Laínez e,<br />

novamente, foram postas em causa pelo seu sucessor, no Generalato, Padre Francisco de<br />

Borja (1565-1572) que, em cartas datadas de 30 de junho e 22 de setembro de 1567,<br />

dirigidas ao Visitador da Província do Brasil, Padre Inácio de Azevedo, manifestou-se


de opinião contrária: “Que se não criassem gado para vender; sobretudo agora que El-<br />

Rei deu a dotação da redízima, e que vissem no Brasil se era possível passar sem tais<br />

encargos”. 299<br />

O impasse que se arrastava sem solução levou à convocação de uma<br />

Congregação Provincial, em Roma, no ano de 1568. O conclave elaborou um postulado<br />

em que se reafirmava a necessidade vital de os colégios da Companhia possuírem<br />

fazendas para a criação de gado como forma de garantir o financiamento das atividades<br />

missionárias. A Congregação aprovou, ainda, a permissão aos superiores das casas e<br />

colégios para terem tantas vacas e escravos quanto fossem necessários, se não houvesse<br />

outro meio de se sustentarem sem isso. 300 Segundo a opinião do Beato José de<br />

Anchieta, que desempenhou o cargo de Provincial do Brasil, entre 1577 e 1587, “bem<br />

mostra a experiência o espírito de Deus que o movia [ao Padre Nóbrega], porque<br />

ainda que os Colégios da Bahia e do Rio têm fundação de El-Rei, contudo era<br />

impossível sustentarem-se com ela, se não foram as terras e vacas”. 301<br />

Em 1576, a Congregação Provincial decidiu revogar a proibição imposta pelo<br />

Padre Geral Francisco de Borja de os colégios possuírem escravos índios. 302 Os negros,<br />

como vimos, já os tinham. Não havendo mais nenhum tipo de impedimento, todas as<br />

casas dos jesuítas passaram a ter ao seu serviço escravos negros e índios.<br />

O próprio Padre Serafim Leite chamou a atenção para as reações que partiram de<br />

dentro da comunidade inaciana, por causa da abundância de trabalhadores escravos.<br />

Segundo Leite, talvez no intento de minimizar o ocorrido, classificou-as como “uma<br />

crise de escrúpulos nos confessores ou moralistas“. 303 Dentre eles destacaram-se os<br />

Padres Miguel Garcia e Gonçalo Leite.<br />

299<br />

Padre Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo I, op. cit., p. 176.<br />

300<br />

Idem.<br />

301<br />

Idem.<br />

302<br />

Padre Serafim Leite. História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo II, op. cit., p.350.<br />

303 Idem, p. 227.


O primeiro sustentava que nenhum escravo da África ou do Brasil era<br />

justamente cativo. O Padre Garcia recusou-se, portanto, a confessar a quem quer que<br />

fosse, incluindo os Padres de casa. O descontentamento do Padre Garcia fica evidente<br />

nesta sua carta escrita em 26 de janeiro de 1583:<br />

“A multidão de escravos, que tem a Companhia nesta província,<br />

particularmente neste Colégio [da Bahia], é coisa que de<br />

maneira nenhuma posso tragar, maxime, por não poder entrar no<br />

meu entendimento serem licitamente havidos. (...) E dos da terra,<br />

entre certos e duvidosos, é tão grande o número, que a mim me<br />

enfada; e com estas coisas e com ver os perigos da consciência in<br />

multis, nesta terra, alguma vez me passou por pensamento que<br />

mais seguramente serviria a Deus e me salvaria in saeculum que<br />

em Província, onde vejo as coisas que vejo”. 304<br />

O melindre dessa questão ensejou a consulta à Mesa da Consciência, os<br />

principais juristas e moralistas da Europa, dentre os quais a Luís de Molina (1535-<br />

1600), antigo professor das Universidades de Coimbra e de Évora e uma das glórias<br />

intelectuais da Companhia. Foram todos de parecer que poderia haver cativeiros justos.<br />

Resultado vindo, veio também a ordem para que o Padre Miguel Garcia retornasse à sua<br />

Província de origem, na Metrópole, por inadaptação. 305<br />

Outro jesuíta a contestar a escravatura foi o Padre Gonçalo Leite, primeiro<br />

professor de Artes no Brasil. Como seu companheiro, também teve de voltar à Europa<br />

“por inadaptação semelhante à do Padre Garcia”. 306 Já, de volta a Portugal, em 20 de<br />

junho de 1586, escreve:<br />

304 Idem, pp. 227s..<br />

305 Idem, p. 227.<br />

306 Idem, p. 228.<br />

“Todos os Padres do Brasil andam perturbados e inquietos na<br />

consciência com muitos casos acerca de cativeiros, homicídios e


muitos agravos, que os brancos fazem aos Índios da terra. (...) de<br />

outra maneira, bem se podem persuadir os que vão ao Brasil, que<br />

não vão a salvar almas, mas a condenar as suas. Sabe-se Deus<br />

com quanta dor de coração isto escrevo, porque vejo os nossos<br />

Padres confessar homicidas e roubadores da liberdade, fazenda e<br />

suor alheios, sem restituição do passado, nem remédio dos males<br />

futuros, que da mesma sorte cada dia se cometem”. 307<br />

As necessidades crescentes de cobrir as despesas fizeram os jesuítas a se lançar<br />

na indústria açucareira, tornando-se grandes plantadores de cana e senhores de<br />

engenhos. Todavia, alguns Padres e irmãos temeram escândalo na terra e grande perda<br />

de seu crédito e de sua reputação. Fez-se eco desses temores o Padre Leonardo Armínio,<br />

em carta datada de 24 de agosto de 1593, acrescentando que “alguns irmãos nunca<br />

pensaram que haviam de ver com os seus olhos a Companhia lançar mão de<br />

semelhante recurso”. 308<br />

O Padre Geral Cláudio Aquaviva, em carta ao provincial do Brasil, Pero<br />

Rodrigues, um ano depois, a 22 de agosto de 1594, respondeu:<br />

“Escrevem-me que há desedificação em que o Colégio da Bahia<br />

faça canaviais para remédio de suas necessidades. De cá se<br />

escreveu que isto não repugnava nem às Constituições nem à<br />

pobreza dos Colégios. Mas V.ª R.ª verá lá e consulte se pela<br />

ofensão que disso há, ou pelo modo, se porventura fazem lavrar<br />

aos naturais da terra contra a sua vontade, ainda que se lhes<br />

pague, conviria deixar essa lavrança, e nos avise”. 309<br />

Testemunha Serafim Leite que, ao lado da transcrição da carta, no livro das<br />

Ordenações do Colégio, que diz se conserva ainda, está uma nota sobre canaviais: “Sem<br />

desedificação os têm os frades de S. Bento e do Carmo”; e a seguir: “Ainda os não<br />

tínhamos a este tempo; mas os tomamos em agosto de 1601”. 310 Se assim é, e já não<br />

eram os únicos, tudo “justificado”.<br />

307 Idem, p. 229.<br />

308 Padre Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo I, p. 182.<br />

309 Idem.<br />

310 Idem.


Evidente que a Companhia, diante de tantos precedentes, quer aonde fosse, seja<br />

nas Américas, na Ásia ou na África, de acordo com a mesma pragmática, se acomodaria<br />

ao império das realidades.<br />

Luís da Grã, Miguel Garcia, Gonçalo Leite, Leonardo Armínio são os<br />

representantes do lado mais fraco, vencido pelo pragmatismo da empresa colonial. São<br />

as vozes dissonantes que ousaram afrontar o pensamento único que venceu e continua a<br />

vencer.<br />

A Companhia de Jesus fez a opção de se integrar no sistema produtivo da<br />

América Portuguesa, aceitando as estruturas coloniais, como forma de financiar<br />

autonomamente as suas atividades missionárias e, também, com o objetivo de assegurar<br />

uma estratégia de expansão que garantisse a auto-suficiência econômica de cada<br />

colégio. José Carlos Meihy afirma que “antes mesmo de darem à catequese os jesuítas<br />

se viram ante um sério impasse: dominar o meio colonial, e dominar implicava em<br />

adesão aos intentos colonizadores”. 311 Justificou o Padre Serafim Leite que “eram as<br />

circunstâncias imperativas da Colônia a exigir dos Padres uma acomodação ou<br />

transigência com as realidades”. 312<br />

Nos idos do século XVII, novas polêmicas envolvendo acusações de que os<br />

colégios da Companhia, na Bahia e no Rio de Janeiro, possuíam muitas terras,<br />

suscitaram reações de padres que pediam aos superiores licenças para vender algumas<br />

fazendas que julgavam ociosas e de difícil administração pela larga extensão das<br />

propriedades. No Rio de Janeiro, as terras se estendiam por todo o litoral, começando<br />

pela Ilha Grande; outras fazendas se encontravam num raio de oito a cem léguas. Em<br />

verdade, os jesuítas concentraram suas atividades na fazenda de Santa Cruz, e tornava-<br />

se cada vez mais difícil gerir as terras de Goitacazes, de Macaé e de Macacu.<br />

311 MEIHY, José Carlos. A Presença do Brasil na Companhia de Jesus: 1549-1649, Tese de Doutorado<br />

apresentada a USP - Universidade de São Paulo, no ano de 1975, p. 69.


O Padre Antônio Forte, que foi reitor dos Colégios da Bahia e do Rio de Janeiro,<br />

além de Visitador da Província, por duas vezes, chegou a sugerir que o gado dessas<br />

fazendas fosse vendido e o resultado aplicado a juros em Portugal; no entanto, o<br />

religioso era contrário à alienação das terras, e criticava os “padres modernos”, que<br />

pouco ou quase nada faziam para defender os bens dos colégios, querendo remediá-los e<br />

os “reduzirem a mosteiro de Capuchos”. 313 Novamente, os próprios jesuítas recorrem<br />

a comparações com os franciscanos, num tom depreciativo, para diferençar o seu modo<br />

de operar, considerado o mais eficaz e apropriado às exigências missionárias da<br />

Colônia.<br />

Para termos idéia da dedicação dos jesuítas às empresas agropastoris e<br />

manufatureiras, vale destacar o nível das atividades desenvolvidas na fazenda de Santa<br />

Cruz, no Rio de Janeiro, uma das sete propriedades da Companhia, no Estado. 314<br />

Segundo o interessante estudo de Maria Laura Telles 315 , a fazenda de Santa Cruz,<br />

pertencente ao Colégio do Rio de Janeiro, foi um enorme latifúndio sustentado por mão-<br />

de-obra escrava, mas se diferenciou do padrão dominante na Colônia, por ser um<br />

complexo econômico que aliou a atividade pecuária em grande escala a uma expressiva<br />

produção agrícola e a um conjunto de manufaturas de apoio de aprimorado nível<br />

técnico. O tipo de pecuária que os Padres Jesuítas implantaram em Santa Cruz teve<br />

características de organização muito modernas que ultrapassavam sua própria época. O<br />

selecionado gado vacum chegou a alcançar treze mil cabeças distribuídas em vinte e<br />

312 Padre Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, Tomo I, p. 182.<br />

313 ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos: O Cotidiano da Administração dos Bens Divinos, São<br />

Paulo: EDUSP, 2004, p. 191. Grifo nosso.<br />

314 Eram elas: Iguaçu (1565), Macacu ou Papucaia (1571), São Francisco Xavier ou Fazenda do Saco<br />

(Niterói), Santa Cruz (1596), Macaé (1630), Campos dos Goitacazes (1648), Santo Inácio de Campos<br />

Novos (Aldeia de São Pedro de Cabo Frio).<br />

315 TELLES, Maria Laura Mariani da Silva. A Conquista da Terra e a Conquista das Almas, in Actas<br />

do Congresso Internacional de História: Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, Vol. II –<br />

África Oriental, Oriente, Brasil, Braga: Universidade Católica Portuguesa, Comissão Nacional para as<br />

Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Fundação Evangelização e Culturas, 1993, pp. 647-<br />

674.


dois currais. O rebanho era sempre aprimorado pela freqüente introdução de touros de<br />

raça especial.<br />

Em Santa Cruz eram cultivados arroz, mandioca e feijão. Havia horta muito<br />

sortida e extenso pomar. Também cultivava-se algodão, cujos fins eram aproveitados<br />

por tecelãs para a fabricação de panos para o vestuário e ataduras para o hospital.<br />

Mantinha-se, ainda, a pesca para subsistência.<br />

As artes mecânicas e a produção manufaturada surgiram em face do necessário<br />

suporte operacional às atividades do grande complexo autônomo que era. Havia ferraria,<br />

carpintaria, olaria, ourivesaria, tecelagem e até um estaleiro, localizado às margens do<br />

Rio Guandu, para reparos em pequenos barcos. As oficinas alcançaram um nível de<br />

eficiência e qualidade tal que se transformaram em verdadeiras escolas de ofícios e um<br />

centro de produção fabril muito importante, exportando produtos raros na Colônia.<br />

Delas saíam madeiras cortadas, tijolos, ladrilhos, telhas e ferragens para as construções<br />

da cidade e o levantamento de fortificações, bem como materiais para obras de várias<br />

espécies, inclusive as hidráulicas e as de abertura de caminhos. 316<br />

Os Padres Jesuítas adotaram em sua Fazenda de Santa Cruz, a mão-de-obra do<br />

escravo negro, como já havia fazendo em outras propriedades. O Escrivão Pedro<br />

Henrique relata, em seu manuscrito de 1790, o que parece ter sido a origem da<br />

escravaria: “Quarenta negras da Costa da Mina que compraram os Padres as quais<br />

casaram com quarenta índios de boa idade e compleição com a condição de que os<br />

maridos trabalhariam três dias na semana no serviço da fazenda. Nos outros dias<br />

faziam roças para seu sustento”. 317 Ao iniciar a exploração da terra, os Padres<br />

induziram o nascimento de escravos para formar um contingente trabalhador conforme<br />

suas necessidades. O crescimento dessa população foi muito rápido, chegando a mais de<br />

316 FILHO. Adolpho Morales de Los Rios. Evolução Urbana e Arquitetônica do Rio de Janeiro nos<br />

Séculos XVI e XVII, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Vol. 288, pp. 223-224.


mil e seiscentas pessoas, segundo cálculos do autor do manuscrito acima citado. O<br />

inventário de 1768 indicou a existência de quatrocentas e trinta famílias de escravos.<br />

Os rendimentos anuais da fazenda eram de trinta mil cruzados, dos quais doze<br />

mil eram entregues em dinheiro ao Reitor do Colégio do Rio de Janeiro. Com o lucro<br />

restante compravam-se remédios, azeite, vinho, vinagre, panos, chapéus e abastecia-se a<br />

botica. 318<br />

Ao longo de dois séculos, os jesuítas acumularam invejável e lucrativo<br />

patrimônio: engenhos, canaviais, fazendas de criação de gado, lavouras de algodão, de<br />

fumo e de subsistência, prédios rústicos, imóveis urbanos, olarias, larga escravaria etc,<br />

tornando-se, segundo palavras de Jorge Couto, respaldado por outros estudos, a ordem<br />

religiosa mais rica do Brasil, com patrimônio estimado, em 1759, em mais de mil contos<br />

de reis. 319 Jorge Couto, a título de exemplo, estimou que, no mesmo ano da expulsão<br />

dos jesuítas, somente o patrimônio do Colégio do Recife valia mais de noventa contos<br />

de reis. 320<br />

A já citada pesquisa de Paulo de Assunção é outra relevante referência aos<br />

interessados em aprofundar a atuação econômica e administrativa da Companhia de<br />

Jesus. Afirma Assunção que “os bons resultados de algumas propriedades revelavam<br />

que os religiosos souberam trabalhar e adaptar-se às estruturas coloniais, adequando<br />

os recursos naturais e a força de trabalho à produção”. 321<br />

4.2. O movimento franciscano e sua base econômica de financiamento<br />

317<br />

CUNHA, Pedro Henrique, Notícias Curiosas e Proveitosas a Benefício da Fazenda de Santa Cruz,<br />

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1790, p. 13.<br />

318<br />

REYS, Manuel Couto. Memórias de Santa Cruz, Revista do Instituto Histórico e Geográfico<br />

Brasileiro, Tomo V, pp. 157 ss, 1943.<br />

319<br />

COUTO, Jorge. Op. cit. p. 17.<br />

320<br />

COUTO, Jorge. O Colégio dos Jesuítas do Recife e o Destino do seu Patrimônio (1759-1777),<br />

dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Vol. I, Lisboa,<br />

1990, p. 417.


Mais de trezentos anos antes da fundação da Companhia de Jesus, os<br />

movimentos iniciados por São Francisco de Assis e por São Domingos de Gusmão,<br />

apenas para citar os mais conhecidos, institucionalizaram-se como Ordens Religiosas<br />

que a história reconheceu genericamente como mendicantes. Ao menos no caso do<br />

movimento franciscano, ao contrário do que se tornou comum pensar, o recurso à<br />

esmola deveria ser apenas um meio complementar para garantir o sustento da<br />

fraternidade. O trabalho, este sim, é o meio ordinário de sobrevivência dos frades. As<br />

palavras de Francisco, em seu “Testamento”, deixam clara tal opção do movimento:<br />

“E eu trabalhava com as minhas mãos e quero trabalhar. E quero<br />

firmemente que todos os outros irmãos se ocupem num trabalho<br />

honesto. E os que não souberem trabalhar o aprendam (...) E se<br />

acaso não nos pagarem pelo trabalho vamos recorrer à mesa do<br />

Senhor e pedir esmola de porta em porta”. 322<br />

Um dos principais problemas que se apresentaram aos homens do século XII foi<br />

o do trabalho. Naquele novo ambiente citadino, marcado pelos esforços laboriosos de<br />

camponeses, artesãos e mercadores, ele adquiriu importância considerável. Para a classe<br />

burguesa emergente, o trabalho era não apenas um modo de afirmação ante a sociedade,<br />

mas especialmente um meio de aquisição de lucro.<br />

Não foi uma empresa fácil o reconhecimento da dignidade espiritual do trabalho,<br />

especialmente do trabalho do mercador, que fazia do dinheiro a sua principal ambição, e<br />

alferia lucro na troca de bens que não foram por ele produzidos. As novas classes<br />

laborais, especialmente aquelas que não se enquadravam no esquema tripartite da<br />

sociedade feudal – bellatores, oratores, laboratores – , buscavam encontrar, no plano<br />

321<br />

ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos: O Cotidiano da Administração dos Bens Divinos, São<br />

Paulo: EDUSP, 2004.<br />

322<br />

Testamento, n.º 5, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco de Assis,<br />

Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano, 2ª ed., Petrópolis: Vozes / Cefepal,<br />

1982.<br />

.


eligioso, a justificação de sua atividade, não apesar de suas profissões, mas por causa<br />

delas.<br />

A Igreja hesitava entre uma visão pessimista, apoiada no Livro do Gênesis, em<br />

que o trabalho é conseqüência direta do pecado de Adão, e uma concepção mais<br />

positiva, fundada sobre a teologia paulina e dos Santos Padres, especialmente São João<br />

Crisóstomo.<br />

Podemos dizer que o movimento franciscano está mais afinado com a concepção<br />

positiva do trabalho. Certamente, porque boa parte dos frades, inclusive o próprio<br />

Francisco, pertencia à burguesia e exercia ofícios ligados ao comércio. É dessa forma<br />

que encontramos no capítulo 7 da Regra Não-Bulada, as citações bíblicas que justificam<br />

e legitimam a opção franciscana de viver ordinariamente do trabalho: “Viverás do<br />

trabalho de tuas mãos: serás feliz e terás bem-estar” (Sl 127, 2); “Quem não quer<br />

trabalhar não coma”(2Ts 3, 10); “Cada qual permaneça naquele ofício e cargo para o<br />

qual foi chamado”(1Cor 7, 24).<br />

A Regra Não-Bulada dedica todo um capítulo ao trabalho. Esse capítulo, apesar<br />

das modificações e acréscimos recebidos, é um dos trechos mais antigos que remontam<br />

partes da “protorregula” do movimento. Na sua forma mais evoluída, e que a nós<br />

chegou, lê-se:<br />

“Os irmãos que forem capazes de trabalhar, trabalhem; e<br />

exerçam a profissão que aprenderam (...) E como retribuição<br />

pelo trabalho podem aceitar todas as coisas de que precisam,<br />

exceto dinheiro. E se for necessário, podem pedir esmolas como<br />

outros pobres. E podem ter as ferramentas necessárias ao seu<br />

ofício”. 323<br />

Tomás de Celano, primeiro biógrafo de São Francisco, descreve o cotidiano dos<br />

frades marcado por uma vida de trabalho e serviço, conforme orienta a Regra:<br />

323 Regra Não-Bulada, 7, 4-8, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco de<br />

Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano.


“Durante o dia, os que sabiam um ofício trabalhavam com suas<br />

mãos: passavam o dia num leprosário, numa casa em que<br />

achassem um emprego honesto, e lá se dispunham, com<br />

humildade e devoção, para serem os servidores de todos”. 324<br />

Conhecemos o rigor de Francisco ao desejar que os membros do seu movimento<br />

vivessem na mais estrita pobreza, sem que possuíssem nada de próprio. Esse tipo de<br />

opção radical pela pobreza torna muito significativa a concessão que a Regra faz aos<br />

membros da fraternidade que podem dispor de seus próprios instrumentos de trabalho.<br />

Possuir os instrumentos de trabalho, portanto, é conditio sine qua non para que, de fato,<br />

os frades possam prover o seu sustento mediante o trabalho.<br />

O fundador do movimento é exigente, no que se refere a esse aspecto, a ponto de<br />

expulsar da Ordem aquele que chamou de “irmão mosca”, por não ter apreço ao<br />

trabalho. Assim, o “Espelho da Perfeição”, documento do século XIV, reproduz a ira do<br />

santo:<br />

“Segue teu caminho, irmão mosca, porque queres te alimentar do<br />

trabalho dos teus irmãos e ficar ocioso na vinha do Senhor. És<br />

como um zangão ocioso e estéril que nada produz, porque não<br />

trabalha e, contudo, se nutre do trabalho e do ganho das<br />

laboriosas abelhas”. 325<br />

Francisco e seu movimento concebem o trabalho, evidentemente, a partir de sua<br />

ótica religiosa. O trabalho é, antes de qualquer coisa, uma “graça” de Deus (Os irmãos<br />

aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar, trabalhem), 326 porque o homem e toda a<br />

sua atividade são vistos, desde sua origem, como “dom gratuito de Deus”. Tendo<br />

concebido o trabalho como “graça”, os franciscanos se fizeram testemunhas de uma<br />

atividade humana que dá preferência absoluta ao único “capital” que efetivamente pode<br />

324 Este texto da Primeira Vida de Tomás de Celano (I Celano 39) foi extraído de VÁRIOS. Itinerário<br />

Franciscano – Diretório Espiritual, Petrópolis: Vozes, 1973, p. 116.<br />

325 Espelho da Perfeição, 24.<br />

326 Assim se inicia o capítulo da Regra Bulada que trata sobre o trabalho – Regra Bulada 5, 1.


frutificar: o homem entendido como criatura de Deus. Contrapôs-se Francisco ao<br />

“produtivismo” que nascia contrário ao que ele compreendia ser o verdadeiro valor do<br />

mundo da criação: o mundo é “a mesa do Senhor”. Esta finalidade “gratuita”,<br />

atualmente social, é alcançada utilizando o pagamento pelo trabalho com intuito de<br />

formar uma sociedade na medida do homem.<br />

A concepção de trabalho do projeto franciscano é diametralmente oposta à<br />

concepção de trabalho da cidade burguesa. Enquanto para o burguês o trabalho é meio<br />

de enriquecimento e, ao mesmo tempo, atividade a ser explorada pelos detentores do<br />

capital, segundo o que, bem mais tarde, Marx designou de mais valia, fruto do trabalho<br />

alienado, os franciscanos o compreendiam como um dom de Deus, um meio de<br />

subsistência da fraternidade e um modo de prestação de serviço, sobretudo aos pobres.<br />

A partir desse ponto de vista, o movimento encara a função do trabalho.<br />

Os frades franciscanos podiam aceitar como pagamento dos trabalhos prestados<br />

tudo aquilo de que necessitavam para viver, exceto dinheiro. Na maior parte das vezes,<br />

porém, prestavam serviços aos pobres e leprosos, e esses, não tendo com que lhes pagar,<br />

obrigavam-nos a ter que apelar às esmolas, prática que certamente não foi ponto<br />

pacífico, nem para a sociedade citadina, nem tampouco no seio da comunidade<br />

franciscana, ao menos é o que se deduz a partir da inserção tardia de um capítulo da<br />

Regra que trata da esmola. O capítulo 9 tenta justificar a prática de se pedir esmolas, ao<br />

mesmo tempo em que pretende animar os frades que deveriam cumprir a dura tarefa de<br />

estender as mãos à caridade pública.<br />

Por sua vez, a cidade também não aceitou tranqüilamente “sustentar” homens<br />

que podiam trabalhar e que, na sua visão mercantil e de acumulação, fizeram a<br />

prodigalidade de distribuir aos pobres os seus bens. É o que podemos intuir nas<br />

entrelinhas de todo o capítulo em questão e, com mais ênfase, no seguinte trecho: “E se<br />

os homens os tratarem com escárnio e não quiserem dar-lhes esmolas, rendam graças a


Deus (...) E saibam que a humilhação não é imputada aos que a sofrem, mas aos que a<br />

infligem”. 327<br />

Para Flood, se os frades prestam serviços e se entregam ao trabalho para tirar da<br />

economia comunal, no sentido do seu engajamento, o necessário em alimentos, vestes e<br />

bens materiais da vida, isso não significa que aceitem as relações entre capital e<br />

trabalho, tal qual se estabeleceram em Assis, cidade-berço do franciscanismo:<br />

“Os frades permanecem em Assis (cidade e campo) sem<br />

retomarem as relações, com as pessoas e posses, que haviam<br />

declinado. Não abandonam o mundo no sentido de fazer um<br />

caminho na direção de regiões inabitadas para nelas suscitar<br />

uma nova história. Sua nítida intenção, tendo abandonado o<br />

mundo, era manter relações abertas e profundas com os homens e<br />

mulheres de seu tempo”. 328<br />

Como argumenta Flood, a posição franciscana é tão legítima quanto a dos<br />

trabalhadores do século XIX que, submetidos a um regime de exploração capitalista do<br />

trabalho, nem por isso deixam de ter consciência da sua condição de explorados, ao<br />

mesmo tempo em que possuem uma concepção de trabalho diversa daquela que têm<br />

seus patrões capitalistas. Sem essa consciência, nunca seria possível transformar as<br />

condições desse mesmo trabalho.<br />

“No momento em que um grupamento humano elabora e adota<br />

uma noção de trabalho, diferente daquela que impõe o sistema<br />

social vigente, libera seus membros das influências alienantes do<br />

relacionamento com a produção que está na base do mesmo<br />

sistema”. 329<br />

Evidente que Francisco e seus companheiros possuíam a consciência compatível<br />

com o estágio da organização da base econômica e social do seu tempo histórico. De<br />

modo que não podemos forçar ver nos franciscanos um grupo de revolucionários das<br />

estruturas sociais e econômicas vigentes. Mas não é forçoso realçar a capacidade de<br />

327 Regra Não-Bulada, capítulo 9, 7-8, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São<br />

Francisco de Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano.<br />

328 FLOOD, David. Op. cit., p. 29


intuição do movimento que se recusou a compartilhar dos esquemas sociais e<br />

econômicos vigentes, numa clara contestação ao instituído.<br />

Tal atitude de contestação fica ainda mais clara quando tratamos da recusa dos<br />

franciscanos em aceitar determinados cargos e funções explicitamente referidos no<br />

capítulo 7 da Regra Não-Bulada: “Nenhum irmão, onde quer que esteja para servir ou<br />

trabalhar para outrem, jamais seja capataz, nem administrador, nem exerça cargo de<br />

direção na casa em que serve”. 330<br />

Essas determinações podem ser resumidas a um núcleo mais simples: que os<br />

frades sejam menores e submissos a todos. Os versículos citados, ainda que se<br />

relacionem ao problema do trabalho, em realidade concernem à posição social e<br />

ideológica à qual deveriam aspirar.<br />

Não é difícil compreender a inserção desses dois versículos. Pela reputação que<br />

acabaram gozando os frades e, certamente, porque vários possuíam boa formação e<br />

eram letrados, logo foram convidados a preencher cargos de administração, de<br />

tesouraria e de chancelaria, seja nas comunas, seja em casas particulares, como foi<br />

comum acontecer em Milão, onde os Humilhados 331 eram convocados para exercer<br />

tarefas delicadas e especializadas na cidade e na administração comunal. As referidas<br />

funções eram típicas da administração pública e seu ambiente natural de exercício eram<br />

os prédios do governo.<br />

Em primeiro lugar, aceitar o desempenho dessas funções era, evidentemente, não<br />

mais ser “submisso a todos”, e, pelo contrário, estar em posição de dominação.<br />

Flood defende uma segunda razão para a recusa de ocupar tais cargos:<br />

329 Idem, pp. 30 s.<br />

330 Regra Não-Bulada, 7, 1-2, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco de<br />

Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano.<br />

331 Os Humilhados constituíam um dos grupos laicos surgidos anteriormente ao movimento franciscano e<br />

foram uma importante expressão urbana dos movimentos religiosos populares, cujos membros buscavam<br />

realizar o ideal apostólico da pobreza.


“Francisco e seus amigos rechaçaram a idéia que poderiam ter<br />

as pessoas de que eles compreendiam o trabalho como todo<br />

mundo. Com esta recusa, os frades estavam mostrando que não<br />

queriam ser como ‘todo mundo’ de Assis. Não queriam ser<br />

apontados como responsáveis das instituições econômicas da<br />

cidade e não desejavam deixar a impressão de estarem<br />

recomendando as mesmas instituições a outras pessoas. Não<br />

‘fazem Assis’, porque fazem outra coisa. Num mundo em que as<br />

distinções de funções se integram a um sistema de classes, o frade<br />

só pode escapar dele declarando-se servidor de todos”. 332<br />

O movimento franciscano soube muito bem perceber que a gestão dos negócios<br />

corporativos ou privados, bem como os da administração comunal, beneficiava apenas<br />

os maiores em detrimento dos menores. 333 Não poderia, portanto, conceber que seus<br />

membros fizessem parte desse sistema de iniqüidade e de injustiça.<br />

De outro lado, ao assumirem a posição de menores, Francisco e seus<br />

companheiros não deixaram as camadas privilegiadas da sociedade e foram se associar<br />

ao povo simples para desfrutar, no seu lugar, dos benefícios da ordem social da comuna.<br />

Agora, talvez fique claro o que antes dissemos: o movimento franciscano concretizou a<br />

sua decisão de “abandonar o mundo” não porque os seus membros tenham deixado<br />

fisicamente a cidade, mas porque elaboraram uma base econômica distinta da vigente,<br />

colocando-se à margem dos serviços materiais e espirituais prestados pela comuna a<br />

seus súditos.<br />

A construção dessa base econômica alternativa torna-se patente com a proibição<br />

do uso de dinheiro pelos frades, que nem mesmo podiam aceitá-lo como pagamento do<br />

trabalho realizado. O dinheiro não somente não paga, mas humilha-o e avilta-o. A partir<br />

dessa visão começou a surgir o menosprezo do movimento franciscano pelo dinheiro,<br />

como veremos a seguir.<br />

332 FLOOD, David. Op. cit., pp. 33 s.<br />

333 Em Assis, como ocorria em outras comunas italianas, a população dividia-se entre maiores (nobres e<br />

burgueses) e os menores, o povo miúdo. Ao se denominar Ordem dos Frades Menores, os franciscanos,<br />

explicitamente, desejaram se identificar com as camadas inferiores da cidade.


4.3. A proibição do uso do dinheiro<br />

A fraternidade franciscana faz constar a seguinte orientação no seu texto base:<br />

“Nenhum irmão, onde quer que esteja e para onde quer que vá,<br />

nem sequer ajunte do chão, nem aceite ou faça aceitar dinheiro<br />

ou moedas, nem para comprar roupas ou livros; numa palavra:<br />

em circunstância alguma, a não ser em caso de manifesta<br />

necessidade para os enfermos. Pois do dinheiro ou de moedas<br />

não devemos ter nem esperar mais proveito que de pedras”. 334<br />

Fica claro que Francisco e seu movimento excluíram o dinheiro de suas vidas.<br />

Recusam todo comércio com a moeda. O que estará por trás de uma determinação tão<br />

severa e que talvez soe a nós apenas como uma prescrição de valor meramente ascético<br />

ou espiritual?<br />

Flood 335 ajuda na compreensão, articulando a decisão dos frades com o<br />

fenômeno da crescente monetarização da economia e da vida urbana, a partir do final do<br />

século XII. Não há dúvida de que estamos diante de um outro importante indício de que<br />

a população citadina passava a tratar com processos típicos do capitalismo.<br />

O desenvolvimento econômico na Itália comunal criou uma tal necessidade de<br />

dinheiro, que os diferentes sistemas monetários não podiam mais satisfazer. Muitas<br />

comunas cunharam suas próprias moedas. Outras serviram-se dessas, cunhadas em<br />

outras comunas. Em Assis, circulavam moedas de Pavia (cidade imperial próxima a<br />

Milão) e de Lucques (comuna eminentemente comercial próxima ao mar).<br />

No século XII, quando a expansão comercial tinha necessidade de moeda e<br />

quando começou a faltar ouro e prata para sua produção, os responsáveis pelos sistemas<br />

monetários recorreram a um método simples: multiplicavam a moeda. De uma mesma<br />

moeda faziam duas do mesmo peso, diluindo o metal precioso num metal sem valor.<br />

334 Regra Não-Bulada, 8, 2-4, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco de<br />

Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano.<br />

335 FLOOD, David. Op. cit., pp. 33-38.


Satisfaziam assim às formas. Mas como se podia esperar, com o tempo, esse método<br />

tinha como conseqüência a baixa do valor das duas moedas. No começo do século XIII,<br />

o mercado monetário estava confuso. E, como hoje e sempre, alguns se aproveitavam da<br />

flutuação das moedas e outros sofriam prejuízos. Os ricos e fortes saíam-se bem. O<br />

povo simples e os trabalhadores é que perdiam.<br />

No começo do século XIII, temos um excelente exemplo do esforço para se<br />

tomar novamente em mão o controle da moeda. Deu-se em Roma. A organização<br />

particular de Roma não era comunal, mas a cidade experimentava problema análogo ao<br />

de muitas comunas.<br />

Em meados do século XII, o provesinus, de Provins, na região da Champagne,<br />

tinha-se imposto como moeda em Roma. Por volta de 1180, o senado romano começou<br />

a cunhar sua própria moeda, modelada no provesinus e um pouco mais fraca (4%) no<br />

seu valor. Chamava-se primeiramente provesinus novus. Depois de 1188, passou a ser<br />

chamada de provesinus senatus. Os velhos provesinus foram se tornando mais raros. O<br />

senado os tomava para cunhar novos. Muitos os guardavam como reserva. Apesar da<br />

pequena diferença no valor intrínseco das duas moedas, o antigo valia três vezes mais<br />

que o novo nas operações de mercado. Inocêncio III publicou um decreto, em 1208<br />

(Cum Expaucitate, 3 de agosto), exigindo que sua moeda fosse usada e restringido o<br />

papel da outra. Precisa que sua determinação tenha validade para os pequenos e para os<br />

grandes negócios. A moeda de Provins deixou de circular no Latium, em 1213. As<br />

pessoas procuravam não perder muito no momento da substituição e até mesmo tirar<br />

proveito. Quanto aos poderosos, viam no fato de controlar a moeda um elemento<br />

decisivo de seu poder sobre o destino, sobretudo econômico, de sua sociedade.<br />

Em Assis, corria uma moeda forte e outra fraca, denaro grosso e denaro piccolo.<br />

Os fortes e os ricos captavam a moeda forte que colocavam em cofres. Utilizavam-na


entre esses mesmos grandes e para importantes transações. Esse dinheiro e seus<br />

possuidores controlavam e dirigiam o dinheiro fraco. Evidente que isso favorecia esses<br />

mesmos grandes detentores da moeda forte. Assim é a natureza do sistema monetário:<br />

favorece primeiro seus criadores.<br />

O povo simples de Assis sabia que estava à mercê do dinheiro. Tinha<br />

consciência de que nada podia fazer contra o sistema monetário, a não ser evitar o<br />

máximo possível seus golpes.<br />

Francisco e seu movimento recusaram o dinheiro em toda e qualquer função da<br />

sua vida. Fazendo isso, opuseram-se ao controle social e à injustiça. Não consentiam<br />

que o povo simples sofresse com tal sistema. Certamente para que o sistema em questão<br />

funcionasse era preciso que o dinheiro circulasse, mas os franciscanos não sustentavam<br />

tal fato em sua ação. A tenacidade de sua política com respeito ao dinheiro é motivada<br />

pela tentativa de manterem-se livres ante o domínio do sistema socio-econômico. Desse<br />

modo podiam elaborar a base econômica de seu movimento.<br />

Flood defende que a recusa do uso do dinheiro nada tem a ver com a pobreza.<br />

Na realidade, os franciscanos não falam de pobreza neste capítulo. Pratica-se a virtude<br />

da pobreza num dado sistema. Uma prática da virtude da pobreza que se priva do<br />

dinheiro reconhece o seu valor e não despreza o sistema no qual está inserido. Essa, sem<br />

dúvida, é a intuição do movimento. Por isso, fazem escrever todo um capítulo, como<br />

forma de deixar clara uma decisão que, com toda certeza, foi alvo de muito debate e<br />

controvérsia. Assim, o movimento estava definindo novo conjunto de relações sociais e<br />

econômicas diante das pessoas e dos bens.<br />

4.4. A propriedade como um mal


Já tivemos a oportunidade de mencionar que a desapropriação dos bens era a<br />

condição inicial de ingresso de um candidato à vida franciscana. A pobreza, entendida<br />

como um movimento de desapropriação, não apenas individual, mas coletivo, foi a<br />

marca da forma de vida franciscana. Ao contrário dos monges, que eram<br />

individualmente pobres, mas que pertenciam a grandes mosteiros, muitos com vida<br />

econômica e produtiva pujante, a fraternidade franciscana não deveria possuir nenhum<br />

tipo de propriedade ou bens, quando muito, contentar-se apenas com o seu usufruto.<br />

É verdade que a atitude franciscana de pobreza foi geradora de muitas polêmicas<br />

e querelas, no interior da Ordem, e, mesmo, diante das autoridades eclesiásticas que<br />

custavam a crer na plausibilidade da um tal estilo de vida religiosa radicalmente<br />

despojado.<br />

A pobreza franciscana também foi alvo de mitificações. As biografias de<br />

Francisco, marcadas pelo estilo hagiográfico, apresentam-no como o exemplo de<br />

homem pobre e de perfeito imitador do Cristo pobre, que nem mesmo tinha “lugar para<br />

reclinar a cabeça” (Mt 8, 20). Francisco é, para sempre, o santo perfeitamente pobre.<br />

Mas o santo Francisco, objeto da veneração dos altares, deve ceder lugar ao<br />

homem Francisco, líder espiritual de um movimento que congregou homens e mulheres<br />

que possuíam necessidades concretas, como comer, vestir, morar, locomover-se etc.<br />

Na realidade, Francisco e seus companheiros desenvolveram sua própria base<br />

econômica. Segundo Flood, os franciscanos “não poderiam se permitir o luxo cultural<br />

de serem perfeitamente pobres”, 336 pois, de fato, tinham suas vestes e seus instrumentos<br />

de trabalho. Arranjavam, aqui e ali, alguns cantos para morar, onde podiam descansar e<br />

recobrar as forças. Tinham os utensílios da vida doméstica. Francisco e seus frades<br />

aceitaram a doação da ermida da Porciúncula, cedida pelos beneditinos do monte<br />

Subásio, o Monte Alverne, lugar deixado para o uso dos frades pelo Conde Orlando de


Chiusi, e até uma casa construída pela comuna de Assis, ainda que dessas propriedades<br />

não tivessem aceitado a posse legal. Teria sido impossível aceder a um novo modo de<br />

vida de outra maneira.<br />

A posse dos bens era imprescindível para satisfazer as necessidades humanas do<br />

grupo. Enquanto homens, os retinham, mas não os reclamavam a título de membros de<br />

uma comuna ou como cidadãos. Não desejavam ter a posse legal dos lugares que<br />

usavam transitoriamente ou de modo permanente, nem tampouco disputá-los com<br />

outros. Essa questão é abordada no capítulo 7 da Regra Não-Bulada: “Cuidem os<br />

irmãos, onde quer que estejam, nos eremitérios ou em outros lugares, de não<br />

apropriar-se de qualquer lugar nem disputá-lo a outrem”. 337<br />

Fica claro que os frades declinavam de fazer valer um pretenso direito sobre a<br />

posse de determinados bens ou lugares, desobrigando-os a ter que recorrer às<br />

autoridades civis e à uma ordem social e econômica que escolheram abandonar, pois,<br />

como é prescrito no capítulo 11: “E guardem-se todos os irmãos de fazer recurso à lei<br />

(calumnientur) contra alguém ou de ocupar-se com discussões vãs ...” 338<br />

O movimento franciscano intuiu muito bem o problema da propriedade,<br />

entendida como posse de direito privado, com valor absoluto e inalienável. Essa<br />

intuição está muito bem conservada numa das biografias do século XIV: “Não temos<br />

bens, porque se os tivéssemos, teríamos que pegar em armas para defendê-los”.<br />

Francisco havia intuído que a fraternidade e o encontro com Deus são<br />

obstaculizados e até destruídos pela vontade de posse. Como assinala Boff, “Interpomos<br />

entre nós e os outros as coisas possuídas egoisticamente, os inter-esses (...) O projeto<br />

de Francisco é ‘in plano subsistere’, vale dizer, viver no plano onde todos se encontram<br />

336 FLOOD, David. Op. cit., p. 42.<br />

337 Regra Não-Bulada 7, 12, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco de<br />

Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano.<br />

338 Regra Não-Bulada, 11, 1, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco de<br />

Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano.


e se con-frater-nizam. A pobreza consiste no esforço de remover as propriedades de<br />

qualquer tipo para que daí resulte o encontro entre os homens e se possibilite a<br />

irmandade. Ser plenamente pobre para ser plenamente irmão, eis o projeto de<br />

Francisco com referência à pobreza”. 339<br />

Evidente que Francisco e seus companheiros vêem a pobreza segundo uma<br />

perspectiva espiritual, todavia fundada numa experiência muito concreta e em nada<br />

romantizada. Não há romantismo algum no fato de sofrer com o frio, a fome, a doença e<br />

com as agruras de uma vida de pobres. Trata-se de uma opção marcada pela dimensão<br />

ontológica e existencial, mas que traz profundas implicações pelo prisma econômico.<br />

Francisco sabe que a pobreza imposta é um mal e reflete uma ruptura de solidariedade<br />

entre os homens e de comunhão com Deus. Portanto, assim escreve com o seu linguajar<br />

de medievo: “Atribuamos ao Senhor Deus Altíssimo todos os bens; reconheçamos que<br />

todos os bens lhe pertencem; (...) E Ele, o Altíssimo e soberano, o único e verdadeiro<br />

Deus, os possua como sua propriedade”. 340<br />

Nos escritos do movimento, o mal advém da apropriação. Consiste, mais<br />

precisamente, no ato da apropriação. A propriedade cria a desordem com suas nefastas<br />

conseqüências. O resultado é o desvio dos bens de sua função na vida, uma vez que são<br />

retirados de sua função social.<br />

A pobreza de Francisco é fruto do entendimento de que o mundo é um dom de<br />

Deus que deve estar à disposição de todos. Para ele, pobre é aquele que tem clara a<br />

dimensão de que é criatura, de que tudo recebe do Criador e, por isso, nada guarda, nada<br />

acumula egoisticamente, como seu próprio, mas o que tem divide, partilha com os<br />

irmãos, criando comunhão e restaurando a justiça.<br />

339 BOFF, Leonardo. São Francisco de Assis: Ternura e Vigor, op. cit., p.92.<br />

340 Regra Não-Bulada, 17, 17-18, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco de<br />

Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano.


4.5. Financiamento das missões franciscanas<br />

Resta-nos saber como os franciscanos financiavam as suas missões no Brasil.<br />

Segundo Frei Venâncio Willeke 341 , baseado em informações extraídas de diversos<br />

arquivos, cada missão devia prover a sua subsistência. Em geral, mantinham uma légua<br />

quadrada de terras para o plantio. Essa área convencionada, no entanto, demonstrou-se<br />

de tamanho insuficiente para a lavoura. Ademais, os frades queixavam-se,<br />

freqüentemente, da invasão das terras das missões e dos estragos causados pelo gado de<br />

fazendeiros. Da sua parte, os índios queixavam-se de que, em espaço tão restrito, não<br />

podiam criar gado suficiente, porque a légua quadrada não comportava mais do que<br />

oitenta famílias de uma população estimada em mais de trezentas pessoas.<br />

As missões franciscanas angariavam esmolas e contavam com a ajuda financeira<br />

de particulares, a exemplo da família Dias d’Ávila, de quem “recebiam extraordinário<br />

auxílio”. 342 Além da doação diária de um boi a uma aldeia, provia também os<br />

paramentos usados nas capelas, assumindo sobre as mesmas uma espécie de padroado.<br />

Como benfeitor dos franciscanos, Garcia de Ávila dispôs, em 1734, que, depois de<br />

morto, fosse sepultado diante do altar de Nossa Senhora da Igreja de São Francisco de<br />

Salvador, onde se conserva a sua campa sepulcral com o brasão da família. Assim era o<br />

costume, na Metrópole, como forma de retribuição à generosidade dos benfeitores.<br />

Os auxílios do governo colonial eram dados às missões em forma de ordinárias,<br />

para a sustentação do culto divino. Deveriam ser requeridas para cada nova missão. Os<br />

gastos de viagens do litoral até as missões eram cobertos por conta do viático estatal,<br />

pago pelo governo. Havia, ainda, outros benefícios em favor das missões, como, por<br />

exemplo, a isenção dos impostos alfandegários.<br />

341 WILLEKE, Venâncio. Op. cit. pp. 107 ss.<br />

342 Idem, p. 107.


Com o aumento e o incremento das missões, tornou-se necessário criar novas<br />

fontes. Sem que deixassem a lavoura, aos índios eram ensinados diversos ofícios.<br />

Torvavam-se oleiros, pedreiros, carpinteiros, tecelões, vaqueiros, barqueiros etc. Pelo<br />

que parece, os índios prestavam serviços aos colonos, em troca de salário e não<br />

poderiam permanecer mais de quinze dias fora da missão. A organização do trabalho<br />

exigia que, ao menos, a terça parte dos homens devia permanecer na aldeia. As<br />

mulheres também podiam prestar serviços domésticos nas casas de brancos.<br />

Segundo o que afirma Willeke, o dinheiro dos salários ganhos dentro ou fora das<br />

missões era aplicado em três finalidades: 1. No culto e na conservação da capela; 2. No<br />

sustento dos missionários; 3. Em vestuário e em medicamentos. Os balancetes deviam<br />

ser assinados por dois missionários e apresentados ao Visitador e Definitório. 343<br />

Essa fórmula, como não poderia deixar de ser, gerou muita polêmica, uma vez<br />

que era patente que os missionários franciscanos valiam-se do trabalho dos índios para o<br />

sustento das missões. A resistência dos colonos e dos governantes, gerando constantes<br />

atritos entre esses e os missionários, favoreciam as inúmeras denúncias de abusos<br />

cometidos pelos religiosos. Logo, as queixas movidas por interesses contrários a essa<br />

ordenação, que diga-se, era estabelecida pelos próprios Regimentos e Leis das Missões,<br />

aprovados pela Coroa, causavam muitos embaraços.<br />

No Maranhão e no Pará, vigoraram sucessivas Leis para as Missões.<br />

Prescreviam, além das regras de administração das missões “no espiritual e no<br />

temporal”, a forma como os missionários das diferentes Ordens deveriam repartir os<br />

índios descidos dos sertões, entre o trabalho nas aldeias e nas vilas, a serviço dos<br />

colonos e das administrações, bem como regulavam o tempo de serviço e de descanso e<br />

343 Idem, p. 108.


os salários que deviam ser pagos. Quanto às repartições dos índios, assim estabelecia o<br />

“Regimento das Missões”, de 1 de dezembro de 1686:<br />

“ [14] Porquanto mostrou a experiência, que a repartição dos<br />

índios senão pode fazer por tempo de dois meses, como era<br />

ordenado pela minha Lei do primeiro de abril de seiscentos e<br />

oitenta, em razão de ser necessário muito mais tempo para se<br />

trazerem as drogas dos sertões; sou servido derrogar a dita Lei, e<br />

ordeno que a dita repartição se faça nas aldeias do Pará por<br />

tempo de seis meses inclusive, e que no Maranhão se faça por<br />

tempo de quatro (...).<br />

[15] Esta repartição (do Pará) senão fará em três partes, como<br />

se mandava fazer pela dita Lei, mas antes se fará em duas partes,<br />

ficando uma nas aldeias e outra indo ao serviço pela mesma<br />

razão de maior tempo que os Índios se hão de ocupar neles, o que<br />

se entenderá sendo igual este tempo do serviço no Maranhão que<br />

no Pará, porque se no Maranhão forem necessários quatro meses<br />

somente ficará com mais igualdade a repartição das três partes,<br />

servindo uma e descansando duas”. 344<br />

Vale transcrever uma carta datada de 26 de fevereiro de 1711, de autoria do Rei,<br />

e enviada ao Provincial dos Capuchos de Santo Antônio, em resposta a denúncias<br />

chegadas do Maranhão. Conforme se lê, os franciscanos são acusados de se<br />

assenhorearem do trabalho dos índios e, por conta disso, apenas liberarem, a<br />

contragosto, o número estipulado de índios para servirem aos brancos das vilas e ao<br />

governo, conforme prescreviam as Leis das Missões:<br />

“Provincial das Capuchos de Santo Antônio, Eu El Rei vos envio<br />

muito saudar. Sou informado que os religiosos vossos súditos que<br />

no Estado do Maranhão estão encarregados da missão de<br />

algumas aldeias se empregam com excesso nas utilidades<br />

temporais do comércio, vendendo aos moradores a título de<br />

esmola o trabalho dos Índios no fabrico de canoas, sal, pescaria<br />

e semelhantes, e ainda os mesmos gêneros: e como os ocupam<br />

para si, com grande repugnância os entregam, conforme à<br />

repartição que tenho ordenado, assim para os moradores, como<br />

para as fortificações e serviço do Estado, em que se lhes paga o<br />

seu trabalho. E porque o referido é muito contrário à pobreza<br />

344 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, OFM, Província de Santo Antônio, Província, maço 7, macete<br />

7.


que a vossa Religião professa, na qual desejo se conserve o<br />

crédito que tem de reformada, vos encomendo muito façais que os<br />

ditos religiosos se abstenham de negociações que são indignas de<br />

missionários e de escândalo e prejuízo aos meus Índios”. 345<br />

Outra carta de autoria da Junta das Missões, enviada ao Rei, todavia com<br />

data anterior (1708) da que acima trasladamos, leva-nos a crer que tais denúncias eram<br />

recorrentes. No entanto, interessa transcrevê-la em parte, uma vez que a missiva possui<br />

quatro páginas, para darmos chance ao contraditório, apresentando a defesa dos<br />

missionários em questão:<br />

“A Vossa Majestade se fez presente pela Juntas das Missões, que<br />

os Missionários da Província de Santo Antônio, assistentes na<br />

Capitania do Pará, abusam dos Índios, que lhes eram<br />

encarregados para suas conveniências próprias e interesses<br />

particulares, ocupando-os em fabrico de cal e pescarias, para<br />

com uma e outra coisa comerciarem contra a sua Regra. Esta<br />

queixa, Senhor, é conhecidamente afetada, sendo resultado do<br />

zelo dos oficiais da Câmara daquele Estado, e de outros mais que<br />

os acompanham nos seus notórios e repreensíveis interesses<br />

sempre os oficiais têm insaciável sede da administração dos<br />

Índios, de que nos tempos passados justamente por Vossa<br />

Majestade foram privados à vista das verdadeiras e contínuas<br />

queixas que havia, de que as Câmaras com absolutas disposições<br />

em ordem aos seus demasiados interesses, vexavam e perseguiam<br />

aos pobres miseráveis Índios, que nos tempos presentes só acham<br />

a sua bem merecida proteção com os ditos missionários, aos<br />

quais por disposição de Vossa Majestade estão seguros, assim no<br />

espiritual como no temporal”. 346<br />

A simples leitura dos documentos acima apresentados nos remetem a situações<br />

repletas de contradições, dificultando a emissão de juízos partidários. Dão-nos o<br />

perfeito entendimento da diferença dos métodos escolhidos e praticados pelos jesuítas e<br />

pelos franciscanos, sem que caiamos em armadilhas maniqueístas, ao considerarmos<br />

que ambos importavam um misto indissociável de vantagens e de controvertidos<br />

resultados. Levam-nos também a analisar, com cuidado, algumas comparações<br />

estabelecidas pelos franciscanos, quando tratavam da preferência dos índios pelos<br />

345 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, OFM, Província de Santo Antônio, Província, maço 18.<br />

346 Idem.


missionários capuchos a despeito dos jesuítas, tendo, como pano de fundo, os modos<br />

diferenciados que uns e outros utilizavam para financiar as suas atividades missionárias.<br />

Afirmou Frei Manuel da Ilha, em relação às missões da Paraíba, no contexto de<br />

contendas com os jesuítas, que os capuchos missionários “eram levados unicamente<br />

pelo zelo e pela glória de Deus e da salvação das almas, fugindo a todo interesse de<br />

lucro e de vantagens temporais. Os gentios os preferiam aos demais religiosos, para os<br />

instruir na fé, pois os frades nada aceitavam deles, nem adquiriam riquezas, nem os<br />

ocupavam nos trabalhos e na agricultura, proibidos que eram pela sua Regra; só<br />

aceitavam como esmola farinha da terra, comida ordinária daqueles gentios, que,<br />

apesar de selvagens, muito se edificavam sabendo os Frades nada possuem de próprio<br />

e que tudo o que adquirem é comum de todos”. 347<br />

Ou, como apresentou Frei Antônio Jaboatão a preferência dos índios pelos<br />

franciscanos “quando já para a sua doutrina concorriam também outros Evangélicos<br />

Operários, abandonando-se destes para os nossos, e confessavam que os movia e<br />

arrastava a este excesso a grande inclinação que nos tinham, pelo desapego que em<br />

todos viam, de bens, de terras e cuidados de temporalidade, que tanto coadunava com o<br />

seu próprio gênio; e por isso sem dúvida que estes nossos, entre todos os mais, deu<br />

Deus o mesmo Céu a primazia na conversão deste Gentio, e que eles no largo tempo de<br />

quarenta e nove para cinqüenta anos, desde 1500, em que aportou em Santa Cruz o P.<br />

Fr. Henrique e seus companheiros, até o ano de 1549 que chegaram à Bahia os PP.<br />

Jesuítas, fossem os cultivadores desta vinha”. 348<br />

Mais uma vez, seja de um lado, seja de outro, a paixão levou a excessos de juízo.<br />

Se é verdade que os franciscanos se abstiveram dos métodos econômicos intensivos e<br />

agressivos, a trazer resultados mais ou menos imediatos, agiram de acordo com o que<br />

julgavam melhor convir a seu estilo de vida pobre, despojado e mendicante. A diferença


entre os métodos empregados refletia o antagonismo de espíritos e de processos entre as<br />

Ordens em questão. E, mais complexo que isso, implicava dois sentidos diversos da<br />

vida.<br />

CAPÍTULO V<br />

347 Frei Manuel da Ilha. Op. cit, nº 111, p. 133.<br />

348 Jaboatão. Orbe Seráfico Novo Brasílico, op. cit., nº 10, p.6.


V – Gênese do Pensamento Único na Educação<br />

“Como redescobrir nas memórias dos conhecimentos conflitos entre projetos<br />

pluralizadores ou homogeneizadores? Como retomar o sonho da liberdade de<br />

pensar e atuar que pulsa grandioso por baixo dos racionalismos utilitários?<br />

Seria possível arrancar do passado, de suas memórias, as larvas com que<br />

possamos nutrir projetos de conhecimento que transcendam objetivos<br />

imediatistas e excludentes, para envolvê-los mais humanamente, entranhandoos<br />

com escolhas éticas e estéticas?” Célia Linhares<br />

5.1. Franciscanismo, a metáfora do indesejável<br />

Instigantes são as referências dos jesuítas à pobreza franciscana. Em absoluto,<br />

não a desejam tomar como padrão; ao contrário, quando a ela fazem alusão, há um tom<br />

pejorativo, a exemplo da já citada manifestação do Pe. Antônio Forte, para quem levar a<br />

efeito a idéia de alienar os bens dos colégios equivaleria ao absurdo de os “reduzirem a<br />

mosteiros de Capuchos”.<br />

O Padre Nóbrega, no contexto das disputas que encabeçou contra o Pe. Luís da<br />

Grã acerca do espírito e do modo de financiamento das suas missões, no Brasil.,<br />

evidencia, de forma clara, a oposição entre os métodos jesuítico e franciscano. Vale a<br />

pena retomarmos parte dos trechos das cartas do Padre Nóbrega, também por nós<br />

transcritos em seção anterior:<br />

1. “O Padre Luís da Grã parece querer levar isso por outro<br />

espírito muito diferente e quer edificar a gente portuguesa destas<br />

partes, por via da pobreza, e converter esta gente da mesma<br />

maneira que S. Pedro e os Apóstolos fizeram e como S. Francisco<br />

ganhou muitos por penitência e exemplo de pobreza”.<br />

2. “(...) e me parece que a Companhia deve ter e adquirir<br />

justamente meios, que as Constituições permitem, quanto puder<br />

para nossos Colégios e Casas de Rapazes”.<br />

O franciscanismo é utilizado pelos inacianos ao modo de uma metáfora do que<br />

não se deseja tomar como parâmetro metodológico, administrativo e missiológico. Não


haveria, por parte dos jesuítas, um entendimento de que os franciscanos possuíam,<br />

ainda, uma mentalidade medieval inercial e, portanto, extemporânea, diríamos, mesmo,<br />

atrasada? Haveria sentido para seus escrúpulos, com relação ao uso do dinheiro, num<br />

tempo em que o comércio era a mola mestra da sociedade mercantil? As obrigações da<br />

vida conventual, a recitação comum dos salmos e as restrições institucionais impostas<br />

para garantir uma vida penitente da comunidade, sustentada por esmolas, não seriam<br />

empecilhos para a maior agilidade pastoral requerida pelos novos tempos?<br />

O discurso do Padre Nóbrega faz crer que o anúncio do Evangelho será efetivo<br />

quanto mais puder contar com os recursos materiais e financeiros advindos de<br />

atividades produtivas, agrária, pastoril e comercial, sob a administração da própria<br />

Companhia. Não convinha ficar na exclusiva dependência da Coroa, cujos recursos<br />

além de parcos, eram incertos e de fluxo irregular. Ademais, os jesuítas, tendo em vista<br />

a pobreza do povo, julgaram que não poderiam ser sustentados pelas esmolas e pela<br />

caridade pública. Desejavam empreender uma ação mais rápida, mais efetiva e mais<br />

abrangente que requeriria volume e fluxo de recursos compatíveis com o ritmo que se<br />

planejou dar às obras missionárias. Trata-se de uma visão pragmática, focada em<br />

resultados que se alcançariam mediante a maior ou a menor eficiência em gerar e<br />

empregar os recursos disponíveis.<br />

Após dez anos de atividade missionária e em meio aos embates com o Padre<br />

Luís da Grã sobre os métodos de missionação a serem empregados pela Companhia,<br />

Nóbrega, um tanto desiludido com os resultados até então conseguidos pelos<br />

missionários, recolhe-se em São Vicente para um tempo de reflexão. As ilusões de que<br />

os índios pareciam viver num estado de inocência bíblica, não possuindo crenças mais<br />

profundas, nem deuses, nem ídolos, sendo suas almas “folhas de papel em branco”, as<br />

quais se conseguiria facilmente doutrinar e converter ao cristianismo e inculcar-lhes um<br />

modo de vida “civilizado”, caíram por terra. Pareciam não assimilar a fé e o ensino dos


padres, ministrados com tão enormes esforços, devotamento e risco da própria vida, e<br />

ficou comum que, logo, abandonavam a doutrina dos padres e voltavam aos seus<br />

antigos ritos e modo de vida gentílico.<br />

O retiro de Nóbrega em São Vicente levou-o a escrever o “Diálogo sobre a<br />

Conversão do Gentio”, na tentativa de demonstrar aos seus irmãos de hábito a<br />

necessidade mais do que iminente de uma reforma do projeto missionário da<br />

Companhia. A caridade e a persuasão racional demonstraram-se inócuas para a obra de<br />

conversão dos gentios.<br />

“Ainda que, segundo me parece deles, para este fim de se<br />

converterem a serem cristãos não há mister muita inteligência,<br />

porque as obras mostram quão poucas mostras eles tem de o<br />

poder de vir a ser”. 349<br />

Se não era possível converter os índios por amor ou pelo uso de argumentação<br />

racional, conclui Nóbrega que a melhor maneira de demovê-los dos seus costumes<br />

incivilizados (canibalismo, poligamia, nudez) e de inculcar-lhes a fé cristã seria através<br />

da estratégia da sujeição e do medo. Segundo o “Diálogo”, “este parece ser o melhor e<br />

o mais certo caminho”. 350 A mesma tese é defendida por Nóbrega, em outra ocasião:<br />

“Assim que por experiência vemos que por amor é mui dificultoso<br />

a sua conversão, mas como é gente servil, por medo fazem tudo, e<br />

posto que nos grandes por não concorrer sua livre vontade,<br />

presumimos que não terão fé no coração, os filhos criados nisso<br />

ficarão firmes cristãos, com sujeição, farão dela o que quiserem,<br />

o que não será possível com razões nem com argumentos”. 351<br />

Nóbrega, a partir de sua experiência em São Vicente, verificou que era mais<br />

efetivo o método de “convidar” os índios a se mudarem das suas aldeias para novos<br />

povoamentos. Os jesuítas levariam consigo uma tropa do governo colonial e, caso os<br />

nativos recusassem o convite, estariam sujeitos a uma “guerra justa” movida pela força<br />

349 Padre Manoel da Nóbrega. “Diálogo sobre a Conversão do Gentio”. Utilizamos o texto que consta no<br />

anexo documental da obra de EISENBERG, José. Op. cit., p. 225.<br />

350 Idem, p. 228.


militar. De acordo com a teoria de Nóbrega, baseado na doutrina tomista, os índios não<br />

estariam sendo forçados a aceitar a fé cristã. Pelo contrário, estariam consentindo a se<br />

submeter à autoridade dos padres pelo medo de serem mortos ou escravizados, em<br />

conseqüência da guerra justa movida pelo exército colonial, para, depois, num segundo<br />

momento, serem convertidos pela persuasão dos missionários.<br />

Em verdade, o tratado escrito pelo primeiro provincial jesuíta tentou justificar a<br />

necessidade mais violenta de impor a fé cristã, no intuito de preservar, teoricamente, um<br />

direito formal dos índios à liberdade. No entanto, de antemão, Nóbrega está convicto de<br />

que os índios “com medo venham tomar a fé” e sejam “cristãos por força”. 352<br />

Na Suma Teológica de São Tomás de Aquino, lê-se que “o objeto primeiro e<br />

formal da fé é um bem, a verdade primeira. Mas entre as coisas materiais da fé também<br />

propõe crer em certos males; é um mal, por exemplo, não submeter-se a Deus ou<br />

apartar-se Dele, e os pecadores sofrerão males punitivos de Deus. Neste sentido, a fé é<br />

causa do medo”. 353 Ora, certamente, para os jesuítas, segundo Eisenberg, “o medo<br />

provocado pela ameaça da autoridade secular era análogo ao medo da punição<br />

divina”. 354 Essa foi a mudança conceitual implantada por Nóbrega a inspirar a nova fase<br />

missionária da Companhia, no Brasil: uma justificação teológica, fundamentada na idéia<br />

de consentimento gerado pelo medo como fundação legítima do poder político<br />

(dominium). A violência e o medo tornaram-se meios propedêuticos da evangelização<br />

jesuítica.<br />

No momento em que parece não haver outra forma viável de sustento da<br />

Companhia, em terras onde grassa a pobreza, nem como doutrinar os índios, que só se<br />

dobram ante a iminência da violência, as “escolhas” se impõem por si mesmas. A práxis<br />

351<br />

Carta do Pe. Manoel da Nóbrega transcrita pelo Pe. Serafim Leite em Carta dos Primeiros Jesuítas<br />

de São Paulo, São Paulo: Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1954, Tomo II, p. 271.<br />

352<br />

Cartas Jesuíticas, Volume I, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, Belo Horizonte:<br />

Itatiaia,1988, pp. 229-245.<br />

353<br />

São Tomás de Aquino. Suma Teológica, tomo VII, 2-2., q.7, a. 1.


jesuítica, firmada na idéia de uma necessidade objetiva, esvazia de sentido a concepção<br />

de política, entendida como escolha entre soluções alternativas. O discurso do Padre<br />

Nóbrega, invocando a razão civilizada sobre as formas selvagens e irracionais dos<br />

gentios, paradoxalmente, propõe o retorno mais arcaico e irracional da lei do sangue.<br />

Ante o império da realidade, só há um caminho a seguir. Desse modo, os atores da cena<br />

social são sobretudo convidados a verificar que a solução “mais razoável” é, na<br />

verdade, a única solução possível, a única autorizada pelas circunstâncias da situação.<br />

Não há o que fazer, a não ser a humildade de aceitar a impotência humana em face de<br />

uma necessidade que ultrapassa a todos.<br />

Os esquemas de pensamento baseados numa lógica binária, que não apenas<br />

excluiu a possibilidade de um terceiro termo, mas, contraditoriamente, conduz à<br />

unidimensionalidade do discurso ante a tentativa de invalidar o próprio esquema<br />

silogístico, instauram uma razão totalitária que esteriliza o dissenso necessário à<br />

política. A operação do missionário, pela ameaça de violência, é motivada pelo<br />

pensamento que expulsa de si mesmo a contradição, na tentativa de suprimir a<br />

constituição do litígio, nascedouro da política. Em verdade, a ordem da política,<br />

possível quando há entre as partes uma simetria de igualdade, é substituída pela ordem<br />

despótica, em que uma parte se encontra naturalmente em posição de poder sobre as<br />

demais. Apenas aos que, a um tempo, dominam, é concedida a palavra autorizada, seja<br />

em que campo atuem. A redução da razão e da política à sua forma mais estreita origina<br />

o que chamamos de “pensamento único”. O pensamento único procura suprimir um<br />

“escândalo” de pensamento, aquele adequado ao exercício da política. Segundo<br />

Rancière, esse “escândalo teórico” é apenas a “racionalidade do desentendimento”: “O<br />

que torna a política um objeto de escândalo é que a política é a atividade que tem por<br />

354 EISENBERG, José. Op. cit., p. 108.


acionalidade própria a racionalidade do desentendimento”. 355 Em síntese, a trajetória<br />

do pensamento único pode ser descrita como um longo processo de hegemonia de um<br />

tipo de razão e de política, estruturadas na idéia redutora de “consenso”, apenas<br />

possível, porque à maioria são negados a racionalidade e o direito à palavra.<br />

Bem outra foi a orientação fundamental do modo franciscano de evangelizar que<br />

sempre buscou inspiração no espírito evangélico encarnado por Francisco de Assis. O<br />

fundador prescreveu que o primeiro anúncio fosse o evangelho da fraternidade, da<br />

convivência, do testemunho e do serviço no meio dos homens e das mulheres. Somente<br />

depois, se os irmãos julgassem agradável ao Senhor, anunciar-se-ia, explicitamente, a<br />

palavra de Deus. Esses princípios estão esboçados no capítulo 16 da Regra Não-Bulada,<br />

bem como nas hagiografias do santo de Assis que narram o seu encontro com o sultão<br />

Melek-el-Kamel, em 1219, no Egito: “O primeiro modo consiste em absterem-se de<br />

rixas e disputas, submetendo-se ‘a todos os homens por causa do Senhor’ (1Pd 2, 13).<br />

O outro modo é anunciarem a palavra de Deus quando o julgarem agradável ao<br />

Senhor”. Aqui se renuncia a toda vontade de dominação e de expansão do sistema da fé<br />

por qualquer tipo de violência, mesmo simbólica.<br />

É fácil falar quando tomamos a figura santificada de Francisco de Assis como<br />

exemplo do bom missionário. A dificuldade começa quando temos que tratar de homens<br />

de carne e osso, frades que, apesar dos seus nomes aludirem a santos e aos mais<br />

augustos mistérios da fé, nem por isso deixaram de viver perpassados pelas contradições<br />

características de todos os humanos e dos esquemas mentais de uma época em que não<br />

se possuía o ferramental teórico de que, hoje, dispomos para julgar o caráter infame de<br />

muitas das práticas sociais, outrora, em vigência.<br />

No entanto, não apenas São Francisco, mas também os franciscanos gozaram do<br />

beneplácito universal, graças ao carisma de benevolência, ternura, jovialidade,<br />

355 RANCIÈRE, Jacques. O Desentendimento: Política e Filosofia, São Paulo: Editora 34, 1996, p. 14.


fraternidade, simplicidade, minoridade e renúncia a toda vontade de posse e de domínio<br />

que sempre lhes serviu de horizonte e de norteador de condutas e, com toda a certeza,<br />

também não impediu flagrantes desvios e traições dos ideais.<br />

Na América, os testemunhos de terceiros, ainda que nem sempre favoráveis aos<br />

franciscanos, não deixam de considerar positiva a identificação do povo, dos indígenas e<br />

dos pobres ao modo de vida simples e despojado dos filhos de São Francisco. 356 Mais<br />

que palavras, era a vida dos missionários que causavam impressão sobre os indígenas.<br />

Em especial, chamavam-lhes a atenção a pobreza e o desapego dos frades contrastados à<br />

insaciável cobiça dos colonos e aos altos tributos que outras Ordens Religiosas pediam<br />

para o próprio sustento e o da missão. Havia identificação entre o natural desapego dos<br />

índios e a vida despojada dos franciscanos. 357<br />

A violência física também foi amplamente empregada pela educação jesuítica.<br />

Tanto na Europa, quanto na América, os métodos pedagógicos utilizados pelos jesuítas,<br />

nos seus colégios, reabilitaram os castigos corporais. Tal prática foi habitual no ensino,<br />

ainda no século XIX, e não era exclusiva de os jesuítas, apesar dos críticos visarem,<br />

principalmente, aos padres da Companhia. Na Europa, os círculos jansenistas, anti-<br />

jesuíticos, associaram a imagem do educador jesuíta ao chicote. O conde de Lanjuinais,<br />

próximo dos jansenistas, dedica a essa questão um opúsculo de 73 páginas, “La<br />

Bastonnade et la Flagellation Pénales Considérées chez les Peuples Anciens et chez les<br />

Modernes”, editado em Paris, em 1825. Censurava os jesuítas não por terem inventado<br />

esse castigo, mas por praticarem-no sem reserva, apesar de conhecerem os seus perigos<br />

e sua inutilidade:<br />

356 BOFF, Leonardo. Os 500 Anos: Desafio da Evangelização para os Franciscanos. Palestra proferida<br />

no Encontro Latino-americano de Centros de Formação Franciscana na América Latina, realizado em<br />

Petrópolis, de 28 de julho a 2 de agosto de 1991.<br />

357 Frei Manuel da Ilha. Op. cit. p. 100; Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, Orbe Seráfico Novo<br />

Brasílico, op. cit., n.º 10, p. 6.


“Mais de um livro atesta que, nas suas missões no Paraguai, os<br />

jesuítas tinham no século XVIII recomeçado as flagelações<br />

corretivas, e que chicoteavam as nádegas desnudas até os pais e<br />

mães de família. Mas o que mais se censurou nos jesuítas no que<br />

respeita a esta questão, foi o chicote imposto aos alunos no seus<br />

colégios, e os inconvenientes e as graves desordens que<br />

favoreciam essas flagelações”. 358<br />

Os castigos públicos, de fato, eram inflingidos aos índios do Paraguai que não<br />

observavam as regras estabelecidas pelos padres. No entanto, esses castigos vieram a ser<br />

bem aceites, uma vez que, para várias nações indígenas, se submeter às flagelações<br />

significava um ato de valentia, conferindo à vítima força, coragem, saúde. Para outros<br />

grupos indígenas a flagelação conferia uma virtude purificadora ou, ainda, influenciava<br />

a fertilidade dos campos.<br />

Essa utilização pedagógica do chicote foi nomeada de “orbilianismo” pelo autor<br />

de um panfleto genebrês intitulado “Mémoire Historique sur l’Orbilianisme et les<br />

Correcteurs des Jésuites”, impresso em Genebra, 1763. O termo evoca a figura de<br />

Orbilius, um pedagogo que, segundo Horácio, batia nos alunos mais por inclinação que<br />

por dever.<br />

Algumas críticas mais mordazes entreviam nas práticas disciplinares<br />

empregadas pelos jesuítas um tipo de sadismo, com conotações sexuais. O refrão da<br />

célebre canção de Béranger, “Les Révérends Pères” (1819), é testemunha disso:<br />

“Somos nós que açoitamos<br />

E que re-açoitamos<br />

Os lindos pequenos, os lindos meninos”. 359<br />

Os franciscanos também utilizavam, nas suas escolas e doutrinas, os castigos<br />

corporais. Tal prática está atestada pelo que se lê no “Regulamento para os<br />

Missionários”, de 1606, texto manuscrito conservado na Torre do Tombo, nos papéis<br />

358 Apud, LEROY, Michel. Op. cit., p. 161.


dos franciscanos brasileiros que atuavam no Nordeste. Percebe-se, todavia, uma<br />

benevolência de fundo, quando prescreve a aplicação dos castigos:<br />

“Não se dêem palmatórias a índios já velhos principais porque os<br />

tais mais se castigam com repreensão de palavras que com<br />

palmatórias de moços (...) Nenhum religioso dê palmatoriada a<br />

mulher, mas havendo-as de dar seja uma às outras, havendo<br />

respeito às velhas, às moças e meninas. E se o que tem cuidado<br />

da escola for sóbrio em açoitar os moços, advirta o presidente<br />

nisso”. 360<br />

Os castigos físicos aplicados aos estudantes nas escolas foram uma instituição,<br />

inclusive seguida pelas aulas régias, após a expulsão dos jesuítas. O Estatuto dado aos<br />

mestres de São Paulo, em 1768, obrigava-os a apenas admitirem os meninos mediante<br />

despacho do general da Capitania; esses meninos não poderiam passar a outro professor<br />

sem preceder o mesmo despacho “para que os mestres os possam castigar livremente<br />

sem o receio de que os pais os tirem por este motivo ou por outros frívolos que<br />

comumente se pratica”. 361<br />

5.2. Quando a força é fraqueza<br />

Há uma “fraqueza” no franciscanismo que incomoda e desagrada a Instituição de<br />

Inácio e de Nóbrega. Criam eles que os tempos mudaram e já não havia como imprimir<br />

eficácia à ação missionária, caso se insistisse no emprego dos métodos há muito<br />

vigentes que, pelo peso da tradição, não conseguiam deles se desvencilhar as Ordens<br />

359<br />

Apud, LEROY, Michel. Op. cit., p. 161.<br />

360<br />

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Regulamento para os Missionários, 1606, OFM, Província de<br />

Santo Antônio, Província, Maço 18.<br />

361<br />

Estatuto que hão de observar os mestres das escolas dos meninos nesta Capitania de São Paulo,<br />

Luís Antônio de Sousa, ao Conde de Oeiras, em 12 de maio de 1768, Arquivo Ultramarino, São Paulo,<br />

n.º 2408 dos documentos catalogados.


Religiosas mais antigas. Essa intuição levou o nascente instituto dos jesuítas a refundar<br />

a vida religiosa, instituindo novos princípios e novas práticas. Num campo onde as<br />

tradições estavam fortemente cristalizadas, não foi fácil estabelecer as novas bases sobre<br />

as quais ergueu-se a Companhia de Jesus. As incompreensões, as críticas e as oposições<br />

desde logo surgiram e jamais deram trégua aos jesuítas. Tais circunstâncias obrigaram<br />

os jesuítas a pensar em estratégias de defesa. Para isso, a Companhia precisava ser forte,<br />

obtendo, o mais que pudesse, o favor e a autoridade dos Príncipes, ao mesmo tempo em<br />

que tentava, ao menos, ser respeitada pelos seus inimigos.<br />

Inácio nasceu em 1491, em Loyola, Espanha, numa família nobre. Inácio de<br />

Loyola é um homem que vive num tempo de transição entre a medievalidade e a<br />

modernidade. Apesar de sua mentalidade estar, ainda, entranhada pelos valores típicos<br />

do medievo, é também filho do humanismo renascentista. A biografia do soldado que se<br />

fez santo reflete os aspectos fronteiriços de um tempo histórico que influenciou a sua<br />

vida e a de todos os seus contemporâneos. A simples análise do processo de conversão<br />

de Inácio não deixa escapar que seu amadurecimento vocacional se dá à medida que vai<br />

transitando dos esquemas mentais da Idade Média, expressos pelas hagiografias dos<br />

santos que desejou imitar, aos da modernidade, descobertos quando decidiu freqüentar a<br />

universidade.<br />

Certa vez, numa batalha, em Pamplona, no ano de 1521, foi ferido na perna.<br />

Durante a cura monótona e dolorosa, pôs-se a ler as Vidas de Cristo e dos Santos.<br />

Enquanto lia, notou que, quando pensava em seu passado e em projetos de cavaleiro,<br />

sentia uma felicidade passageira. Por outro lado, quando pensava em imitar os santos e<br />

suas realizações, sentia um contentamento pleno.<br />

Em 1522, restabelecido, Inácio resolveu mudar de vida. Como um cavaleiro<br />

medieval, numa capela dedicada a Nossa Senhora, fez a sua vigília de armas,


depositando sobre o altar a espada que carregava como símbolo da consagração de sua<br />

vida nova. Em seguida, trocou suas roupas de nobre com as de um mendigo e se<br />

transformou em peregrino. Decidido a imitar Jesus Cristo, peregrinou até Jerusalém.<br />

Voltando à Europa, resolveu estudar a fim de melhor exercer seu apostolado. Fez<br />

Mestrado em Filosofia e Teologia, na Sorbonne, em Paris. Nesse tempo, em que<br />

estudava em Paris, atraiu, com os Exercícios Espirituais, seis entusiastas companheiros;<br />

juntos fizeram votos de pobreza, castidade e obediência, formando assim o núcleo da<br />

futura ordem. O papa Paulo III aprovou, em 1540, a nova ordem, com o nome de<br />

Companhia de Jesus 362 e, no ano seguinte, Inácio foi eleito superior geral.<br />

O desejo de dar maior agilidade e eficácia à nova ordem levou Inácio a suprimir<br />

a obrigatoriedade de algumas práticas tradicionais, como a assistência diária ao ofício<br />

litúrgico no coro ou determinadas penitências e jejuns. 363 Em troca, deu ênfase à<br />

obediência, reforçando o princípio da autoridade e da hierarquia e introduzindo um voto<br />

especial de obediência ao Papa.<br />

Os fundadores da Companhia intuíram que, além da disciplina e da obediência,<br />

seria essencial o cultivo da inteligência e do estudo para cumprirem a missão à qual<br />

foram chamados: formar uma nova milícia para defender a fé cristã das heresias e do<br />

Protestantismo, bem como conquistar espiritualmente o mundo para Cristo. Por isso, os<br />

candidatos à Companhia deviam “procurar os graus de instrução e o modo de a utilizar<br />

para ajudar a melhor conhecer e servir a Deus nosso Criador e Senhor”. 364 Para esse<br />

fim, mais tarde, a Companhia fundava colégios e algumas universidades, “onde os que<br />

362 Carta Apostólica Regimini Militantis Ecclesiae, de Paulo III, dada a 27 de setembro de 1540.<br />

363 Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, aprovada e confirmada pelo Papa Júlio III, na Carta<br />

Apostólica Exposcit Debitum, dada a 21 de julho de 1550, n.º 8.<br />

364 SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus, op. cit, n.º 307.


deram boa conta de si nas casas e foram recebidos sem os conhecimentos doutrinais<br />

necessários, se possam instruir neles e nos outros meios de ajudar as almas”. 365<br />

A Companhia de Jesus estruturou-se com o objetivo de destacar-se das demais<br />

ordens. Isso exigia, em primeiro lugar, um rigoroso processo de seleção dos candidatos<br />

a ingressar na Companhia, bem como um longo período de provação dos admitidos, até<br />

que fossem aprovados a fazer os votos perpétuos, de modo a serem plenamente<br />

incorporados ao Instituto. A “Fórmula da Companhia” determinava que nenhum<br />

membro fosse admitido a fazer a profissão “sem primeiro ser bem conhecida a sua vida<br />

e doutrina, com demoradas e diligentíssimas provas”. A Companhia, fundada como<br />

“milícia de Jesus Cristo”, precisava certificar-se de que todo aquele que pretendesse<br />

“alistar-se sob a bandeira da cruz” comprovasse ser apto “para combater por Deus e<br />

servir somente ao Senhor e à sua esposa a Igreja, sob a direção do Romano Pontífice,<br />

seu Vigário na terra”. 366 O “Exame Geral”, proposto preliminarmente a todos os que<br />

pediam a admissão na Companhia, e os “Exercícios Espirituais” eram os instrumentos<br />

desenvolvidos e aplicados para tais fins. As “Constituições” também dedicaram toda<br />

uma seção ao tema “Admissão ou Incorporação na Companhia”. 367<br />

O controle sobre os incorporados à Companhia, porém, não deixava de ser<br />

exercido pelos Superiores. A “Fórmula” lembra aos já professos que “não só no<br />

princípio, mas enquanto viverem, que toda esta Companhia, e cada um dos que nela se<br />

alista, combate por Deus, sob a fiel obediência do Santíssimo Senhor nosso Papa Paulo<br />

III e dos outros Romanos Pontífices seus sucessores”. 368 Os que, em algum momento,<br />

não se submetiam à obediência, vale dizer, não se alinhavam ao pensamento único e<br />

365 Idem, n.º 307.<br />

366 Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, aprovada e confirmada pelo Papa Júlio III, na Carta<br />

Apostólica Exposcit Debitum, dada a 21 de julho de 1550, n.º 1. Grifo nosso.<br />

367 Santo Inácio de Loyola. Constituições da Companhia de Jesus, Quinta Parte, n.º 510-546.


uniforme emanado do Governo da Ordem, eram afastados dos seus postos. Os episódios<br />

que envolveram os Padres dissidentes, Miguel Garcia e Gonçalo Leite, que se opuseram<br />

aos métodos empregados pela Companhia, no Brasil, foram exemplares. Entretanto,<br />

eram comuns as expulsões sumárias dos sócios da Companhia, “sem forma alguma de<br />

juízo; isto é, sem precederem provas; sem se fazer autos; sem se observar ordem<br />

alguma judicial”. Privado do direito de apelação ou defesa, o excluído obrigava-se a<br />

guardar total silêncio. Era ordenação pétria “que ninguém se atrevesse a impugnar<br />

direta ou indiretamente o Instituto, Constituições ou Decretos da dita Companhia; ou<br />

procurasse que neles se mudasse alguma coisa, por qualquer motivo que fosse”, 369 e<br />

isso sob pena de excomunhão.<br />

O caráter miliciano da Ordem, rigidamente estruturada, sob o comando do Padre<br />

Geral, que detém “toda autoridade e poder que for útil para a boa administração,<br />

correção e governo da mesma Companhia”, e a quem todos estão obrigados “não só<br />

obedecer (...) mas nele reconhecer Cristo, como presente, e respeitá-lo como<br />

convém”, 370 deu asas aos mitos que cercaram a Companhia de Jesus. Em verdade,<br />

apesar do enorme poder hierárquico que, em última instância, concentrava-se nas mãos<br />

do Padre Geral, não deixou de ser contestado.<br />

A título de exemplo, vale lembrar o período tumultuado em que esteve à frente<br />

da Companhia o Pe. Cláudio Aquaviva (1581-1615). Ao assumir o Generalato, com<br />

apenas vinte e sete anos, tentou regular e moderar o crescimento da Companhia,<br />

esforçando-se por imprimir uma dinâmica não mais de expansão, mas de sua<br />

consolidação. Produziu uma série de orientações no sentido de promover um<br />

368 Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, aprovada e confirmada pelo Papa Júlio III, na Carta<br />

Apostólica Exposcit Debitum, dada a 21 de julho de 1550, n.º 3.<br />

369 Ambos os trechos foram extraídos do Breve do Santíssimo Padre Clemente XIV pelo qual a<br />

Sociedade chamada de Jesus se extingue, e suprime em todo o orbe, Lisboa, na Régia Officina<br />

Typografica, 1773, n.º19.<br />

370 Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, aprovada e confirmada pelo Papa Júlio III, na Carta<br />

Apostólica Exposcit Debitum, dada a 21 de julho de 1550, n.º 6.


desenvolvimento sustentado das atividades confiadas aos padres da Companhia.<br />

Todavia, como sabemos, tal tentativa de reforma esteve longe de ser pacífica. É<br />

exatamente durante o Governo de Aquaviva que se passaram os fatos que envolveram<br />

os Padres Miguel Garcia e Gonçalo Leite. Além deles, vários outros jesuítas, como<br />

Dionísio Vasquez, Dionísio Santa Cruz, Francisco Abreu, entre outros, ao produzirem<br />

textos polêmicos, granjearam apoio para a sua oposição fora da Companhia de Jesus, de<br />

modo a contribuir para o extravasamento das controvérsias internas para setores alheios<br />

à Ordem.<br />

Os efeitos externos dessa convulsão interna começaram a prejudicar a imagem<br />

da Companhia, tornando-a mais suscetível aos ataques do seus inimigos. A turbulência<br />

gerada teve tamanho impacto que Felipe II da Espanha e I de Portugal chegou a tomar<br />

posição solicitando ao Papa uma intervenção direta no sentido de repreender a Ordem.<br />

Os jesuítas dissidentes conseguiram obter, do Papa Clemente VIII (1592-1605), a<br />

convocação de uma Congregação Geral com o objetivo de efetuar uma sindicância à<br />

atuação do Superior Geral. A V Congregação Geral, reunida em 1592, acabou por<br />

inocentar o Padre Aquaviva de qualquer procedimento errôneo e contrário às<br />

Constituições, confirmando-o na direção da Companhia de Jesus, inclusive conferindo-<br />

lhe autoridade para fazer calar os descontentes.<br />

Ao longo da existência da Companhia, o antijesuitismo persegue implacável a<br />

ação dos inacianos nos diferentes cenários em que se instalam. Na Europa, o<br />

antijesuitismo manifesta-se nas disputas, nos debates e nas polêmicas ocorridas em<br />

torno da ambição dos “Padres Negros” em conquistar poder e riquezas, bem como<br />

expandir sua ação educativa; no Oriente e na África, desenvolve-se especialmente nas<br />

controvérsias sobre os métodos missionários, sobre a prática comercial dos jesuítas e em<br />

torno das disputas territoriais de missão e de influência; no Brasil, o antijesuitismo


ganha visibilidade nos vários conflitos com os colonos por causa da questão da<br />

escravidão dos índios e da administração espiritual e temporal das aldeias missionárias.<br />

Em todas as ocorrências, os franciscanos são parte envolvida, desde a “querela<br />

dos ritos” no Oriente, passando pelo questionamento do monopólio missionário dos<br />

jesuítas no Japão, pelas reivindicações da primazia missionária no Maranhão, e,<br />

finalmente, pelo apoio aos colonos paulistas e maranhenses, até a expulsão da<br />

Companhia do Brasil.<br />

A mitificação dos jesuítas, produzida ao longo dos séculos pela militância<br />

propagandística do movimento antijesuítico, tem início no seio da própria Igreja. Na<br />

evolução da história da Companhia, o legado antijesuítico foi sendo apropriado por<br />

outros setores menos comprometidos com as instituições eclesiásticas: no Iluminismo, o<br />

antijesuitismo foi bandeira dos adversários regalistas contrários à supremacia do poder<br />

papal sobre os Estados Nacionais; no tempo do liberalismo e do republicanismo, após o<br />

retorno dos inacianos, o antijesuitismo foi recriado pelas elites nacionalistas e pelos<br />

mais acerbos intelectuais anticatólicos.<br />

Paradoxalmente, os jesuítas foram vítimas do seu próprio sucesso. Quanto mais<br />

visível era o poder da Companhia, projetado internacionalmente, mais opositores se<br />

adensavam contra ela. O Breve que extinguiu a Companhia de Jesus acusou-a de haver<br />

semeado, “logo quase desde o princípio”, discórdias e emulações não só entre os sócios,<br />

“mas também com as outras Ordens Religiosas; com o Clero Secular; com as<br />

Academias; com as Universidades; com as Escolas Públicas; e até com os mesmos<br />

Príncipes, em cujos domínios havia sido admitida”. 371 Eram todos contra a Companhia.<br />

Armadilhados pelos seus inimigos, numa espécie de pensamento circular que<br />

transformava os êxitos alcançados pela Companhia em provas “insofismáveis” dos seus<br />

mais abomináveis crimes e do seu monstruoso projeto de dominação universal, os


jesuítas pagaram uma alto preço por sua própria eficiência. 372 Entre as acusações mais<br />

freqüentes que se acumulavam contra os jesuítas destacava-se “a demasiada cobiça dos<br />

bens terrenos”. 373 Era público e notório que os jesuítas, ao longo dos séculos,<br />

acumularam invejável patrimônio, de modo que, aos seus acusadores, não foi custoso<br />

reunir as provas que precisavam para materializar pretensos crimes, tais como a<br />

usurpação de bens e de heranças, o comércio desleal, o saque às riquezas nacionais e<br />

uma série de intrigas alimentadas pelos adversários dos padres inacianos.<br />

5.3. A força da palavra<br />

Os jesuítas, ora “vilões”, ora “vítimas”, ao sabor das tendências e das versões da<br />

história, foram vencidos pelas mesmas armas que utilizaram com maestria para se<br />

transformarem na Ordem Religiosa mais influente e importante do período moderno: a<br />

força da palavra. Na percepção de Franco e de Vogel, a mitificação dos jesuítas<br />

“começa a ganhar consistência quando passa do boato, da calúnia da suspeita<br />

oralizante à forma sistematizada pela linguagem escrita; em suma, quando se consuma<br />

literalmente com coerência doutrinária”. 374 Segundo os mesmos autores, Pombal, o<br />

grande fundador do “mito jesuítico”, em Portugal, foi responsável pela produção e<br />

difusão de vasta e prolixa forma literária de conteúdo doutrinário. O Marquês “escreve,<br />

promove, supervisiona e patrocina a produção de obras, de panfletos, de libelos, leis e<br />

iconografia contra os jesuítas”. 375<br />

371<br />

Breve do Santíssimo Padre Clemente XIV pelo qual a Sociedade chamada de Jesus se extingue, e<br />

suprime em todo o Orbe. Op. cit., n.º 17.<br />

372<br />

Cf. Erros ímpios e sediciosos que os Religiosos da Companhia de Jesus ensinaram aos Réus, que<br />

foram justiçados, e pretenderam espalhar pelos Povos destes Reinos, Lisboa: Officina de Miguel<br />

Rodrigues, Impressor do Eminentíssimo Cardeal Patriarca, 1759.<br />

373<br />

Breve do Santíssimo Padre Clemente XIV pelo qual a Sociedade chamada de Jesus se extingue, e<br />

suprime em todo o Orbe. Op. cit., n.º 20.<br />

374FRANCO, José Eduardo et VOGEL, Christine. Monita Secreta - Instruções Secretas dos Jesuítas:<br />

História de um Manual Conspiracionista. Lisboa: Roma Editora, 2002, p. 58.<br />

375 Idem, p. 58.


Entre todos os textos e libelos antijesuíticos, o mais famoso quanto destrutivo,<br />

sem dúvida alguma, foram os “Monita Secreta” ou “As Instruções Secretas dos<br />

Jesuítas”. Apesar de, reconhecidamente, serem uma grosseira falsificação, cuja autoria<br />

foi atribuída a Jerônimo Zahorowski, ex-jesuíta de origem polonesa, expulso da<br />

Companhia, em 1613, ganharam larga divulgação internacional, através de inúmeras<br />

edições sucessivas em várias línguas. Os “Monita Secreta” tornaram-se um símbolo e<br />

uma referência inspiracional do antijesuítismo. Mesmo quando os detratores do<br />

jesuitismo reconheciam os “Monita” como documento forjado para efeitos polêmicos,<br />

“consideravam que o espírito que guiava a ação dos jesuítas estava bem espelhado<br />

nestas instruções elaboradas pelo ex-jesuíta polaco”. 376<br />

O “mito jesuítico” realça, de modo especial, a “vontade de poder” da<br />

Companhia. Os “Monita” tinham o objetivo de instruir os superiores sobre os meios de<br />

fazê-la prosperar, ainda que, para atingir tal fim, fosse necessário “subverter a situação<br />

política e incitar todos os príncipes amigos dos nossos a fazerem mutuamente guerra<br />

sem tréguas, a fim de que em toda parte se implore o auxílio da Companhia” para que,<br />

“por fim, a Companhia, assim que tenha obtido o favor e a autoridade dos príncipes,<br />

tentará ser ao menos temida por aqueles que não a amam”. 377 Tão maquiavélico quanto<br />

delirante, nem por isso a alguns o intento deixou de parecer verossímil.<br />

conquistador.<br />

Inácio de Loyola, de fato, foi descrito como um homem de guerra, um<br />

“O que não pode realizar com as armas, por causa do obus que o<br />

tornou enfermo no cerco de Pamplona, quis realizá-lo como<br />

religião, criando uma ordem ao mesmo tempo militar e religiosa.<br />

Não o comparam aos maiores conquistadores e monarcas de<br />

376 Idem, p. 55.<br />

377 Monita Secreta. Dos meios de fazer prosperar a Companhia, Cap. XVII, in FRANCO, José Eduardo<br />

et VOGEL, Christine. Op. cit., p. 100.


história? Com Otávio, com Mahomet, com Fernando Cortês, com<br />

Pedro o Grande, com Frederico o Grande, com Napoleão?”. 378<br />

Se Inácio, após a conversão, abdicou das armas, o mesmo não se pode dizer dos<br />

seus companheiros. Na história da missões jesuíticas, no Paraguai, o Padre Antônio<br />

Ruiz de Montoya é mais um dos representantes típicos do espírito militante da<br />

Companhia de Jesus. Militar antes de entrar para a Companhia, como Santo Inácio, mas<br />

que, sob a roupeta da Ordem, conservou o mesmo ardor combativo. Nas palavras de<br />

Jaime Cortesão, “sua vida foi uma batalha. Antes e depois de entrar na Companhia”. 379<br />

Contra os Bandeirantes de São Paulo, os jesuítas espanhóis não tiveram escrúpulos de<br />

pegar em armas, muito antes de obterem autorização oficial.<br />

Documentos pertencentes à “Coleção De Angelis”, adquirida pela Biblioteca<br />

Nacional do Rio de Janeiro, em 1853, mas tardiamente utilizada pelos historiadores,<br />

contêm verdadeiras revelações destinadas a revolucionar a história das bandeiras.<br />

Com o argumento de fazer frente aos paulistas, o Padre Montoya, Superior das<br />

Missões do Gauirá 380 , estabelecidas num território de soberania duvidosa, pensou em<br />

armar, com armas de fogo, os índios das reduções, assumindo, temerariamente, funções<br />

que pertenciam aos representantes do poder real; em 1627, obteve permissão do<br />

Provincial e do próprio Padre Geral para utilizar as armas. Uma petição de Montoya ao<br />

Vice-Rei do Peru solicitava o envio de quinhentos canhões e de setenta barris de<br />

pólvora. 381 Outro documento da “Coleção De Angelis” comprova o alto poder de fogo<br />

dos índios aldeados pelos jesuítas espanhóis: inspeção realizada pelo Governador do<br />

Paraguai às reduções jesuíticas do Paraná e do Uruguai encontrou, ao todo, seiscentos e<br />

378 LEROY, Michel. Op. cit., p. 120.<br />

379 CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, Vol. I, op. cit., p. 302.<br />

380 Região que, hoje, corresponde à parte do Estado do Paraná.<br />

381 Petição do Padre Antônio Ruiz de Montoya ao Vice-Rei do Peru sobre as armas de fogo necessárias à<br />

defesa dos indígenas contra as invasões de portugueses, constante em VIANNA, Hélio (introdução, notas<br />

e sumário). Manuscritos da Coleção de Angelis - Jesuítas e Bandeirantes no Uruguai: 1611-1758),<br />

Vol. IV, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1970, pp. 434-437.


nove armas de fogo e mais cento e cinqüenta enviadas por Sua Majestade, o Rei da<br />

Espanha. 382<br />

A maior arma do Padre Montoya, porém, foi a palavra. Jaime Cortesão, um dos<br />

pesquisadores a se debruçarem sobre o rico material da “Coleção”, chama a atenção<br />

para o fato de aparecerem, nesses documentos, vários trechos riscados e, por vezes, de<br />

tal forma “que sua leitura se torna tão difícil como o mais obscuro palimpsesto”. 383<br />

Dirigidos aos Padres Provinciais ou ao Geral da Companhia, esses documentos guardam<br />

os sinais do trabalho de adaptação a que foram previamente submetidos, para serem<br />

incluídos nas cartas ânuas da Província do Paraguai, que como, sabemos, cumpriam<br />

uma finalidade publicitária dos feitos edificantes da Companhia. Os trechos riscados<br />

omitiam, por exemplo, o uso das armas de fogo, pelos jesuítas espanhóis contra os<br />

bandeirantes, sem provocações ou ataques às missões por parte dos segundos, bem<br />

como outras agressões. 384<br />

A análise dos documentos, em especial as cartas dirigidas aos Superiores da<br />

Companhia, quando confrontadas com outros escritos de cunho propagandístico, entre<br />

elas a “Conquista Espiritual”, escrita em Madrid, no ano 1639, e vários memoriais<br />

dirigidos ao Rei e ao Conselho das Índias, todos de autoria do Padre Montoya, após a<br />

expulsão dos jesuítas do Guairá, revelaram versões que “variam até à pura antítese”. 385<br />

Os relatos da ”Conquista Espiritual” faziam dos jesuítas e de seus aldeados vítimas<br />

indefesas ante a ferocidade dos bandeirantes que investiam contra tudo, invadindo<br />

382<br />

Relação das armas de fogo achadas nas reduções do Paraná pelo Governador D. Jacinto de Laris,<br />

idem, pp. 437-439. No Volume I dos Manuscritos da Coleção de Angelis – Jesuítas e Bandeirantes no<br />

Guairá, consta, às pp. 433s., cópia da Petição do Padre Montoya ao Rei da Espanha, de 1640, para que as<br />

Reduções pudessem ter armas de fogo para sua defesa contra ataque dos paulistas.<br />

383<br />

CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, Vol. I, op. cit., p. 34.<br />

384<br />

Idem, p. 310.<br />

385<br />

CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, Vol. II, op. cit., p. 59.


casas, profanando templos, trucidando os índios, inclusive crianças. 386 Comparando a<br />

primeira versão dessas cartas, escritas sob a impressão dos acontecimentos, com a<br />

segunda versão, redigida e publicada mais tarde, em Madrid, “observa-se que de uma<br />

para outra se deu uma desfiguração da narrativa”. 387 Montoya procurou insinuar,<br />

através dos seus escritos para edificação de Filipe IV, dos seus conselheiros e dos pios<br />

leitores, que os paulistas, “quase todos hereges e judeus, eram autênticos instrumentos e<br />

aliados de Satanás, e aos quais este recorria para satisfazer seus danados intuitos”. 388<br />

A divulgação da segunda versão, que passou a ser a fonte principal da<br />

historiografia, e o encobrimento da primeira consagraram a imagem distorcida dos<br />

bandeirantes ainda, hoje, partilhada por quase todos os historiadores sul-americanos:<br />

“‘Corsários’, ‘piratas’, ‘bandidos’, ‘bestas feras’, eis os qualificativos com que os<br />

bandeirantes são mimoseados nas crônicas e ou documentos avulsos dos jesuítas<br />

espanhóis”. 389 Cortesão afirma que “foi sobre a mais tendenciosa, falsa e truculenta<br />

destas versões que Capistrano de Abreu, com ser um mestre e dos maiores, formou a<br />

sua opinião dos bandeirantes e dum largo período das bandeiras”. 390 Assentindo, sem<br />

crítica, as narrações de terríveis atrocidades cometidas pelos bandeirantes, um<br />

Capistrano indignado pergunta: “Compensará tais horrores a consideração de que por<br />

favor dos bandeirantes pertencem agora ao Brasil as terras devastadas?” 391 Em outro<br />

trecho, continuou Cortesão o seu comentário: E assim, com sua grande autoridade de<br />

historiador e a sobriedade dogmática de mestria e estilo, que lhe era tão peculiar,<br />

Capistrano estabeleceu doutrina”. 392<br />

386<br />

CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, Vol. II, op. cit., p. 58s..Cortesão põe em<br />

dúvida uma série de casos horripilantes atribuídos aos bandeirantes pelos jesuítas.<br />

387<br />

CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, Vol. II, op. cit., p. 38.<br />

388<br />

CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, Vol. I, op. cit., p. 24<br />

389<br />

Idem, p. 24..<br />

390<br />

Idem, p. 30.<br />

391<br />

ABREU, Capistrano. Capítulos de História Colonial: 1500-1800, op. cit., p.184.<br />

392<br />

CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, Vol. I, op. cit., p. 24.


Apesar de duras, as críticas de Cortesão têm procedência. Provam-nas obras<br />

atuais, de cunho didático, como a de Luiza Volpato, intitulada “Entradas e Bandeiras”,<br />

cuja 5ª edição data de 1997. A autora declara que seu livro foi escrito “com o objetivo<br />

de recuperar o bandeirante como um homem comum do seu tempo”, depurando a<br />

ideologia presente “tanto na fala oficial, como no senso comum”. Na introdução, onde<br />

apresenta o intento de cada capítulo, destaca os autores que serviram de fundamento de<br />

suas pesquisas: Pedro Taques, Afonso de Taunay, Alcântara Machado, além de<br />

Capistrano de Abreu, que também constam na Bibliografia, entre outros autores que<br />

endossam as teses jesuíticas. No entanto, a obra não faz referências aos trabalhos mais<br />

críticos, surgidos a partir dos estudos dos documentos que, hoje, já estão disponíveis. A<br />

autora também não questiona uma série de elementos presentes nas narrativas que têm<br />

sua origem nas fontes jesuíticas. Serve de exemplo o que expõe na página 82:<br />

“Os padres e seus catecúmenos defendiam-se como podiam,<br />

porém em desvantagem. Os paulistas atacavam de surpresa e<br />

eram favorecidos pelo uso das armas de fogo, cuja utilização era<br />

proibida aos jesuítas”. 393<br />

Hábeis na forma de produzir a história que os beneficiavam, os jesuítas, através<br />

da sua arma mais poderosa, a palavra, que não enferruja como os canhões e os<br />

arcabuzes, nem perde as suas propriedades, ao longo do tempo, como a pólvora,<br />

continuam a mutilar à posteridade a imagem dos que elegeram como adversários.<br />

Da mesma forma que fizeram com os franciscanos, os jesuítas também<br />

intentaram apagar da história o nome dos principais líderes das Bandeiras. Nomes,<br />

como o de Raposo Tavares, entre outros líderes bandeirantes, só vieram a constar dos<br />

393 VOLPATO, Luiza. Entradas e Bandeiras, 5ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p.82. Grifo nosso.


trabalhos historiográficos, a partir do século XX. Segundo Cortesão, Washington Luís,<br />

que escreveu uma monografia sobre o tema das bandeiras (1904), foi o primeiro a<br />

chamar a atenção para os silêncios de “América Abreviada”, obra do Pe. João de Sousa<br />

Ferreira, redigida em Belém do Pará, em 1686. Apesar de o Padre geógrafo fazer largas<br />

referências à grande bandeira de Raposo Tavares e aos últimos sobreviventes da<br />

expedição que, naquela cidade, residiam, cala todos os nomes. Exemplo mais flagrante é<br />

a obra do Pe. Simão de Vasconcelos, “Notícias das Coisas do Brasil”, que, ao refletir<br />

conhecimentos geográficos adquiridos durante a grande bandeira de Tavares, também<br />

cala sobre as suas fontes. De igual modo, o Padre Montoya, nos seus memoriais,<br />

denuncia Raposo Tavares ao Rei, como “o principal autor” das destruições das missões<br />

do Paraguai. Mas o mesmo Padre Montoya, na “Conquista Espiritual”, quando narra tão<br />

drasticamente as proezas de Tavares, cala também o seu nome. 394 Os processos<br />

implacáveis de proscrição dos inimigos exigem o total apagamento de seus nomes das<br />

nossas memórias.<br />

Os bandeirantes, não obstante as inimizades com os jesuítas, foram simpáticos<br />

aos franciscanos. Um testemunho dessa preferência é preservada numa carta do<br />

governador de Vila Rica, na Serra de Maracaiu, na época em que a tropa de Antônio<br />

Pereira de Azevedo, destacada da Bandeira de Raposo Tavares, atacou as vizinhas<br />

missões dos Itatines. A carta, datada de 14 de novembro de 1648, transmitia as aflições<br />

do governador da Vila ao governador do Paraguai e, na conclusão, sugere: “Sou de<br />

parecer que viessem dois religiosos do Senhor São Francisco para reter a fúria do<br />

inimigo, por ser afetos dele”. Poucos anos mais tarde, um franciscano espanhol gaba-se,<br />

em relatório que consta na “Coleção De Angelis”, de que “os bandeirantes haviam<br />

declarado guerra aos jesuítas, mas os poupavam a eles”. 395<br />

394 Idem, pp. 14ss.<br />

395 CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, Vol. I, op. cit., p. 251 s.


Explica Cortesão que essa simpatia entre bandeirantes e franciscanos, levando-<br />

os a estreitar sua oposição aos jesuítas, não passou de episódios da luta que vinha desde<br />

a Europa feudal e que a Companhia de Jesus remontou na América: “Jesuítas e<br />

franciscanos opuseram-se como duas forças de sentido contrário: uma, que aspirava ao<br />

poder teocrático; a outra de tendência democrática”. A conclusão de Vianna Moog, em<br />

polêmica obra, confluiu na mesma direção. Era inevitável a luta entre o bandeirante e o<br />

jesuíta, porque, “ao mesmo tempo que este encarnava a Contra-Reforma, o desejo de<br />

retorno à unidade espiritual da Idade Média, sob a égide do Papado, o bandeirante,<br />

consciente ou inconscientemente, já era o grande instrumento do capitalismo moderno,<br />

irmão gêmeo da Reforma, nascido do mesmo galho e da mesma gota de orvalho”. 396 O<br />

que estava em jogo eram dois sentidos distintos da política: o jesuíta, que visava à<br />

instituição de um Estado teocrático independente, um Estado jesuítico dentro do Estado<br />

temporal, e o franciscano, que, ao se preservar das instâncias de mando e de poder,<br />

contribuiu para a afirmação dos poderes civis e temporais, em especial, das pretensões<br />

populares e das suas organizações políticas locais.<br />

Em São Paulo, tanto quanto no Pará e no Maranhão, a pretensão dos jesuítas<br />

chocou-se com a proeminência das Câmaras. Essa instituição, transplantada de Portugal,<br />

vingou esplendidamente nessas regiões. As velhas tendências de autonomia local, que<br />

as Câmaras traziam da Metrópole, desenvolveram-se, de fato ou de direito, a ponto de<br />

colidir com os poderes do Estado. Lembra Cortesão que, em 1655, D. João IV concedeu<br />

aos moradores do Pará e do Maranhão os direitos excepcionais de cidadãos do Porto.<br />

Belém e São Luís emparelhavam-se “à única cidade que, em Portugal, durante a Idade<br />

Média, se erguera à condição de república urbana, dirigida pela sua Câmara –<br />

396 MOOG, Vianna. Bandeirantes e Pioneiros: Paralelo entre duas Culturas, 4ª ed., Rio de Janeiro,<br />

Porto Alegre, São Paulo: Editora Globo, 1957, p. 216.


pequeno Estado dentro do Estado”. 397 A temerária sagração desse direito, mais do que<br />

outros motivos, explica os conflitos entre os poderes locais e o poder do Estado colonial<br />

português, e entre todos com o ambicioso projeto da Companhia de Jesus, em razão das<br />

suas tendências paralelas de autonomia. Os jesuítas encontraram pela frente um cidadão<br />

engrandecido por um passado heróico e com uma viva consciência dos seus direitos.<br />

Mais de do que outros, afirma Cortesão, que o homem do Pará “formara-se na luta<br />

diuturna e épica contra o inimigo: Franceses, Ingleses e Holandeses, sem excluir os<br />

Espanhóis”. 398 Em lutas semelhantes, no ímpeto de expansão e de defesa do território,<br />

forjaram-se de cicatrizes igualmente o maranhense e o paulista. Eis a situação que deu<br />

orgulhosa consciência dos seus direitos próprios e da legitimidade da primazia do poder<br />

temporal que já então evoluíra no amplo sentido da autonomia. Tal não era novidade<br />

para os franciscanos, entre os quais se destaca Guilherme de Ockham, e sua filosofia<br />

política, na defesa da autonomia da esfera temporal do poder, ante a tese da plenitudo<br />

potestatis . 399<br />

A manipulação da palavra para efeitos da propaganda jesuítica deixou suas<br />

marcas na historiografia. Para alguns, a afeição entre bandeirantes e franciscanos foi<br />

interpretada como prova de que esses missionários não se insurgiam contra a escravidão<br />

dos índios. Hoornaert e colaboradores, ao compararem franciscanos e jesuítas, afirmam<br />

que apenas os últimos tiveram “uma verdadeira procura do indígena e da defesa de sua<br />

‘liberdade’” ao passo que vêem “os franciscanos acompanhar as bandeiras que caçam<br />

indígenas, e mesmo animar as guerras regulares contra os indígenas”. 400 Constata-se<br />

que, nem sempre, a mentira tem pernas curtas. Às vezes, dura séculos ou milênios e<br />

acaba sagrada como verdade imemorial. Dentro da ética dos que desejam dominar, a<br />

397<br />

CORTESÃO, Jaime. Introdução à História das Bandeiras, Vol. II, op. cit., p. 19.<br />

398<br />

Idem, p. 18.<br />

399<br />

OCKHAM, Guilherme. Obras Políticas, Porto Alegre: EDIPUCRS; Bragança Paulista: USF, 1999.


legitimidade dos fins prevalece inteiramente sobre os meios. Em nome de uma crença,<br />

de uma filosofia ou de um objetivo político absoluto, a fraude, a calúnia, a omissão<br />

podem mudar de sentido e de valor, e de, vícios, podem transfigurar-se em virtudes. O<br />

próprio ser humano transforma-se num instrumento cego em mãos de uma fatalidade<br />

abstrata.<br />

5.4. A metáfora da guerra e a razão belicista<br />

Na ótica dos próprios jesuítas, encontramos, ainda, outras razões que os fizeram<br />

tão combativos. A lógica hierárquica que elegeram para fundar o seu Instituto é a<br />

mesma que utilizavam nas suas relações externas. A constituição de hierarquias é<br />

produtora de exclusões. Para que haja primeiros e vencedores, é necessário que os<br />

demais sejam derrotados. A lógica, que confere aos primeiros tudo e aos outros as<br />

sobras, explica, em parte, os embates entre jesuítas e franciscanos em ânsias de<br />

legitimar as “primazias”. A racionalidade subjacente ao pensar e ao operar dos jesuítas,<br />

não obstante seu esforço institucional inovador, pautou-se pela velha lógica belicista da<br />

qual todos somos órfãos. 401<br />

Ao modo que destacou Linhares, “todos nós estamos constituídos por uma<br />

racionalidade e uma política que têm na guerra uma metáfora construída como uma<br />

pilastra onde a idéia de estado se apoiava e se expandia”. 402 Ainda seguindo essa<br />

autora, Platão justificava a luta pela apropriação de recursos e terras para atender as<br />

necessidades de todo estado ao afirmar que, para “(...) cada estado, a guerra é sempre<br />

incessante e perpétua (...). Pois aquilo que a maioria dos homens chama de ‘paz’, na<br />

400 HOORNAERT, Eduardo et. alii. Op. cit. p., 54 s..<br />

401 LINHARES, Célia. Órfãos de Guerra? A Educação nos Labirintos de Tempos e Espaços<br />

Contemporâneos, in VIELLA, Maria dos Anjos (Org.). Tempos e Espaços de Formação, Chapecó:<br />

Argos, 2003.<br />

402 Idem, p. 13s.


verdade é só um nome, (...) todos os estados, por sua própria natureza, estão sempre<br />

travando uma guerra informal contra todos os outros estados”. 403<br />

Nossa civilização desenvolveu-se através da constituição “de hierarquias,<br />

excludências, e, portanto, de diferentes ordens de violência” que fez prevalecer “uma<br />

política de controle aos processos de diferir, de se comunicar e de amar, também<br />

latentes na humanidade, como, em um sentido amplo, na própria vida”. Por esse<br />

motivo, continua Linhares, “ora fomos ou somos soldados de Cristo, ora assumimos o<br />

combate contra as trevas da ignorância como professores, ora, ainda, nos alinhamos às<br />

guerras contra as bactérias e as doenças em prol de uma decantada quanto reduzida<br />

concepção de saúde, identificando-a com a ausência de enfermidades”. 404<br />

Havendo muitos modos de viver, de pensar e de conhecer o mundo, o ímpeto<br />

humano de conquista e de domínio, uma vez consumado, seja pela via da guerra, da<br />

violência física e simbólica, ou seja por uma racionalidade científica que alia<br />

conhecimento a poder para submeter a natureza, tem como conseqüência a imposição de<br />

singularidades que assumem caráter universal. Nesse sentido, dominar é o mesmo que<br />

reduzir ou aniquilar a diversidade. A vontade de domínio não é um fenômeno exclusivo<br />

da modernidade. Assim é que as civilizações em expansão, a seu tempo, tornaram-se<br />

fortes à medida que incorporaram ou destruíram as demais. O alargamento das<br />

fronteiras territoriais implica na supressão das referências demarcatórias originais e na<br />

submissão política e militar dos povos que passam a ser governados sob as ordens de<br />

um mesmo centro jurídico-político-administrativo. As economias tornam-se reguladas<br />

pela moeda forte do conquistador, bem como impinge-se a língua oficial, em referência<br />

à qual as outras, então classificadas de dialetos, perdem eloqüência. Deuses<br />

transformam-se em ídolos e crenças são perseguidas como se fossem superstições e<br />

idolatrias. O próprio cristianismo, nos estertores da Antigüidade, antes perseguido e<br />

403 Apud, LINHARES, Célia. Idem, p. 14.


marginal, após ter adquirido o status de religião do Estado, solidificou sua hegemonia<br />

na perseguição das demais religiões, consideradas pagãs.<br />

Dos sumérios, dos babilônios, dos egípcios, dos persas, dos gregos e dos<br />

romanos, passando aos cristãos antigos e medievais, cruzados “libertadores” dos lugares<br />

santos, cristão ibéricos em tempos de reconquista, portugueses e espanhóis<br />

conquistadores de novos mundos, até chegar ao capitalismo globalizante, culminando<br />

com a atual hegemonia militar norte-americana, numa sucessão ininterrupta, vimos<br />

vencer e perecer movimentos de resistência, de conquista e de dominação. A herança<br />

que recebemos dos nossos antepassados continuou a produzir, a partir do Ocidente,<br />

formas sutis de dominação, militar, territorial, política, econômica, comercial,<br />

tecnológica, científica, cultural, religiosa, de modo que aprendemos a constituir o nosso<br />

viver e operar, no mundo, sob a égide do que se chamou “metáfora da guerra”.<br />

Nem sempre o agir e o pensar andam em descompasso. Apesar de o século XVI,<br />

palco onde surgiu a Companhia de Jesus, ter sido um tempo de viragem paradigmática,<br />

os jesuítas não aderiram ao movimento da Nova Scientia. O cristianismo antigo e,<br />

especialmente, o medieval, após o século XIII, conferiram validade ao sistema racional<br />

aristotélico. Ainda que, num primeiro momento, tenha sido alvo de censuras e de<br />

críticas, tornou-se referência obrigatória, a partir da elaborada síntese escolasticista de<br />

São Tomás de Aquino. Passados os tempos de suspeita – afinal, o próprio doutor<br />

angélico, por causa de suas teses aristotélicas, teve de responder às interpelações do<br />

Santo Ofício – o aristotelismo consagragou-se como a “melhor” formulação filosófica a<br />

se compatibilizar com as necessidades teológico-doutrinárias da Igreja. Nisso, os<br />

jesuítas tiveram um papel importante, uma vez que a filosofia aristotélico-tomista foi<br />

adotada como principal referência fiosófico-teológica da Companhia. Em verdade, a<br />

Companhia de Jesus organizou-se sob os princípios aristotélicos da universalidade, da<br />

404 LINHARES, Célia. Idem.


ordem, da hierarquia e da univocidade, que, na praxis jesuítica, consolidou a<br />

uniformidade pela supressão das diferenças.<br />

Nos Colégios da Companhia de Jesus, a doutrina filosófica de cunho aristotélico<br />

constituía o famoso Curso Conimbricence, de autoria dos jesuítas portugueses, seguido<br />

à risca, durante todo o século XVII. O Curso Conimbricence, ou os Conimbricences, foi<br />

um marco muito importante na restauração escolástica ocorrida nos centros<br />

universitários, entre o final do século XVI e o princípio do século XVII.<br />

O aristotelismo, cultivado nas universidades européias da época, foi a base<br />

principal da educação jesuítica. Mas, paradoxalmente, essa opção institucional pelo<br />

aristotelismo-tomista foi responsável pela atitude jesuítica de “absenteísmo” em face da<br />

nova ciência que refundou todo o corpo do conhecimento filosófico-científico da Idade<br />

Média. Galileu, Kepler, Harvey, Pascal, Descartes, Leibniz, Newton, Torricelli ou<br />

Mariotte são expoentes que se sucedem, conferindo grande avanço às ciências, como a<br />

astronomia, a medicina, as matemáticas, a física, bem como à antiga mãe das ciências, a<br />

filosofia.<br />

Isso não significa que os jesuítas desconheciam as mudanças filosóficas e<br />

científicas que iam ocorrendo na Europa, e não houvesse jesuítas muito interessados e<br />

conhecedores dessas transformações, gente de altíssimo cabedal intelectual que não<br />

tivesse tomado consciência do real valor das novas propostas e também de seus erros e<br />

perigos para a ortodoxia. É evidente que os houve, e, à medida que se avançou, no<br />

século XVIII, maior foi o número dos que, com grande entusiasmo, como o Padre<br />

Inácio Monteiro, defenderam as novas idéias e, lentamente, tornaram-se, como ele,<br />

ecléticos. Devido às suas idéias chegou mesmo a ser admoestado pelos superiores de<br />

Roma em resposta a uma carta que escrevera. 405<br />

405 MONTEIRO, Miguel Corrêa. A Companhia de Jesus Face ao Espírito Moderno, 2ª Parte, Lisboa:<br />

Universidade de Lisboa, mimeo, s/d.


Antes disso, porém, boa parte dos membros da Companhia de Jesus foi<br />

especialmente crítica aos aspectos centrais da nova ciência. Paralelamente, estando a<br />

Companhia envolvida no projeto de expansão religiosa no Ultramar, novas questões<br />

colocavam-se não apenas no âmbito das ciências da natureza, mas também das ciências<br />

humanas. Em conseqüência, temas como a fauna e a flora não-européias, questões como<br />

o estatuto jurídico dos povos ameríndios ou dos escravos de origem africana ganhavam<br />

importância crescente no programa de estudos filosóficos e científicos da Companhia de<br />

Jesus. Professores das universidades e dos colégios jesuítas juntavam, desse modo, às<br />

atividades pedagógicas, a tarefa de emitir pareceres acerca de temas teológicos e morais.<br />

Tal foi o caso de Luís de Molina quando professor na antiga Universidade de Évora.<br />

Os jesuítas conheciam a filosofia moderna e até contribuíram a seu modo para<br />

divulgá-la, porque quem comenta, ainda que de modo desabonador, divulga. No<br />

entanto, não foram obstinados, não recusaram o que era diferente só por recusar. As<br />

suas opções estavam feitas, há muito, e, não se deixando levar por inovações,<br />

continuaram a manter o mesmo sistema filosófico e educativo tradicional. Sendo assim,<br />

uma questão se coloca de imediato: por que os jesuítas, apesar de modernos, se<br />

mantiveram tanto tempo ligados a Aristóteles?<br />

Até a irrupção dos tempos modernos, o processo civilizatório do Ocidente esteve<br />

basicamente em conformidade à cosmovisão religiosa e a seus princípios<br />

macrorreguladores, estruturados a partir das matrizes judaico-cristãs e de suas<br />

sucessivas etapas sincréticas de helenização e de romanização pelo legado clássico. A<br />

Igreja e o seu monopólio sobre os meios básicos de orientação foram as forças<br />

legitimadoras e mantenedoras desses princípios reguladores que apenas passaram a ser<br />

rejeitados, de modo gradativo, a partir do Renascimento.<br />

Segundo Norbert Elias, ainda que a ruptura do monopólio do conhecimento<br />

exercido pela Igreja não explique, por si só, o surgimento de uma alternativa à visão


eligiosa de mundo, através da abertura de uma via para o surgimento do conhecimento<br />

de tipo científico, constituiu a conditio sine qua non para que a gênese da ciência<br />

moderna pudesse produzir-se. Casos como o de Giordano Bruno e de Galileo são<br />

reveladores dos meios de que se servia a Igreja para conservar o seu monopólio do<br />

conhecimento e a sua vigilante e constante luta contra o conhecimento considerado<br />

desviado e perigoso. 406<br />

O conhecimento científico, através da combinação da aprendizagem individual<br />

da observação e da reflexão, e não mais apoiado no conhecimento revelado e no<br />

conhecimento deduzido ou axiomático, produziu novos saberes, com freqüência,<br />

contraditórios à autoridade estabelecida. A ciência produziu um novo princípio<br />

regulador de grande alcance, em substituição ao anterior. A partir do século XVII,<br />

vigorou com toda a força, produzindo a modernidade. Ora, os jesuítas foram, a um<br />

tempo, o braço miliciano da Igreja, no intuito de combater os efeitos danosos de uma<br />

modernidade que seculariza a vida e o mundo, através de novas teorias científicas. Os<br />

jesuítas não apenas defendiam a ortodoxia, mas amparavam o papado e a própria<br />

instituição eclesiástica, no intuito de reforçar o poder e a autoridade da Igreja,<br />

ameaçados pelas Reformas Protestantes. A defesa protestante do livre exame das<br />

Escrituras questiona e abala a secular prerrogativa da Igreja de ser a única e legítima<br />

instância capacitada a interpretar a Palavra de Deus à luz da tradição viva dos Apóstolos<br />

da qual só ela era portadora e guardiã.<br />

Não devemos esquecer, também, que os jesuítas estavam sujeitos a uma<br />

disciplina muito severa, à maneira de uma organização militar, e, por isso, foi muito<br />

difícil, aos que desejavam que a Ordem se reformasse e acompanhasse os novos<br />

desafios trazidos por uma sociedade em efervescência, lutar contra uma “máquina<br />

gigantesca”, com uma tradição fortíssima e com regras tão rígidas.<br />

406 ELIAS, Norbert. Conocimiento y Poder. Buenos Aires: La Piqueta, s/d, p. 67.


Tanto pelas “Constituições” como pelo “Ratio Studiorum” – este responsável<br />

por introduzir e consolidar o primeiro sistema educacional unificado que o mundo<br />

conheceu – os jesuítas são insistentemente exortados a serem prudentes quanto à<br />

aceitação de novas doutrinas. Inácio de Loyola, nas Constituições, refere que:<br />

“... como diz o Apóstolo, devemos todos, quanto possível, ter os<br />

mesmos sentimentos e usar a mesma linguagem. Não se admitam<br />

diferenças de doutrina, nem de viva voz, nas pregações ou lições<br />

públicas, nem nos livros, que aliás não se poderão publicar sem a<br />

aprovação e licença do Superior Geral. Este fá-los-á examinar ao<br />

menos por três pessoas de doutrina segura e juízo claro sobre a<br />

matéria em questão. Mesmo nas opiniões concernentes ao<br />

domínio da ação, deve evitar-se, na medida do possível, a<br />

diversidade, que costuma ser mãe da discórdia, e inimiga da<br />

união das vontades. Esta união e acordo de uns com os outros<br />

devem procurar-se com todo o cuidado, nem se há-de permitir o<br />

contrário. Assim, unidos mutuamente pelo vínculo da caridade<br />

fraterna, poderão, melhor e com mais eficácia, trabalhar no<br />

serviço de Deus e no auxílio do próximo”. 407<br />

E, ainda, de forma mais explícita, rezam as mesmas Constituições:<br />

“Não se devem admitir doutrinas novas. Se houvesse opiniões em<br />

desacordo com aquilo que a Igreja e os seus doutores comumente<br />

sustentam, devem submeter-se ao que for decidido na Companhia<br />

como no Exame se declarou. Mesmo em pontos, sobre os quais os<br />

Doutores católicos defendem opiniões divergentes ou opostas,<br />

deve procurar-se a conformidade na Companhia”. 408<br />

Em relação aos textos das matérias a serem estudadas pelos escolásticos da<br />

Companhia, “deverá seguir-se a doutrina mais segura e mais aprovada, e os autores<br />

que a ensinam. Os Reitores atenderão a isto, conformando-se com o que for decidido<br />

para toda a Companhia, para a maior glória de Deus”. 409 E, noutro número, referente<br />

407 SANTO INÁCIO DE LOYOLA. Constituições da Companhia de Jesus, n.º 273.<br />

408 Idem, n.º 274.<br />

409 Idem, n.º 358.


ao ensino universitário lê-se: “Não se adotarão os (textos) que forem suspeitos, eles ou<br />

os seus autores”. 410<br />

utilizados:<br />

O mesmo cuidado tinham os jesuítas com relação aos livros e aos autores<br />

“Nas obras literárias de autores pagãos não se leiam passagens<br />

imorais. O resto pode a Companhia utilizá-lo como despojos do<br />

Egipto. Quanto aos autores cristãos, ainda que a obra seja boa,<br />

não se leia quando o autor for mau, para que não se venha a<br />

simpatizar com ele. E é bom se determine concretamente quais os<br />

livros que se hão-de ler e quais os que se hão-de excluir quer na<br />

literatura quer nas outras matérias”. 411<br />

Esses exemplos, acrescidos a outras passagens, por nós já citadas anteriormente,<br />

reforçam a idéia de uniformização institucional e doutrinal. Os decretos das<br />

Congregações Gerais da Companhia também zelavam para que tudo fosse seguido a<br />

risca. A adoção do ensino tradicional de São Tomás de Aquino e dos Padres da Igreja,<br />

determinado pela sétima Congregação Geral (1615), pode ser interpretado como uma<br />

estratégia da Companhia para evitar que as novas idéias surgidas, no século XVII,<br />

fossem divulgadas. Na Congregação Geral que se reuniu em Roma, de janeiro a abril de<br />

1706, Descartes foi condenado como um dos autores mais perigosos da “ciência nova”,<br />

juntamente com uma lista de trinta proposições que eram proibidas de serem ensinadas<br />

em todas as escolas da Companhia.<br />

5.5. A poética: inspiração da ciência franciscana<br />

Enquanto os jesuítas, surgidos no século XVI, elegeram a lógica silogística,<br />

binária e hierárquica de Aristóteles, sob a sistemática reflexão de São Tomás, os<br />

franciscanos, nascidos na Idade Média, mantiveram-se sob o influxo da ciência que<br />

410 Idem, n.º 464.<br />

411 Idem, n.º 359.


jamais abandonou as suas fontes de inspiração, encontradas na espiritualidade e na<br />

poética legadas à Ordem pelo próprio Francisco de Assis. O simbólico, a alegoria, a<br />

metáfora, a poesia foram os elementos preferencialmente utilizados pela linguagem<br />

franciscana, inclusive na sua modalidade científica.<br />

Francisco é o grande poeta e cantor do Irmão Sol, a fraternizar-se com todas as<br />

criaturas. Segundo o “Espelho de Perfeição”, Francisco desejou que seus frades<br />

percorressem o mundo cantando o seu “Cântico das Criaturas”, também chamado de<br />

“Cântico do Irmão Sol”, na compreensão de que os franciscanos são “os trovadores de<br />

Deus ... que devem elevar o coração do homem para conduzi-lo à alegria espiritual”. 412<br />

“Louvado sejas, meus Senhor, com todas as suas criaturas,<br />

especialmente o senhor irmão Sol, o que faz o dia e pelo qual tu nos<br />

iluminas; ele é belo e radiante com grande esplendor: de ti, Altíssimo,<br />

ele é a imagem”.<br />

Francisco compôs o seu Cântico no leito de morte, praticamente cego e<br />

atormentado pelas dores corporais. Cantando os louvores a Deus, através das criaturas,<br />

celebra a culminância de uma existência marcada pelo esforço de estabelecer com todos<br />

os seres, os terrestres e os celestes, os humanos e infra-humanos, a fraternidade<br />

universal e cósmica. Chamar o Sol, a Lua e as Estrelas, o Vento, a Água, o Fogo, a<br />

Terra e seus frutos de irmãs e irmãos, não se trata de forma de estilo ou de simples<br />

alegoria, porque, mesmo na sua vida ordinária, Francisco chamava todas as criaturas de<br />

irmão ou de irmã.<br />

Tomás de Celano, primeiro biógrafo de Francisco, com sensibilidade ímpar,<br />

soube bem descrever seu amor pelas irmãs criaturas:


“Que alegria sentia diante das flores, vendo sua beleza e sentindo o seu<br />

perfume! ... Quando encontrava muitas flores juntas, pregava para elas e<br />

as convidava a louvar o Senhor como se fossem racionais. Da mesma<br />

maneira, convidava com muita simplicidade os trigais e as vinhas, as<br />

pedras, os bosques e tudo o que há de bonito nos campos, as nascentes e<br />

tudo que há de verde nos jardins, a terra, o fogo, o ar e o vento, para que<br />

tivessem muito amor e fossem generosamente prestativos. Afinal,<br />

chamava todas as criaturas de irmãs, e de uma maneira especial, por<br />

ninguém experimentada, descobria os segredos do coração das<br />

criaturas, porque na verdade parecia já estar gozando a liberdade<br />

gloriosa dos filhos de Deus”. 413<br />

A fraternidade universal vivida por Francisco coloca os seres humanos no<br />

mesmo nível das demais criaturas. Antes de tudo, não há senhores e servos, racionais e<br />

irracionais, animados e inanimados, mas irmãos e irmãs dos humanos. Francisco liberta<br />

as criaturas das relações hierarquizadas, autoritárias e antifraternas. O mesmo Tomás de<br />

Celano escreve com delicadeza:<br />

“Aos irmãos que cortavam lenha proibia arrancar a árvore inteira, para<br />

que tivesse esperança de brotar outra vez. Mandou que o hortelão<br />

deixasse sem cavar o terreno ao redor da horta para que a seu tempo o<br />

verde das ervas e a beleza das flores pudessem apregoar o formoso Pai<br />

de todas as coisas ... Recolhia do caminho os vermezinhos para que não<br />

fossem pisados, e mandava mel e o melhor vinho às abelhas, para que<br />

não morressem de fome no frio do inverno”. 414<br />

Escondido nos bosques, algumas vezes fora flagrado por seus companheiros<br />

dançando, saltitando e cantando os mais belos louvores a Deus. Em outra ocasião,<br />

tomando do chão dois gravetos, raspava-os um no outro como se melodiosamente<br />

acompanhasse todo aquele espetáculo de amor dirigido a Deus. Um entusiasmo<br />

cândido, uma alegria nova, quase ingênua, um sentimento de pertença sideral,<br />

412 Espelho da Perfeição, n.º 1121, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco<br />

de Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano, 2ª ed., Petrópolis: Vozes /<br />

Cefepal, 1982.<br />

413 Tomás de Celano, Vida I, 29, 81, in São Francisco de Assis: Escritos e Biografias de São Francisco<br />

de Assis, Crônicas e outros Testemunhos do Primeiro Século Franciscano, op. cit..<br />

414 Tomás de Celano, Vida II, 124, 165, idem.


caracteriza a “alegria franciscana”, a transbordar em cordialidade fraterna e jovialidade<br />

do coração humano.<br />

Francisco não foi um romântico, no sentido em que o termo é vulgarmente<br />

usado, fazendo-o sinônimo de desligado do contexto histórico, ou seja, de alienado. Sua<br />

existência foi inteiramente consumida pelo desejo de restaurar a “casa de Deus”, que<br />

também é o mundo, pelo testemunho de fraternidade que encontrou, na pobreza, o modo<br />

de se fazer um com todos. Não há romantismo algum em assumir, voluntariamente, as<br />

privações impostas pela vida pobre que escolheu. Sentir fome, sede e frio, sujeitando-se<br />

a viver dependente da caridade e das esmolas, experimentar o desamparo na doença,<br />

conviver com os miseráveis e leprosos, cuidando de suas dores e feridas, não é um ideal<br />

romântico, mas a conseqüência de um projeto evangélico e profético de seguimento de<br />

Cristo.<br />

No fim da vida, no mesmo Cântico das Criaturas, também chamou a morte de<br />

irmã. Francisco foi um daqueles raros homens que souberam acolher a morte, com tal<br />

nível de integração, que foi capaz de saudá-la. Tomado de um mal generalizado, já não<br />

tinha forças para caminhar. Pele e osso, pois nenhum alimento conseguia reter no<br />

estômago debilitado, pela última vez, foi consultado pelos médicos. Esses constataram<br />

que nada mais se podia fazer, a não ser aguardar a morte. O rosto de Francisco encheu-<br />

se de uma misteriosa alegria a ponto de exclamar: “Bem-vinda sejas, minha irmã, a<br />

morte!” Como parte da saudação, compôs uma última estrofe a ser acrescentada a seu<br />

Cântico: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã morte corporal, à qual nenhum<br />

homem vivente pode escapar”.<br />

Eloi Leclerc destaca a maneira inteiramente familiar e fraternal com que<br />

Francisco fala das diversas realidades cósmicas: “Não conhece o sol, a lua, o vento, a


água, etc, mas o irmão Sol, a irmã Lua, o irmão Vento, a irmã Água, etc”. 415 Os<br />

qualificativos irmão e irmã, aplicados à realidade, segundo o autor, fazem entender que<br />

a presença franciscana no mundo é totalmente diferente daquela marcada “por uma<br />

vontade de dominação e de posse das coisas”. 416 Demonstra Leclerc que a mentalidade<br />

franciscana – repleta da força do símbolo e da expressão poética – está bem longe do<br />

universo cartesiano e de sua “filosofia prática pela qual, conhecendo a força e as ações<br />

do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos<br />

cercam, tão distintamente como conhecemos os diversos ofícios dos nossos artífices,<br />

poderíamos empregá-los da mesma maneira para todos os usos aos quais são próprios<br />

e, assim, nos tornaríamos como senhores e possuidores da natureza”. 417 A vontade de<br />

domínio do pensamento moderno contrasta com a visão franciscana da natureza. Na<br />

ótica franciscana, a natureza não está em função do ser humano e dos seus planos de<br />

progresso. Antes, como um irmão, o humano deseja dialogar com a natureza, da qual<br />

faz parte, no intuito de entrar em comunhão com os demais seres da Criação.<br />

Os tempos modernos provocaram a ruptura entre as linguagens científica e<br />

poética. Ao fazer da coisa, coisa, suprimiu a dimensão simbólica da realidade. A poesia<br />

autonomizou-se e tornou-se estritamente poesia, separada da ciência e da técnica. Por<br />

isso, para Morin, a poesia foi relegada ao lazer e ao divertimento, transformando-se num<br />

elemento inferiorizado em relação à prosa da vida. 418 Daí que, em nossas sociedades<br />

contemporâneas ocidentais, operou-se uma disjunção entre uma cultura dita científica e<br />

técnica e uma cultura humanista, literária, incluindo a poesia.<br />

Cremos que há, aqui, um importante fator que pode ajudar a melhor explicar a<br />

marginalização do pensamento franciscano, além do erro reiterado de considerar que as<br />

415<br />

LECLERC, Eloi. O Cântico das Criaturas ou os Símbolos da União, Petrópolis: Vozes, 1977, p. 21.<br />

416<br />

Idem.<br />

417<br />

Cita Leclerc trecho da parte 6ª do “Discurso do Método”, de Descartes.<br />

418 MORIN, Edgar. Amor, Poesia, Sabedoria. 2ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, pp. 37 s.


obras filosóficas dos franciscanos nasceram para opor-se ao pensamento tomista. Graças<br />

à crítica moderna, evidenciou-se que Boaventura de Bagnoregio, Duns Scotus e<br />

Guilherme de Ockham jamais redigiram suas obras como alternativas à de Tomás de<br />

Aquino, nem pretenderam construir suas sínteses filosóficas com o objetivo de combater<br />

o genial dominicano. No entanto, esse ponto de vista serviu de motivo para a rejeição da<br />

contribuição franciscana, a partir do justo momento em que a obra de Tomás de Aquino<br />

foi exaltada. Ante a grandiosa sistematização filosófico-teológica do Doutor Angélico,<br />

os pressupostos poéticos do franciscanismo não terão sido considerados inadequados<br />

pelos críticos, de modo a reforçar uma convicção sobre a fragilidade epistemológica da<br />

ciência franciscana?<br />

5.6. A poesia como herança<br />

O divórcio entre as duas linguagens, porém, não constituiu um fenômeno<br />

inaudito. Vale lembrar que, nos inícios da constituição do saber filosófico-científico, a<br />

poesia era a linguagem preferencial para comunicar a “verdade”. Mas, na grande<br />

viragem do mito à filosofia, aprofundada na travessia dos pré-socráticos aos socráticos,<br />

o logos fez seu caminho autônomo, ultrapassando o mythos, de modo que o conceito<br />

ganhou a hegemonia sobre o símbolo. 419<br />

O discurso mítico/poético, dos quais eram portadores os “mestres da verdade” –<br />

cantadores, adivinhos, decifradores de enigmas, profetas e poetas –, constituiu uma<br />

linguagem aberta, ambígua, que permite múltiplas interpretações. Entretanto, só a<br />

interpretação correta, privilégio de poucos, é salvadora. Dessa forma, estabelece-se uma<br />

relação vertical entre o divino, o poeta/profeta e o comum dos homens. A linguagem<br />

419 Idem.


mítica não é passível de discussão ou de contestação, porque não há escolha a ser feita.<br />

Trata-se de uma palavra de autoridade que ata dois mundos, o divino e o humano, o<br />

sagrado e o profano. Ou se adere a ela ou a própria existência está ameaçada.<br />

Os conflitos da constituição de uma linguagem própria para o conhecimento<br />

científico estão bem expressos nos embates de Sócrates e de Platão contra os sofistas. O<br />

interesse dos sofistas pela elaboração e pelo proferimento do discurso correto, porque<br />

eficaz, ensejou os estudos da língua grega, especialmente o desenvolvimento da análise<br />

etimológica, da gramática e da tradição literária, sobretudo da poesia épica de Homero e<br />

de Hesíodo, que lhes fornecia boa parte dos recursos estilísticos – imagens, metáforas,<br />

figuras de linguagem. Ainda que o discurso jurídico/político viesse a superar o discurso<br />

mítico/poético, ambos eram linguagens perfomáticas, e seus efeitos, como uma droga<br />

(pharmacon) poderosa, moldaram mundos para os humanos, instituíram as cidades e<br />

educaram os cidadãos.<br />

Para Platão, a filosofia tratava de um projeto político que tinha como objetivo<br />

promover a transformação da realidade. Se é contrária à tirania e à oligarquia que não se<br />

fundavam no conhecimento da verdade, a filosofia platônica, em defesa de uma<br />

aristocracia do saber, também era antagônica à democracia que admite as paixões, a<br />

opinião e os interesses individuais, e não o conhecimento verdadeiro.<br />

Nesse particular, é significativa a análise feita por Linhares acerca da expulsão<br />

dos poetas da República concebida por Platão, no período áureo da filosofia clássica<br />

grega. Expulsão essa justificada pela elaboração de conceitos que definiam os perigos<br />

que suas presenças e seus produtos poderiam trazer para o Estado, em nome da ordem<br />

necessária aos trabalhos dos dirigentes-filósofos. 420<br />

420 LINHARES, Célia Frazão Soares. Literacia Poética e Educação Política. I Congresso Internacional<br />

sobre Literacias. Universidade de Évora – Portugal, 2002, mimeo, p. 3. Ver também LINHARES, Célia.<br />

Saberes Docentes: da Fragmentanção e da Imposição à Poesia e à Ética. Revista Movimento, <strong>UFF</strong>,<br />

Niterói, nº 2, pp. 33-57 set, 2000.


A linguagem poética, forma discursiva originariamente utilizada antes da<br />

filosofia socrática, foi paulatinamente descredenciada ante a necessidade de aquisição<br />

do conhecimento verdadeiro, puro e unívoco. O diálogo socrático visa ao<br />

estabelecimento das regras da inteligibilidade que devem ser aceitas pelos<br />

interlocutores, levando-os a deixar progressivamente a opinião, que é resultado de<br />

interesses, desejos e inclinações particulares. A crítica de Sócrates aos sofistas consistiu<br />

justamente em opor às opiniões e à verdade consensual, uma verdade única sobre a<br />

natureza das coisas, estabelecendo aquilo que deve ser aceito por todos. O discurso<br />

filosófico, em busca da universalidade, tratou de superar as divergências de opinião e de<br />

assumir um caráter legislador e legitimador.<br />

Nessa mesma linha de pensamento, Aristóteles surge como o filósofo que<br />

sistematiza a razão com sua vontade de ordenação, classificação, sistematização e<br />

dominação. Aristóteles afirmará que a ambigüidade é inerente à linguagem humana,<br />

uma vez que essa dispõe de um vocabulário bastante limitado para referir-se à<br />

multiplicidade quase infinita do real. As palavras, portanto, estão sempre a criar<br />

armadilhas que apenas serão desfeitas por um rigoroso trabalho de análise que distinga<br />

os diversos significados dos termos, atribuindo a cada um deles uma definição mais<br />

precisa. Sem esse trabalho prévio, a dialética acaba por transformar-se num jogo vazio<br />

de palavras.<br />

A dialética empregada por Platão e pelos sofistas cede lugar à analítica, por meio<br />

do qual Aristóteles pretende se livrar das armadilhas sofísticas, liberando a linguagem<br />

da sua ambigüidade natural para torná-la cada vez mais transparente ao ser, cujo lugar<br />

ocupa. A linguagem atua como um espelho (é “especulativa”), de modo que a imagem<br />

do ser, nela refletida, reproduza, o quanto possível, o real. É na linguagem depurada dos<br />

equívocos, por um processo de análise, que o conhecimento científico constrói o seu


órganon, seu instrumento. Ao enunciar a ordem de modo rigoroso e claro, pode a<br />

ciência comunicá-la aos demais, tornando-a pública. Os princípios de identidade e de<br />

não-contradição, axiomas que deviam ser compartilhados por todos os participantes do<br />

discurso, sob pena de se pôr em risco a própria comunicação, garantem a sua lógica<br />

interna.<br />

A política e a ética – que por terem a praxis como objeto, e, por isso não serem<br />

consideradas ciências teóricas – fundam-se também em pressupostos metafísicos. O<br />

homem – entendido como um microcosmos – e a ordem da cidade devem, de certa<br />

forma, reproduzir a ordem do universo. Tanto o fim do homem, quanto o fim da cidade<br />

estão subordinados a fins superiores, vale dizer que fazem parte de uma cadeia causal,<br />

em cuja origem encontramos o Deus que, em sua serena e perfeita imobilidade, garante<br />

a ordem hierárquica geral.<br />

O corpo filosófico aristotélico, dada a sua rígida compleição, ao longo da<br />

história, foi sendo invocado para justificar as diferenças entre os homens. Nos debates<br />

acontecidos entre Las Casas e Sepúlveda, em Salamanca, no século XVI, o aristotelismo<br />

serviu para justificar a tese da inferioridade dos ameríndios que, portanto, podiam ser<br />

legitimamente submetidos à escravidão.<br />

O franciscanismo, por não se estribar num único sistema filosófico-teológico e<br />

científico, manteve-se aberto ao novo e mais permeável à pluralidade dos modos de<br />

agir, de pensar e de educar. Scotus, Ockham e Bacon, indissociavelmente ligados à<br />

Oxford, ensejaram a modernidade dentro da tradição. O pensamento desses franciscanos<br />

projetou-se de Oxford a Paris, e de Paris sobre todo o franciscanismo. O que de mais<br />

peculiar há nesta escola é a predisposição para o critério empírico de conhecimento;<br />

critério esse capaz de facilitar o desenvolvimento da ciência moderna à base de<br />

observações diretas, inclusive de situações extra-européias e ultramedievais. Daí a<br />

importância, atribuída por vários autores, ao esforço franciscano que, orientado pela


filosofia nominalista, pôde desprender-se dos rigores da sistemática aristotélica e<br />

concorrer para uma atitude de receptividade da parte do cristianismo missionário a<br />

novas situações de vida, no ultramar.<br />

Um desses autores é Lopez, para quem “a escola liberal-franciscana”<br />

controverteu as tendências conservadoras da escola dominicana, encabeçada por Santo<br />

Tomás de Aquino, a qual se mostra contrária às novidades e ao novo movimento<br />

científico, que contradizia o escolasticismo aristotélico, baseado nos principíos dos<br />

sábios antigos: “São Buenaventura, Frei Jordão de Sévérac, Guilherme de Ockham e,<br />

de maneira muito especial, Roger Bacon, foram os sábios que propugnaram um<br />

renascimento das ciências dos descobrimentos e das artes de navegar”. 421<br />

Outros autores, como Jaime Cortesão e Gilberto Freyre, como já havíamos dito,<br />

também defenderam a importância do nominalismo franciscano para a formação das<br />

nossas culturas luso-brasílicas.<br />

Mas, com especial sensibilidade, Freyre percebeu a fecundidade da poética<br />

franciscana. A exaltação lírica do Sol, nomeado e reverenciado por São Francisco, como<br />

o Irmão Sol, foi um marco importante que concorreu para a valorização do Trópico, tão<br />

temido por alguns dos seguidores mais acadêmicos da ciência aristotélica que não<br />

admitiam a possibilidade de viver o homem em terras por eles julgadas infernais, de tão<br />

quentes. Para o sociólogo pernambucano, o Cântico do Sol deve ser considerado, mais<br />

do que a primeira poesia vernácula, sobre motivo religioso, dos italianos, o primeiro<br />

incentivo aos europeus, por poeta europeu, para a conquista de terras aquecidas por um<br />

Sol mais forte que o da Itália: conquista não para a Europa, mas para o Cristo, esclarece<br />

Freyre.<br />

“Se nessa poesia de São Francisco se inspirou, além de uma nova<br />

pintura, uma nova arquitetura, por que não se admitir ter a<br />

421 LOPEZ, Ignácio Escobar. La Leyenda Blanca, Madrid: 1953, pp. 25-26.


exaltação do Sol pelo extraordinário italiano, ele próprio quase<br />

tão moreno como um homem do trópico, concorrido para o amor<br />

por aquelas terras e por suas gentes, pelas cores e pelas formas<br />

de suas paisagens diferentes das européias: amor que desde dias<br />

remotos parece ter animado europeus cristãos?.” 422<br />

Para Freyre, é evidente que, na poesia do Santo, inspirou-se uma nova ciência e<br />

que ela concorreu para a descoberta, por portugueses e espanhóis, de novas terras,<br />

associando à civilização hispânica o desbravamento dos trópicos, o conhecimento dos<br />

valores tropicais de natureza e de cultura. Assim, lhe pareceu justo sugerir que a<br />

integração dos espanhóis e portugueses, nessas condições de vida e nesses valores, se<br />

fez, ou se vem fazendo em parte, sob inspiração franciscana.<br />

“Foi experimentando a vida nesses espaços desconhecidos pelos<br />

europeus que espanhóis e, sobretudo, portugueses, predispostos<br />

por uma formação ou orientação filosófica particularmente<br />

tocada, ao que parece a alguns de nós, pela influência dos<br />

franciscanos de Oxford e de Paris – influência que teria sido<br />

considerável no país de Santo Antônio e do Papa João XXI –<br />

ousaram intensificar suas dúvidas em torno de afirmativas de<br />

autores antigos e de exageros doutrinários de um universalismo<br />

precipitado; e desenvolver um saber, além de crítico,<br />

experiencial: experiencial e, ouso até dizer – repito – regional e<br />

situacional. Mais do que isto: existencial.” 423<br />

No entendimento de Freyre, a exaltação do Irmão Sol por São Francisco teria<br />

sido como uma antecipação poética ou intuitiva ao “tropicalismo”, compreendido sob a<br />

forma de uma filosofia de valorização dos trópicos: de sua natureza, das suas<br />

populações, das suas civilizações. O conhecimento franciscano, por ser um saber em<br />

grande parte aprendido da natureza regionalmente diversa, em vez de ciência<br />

aristotelicamente uniforme, soube valorizar a diversidade ou a variedade das expressões<br />

de vida, ao lado da unidade da criação divina. Nessa harmonização do uno com o<br />

422 FREYRE, Gilberto. A Respeito de Frades, op. cit., p. 64.<br />

423 Idem, p. 87.


múltiplo, os franciscanos procuraram perceber o problema da diversidade dos homens e<br />

dos climas, sem que tal diversidade implicasse em inferioridade. Para Freyre, portanto, é<br />

franciscano todo o tropicalismo que se entenda como enriquecimento, e não como<br />

deperecimento, de vida e de cultura dos europeus, ou dos seus descendentes ou<br />

continuadores, integrados nos trópicos.<br />

“Isto porque o franciscanismo, tendo se antecipado, pela própria<br />

boca do seu fundador, em saudar no Sol um irmão, encontrou nas<br />

terras e nas gentes tropicais, terras e gentes fraternas que o<br />

franciscano, quer frade, quer leigo, soube, desde os seus<br />

primeiros contatos com essas terras e essas gentes, amar com o<br />

seu melhor amor; e procurar compreender com a sua melhor<br />

inteligência e com sua melhor ciência.” 424<br />

Os franciscanos, recebendo da tradição a poesia como herança, quer por onde<br />

passassem, cativavam os melhores sentimentos populares, em especial, porque<br />

souberam falar a língua que o povo fala e entende. Essa compreensível empatia entre o<br />

franciscanismo e o povo também se expressa pela formosura poética, ainda, hoje,<br />

cantada pelos pequeninos e pelas crianças:<br />

5.7. Franciscanismo e a alma popular<br />

424 Idem, p. 65.<br />

425 Vinicius de Moraes e Paulinho Soledade.<br />

“Lá vai São Francisco, pelo caminho, de pé descalço, tão<br />

pobrezinho.<br />

Lá vai São Francisco de pé no chão, levando nada no seu surrão.<br />

Dormindo à noite, junto ao moinho, bebendo água do ribeirinho.<br />

Dizendo ao vento, bom-dia amigo, dizendo ao fogo, saúde, irmão.<br />

Lá vai São Francisco, pelo caminho, levando ao colo<br />

Jesuscristinho.<br />

Fazendo festa no menininho, cantando histórias pros<br />

passarinhos”. 425


A plasticidade do franciscanismo, sempre criativo e suscetível a ser reinventado,<br />

lá, onde foi plantado, entranhou na alma popular. Assim podemos perceber a influência<br />

da simbologia franciscana no imaginário popular brasileiro e as suas interações com a<br />

política e a nacionalidade. Diversos acontecimentos podem ser citados como prova da<br />

ascendência dos franciscanos sobre o povo e sobre os mais altos mandatários da nação.<br />

Essa influência deve-se não apenas a personagens como Frei Francisco de Santa Teresa<br />

de Jesus Sampaio, redator do documento que pedia a Dom Pedro I que não tornasse, em<br />

1821, a Portugal, originando-se o “Dia do Fico”, ou a Frei Francisco de Monte Alverne,<br />

pregador oficial do Império, ou ainda a diversos outros frades do Convento de Santo<br />

Antônio, diante dos quais se discutiu um dos maiores fatos da nossa história, que foi a<br />

Independência do Brasil.<br />

Temos referências à veneração especial que a Casa de Bragança nutria por São<br />

Francisco. Conta-se que D. João IV, que subiu ao trono em 1640, retomando a coroa<br />

dos espanhóis, fez o voto de alistar-se entre os Irmãos Terceiros e assistir, todos os anos,<br />

à festa do Patriarca dos Pobres, voto que também os seus descendentes cumpriram<br />

religiosamente, inclusive Dom João VI e Dom Pedro I. 426 No dia 4 de outubro, festa de<br />

São Francisco de Assis, a corte imperial costumava vir comer no Convento de Santo<br />

Antônio do Rio de Janeiro, “servindo-se com os talheres da comunidade”, como diz um<br />

historiador. 427<br />

Através da sua atuação pastoral e evangelizadora, os franciscanos souberam<br />

recriar o Cristianismo, uma religião verdadeiramente apropriada ao povo, cujos<br />

interesses e aspirações comungam. Entre os aspectos mais dignos de nota, está o esforço<br />

franciscano de elaborar e divulgar as devoções populares e o culto aos santos,<br />

destacando os mais populares, além do próprio São Francisco, Santo Antônio, a Virgem<br />

Imaculada e o preto, São Benedito, santo italiano, cujos pais – aventou-se – tenham sido


escravos. São Benedito foi apresentado como exemplo de vida simples e bem-<br />

aventurada, para que, nele, em especial, os negros pudessem espelhar-se.<br />

Comecemos, porém, com a devoção à Imaculada Conceição de Maria, posição<br />

teológica defendida e divulgada pelos franciscanos, desde a Idade Média. Nossa<br />

Senhora da Conceição, em 1646, por sugestão dos franciscanos a D. João IV, foi eleita<br />

Padroeira dos Reinos de Portugal e Algarves e seus domínios. As Cortes homologaram<br />

prontamente a inspiração do soberano que assinou Provisão publicada em 25 de março<br />

de 1646, notificando, aos súditos do Império, a decisão de “tomar por padroeira dos<br />

nossos reinos e senhorio a Santíssima Virgem Nossa Senhora da Conceição” a quem<br />

“prometemos e juramos com o Príncipe e os Estados de confessar e defender sempre<br />

(até dar a vida se necessário for) que a Virgem Mãe de Deus foi concebida sem pecado<br />

original”. 428<br />

No Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, há uma pintura representando<br />

a consagração do reino de Portugal e províncias à Imaculada Conceição, em 1646. Na<br />

peça iconográfica, de glorificação da Imaculada, D. João IV, rei de Portugal, ajoelha-se<br />

e deposita a seus pés o cetro e a coroa.<br />

A festa da Imaculada Conceição tornou-se obrigatória em todo o reino lusitano,<br />

inclusive no Brasil, e a ela compareciam, “com grande pompa e respeito”, as Vereanças<br />

e Capitães-Generais, bem como todas as Irmandades e Confrarias. 429<br />

Sob o título mariano da Imaculada Conceição, ergueu-se um sem número de<br />

catedrais, matrizes, modestas igrejas e capelas, além de nomear localidades, vilas e<br />

cidades, em todo o vasto território brasileiro, a começar pela Igreja de Nossa Senhora da<br />

Conceição da Praia, em Salvador, primeira capital do Brasil.<br />

426 Röwer, Basílio. O Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro, pp. 206 s.<br />

427 O Mensageiro de Santo Antônio, Ano XL, nº 4, Santo André: maio de 1997.<br />

428 Parte da Proclamação e Juramento à Imaculada Conceição, conforme transcrito por FURTA<strong>DO</strong>,<br />

Sebastião da Silva. Presença de Nossa Senhora da Conceição na Toponímia Brasileira, apresentado ao<br />

Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1966, pp. 7s.


Acerca de São Benedito, o primeiro santo negro da Ordem Franciscana, Frei<br />

Apolinário da Conceição exclamou: “São Benedito, meu lindo amor, dai-me uma sorte<br />

da vossa cor”. Assim, inicia um raro e belo livro dedicado ao Santo negro, cujos avós<br />

foram da Etiópia levados à Sicília. Exalta a cor negra de Benedito, compara a uma flor<br />

que, por sua cor, negra, além de rara, surge como a mais bela plantada pela Divina<br />

Graça, no jardim da Igreja, “formoseando com ela o terreal Paraíso da Seráfica<br />

Religião”. 430 Segundo Frei Apolinário, a devoção ao Santo preto espalhou-se por todo o<br />

Brasil, a começar pelo Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais. “Nos mais<br />

conventos de minha Santa Província, têm suas Igrejas, particular capela este Beato,<br />

com suas confrarias, de que são Irmãs não só gente preta, como também muita da<br />

branca”. 431<br />

Muitos milagres, segundo Frei Apolinário, foram atribuídos à intercessão de São<br />

Benedito, em geral, alguns deles registrados nos livros de crônicas dos conventos<br />

franciscanos. A narração dos milagres, recheados de imagens alegóricas, sem dúvida,<br />

era uma estratégia bem-sucedida dos frades para avivar a fé do povo mais simples que,<br />

de fato, acabava por se identificar com os santos da sua cor. É exemplo típico a narração<br />

do milagre atribuído a São Benedito, acontecido no Rio de Janeiro, e que, de acordo<br />

com Frei Apolinário, foi registrado no arquivo do Convento de Santo Antônio do Rio de<br />

Janeiro, após a conclusão do processo, datado de 20 de janeiro de 1613.<br />

Conta Frei Apolinário que um menino negro de dois anos, filho de uma escrava,<br />

tendo uma espinha de peixe atravessada na garganta, veio a falecer, apesar do auxílio<br />

prestado pelos frades, na portaria do Convento de Santo Antônio. Mas, na manhã<br />

seguinte, em meio aos preparativos do enterro, o menino despertou. Quando perguntado<br />

429 Idem, p. 8. O posto de Capitão-General era o mais elevado da Armada Real.<br />

430 Frei Apolinário da Conceição. Flor Peregrina por Preta, ou Nova Maravilha da Graça Descoberta<br />

na Prodigiosa Vida do Beato Benedito de São Philadelpho, Lisboa: 1744, p. 2.<br />

431 Idem, p. 287.


sobre quem o havia curado, respondeu o menino “que um fradinho viera do Céu, e o<br />

sarara”. E tornando-lhe a perguntar “que fradinho é esse?: é um meu parente”. 432<br />

Em sermão dedicado ao mestiço Beato Gonçalo Garcia (+1597), mártir em<br />

Nagazaqui, afirma Frei Jaboatão: “Nunca os pardos esperaram menos um santo da sua<br />

cor, do que na presente ocasião”. Na contramão das teorias racialistas que estabeleciam<br />

hierarquias entre as “raças” e a degenerescência do gênero humano provocada pela<br />

mestiçagem, e, mais ainda, contra o preconceito de quem duvidava pudesse ser um<br />

santo da cor parda, o frade afirma: “É a cor parda tão perfeita, que todo o fim, com que<br />

aparece nos homens, não é outra mais que perfeição”. E, na intercessão final do<br />

discurso, Jaboatão se posiciona, de forma vigorosa, contra o preconceito da sociedade<br />

branca:<br />

“Os da vossa cor, meu Santo, vos pedem lhes alcanceis de Deus<br />

fiquem para sempre limpos e purificados da maldade que lhes<br />

punham os adversários do seu nome nos acidentes da sua cor.<br />

(...) e os da cor branca vos pedem também, ou eu por eles, lhes<br />

alcanceis do mesmo Senhor lhes queira livrar o entendimento de<br />

cuidarem mais que os da vossa cor tem impedimento algum para<br />

terem Santos; porque isto é um pensamento mau”.<br />

O mais popular de todos, sem dúvida, o é Santo Antônio, o admirável<br />

taumaturgo do povo, ainda hoje, com fama de casamenteiro. A devoção popular,<br />

misturada a elementos folclóricos, fez de Santo Antônio um “santo soldado” a quem se<br />

invocava nas campanhas militares. 433 A memória luso-brasileira guardou em trovas o<br />

que de pitoresco se pode extrair de acontecimentos tão inusitados:<br />

432 Idem, 241.<br />

433 Como lembra Ildefonso Silveira, em Santo Antônio de Pádua/Lisboa, in Cadernos Franciscanos, nº 8,<br />

Petrópolis: FFB/Vozes, 1995, p. 19, não foram os ibéricos que inventaram a devoção a um santo ou figura<br />

divina nos tempos de guerra, nem os primeiros a instrumentalizar a religião a serviço do poder. Gregos e<br />

romanos já o faziam, por exemplo, quando cultuavam Atena, Minerva ou Marte de modo que lhes fossem<br />

propícios nos confrontos com o inimigo. Desde a mais remota antigüidade, a religião tem servido tanto<br />

para aumentar o poder dos fortes e dominadores quanto para fortalecer os fracos e dominados.


Santo Antônio é bom santo Santo Antônio de Lisboa<br />

Que livra seu pai de arcanos; Não querem que lhe chamem santo<br />

Também nos há de livrar Querem que lhe chamem soldado<br />

do poder dos castelhanos General, mestre de campo<br />

Nem a mentalidade nem a cultura populares escapam de ser sutilmente<br />

impregnadas pelo espírito belicista de que falamos. Santo Antônio, que em vida nunca<br />

foi militar, postumamente, fê-lo o povo assentar praça, galgando vários postos da<br />

hierarquia militar lusa e brasileira, em referência aos quais recebia soldo<br />

correspondente. Na Bahia, em 1705, de soldado foi promovido a capitão, passando,<br />

mais tarde, a alferes de infantaria. Em 1811, o príncipe regente D. João VI promoveu-o<br />

a sargento-mor de infantaria; em 1804, Santo Antônio passou a tenente-coronel. Na<br />

capitania de São Paulo, Santo Antônio atingiu o grau máximo de coronel, em 1711. Na<br />

capitania do Espírito Santo não passou de soldado raso. No Rio de Janeiro, por ocasião<br />

da segunda expulsão dos franceses, em 1710-1711, a imagem de Santo Antônio,<br />

pertencente à igreja do Convento de Santo Antônio, foi carregada à frente das tropas<br />

luso-brasileiras, garantindo-lhes a vitória, fato que rendeu ao Santo a comenda de<br />

“Capitão de Infantaria”. Em 1814, passou a tenente-coronel e foi condecorado por D.<br />

João VI com a grã-cruz da Ordem de Cristo. Na capitania de Pernambuco, Santo<br />

Antônio foi nomeado soldado para acompanhar as tropas lusas na guerra de Palmares,<br />

em 1685. Provavelmente também era invocado por algum negro cristão da república de<br />

Palmares, contra os brancos opressores. Em Iguaraçu, também Pernambuco, por não<br />

haver destacamento militar, Santo Antônio foi nomeado vereador, também ganhando<br />

salário. 434<br />

Bebendo nas fontes da sabedoria popular e assentado nas reminiscências<br />

políticas e militares lusas, o teatrólogo João Osório de Castro, em sua peça “Santo<br />

434 A “carreira militar” póstuma de Santo Antônio no Brasil foi estudada com muitos detalhes e<br />

transcrição de documentos por José Carlos de Macedo Soares, em Santo Antônio, Militar do Brasil, Rio<br />

de Janeiro: 1942.


Antônio Militar”, cria uma divertida saída para o embrólio em que se viu metido Santo<br />

Antônio, convocado para combater, ao mesmo tempo e em lados opostos, nas fileiras de<br />

dois Regimentos de Infantaria portugueses que se preparavam para o mútuo<br />

enfrentamento: o Dezenove de Cascais e o Segundo de Faro. Ante a recusa do Santo em<br />

combater, e percebendo a situação embaroçosa em que se encontravam, os generais<br />

preferiram fazer a paz.<br />

[Fala o General do Regimento n.º 2 de Faro]<br />

“O Senhor capitão-tenente,<br />

Santo Antônio de Lisboa,<br />

Padroeiro do mui glorioso<br />

Regimento n.º 2 da Infantaria de Faro,<br />

mostrou por estas alturas de Setúbal, alto e claro,<br />

o seu grande amor por Portugal”.<br />

[Dirigindo-se ao general do Regimento n.º 19 de Cascais]<br />

“Não quis combater ao meu lado, e fez muito bem,<br />

porque não quis combater do vosso lado também.<br />

E, logo, ao recursar-se a combater entre Portugueses,<br />

nos mostrou quando temos errado algumas vezes”. 435<br />

São Pedro de Alcântara, um dos reformadores franciscanos do século XVI, era o<br />

padroeira da família imperial, inspirando o nome dos dois monarcas, e, até o século<br />

XIX, foi o padroeiro oficial do Brasil.<br />

E, se falamos em santos, lembremos de acontecimentos mais recentes. No ano de<br />

1999, o Papa eleva aos altares, na qualidade de bem-aventurado, o primeiro brasileiro<br />

nato, o franciscano Frei Antônio de Santana Galvão, filho da cidade de Guaratinguetá,<br />

SP, popularmente conhecido como Frei Galvão.<br />

A ação educacional e missionária dos franciscanos, resistindo a tantas<br />

intempéries, permeou quinhentos anos de história ininterrupta. Seu esforço de educar os<br />

filhos da terra e os que aqui chegaram, através da catequese, da criação de escolas nos<br />

435 CASTRO, João Osório de. Santo Antônio Militar – Mágica em rima bárbara, para educação de<br />

governantes, seniores e principiantes, Edições Elo, 2000, p. 156.


seus diversos níveis, bem como sua dedicação às ciências e às letras, foi marcado por<br />

forte empatia com o povo, cujos interesses e aspirações comungaram.<br />

Indissociavelmente vinculado à formação das nossas gentes, o franciscanismo é parte da<br />

alma do Brasil.<br />

CONCLUSÃO<br />

Ao terminarmos este trabalho, somos tomados pelo sentimento de que há, ainda,<br />

muito a escrever sobre o tema. Permanecem abertas muitas perguntas à espera de<br />

respostas. Conseguimos, no entanto, além de dar a nossa contribuição, chamar a atenção<br />

para aspectos quase inexplorados da História da Educação brasileira.<br />

Fica também claro que a atividade missionária/educacional franciscana foi<br />

relevante no Brasil. Novas pesquisas, certamente, surgirão, não apenas para trazer à tona<br />

as facetas da ação dos franciscanos, mas a de outras ordens religiosas que, ao longo dos<br />

últimos cinco séculos, se devotaram à educação das nossas gentes.<br />

É consenso afirmar que não há história sem documentos. Constatamos que, ao<br />

contrário do que é corrente, se dispõe de considerável documentação produzida pelos<br />

franciscanos, em especial, por aqueles que atuaram no Maranhão e no Grão-Pará, tanto<br />

nos arquivos brasileiros, quanto portugueses; cremos que, também, nos arquivos<br />

vaticanenses, tendo em vista a análise das bibliografias de alguns trabalhos que nos<br />

serviram de referência. É também verdade que a maior parte desse material encontra-se<br />

dispersa e sem organização. Tal constatação põe por terra a idéia de que só os jesuítas<br />

tiveram preocupação em conservar a história aos pósteros.<br />

Mas constatamos que não adianta apenas reunir as fontes. Ousamos dizer que o<br />

maior esforço não será o de buscar novos documentos, senão o de fazer a história dos<br />

documentos disponíveis. Os documentos não existem soltos no ar, descolados do<br />

contexto cultural da época em que surgiram; correspondem a um sistema de idéias


políticas ou religiosas, às memórias e às mentalidades individuais e sociais; se não<br />

buscarmos as razões que os produzem, esclarecem ou limitam, o uso de que deles<br />

fizermos poderá tornar-se inconsistente, porque também não nos aperceberemos das<br />

causas que, eventualmente, deformam ou escondem os fatos.<br />

Destacamos, da mesma forma, os equívocos da nossa historiografia brasileira<br />

que se pautou, tradicionalmente, nos clichês que tiveram origem, quase que exclusiva,<br />

nas produções jesuíticas de cunho propagandístico e apologético. Muitos documentos,<br />

mesmo aqueles surgidos das mãos franciscanas, refletem as constantes emulações entre<br />

as ordens religiosas, típicas de uma época. Os problemas surgem quando as fontes<br />

deixam de ser tratadas sob a perspectiva das rivalidades entre franciscanos e jesuítas, e<br />

assumem um caráter acrítico e, portanto, a-histórico. Em questões disputadas, não se<br />

pode basear o juízo a partir da consideração do que diz uma das partes em litígio. Seja<br />

por desconhecimento ou por falta de senso crítico, seja por preguiça ou por facilidade de<br />

acesso às abundantes e mais acessíveis fontes da Companhia de Jesus, foi comum tomar<br />

a ótica jesuítica como a mais abalizada para respaldar o discurso historiográfico. As<br />

crônicas e as narrativas jesuíticas, tomadas como fontes quase que exclusivas da<br />

historiografia existente, determinaram o sentido das pesquisas e da literatura disponível,<br />

perpetuando as lacunas, as imprecisões, os equívocos e os juízos de valor<br />

recorrentemente desfavoráveis aos franciscanos e às outras ordens religiosas.<br />

Levou também vantagem quem primeiro teve a capacidade de publicar e de<br />

divulgar suas produções. A palavra, em especial aquela impressa nos livros, continua a<br />

possuir espetacular potência demiúrgica, organizando os sentidos interpretativos da<br />

realidade. E, sabemos, os franciscanos pouco publicaram e difundiram os seus textos<br />

que ficaram quase todos manuscritos nas bibliotecas e nos arquivos.<br />

A autoridade inquestionável dos que primeiro escreveram a História do Brasil<br />

nem sempre propiciou aproximações mais críticas sobre questões disputadas, como foi


exemplo as que giraram em torno das primazias missionárias. As posições dos<br />

primevos, ungidas como verdades incontestes, foram simplesmente endossadas, sem<br />

problematização, pelos que vieram a seguir, cristalizando-as como fatos históricos.<br />

Outro aspecto importante foi perceber que os estudos, no campo da História da<br />

Educação brasileira, nem sempre estabeleceram conexões entre os acontecimentos<br />

nacionais e aqueles internacionais. No caso da nossa pesquisa, os nexos transnacionais<br />

dos temas tratados não só forneceram elementos mais ricos para circunstanciá-los, como<br />

também ampliaram a capacidade de entendimento sobre os mesmos.<br />

Destacamos, ainda, uma pleiade de personagens filiados à Ordem Franciscana<br />

que carecem de estudos mais aprofundados sobre suas vidas e ações, como é o caso do<br />

Frei Cristovão de Lisboa e tantos outros frades que, em determinadas circunstâncias, se<br />

posicionaram ao lado do povo e contrários aos jesuítas. Sobre eles ainda recai o injusto<br />

anátema de colaborarem com as autoridades coloniais e os colonos contra os interesses<br />

da liberdade dos índios.<br />

Os acontecimentos históricos mencionados ao longo deste trabalho deram a<br />

dimensão da influência franciscana sobre a formação de nossa cultura. Foram os<br />

franciscanos os fundadores da primeira escola em território brasileiro, os iniciadores das<br />

missões junto aos indígenas, os sistematizadores de línguas nativas, os idealizadores de<br />

uma Igreja autenticamente ameríndia, os estudiosos de nossa história, da flora e da<br />

fauna, os propagadores de um cristianismo confraternizante, os promotores da educação<br />

e da cultura. A participação franciscana, na América e no Brasil, é tão expressiva que<br />

aludir ao terceiro franciscano Cristovão Colombo, descobridor deste Continente, ou a<br />

Frei Henrique Soares, que, em nossa terra, plantou a primeira cruz, parece-nos mera<br />

referência retórica.<br />

Francisco de Assis e os que dele se fizeram discípulos, a seu modo e de acordo<br />

com os determinantes das suas condições históricas e espirituais, optaram por viver na


margem, nas fronteiras, nos limiares. O santo e os seus frades acreditaram valer a pena<br />

dedicar os seus melhores esforços a favor dos pobres, dos oprimidos, dos<br />

marginalizados com quem se identificaram e a partir dos quais passaram a ler e a<br />

compreender a realidade. Em seus campos específicos de atuação, foram criadores do<br />

novo e não se prendem ao instituído.<br />

O Pobre de Assis não foi um fundador legalista e mostrou-se pouco afeito às<br />

estruturas. Ele é o homem da intuição, não da instituição, é o santo carismático, não<br />

sistematizador. Seu movimento, ao longo de dez anos, redigiu, coletiva e<br />

democraticamente, a sua própria regra de vida, uma vez que não aceitou a imposição de<br />

nenhuma das Regras monásticas existentes. Concebeu um novo estilo de vida religiosa,<br />

peregrina e viandante, em oposição à estabilidade monástica. Se “deixa o mundo”, não<br />

se enclausurará entre as quatro muralhas de um mosteiro, mas vai às cidades e às praças<br />

encontrar os homens e as mulheres, os pobres e os ricos, os letrados e os iletrados, os<br />

sãos e os doentes, os fiéis e os “infiéis”, anunciando a todos o Evangelho da<br />

fraternidade. Não aceita participar da hierarquia da Igreja: faz-se simples irmão menor;<br />

não quer ter bens pessoais, nem para uso comum de sua fraternidade; entende a pobreza<br />

como a forma mais genuína de seguimento de Cristo e propiciadora da fraternidade<br />

universal e cósmica com todo ser criado. Sua pregação é marcada pela alegria e pela<br />

poesia: apresenta-se como o arauto do Grande Rei, jogral de Deus, cantor do irmão Sol<br />

e nem às aves e aos peixes deixa de anunciar a Boa-Nova de Cristo.<br />

Em verdade, Francisco e seu movimento tentavam resgatar o espírito da Igreja<br />

dos Atos dos Apóstolos. Tratava-se de uma Igreja despojada, simples, pobre, sem<br />

aparatos, cuja fé era proclamada com a autoridade dos apóstolos e a coragem dos<br />

mártires. Bem ao contrário da cristandade medieval, endossada pelos jesuítas, que<br />

apenas concebia o anúncio de Cristo mediado pelo poder e pelos aparatos da pompa e<br />

da riqueza material.


Francisco teve o mérito de fazer com que seu movimento fosse aprovado<br />

oficialmente pela Igreja, sem perder o seu alto poder contestatório e revolucionário. É<br />

assim, pois, que podemos identificar Francisco de Assis: uma das figuras mais<br />

importantes do nosso milênio passado e que continua a inspirar um sem número de<br />

movimentos religiosos, sociais, políticos e culturais de nossa contemporaneidade.<br />

Foi essa percepção que levou o grande medievalista Jacques Le Goff a tecer o<br />

seguinte comentário durante uma entrevista à Gazeta Mercantil, em outubro de 1999:<br />

“Lembro-me bem de que meu caro mestre e amigo George Duby<br />

dizia haver uma tendência forte entre os franciscanos, desde a<br />

época de São Francisco até o século XV, de pessoas que podemos<br />

legitimamente chamar de ‘esquerda’. Havia muitos franciscanos<br />

esquerdistas. De um certo modo, me parece que isso mostra a<br />

modernidade do franciscanismo e da Ordem Franciscana”.<br />

Ao longo do trabalho que concluímos, tivemos a oportunidade de desenvolver a<br />

idéia anticapitalista do movimento franciscano. Isto justificaria a recusa dos<br />

franciscanos em possuir bens, a recusar o uso do dinheiro, a não desejar ocupar postos<br />

de mando e a tirar o seu sustento, primariamente, do trabalho. Como observou BOFF,<br />

“no exato momento em que começava a nascer a burguesia como classe de<br />

comerciantes e manejadores de dinheiro com mentalidade capitalista, geradora,<br />

posteriormente, de tantas injustiças e empobrecimento, nascia também a sua oposição<br />

dialética na conversão de S. Francisco que foi uma conversão aos pobres e ao Cristo<br />

pobre”. 436 Sem dúvida, essa opção de fundo, nem sempre seguida à risca pelos<br />

franciscanos, deu-lhes argumentos contra as práticas jesuíticas, às quais acusavam de<br />

anti-envangélicas e indignas de missionários.<br />

Nos primeiros séculos do movimento franciscano, a idéia de restaurar, olhando<br />

para o passado foi mais forte. Eram os tempos das disputas entre partidos opostos dentro<br />

436 BOFF, Leonardo. São Francisco de Assis: Ternura e Vigor, 2ª ed., Vozes, Petrópolis: 1982, p. 88.


da Instituição que compreendiam o espírito e a vida de Francisco de Assis de forma<br />

diversa, às vezes, interpretando a pobreza de uma forma mais radical ou mitigada,<br />

considerando o seu legado mais à esquerda ou à direita.<br />

Mas, em finais do século XV e em grande parte do XVI, o apelo de restauração<br />

dá mais ênfase à utopia, ao futuro da Igreja e da humanidade. Esses foram tempos em<br />

que a utopia franciscana amalgamou-se com as influências do humanismo cristão e com<br />

o milenarismo inspirado pelo abade Joaquim de Fiore (1130-1202), joaquinismo esse<br />

também já partilhado pela corrente dos espirituais franciscanos nos séculos precedentes.<br />

A força revolucionária – talvez dizer mais propriamente, reformadora – dos<br />

franciscanos foi, sem dúvida, a mais vigorosa, no século XVI, especialmente, na<br />

Península Ibérica. Nomes como o de Santa Tereza D’Ávila, de João da Cruz e de uma<br />

série de místicos reformadores hispânicos bebiam nas fontes da espiritualidade e da<br />

mística franciscanas; no-lo atestam as ligações de parte deles, por exemplo, com o<br />

influente franciscano Pedro de Alcântara, de quem provém as inspirações das reformas<br />

dos chamados “descalços” e “capuchos”. Foi este franciscanismo inquieto que<br />

desembarcou na América e no Brasil., deixando seu caráter na formação das<br />

brasilidades.<br />

O modo de nossa gente viver a vida e compreender o mundo, em outras<br />

palavras, a nossa atitude existencial é, originalmente, uma atitude peculiar dos<br />

franciscanos que, aqui, foram chegando. Dessa forma, o nosso povo mais simples tem<br />

mais alegria em partilhar do que em acumular; a despreocupação com o dia de amanhã<br />

– muitas vezes interpretado como atitude irresponsável e displicente do pobre – faz com<br />

que viva o presente com intensidade e alegria; a necessidade de submissão ao trabalho<br />

explorado, duro e penoso, que rende tão pouco para atender as necessidades impostas<br />

pela sobrevivência, não esmorece o desejo de celebrar a festa, certamente, esperando


aquele dia que porá fim à injustiça e à opressão que mutilam e castigam a sua<br />

humanidade.<br />

Na mão inversa do pensamento único e dos seus processos uniformizadores, o<br />

franciscanismo também buscou desenvolver um saber, além de crítico, experiencial,<br />

regional e situacional, ao invés de um universalismo precipitado. O saber franciscano,<br />

em grande parte aprendido no contato com a natureza propriamente diversa, firmou-se<br />

em direção contrária à ciência de base aristotélica deduzida de princípios universais.<br />

Considera a realidade como sendo aquela vivida pela pessoa total (e não a objetivada<br />

pela razão), a existencial, que se difere da essencial, coada pela lógica mediante puros<br />

processos silogísticos e racionais de peneiramento das verdades concretas em verdades<br />

abstratas; aquela em que os indivíduos ganham originalidade e consistência, sem que<br />

haja necessidade de multiplicá-los metafisicamente para além de sua concretude<br />

existencial, de modo a conferir a autonomia das realidades terrestres. E, finalmente, para<br />

o saber franciscano, toda ciência deve conduzir o humano ao amor, meta da sua<br />

existência; e o amor se encontra tanto ao alcance do mais humilde como ao do sábio<br />

mais erudito.<br />

Em suma, sob a inspiração de tantos modos de realização do franciscanismo,<br />

melhor dizendo, nos franciscanismos, encontramos os antídotos capazes de construir<br />

vias alternativas ao caminho de mão única imposto à humanidade, dando ensejo a um<br />

renovado entendimento da razão e da política.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

Fontes Manuscritas


Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Portugal)<br />

OFM, Província de Santo Antônio, Província, maço 4 – Documentos diversos da<br />

Província de Santo Antônio de Portugal.<br />

OFM, Província de Santo Antônio, Província, maço 6 - Documentos diversos da<br />

Província de Santo Antônio de Portugal.<br />

OFM, Província de Santo Antônio, Província, maço 7 - Documentos diversos da<br />

Província de Santo Antônio de Portugal.<br />

OFM, Província de Santo Antônio, Província, maço 8 - Documentos diversos da<br />

Província de Santo Antônio de Portugal.<br />

OFM, Província de Santo Antônio, Província, maço 18 – Documentos diversos<br />

sobre os Conventos do Maranhão e Grão Pará.<br />

“Padres de Santo Antônio de Portugal para o Maranhão. Alvará da sua Nomeação”, 14<br />

de setembro de 1622, Chancelaria de Felipe II, Livro XI, fl. 35 Vº - 36.<br />

“Regulamento para os Missionários”, 1606, OFM, Província de Santo Antônio,<br />

Província, Maço 18.<br />

“Treslado, em Pública Forma, de Certidão comprovativa de terem sido os Religiosos de<br />

Santo Antônio os primeiros Religiosos que entraram no Estado do Grão-Pará e<br />

Maranhão”. Arquivo da Torre do Tombo, Província de Santo Antônio, Província, maço<br />

18, doc. 15.<br />

Biblioteca Nacional de Lisboa (Portugal)<br />

Padre José de Morais, Apontamentos para a História da Companhia de Jesus no Estado<br />

do Maranhão, Biblioteca Nacional de Lisboa, Códice. 4516.<br />

“Carta de Frei Cristovão de Lisboa a um Superior Narrando Trabalhos de Missões no<br />

Brasil e Queixando-se de Agravos Praticados pelo Capitão-Mor Bento Maciel e Pelo<br />

Padre Luís da Figueira”, Fundo Geral, Ms. 29, nº 32.<br />

“Carta de Frei Cristovão de Lisboa a seu Irmão, Manuel Severim de Faria”, 20 de<br />

janeiro de 1627. Biblioteca Nacional de Lisboa, Fundo Geral, Ms. 29, nº 28.<br />

Arquivo Ultramarino (Portugal)


“Carta ao Bispo de Pernambuco ao Secretário de Estado dos Negócios do Reino,<br />

Conde de Oeiras, etc”, Olinda 20 de abril de 1760. Pernambuco, Cx. 53, documento<br />

sem número.<br />

“Carta do Governador de Pernambuco para Sebastião José de Carvalho e Mello<br />

informando-o das providências tomadas para a substituição dos Jesuítas como<br />

professores na Capitania”, Pernambuco, Cx. 52, documento sem número.<br />

“Despacho expedido pelo Conde de Oeiras para o Governador de Pernambuco dando<br />

conta das vantagens econômicas em ser divulgado o justo motivo da expulsão dos<br />

jesuítas, etc”, 12 de novembro de 1759, Pernambuco, Cx. 52, documento sem número.<br />

“Estatuto que hão de observar os mestres das escolas dos meninos nesta Capitania de<br />

São Paulo”, Luís Antônio de Sousa, ao Conde de Oeiras, em 12 de maio de 1768, São<br />

Paulo, n.º 2408 dos documentos catalogados.<br />

“Requerimento do Custódio e mais religiosos do Maranhão a Felipe II, queixando-se<br />

dos capitães que exploram os índios, alugando-os, fazendo-os trabalhar e chegando a<br />

tomar-lhes mulheres e filhos”, de 17 de outubro de 1623, Maranhão, Cx.1, documento<br />

sem número.<br />

Arquivo e Biblioteca Pública de Évora (Portugal)<br />

Padre Bento da Fonseca. “Maranhão Conquistado a Jesus Cristo, e a Coroa de<br />

Portugal pelos Religiosos da Companhia de Jesus”, 1757, Códice CXV/2-14, a n.º 1, 25<br />

folhas. fol.<br />

Padre Domingos de Araújo. “Crônica da Companhia de Jesus da Missão do<br />

Maranhão”, 1720, Códice CXV/2-11, a fl. 209, 69 folhas. Fol.<br />

Padre José Xavier de Morais da Fonseca Pinto. “História da Companhia de Jesus da<br />

Província do Maranhão e Pará”, 1759, Códice CXV/1-27, 1 Vol. Fol., 771 páginas.<br />

Provisão concedendo aos Padres da Companhia licença para que possam resgatar 30 ou<br />

40 escravos para serviço dos seus colégios e fazendas em cada uma das entradas que<br />

fizerem aos sertões, 7 de abril de 1726, Códice CXV/2-12, f. 141.<br />

“Clamam os Povos do Estado do Maranhão a Deus do Céu e na Terra ao seu<br />

Piedosíssimo Monarca e Senhor Rei Dom João V”. Cód. CXV/2-13 a fl. 1.<br />

“Cálculo do Importantíssimo cabedal que embolçam os RR. Missionários, os seus<br />

Prelados e Comunidades das negociações que fazem com os índios e índias nas aldeias<br />

chamadas Missões, nas cidades, vilas e fazendas que tem no Estado do Maranhão etc”<br />

Cód. CXV/2-13 a f. 224.


“Carta Régia ao dito Governador demarcando novamente os distritos a cada Religião<br />

de Missionários”, 19 de março de 1693, Códice CXV/2-18, f. 178.<br />

“Carta Régia ao Superior dos Missionários Religiosos de Santo Antônio no Estado do<br />

Maranhão para que os missionários, seus súditos, se abstenham dos excessos que<br />

cotem nas casas dos moradores com pretexto de tirar delas os índios que são forros”,<br />

26 de setembro de 1705, CXV/2-18, f. 322.<br />

“Carta Régia ao Governador Cristovão da Costa Freire determinando o fim do<br />

conflito entre o loco-tenente do Barão da Ilha Grande dos Joannes e os Missionários de<br />

Santo Antônio acerca da administração das Aldeias dos índios e dando as regras para<br />

essa administração e repartição dos mesmos índios”, 18 de setembro de 1706, Códice<br />

CXV/2-18, f. 356v.<br />

“Carta Régia ao Ouvidor Geral do Pará que peça ao Pe. Frei Diogo da Conceição,<br />

Presidente da Província de Santo Antônio, a razão que teve para não mandar ao<br />

Governador os 15 índios que lhe mandou pedir para o real serviço”, 17 junho de 1710,<br />

Códice CXV/2-18, f. 440v.<br />

“Carta Régia ao Ouvidor Geral do Pará que peça ao Comissário da Província de Santo<br />

Antônio a razão porque não deu para o serviço real os índios que lhe pediu o<br />

Governador”, 2 de julho de 1710, Códice CXV/2-18, f. 445v.<br />

“Carta Régia ao dito Governador para que mande no primeiro navio para o Reino a<br />

Fr. Pedro Redondo, Religioso da Província da Piedade, Missionário da Aldeia de<br />

Jerupataba, por Ter negado índios para o real serviço etc”, 7 de julho de 1710, Códice<br />

CXV/2-18, f. 449.<br />

Biblioteca da Casa de Candaval (Portugal)<br />

“Razões que Sua Majestade Teve para Resolver que as suas Missões do Maranhão<br />

Fossem Entregues à Companhia”, Papéis Vários, T. 23, Códice 976 (K VIII IR), fl. 83-<br />

84.<br />

Arquivo Provincial da Província da Imaculada Conceição do Brasil (Brasil)<br />

Livro do Tombo<br />

Livro das Pastorais – Documentos diversos.<br />

Livro das Eleições, folha 76 v.<br />

Fontes Impressas<br />

Breve do Santíssimo Padre Clemente XIV pelo qual a Sociedade chamada de Jesus<br />

se extingue, e suprime em todo o orbe, Lisboa, na Régia Officina Typografica, 1773.<br />

Erros ímpios e sediciosos que os Religiosos da Companhia de Jesus ensinaram aos<br />

Réus, que foram justiçados, e pretenderam espalhar pelos Povos destes Reinos,


Lisboa: Officina de Miguel Rodrigues, Impressor do Eminentíssimo Cardeal Patriarca,<br />

1759.<br />

CARVALHO, Jacinto. Crônica da Companhia de Jesus no Maranhão. São Luís, s/d.<br />

CONCEIÇÃO, Frei Apolinário da. Epítome do que em Breve Suma Contém esta<br />

Província de Nossa Senhora da Conceição da Cidade do Rio de Janeiro, 1730.<br />

______. Primazia Seráfica na Regiam da América, Lisboa Ocidental, 1733.<br />

______. Cláustro Franciscano, Ereto no Domínio da Coroa Portuguesa, Lisboa:<br />

1740.<br />

______. Cláustro Franciscano Ereto no Domínio da Coroa Portuguesa, Lisboa,<br />

1744.<br />

CUNHA, Pedro Henrique, Notícias Curiosas e Proveitosas a Benefício da Fazenda<br />

de Santa Cruz, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1790, p. 13.<br />

FREI ANTÔNIO DE SANTA MARIA JABOATÃO. Orbe Seráfico Novo Brasílico,<br />

Lisboa: na Oficina de Antônio Vicente da Silva, 1761, Capítulo XXVIII, nº 373, p. 223.<br />

Cópia impressa do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Série Preta, nº 907.<br />

_____. Novo Orbe Seráfico Brasílico, Volume II, Rio de Janeiro: Typ. Brasiliense de<br />

Maximiniano Gomes Ribeiro, 1858 (Reimpressão por ordem do Instituto Histórico e<br />

Geográfico Brasileiro).<br />

FREI APOLINÁRIO DA CONCEIÇÃO. Claustro Franciscano Ereto no Domínio da<br />

Coroa Portuguesa, Lisboa: Oficina de Antônio Isidoro da Fonseca, 1740.<br />

______. Flor Peregrina por Preta, ou Nova Maravilha da Graça Descoberta na<br />

Prodigiosa Vida do Beato Benedito de São Philadelpho, Lisboa: 1744.<br />

______. Epítome da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil,<br />

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FREI CRISTOVÃO DE LISBOA. Jardim da Sagrada Escritura, Disposto em Modo<br />

Alfabético, Lisboa: Paulo Craesbeek, 1653.<br />

FREI JERÔNIMO DE JESUS. Restaurador das Missões do Japão. Suas Cartas e<br />

Relações (1595-1604), Padre Lorenzo Pérez, OFM (Editor), Florença: Typ. Collegii S.<br />

Bonaventura, 1929, p. 53.<br />

FREI MANUEL DA ILHA. Narrativa da Custódia de Santo Antônio do Brasil:<br />

1584-1621, Edição Bilingüe, Petrópolis: Vozes, 1975.<br />

FREI PAULO DA TRINDADE. Conquista Espiritual do Oreinte, em que se dá<br />

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