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musica<br />
colecao<br />
Leny Ribas<br />
Alma Mía AndradeRegina
Leny AndradeRegina Ribas<br />
Alma Mía<br />
1
Leny AndradeRegina Ribas<br />
Alma Mía<br />
3
Aos amigos que sempre insistiram para que<br />
eu escrevesse um livro.<br />
Para Carlos Gustavo Migliora in memoriam,<br />
que deu concretude ao meu amor pelo jazz.<br />
E para Gustavo, meu filho, que, com<br />
sensibilidade, disciplina e profissionalismo,<br />
fez a transcrição das entrevistas.<br />
Um agradecimento especial à minha amiga<br />
Mariflor Rocha, revisora.<br />
Regina Ribas<br />
5
Sumário<br />
Introdução 09 Histórias da Infância 16 Precocidade e Independência 30<br />
A Bossa Nova 35 Estreia Internacional 55<br />
A Conquista do México 61 Muitos Contratos e um Casamento 72<br />
Na Terra do Jazz 82 Lições de Música 88<br />
Entre o Prestígio e a Fama 94 Encontro da Leny com a Leny 108<br />
Epílogo 122 Discografia 124<br />
6
Introdução<br />
AS 1.001 NOITES DE LENY ANDRADE<br />
Nas primeiras vezes em que falei com Leny Andrade – uma, no camarim<br />
do Bar do Tom, uma casa de shows carioca, e outra, ao telefone –,<br />
quanta intensidade.<br />
Antes mesmo de começarmos a trabalhar, ela já veio dizendo o quanto a<br />
música lhe era importante, presente em sua vida desde quando se encontrava<br />
na barriga da mãe. Isso porque Dona Ruth dava aulas de piano para<br />
crianças enquanto estava grávida. Desse modo, o primeiro contato de Leny<br />
com a música se deu no mais aconchegante dos berços.<br />
Rapidamente sua memória voltou àquele dia em que, ainda criança, ousou<br />
abrir o bom piano de armário que ocupava a sala da casa no Méier, bairro<br />
carioca de classe média, para batucar nas teclas. Mamãe suspendeu a<br />
minha mãozinha pelo pulso e me deu a primeira lição de musicalidade:<br />
Aqui não se batuca, menina. É preciso antes sentir e, depois, começar a<br />
aprender o que fazer com essas teclas. A partir daquele dia, Leny saberia<br />
o que fazer com as teclas do piano, que ainda toca, e com as cordas de sua<br />
voz que vem encantando as mais diferentes plateias em todos os lugares<br />
do mundo, com extrema sensibilidade.<br />
Mas tem-se que pagar o preço e eu pago esse preço, como um pedágio<br />
– ela repetiu várias vezes, no nosso primeiro encontro e nos depoimentos.<br />
Muito trabalho, muita disciplina, nada de álcool, licença só para o cigarro,<br />
e assim tem sido a vida de Leny Andrade seja lá onde for, no Brasil, México,<br />
Estados Unidos, Europa, Japão, ou sentada em uma mesa do restaurante<br />
La Fiorentina – o seu escritório no Rio de Janeiro, onde me contou a maior<br />
parte de suas histórias.<br />
9
Histórias essas que quase não foram contadas, pois Leny ficou zangada<br />
quando prometi telefonar às 9 da manhã de uma terça-feira para marcar a<br />
primeira entrevista, e só o fiz duas horas depois. De forma gentil, embora<br />
firme, ela demonstrou desapontamento e profissionalismo, e ameaçou adiar<br />
o projeto – quem sabe para sempre.<br />
Eu, que já tinha sido fisgada pelo seu carisma, fiquei triste. Senti-me como<br />
aquele sultão e a sua Sherazade. Preferiria que a madrugada não tivesse<br />
chegado tão de repente, pois já antevia narrativas de uma vida muito rica,<br />
plena de experiências únicas, boas de ouvir e de passar adiante. Esperava<br />
um mundo de revelações, muitas surpresas que seriam narradas do jeito<br />
dela, com sua voz inconfundível. Seria a primeira entre os que se deliciariam,<br />
orgulhosa por ser a porta-voz daquela que é uma grande intérprete do que<br />
nós temos de melhor – a nossa música. Inconformada, agi rápido. Escolhi<br />
cuidadosamente uma linda dúzia de rosas e mandei para ela com um pedido<br />
de desculpas, em que dizia não querer ficar como o sultão, esperando que<br />
uma nova noite chegasse para que ela resolvesse me presentear com as<br />
1.001 noites de Leny Andrade.<br />
E aqui estou, feliz por ser a representante dessa maravilhosa pessoa que é<br />
Leny, a grande intérprete que muitas vezes esquecemos que é tão nossa.<br />
Aliás, devíamos ter vergonha de não estarmos sempre juntando os nossos<br />
aos merecidos aplausos que nunca lhe são negados nos quatro cantos do<br />
mundo por onde ela se apresenta.<br />
Interessante foi o evoluir deste livro. Logo no início, Leny e eu tivemos<br />
alguma dificuldade em encontrar o fio da meada para as narrativas. Ela,<br />
talvez preocupada em filtrar o que iria tornar público, ou mesmo em buscar<br />
a cronologia dos fatos perdidos no tempo. De minha parte, há muito deixara<br />
para trás as entrevistas tipo-caderno-B, para me dedicar aos textos do<br />
mundo corporativo. Mas fomos descobrindo coisas em comum, se não por<br />
razões superiores ao nosso entendimento, porque somos da mesma geração:<br />
um grande amor pelo jazz, o interesse pela Astrologia (coisa que não<br />
lhe revelei), pelo esotérico (revelei pouco), e o gostar de ouvir e de contar<br />
10
histórias (escancaramos). Aos poucos, relaxamos. Ela foi abrindo o jogo<br />
devagarzinho e depois já pontuava os depoimentos com um nossa, há muito<br />
tempo não toco nesse assunto, ou eu faço questão de contar como foi que<br />
isso aconteceu exatamente.<br />
Contrariando o catecismo, às vezes retribuía tanta generosidade com<br />
algumas histórias pessoais, sempre pontuadas pela música, nas noites da<br />
Bahia, Rio, São Paulo ou Nova York. Por exemplo, quando recordou sua<br />
estreia no João Sebastião Bar e eu disse que muitas vezes tinha ouvido<br />
música naquele lugar, na Rua Major Sertório. Acho que duvidou. Momento<br />
tocante foi quando recordou seu encontro com Piazzolla na boate La Noche,<br />
em Buenos Aires. Fiquei emocionada, ela percebeu e registrou. Por fim,<br />
acredito que o fato de Alcivandro Luz, Romero Lubamba, Ron Carter,<br />
Paquito D’Rivera, Bill Evans e Piazzolla ocuparem lugares especiais em<br />
nossos corações confirmou que habitávamos o mesmo quadrante neste<br />
universo cósmico.<br />
Leny foi tomando gosto pelas entrevistas, se entusiasmando pelo fato de<br />
estar organizando pela primeira vez a trajetória de sua vida em capítulos,<br />
tal qual uma Sherazade moderna. Mais ainda quando percebeu que este livro<br />
poderia salvá-la dos sultões da mídia e da ignorância das novas gerações,<br />
colocando-a no lugar onde verdadeiramente merece estar na história da<br />
nossa música. A cada encontro ela se organizava mais. Começou a chegar<br />
com um caderninho contendo poucas, porém, criteriosas anotações.<br />
Fazia comentários e sugestões inteligentes, discutia o projeto, colocandose<br />
inteira naquelas duas, três, quatro horas que ficávamos conversando.<br />
Sem falsa modéstia e com muito orgulho. A história fluía sem tropeços<br />
graças à sua extraordinária memória: do jeito que ela contava, parecia que<br />
tinha acontecido ontem. Tudo era narrado com muito colorido. Leny reviveu:<br />
riu, sorriu, sentiu raiva, indignação, saudade, se emocionou e até amou de<br />
novo. No final, quando o passado já se encostava no presente, contava-me<br />
amigavelmente sobre o seu dia a dia no Brasil, ou sobre as curtas e constantes<br />
viagens que realizou neste último ano, deixava recados na secretária eletrônica<br />
e enviava e-mails, já que estava aprendendo a lidar com o computador.<br />
11
Comecei a me sentir cada vez mais comprometida com esta biografia,<br />
com a obrigação de retratar os fatos com isenção, fiel às memórias da<br />
Leny. Não queria decepcioná-la. Também me encantou ser porta-voz de<br />
depoimentos muito verdadeiros sobre a noite de um Rio de Janeiro que já<br />
não existe e que foi “bárbara” (Leny tem vontade de resgatá-la), da história<br />
da Bossa Nova do ponto de vista muito pessoal de um de seus artesões,<br />
sem pesquisas sociológicas, antropológicas ou antropofágicas profundas,<br />
apenas com o compromisso de revelar os sentimentos da sensível mulher e<br />
intérprete que é Leny Andrade. Tudo isso tornou maior o desejo de fazer um<br />
registro que fosse verdadeiro e, ao mesmo tempo, desse prazer aos leitores,<br />
passasse informação, principalmente aos mais jovens – estou sempre<br />
preocupada com eles –, e a deixasse feliz.<br />
Paralelamente à confecção deste livro, Leny produziu vários shows e gravou<br />
Alma Mía – CD com 14 boleros magistralmente interpretados em perfeito<br />
espanhol. Cada vez que nos encontrávamos ela trazia notícias sobre o disco,<br />
ora contente com o andar da carruagem, ora impaciente, e, no final, já muito<br />
irritada com os tropeços da produção. Aconteceu de tudo. Ela dizia o tempo<br />
todo que precisava fazer um disco em língua espanhola, devia esta homenagem<br />
aos fãs que habitam os países da América Latina e que a chamam de<br />
Deusa. Dois fatos foram mais marcantes, pelo menos para mim: no dia em<br />
12
que ela ia fazer a primeira gravação com os músicos, num estúdio localizado<br />
no Recreio dos Bandeirantes – um lugar muito longe até para quem mora na<br />
Barra da Tijuca –, caiu uma chuva no Rio de Janeiro como não acontecia há<br />
40 anos, arruinando a cidade. Mas Leny conseguiu chegar lá. Sua vontade e<br />
sua disciplina são impressionantes. A segunda foi quando prensaram a capa<br />
do disco sem que ela tivesse aprovado o layout e ainda por cima escolheram<br />
a pior foto entre as 400 tiradas numa longa e exaustiva sessão a que se<br />
submetera. Nesse dia vi uma Leny muito indignada. Ultrajada no rigor do<br />
seu profissionalismo e muito triste por ter sido ferida na sua imensa sensibilidade.<br />
Mesmo assim trouxe-me um exemplar. Com toda delicadeza e<br />
carinho colocou o disco no meu CD player e com a sua voz inconfundível<br />
cantou com ela mesma El día que me quieras. De arrepiar!<br />
Posso afirmar que tudo na vida da Leny é assim: impregnado de uma qualidade<br />
própria, despretensiosa e verdadeira, revestido de uma disciplina e de<br />
um profissionalismo raros. Aonde Leny vai, vai inteira. De corpo e alma.<br />
Fiquei feliz por ter escrito este livro. Leny disse que está feliz. Vou ficar<br />
torcendo para que os nossos 1.001 leitores fiquem também.<br />
Regina Ribas<br />
Rio de Janeiro, 2010<br />
13
Um Pouco sobre Leny<br />
Leny Andrade é vida, amor, paixão, uma bomba sempre prestes a explodir.<br />
No palco é a entrega total àquela que chama de Espiritual – a Música. Em<br />
casa, uma mãe, uma amiga, uma avó, uma tia, uma madrinha, sempre<br />
falando ao telefone sentada em sua poltrona predileta, ligando para os<br />
amigos, preocupando-se com o dia a dia de cada um, e dando as maiores<br />
duras mesmo quando não são necessárias.<br />
Conheci a Leny em um show onde eu era sócio e gerente, e mais tarde<br />
acabei estabelecendo um vínculo profissional, através do seu agente, que<br />
me pediu que a acompanhasse em alguns espetáculos. Ao Luiz Otávio devo<br />
agradecer por ter me dado este presente, por ter colocado a Leny em minha<br />
vida, essa que se tornou como uma mãe, irmã, amiga, uma pessoa com que<br />
sempre posso contar.<br />
Nos últimos 14 anos tenho convivido com ela que é, não somente para mim,<br />
mas para muitos, a grande voz deste país. Mas falar sobre a cantora seria<br />
redundância. Prefiro narrar um pouquinho sobre o ser humano que é Leny<br />
de Andrade Lima, a filha da Dona Ruth. Um ser humano impecável, explosivo<br />
no dia a dia, sem regras ou papas na língua, que não manda recados,<br />
diz o que pensa e o que quer, mas quando sente que extrapolou, tem a<br />
humildade de pedir desculpas. Uma pessoa com um coração enorme e<br />
generosidade maior ainda.<br />
Poucos são os artistas que como ela têm o coração e a capacidade de<br />
ajudar, sem precisar de uma fundação ou de propagar o que faz. Faz simplesmente<br />
porque sabe que alguém precisa. Como é vidrada nas emissoras<br />
de rádio AM, onde tem sempre um programa de apelo popular pedindo uma<br />
ou outra coisa para os ouvintes, a todo momento está atendendo a quem<br />
necessita. Certa vez me ligou no início de uma tarde, para que a acompanhasse<br />
até uma fábrica de cadeiras de roda em Jacarepaguá, bairro na Zona<br />
Oeste do Rio de Janeiro, pois uma criança precisava de ajuda, conforme ela<br />
ouvira em uma dessas emissoras. Ao chegarmos ao local, a mãe e a avó da<br />
criança estavam lá. Para minha surpresa, a mãe era funcionária de uma<br />
empresa de plano de saúde e a cadeira que a criança precisava era bem<br />
14
sofisticado, com comandos eletrônicos, com custo bem acima dos modelos<br />
convencionais. Leny não discutiu e disse: É dessa que ela precisa; essa ela terá.<br />
Pagou o valor passado pelo fabricante que, também cadeirante, se comoveu<br />
com o gesto e até concedeu um bom desconto.<br />
Em outra ocasião, um técnico de som do teatro estava com a fisionomia<br />
preocupada e Leny perguntou-lhe o que se passava. O rapaz contou que se<br />
não depositasse determinado valor em juízo no dia seguinte seria preso,<br />
pois estava devendo a pensão alimentícia. Leny não quis nem saber qual era<br />
o montante da dívida. Mandou resolver o problema do técnico e acabou com<br />
aquela tristeza.<br />
Os músicos têm na cantora uma defensora e uma protetora acima da<br />
expectativa, sempre preocupada com cada um deles. Ela não admite, sob<br />
hipótese alguma, que o músico deixe de receber e, quando há atraso por<br />
parte dos contratantes, antecipa o pagamento tirando de suas reservas para<br />
que eles não fiquem na mão.<br />
Para falar desta pessoa que muito admiro e amo de paixão, uma página é<br />
pouco. Ficaria aqui contando muitos episódios e outras histórias vividas por<br />
nós, que corremos o mundo como se fôssemos uma família. E somos.<br />
Escreveria outro livro...<br />
Djalma Marques<br />
15
Histórias da Infância<br />
Dona Ruth, Dr. Gustavo e um consultório<br />
Nasci no Rio de Janeiro e fui levada para Minas com os móveis e utensílios<br />
de nossa casa dentro de um caminhão, quando Dona Ruth Couto de Andrade,<br />
minha mãe, uma libriana muito elegante, porém decidida, descobriu que<br />
meu pai estava namorando sua prima. Imediatamente ela se separou, mas<br />
não se desquitou. Naquela época, essas coisas levavam tempo. O importante<br />
naquele momento era deixar o vexame para trás. Não dava para ficar<br />
parada, e ela partiu para a solução mais rápida: fomos morar na casa da tia<br />
Levi, num sítio próximo a Belo Horizonte. Tive irmãos por parte de pai,<br />
porque Luiz de Oliveira Lima, meu pai biológico, se casou com outra mulher,<br />
não mais aquela prima, pivô da separação, que acabou falecendo. Então,<br />
eu tenho três irmãs que nasceram depois e com quem fui ter contato muito<br />
mais tarde.<br />
O Dr. Gustavo Paulo da Silva foi o meu verdadeiro pai. Meu grande educador.<br />
E também o maior fã que tive em toda a vida. Era clínico geral e – como<br />
gostava demais de crianças – pediatra também. Fui parar no consultório dele<br />
por causa de uma manchinha nas costas. Quando mamãe comentou com tia<br />
Levi sobre a manchinha, ela recomendou: leva no Dr. Gustavo. Na época, ele<br />
estava tratando da vista do meu tio, mas em sua clínica havia sempre<br />
crianças, todas muito à vontade. Mamãe esperou mais uma semana, me<br />
encapuzou e me levou lá. Olhei para a cara dele e comecei a rir, toda simpática,<br />
sabe? Ele gostava de contar esta história: Primeiro, me apaixonei por<br />
você; quem primeiro me agarrou foi você. Depois, fiquei apaixonado pela<br />
Ruth, pelo jeito dela muito educado, ela sempre muito arrumada. Mamãe<br />
tinha mesmo um jeito arrumado e elegante, muito característico do signo dela.<br />
No consultório, eles ficavam conversando enquanto me davam banhos de<br />
luz nas costas. Cada consulta levava meia hora. Então, ele nos despachava e<br />
pedia que voltássemos dali a dois dias. Remédio mesmo era só uma dose<br />
16
de arnica. Sim, porque Gustavo era<br />
médico alopata, homeopata e bruxo.<br />
Esse meu pai postiço tinha uma grande<br />
sabedoria, era muito espiritualizado.<br />
Era um crânio. Escorpião do dia 28 de<br />
outubro.<br />
É muito interessante isso, porque mais<br />
tarde outros dois escorpianos, nascidos<br />
nesse mesmo dia, vieram a ser pessoas<br />
muito importantes em minha vida:<br />
Ronaldo Bôscoli, por quem eu tinha<br />
verdadeira paixão, e Lúcio Nascimento,<br />
morto no início de 2009, que tocou<br />
contrabaixo no meu trio por 15 anos.<br />
Sou uma aquariana muito ligada nos escorpianos. Quem cuida da minha<br />
carreira atualmente é o Djalma Marques, nascido no dia 7 de novembro.<br />
Meu secretário, um grandalhão que está sempre por perto, também é do<br />
signo de Escorpião. Comigo eles deixam a agressividade de lado.<br />
Mas, voltando à infância, alguns anos depois nos mudamos para São Paulo<br />
e ficamos na casa do primo José Andrade. Fomos para a casa dele porque<br />
era uma propriedade enorme, com todas as condições de nos acolher. O lado<br />
da família Andrade é muito grande: tem José, Neneti, Nanci, Ivone, Paulo<br />
César, que é meu afilhado. Uma família muito direita, todos formados.<br />
Mamãe se preocupava em ficar protegida, porque no fundo tinha receio de<br />
que sua ligação com o Gustavo pudesse fazer com que ela perdesse a minha<br />
guarda. Ela só teve a mim e para tanto quase morreu. Sofreu muito, teve<br />
uma porção de complicações e decidiu fechar a fábrica. Complicações à<br />
parte, ela não queria era ter mais filhos porque embora, àquela altura, o Luiz,<br />
meu pai biológico, ainda não tivesse tido outros filhos, o Gustavo, quando<br />
saiu do Rio de Janeiro, já deixara três – uma mulher e dois homens: Odila,<br />
Augusto Carlos – o Dudu, e o Sussuca, que mora no Norte há anos.<br />
A filhinha do papai Gustavo<br />
17
Leny com 5 anos no carnaval<br />
18
Os tamanquinhos milagrosos<br />
Na infância, sofri todas as doenças que se possa imaginar. Tive uma bronquite<br />
que quando atacava me deixava roxinha, roxinha, e me levava para o<br />
hospital. Até o dia em que papai decidiu passar a trabalhar em casa para<br />
poder me acudir quando eu entrasse em crise.<br />
O lado bom dessa história foi que eu não era mais obrigada a frequentar a<br />
escola diariamente. Só não foi melhor porque quando eu passava mal era<br />
um terror. Teve uma vez – Gustavo ainda viajava – que, de repente, tive um<br />
febrão, muita dor de garganta, e o médico falava que poderia ser crupe,<br />
mesmo eu sendo tão nova. Papai voltou correndo porque achou que alguma<br />
coisa no tratamento estava errada. Quando chegou, viu que minhas juntas<br />
estavam muito inchadas e mandou suspender toda a medicação dizendo:<br />
Ela sofre de excesso. O médico exagerou na sulfa, por isso ela está com as<br />
juntas desse jeito. Vamos suspender tudo isso imediatamente e fazer uma<br />
desintoxicação. Para com tudo. Se eu não chego rápido, lá se ia a Lenizinha.<br />
Lembro-me disso tudo como se fosse hoje. Tive que reaprender a andar, a<br />
reconhecer as pessoas, a falar direito. Foi um febrão danado. Uma espécie<br />
de escarlatina, uma coisa pesada. Esqueci de tudo, esqueci da vida, do meu<br />
pai, da minha mãe, eu só balbuciava hã, hã...<br />
Os tamancos portugueses estavam entrando na moda. Um belo dia,<br />
Gustavo chegou em casa com uma caixa embrulhada para presente:<br />
Trouxe uma coisa para você, acho que vai gostar. Quando abri a caixa e vi<br />
os tamancos, fiquei enlouquecida. Papai advertiu: Eles são do tamanho do<br />
seu pé, você não vai escorregar, mas terá que ter força suficiente na sua<br />
perna para calçá-los e se equilibrar. Recomecei a andar por causa deles,<br />
dos tamancos que o Dr. Gustavo trouxe para mim. Eu tinha uns 5 anos.<br />
Aqueles tamanquinhos me botaram para andar de novo. Meu pai tinha<br />
coisas assim, era uma graça. Quando morreu, me faltou o chão. Entrei<br />
numa depressão profunda. Eu já era casada e meu marido não conseguia<br />
entender aquilo. Foi muito difícil...<br />
19
A mãe professora de piano<br />
Mamãe não dependia das aulas de piano para o seu sustento. Além de um<br />
dinheirinho extra, elas lhe davam o prazer de se relacionar, de estar com as<br />
alunas que a adoravam. Ela ia à casa delas toda arrumada, maquiada, brincos<br />
nas orelhas, olhos pintados, o cabelo no lugar, vestido elegante. As meninas<br />
olhavam e pensavam: O que é isso? Nossa Senhora! Minha professora<br />
parece uma boneca. Não me lembro de mamãe dando aula de piano em<br />
Minas e em São Paulo. Acho que ela começou a pegar pesado nas aulas<br />
quando moramos no Rio de Janeiro. Mas, com certeza, minha iniciação<br />
musical se deu antes mesmo de eu nascer.<br />
As aulas formais começaram muito cedo. Depois da primeira lição de<br />
musicalidade, quando mamãe me disse que era preciso antes sentir para<br />
depois começar a aprender o que fazer com essas teclas, ela comprou um<br />
caderninho, um lápis e uma borracha para que eu começasse direito. Você<br />
está vendo essas figurinhas aqui? São que nem as letras do alfabeto que<br />
você aprende na escola, só que cada uma delas tem um som, tem uma<br />
duração. Essa pretinha com um rabinho tem uma duração diferente desta<br />
outra, que é uma bolota. Não são iguais: vem primeiro a semibreve, depois<br />
a mínima, a semínima, depois vem a colcheia, a semicolcheia, a fusa e a<br />
semifusa. Tá entendendo?<br />
A vida da mamãe foi sempre ligada à música. Quando já idosa, ia para o<br />
baile do Maestro Tabajara assistir ao Dudu tocar levando um grupo de<br />
amigas, conhecidas da Igreja da Imaculada da Conceição, onde tocava<br />
órgão. Toda viúva que chegava na igreja chorava uma vez só, porque depois<br />
tinha que ir para o baile dançar. A igreja fica na Praia de Botafogo e o coral<br />
tem o seu nome: Ruth Andrade. No ano em que mamãe morreu (1999)<br />
faleceram mais cinco da mesma família. Naquele ano, Plutão pegou pesado.<br />
Só no prédio em que morávamos foram três. Mas o que vale é a lembrança que<br />
fica. Baile de carnaval, mamãe não perdia nenhum. Ela dançou muito na vida...<br />
20
Leny e Dona Ruth, sua mãe<br />
Praticando no piano de casa<br />
21
A turma da Profa. Maria Amélia de Oliveira na escadaria da ABIl<br />
22
Um caráter bem formado<br />
Saímos de Minas levando uma babá chamada Tereza, que foi minha madrinha,<br />
me batizou e tomou conta de mim enquanto pôde.<br />
Eu adorava a Tereza. Ela era encarregada de cuidar de mim e cumprir um<br />
monte de obrigações organizadas pelo Gustavo como não chegar à escola<br />
atrasada, comer no horário, brincar somente após os deveres feitos, etc.<br />
Mas, em compensação, ninguém podia me dar uma palmada, ninguém<br />
podia falar alto comigo.<br />
Lá em casa era tudo muito organizado: todos sentados à mesa, não tinha<br />
essa de comer com o prato na mão. Mamãe era a rainha da mesa para o<br />
café, almoço, jantar, fosse com convidados ou não. Ela tinha prazer nisso e<br />
contava com a ajuda da Tereza para manter o ritual. Até hoje tenho este<br />
hábito e adoro uma mesa bem posta.<br />
Gustavo era rigoroso. Às 8h30 da noite eu me despedia de qualquer visita,<br />
porque ele achava que criança precisava de limites e que o casal perdia a<br />
intimidade quando a criança dominava, pois ela sempre quer ocupar o espaço.<br />
Estava coberto de razão. Se eu tivesse tido filhos, educaria como o Gustavo<br />
me educou. Em casa não havia discussão. Convivi com aquele casal anos e<br />
anos e nunca os vi brigar. Nunca. O exemplo do Gustavo e as primeiras<br />
lembranças de nossa vida em família ficaram para sempre, porque isso é o<br />
tipo de coisa que as crianças guardam bem. Guardam essas impressões a<br />
sete chaves. É por isso que as moças deveriam pensar dez vezes antes de<br />
ter filhos. Casar é uma coisa, ter filhos é outra. Ter filhos, para mim, é a coisa<br />
mais séria na vida de uma mulher. É realmente a coisa mais séria deste<br />
mundo, principalmente no mundo em que vivemos. Você tem que ter<br />
preparo para colocar um ser humano no mundo. Decidi não ter filhos no dia<br />
em que optei pela música, fiz dela um sacerdócio e percebi que queria ter<br />
vida de artista com tudo o que ela acarreta. Jamais poderia cuidar de meus<br />
filhos como meus pais cuidaram de mim. E mais: meus filhos jamais iriam<br />
cuidar de mim como eu cuidei dos meus pais até o fim.<br />
23
Leny, a caloura<br />
24
A criança é um macaco de imitação. Você deve ensinar direito e dar o<br />
exemplo, porque senão a conversa será: como é que o papai e a mamãe<br />
querem que eu faça isso, se ele não faz, se eles fazem assim e assado?<br />
Os maiores críticos que uma pessoa tem na vida são os filhos. Eles são<br />
juízes implacáveis morando dentro de sua casa. Com três, quatro anos eles<br />
já julgam você, sua vida, seu comportamento. Tomam conta de tudo: pra<br />
onde você vai, com quem vai, como você chega em casa, se chega trocando<br />
as pernas... seu filho tá vendo tudo. Sou implacável com essas moças que<br />
andam por aí e, num momento de prazer, saem e arrumam filhos, o primeiro<br />
de um homem, o segundo de outro, e ainda outro de outro. Isso sem ter a<br />
menor condição de criar um sequer. Gente, filho não pode ser assim. Senão,<br />
onde vamos parar?<br />
Minha madrinha de crisma, a Marlene, até bem pouco tempo, morava no<br />
mesmo edifício que eu, na Praia de Botafogo, com sua irmã, Elza Novaes.<br />
Marlene foi entregue à mamãe, bem novinha, com 16 anos mais ou menos.<br />
Seu pai, Henrique Novaes, tinha um problema circulatório que já causava<br />
preocupação e por causa disso preferiu deixar a Marlene, que já gostava de<br />
cantar, aos cuidados da mamãe. Ele sabia que a filha receberia uma educação<br />
refinada, tornando-se uma moça chique. Porém, a Elza já começara a ter<br />
filhos – foram vários, um atrás do outro – e a Marlene foi ficar com ela para<br />
ajudar a tomar conta dos sobrinhos até que papai morreu. Decidiu, então,<br />
voltar para a nossa casa, alegando carinhosamente que sem o Dr. Gustavo<br />
Dona Ruth ficaria muito sozinha. Marlene está com 77 anos e Elza, 84.<br />
Moram atualmente no Retiro dos Artistas, num lindo recanto em<br />
Jacarepaguá. Ambas foram cantoras clássicas, e das boas, inscritas na<br />
Ordem dos Músicos, por isso escolheram ir viver naquela casa, que é um<br />
lugar maravilhoso, e estão muito felizes na nova moradia. Continuam muito<br />
ativas e saem bastante. A Marlene assistiu ao lançamento do Alma Mía, no<br />
Canecão. Elza preferiu não ir, receosa por causa de uma fratura recente.<br />
Elas são independentes, mas somos muito próximas, nos falamos quase<br />
que diariamente, nos consultamos para tudo, nos apoiamos mutuamente.<br />
São as minhas consentidas, os meus quindins. Foi com elas, cantando em<br />
casa, que dei meus primeiros agudinhos no chiribiribim...<br />
25
Laços de família<br />
Durante algum tempo, cada um vivia num canto. Mas um dia, a nossa família<br />
ficou toda junta. Anos depois de estar vivendo com Gustavo, mamãe soube<br />
que Dona Conceição, sua primeira mulher, estava sofrendo muito, com diabetes,<br />
e decidiu visitá-la em casa da Odila, sua filha. Gustavo ficou muito<br />
assustado com aquela história, mas mamãe simplesmente disse que aquele<br />
era um momento muito difícil para Odila, tomou um táxi e foi cumprir o<br />
anunciado, ordenando docemente que ninguém a impedisse.<br />
A partir desse acontecimento, aquela espécie de raiva, ou aquela ideia<br />
errada de que mamãe deveria estar às voltas com o Gustavo enquanto ele<br />
estava casado, foi tirada a limpo e a família acabou virando uma só. Dona Ruth,<br />
com toda diplomacia, desfez um mal-entendido de anos, aquela inimizade<br />
sem razão. Aliás, ela sempre dizia que um dia iria acabar com aquele teretetê<br />
porque tinha certeza de que os filhos do Gustavo sentiam vontade de<br />
estar próximos daquele pai tão especial. E assim foi: eles passaram a entrar<br />
lá em casa na hora que quisessem, e Odila passou a chamar a mamãe de<br />
mãe, como já faziam Dudu e Sussuca.<br />
Já minha aproximação com o meu pai biológico não foi nada fácil. O Gustavo,<br />
a quem eu sempre chamei de pai, teve um trabalho enorme para promover<br />
meu encontro com o Luiz. Confesso que resisti um bocado. Não porque eu<br />
tivesse sido envenenada pelos lá de casa, mas porque, objetivamente, eu só<br />
conhecera o Gustavo como pai. Só vim saber o que acontecera com a minha<br />
mãe quando já era adolescente, pois ela não era de ficar falando à toa.<br />
Muito menos de brigar. Nunca a vi batendo boca. Era o que você chama<br />
de uma lady. Uma libriana pra lá de especial, nascida no dia 13 de outubro,<br />
numa sexta-feira de um ano bissexto.<br />
26
Gustavo, Ruth e Leny<br />
27
Mamãe era apaixonada pelo meu avô, Mathias Couto de Andrade, um baiano<br />
que morreu na guerra e deixou para a família um contracheque maravilhoso<br />
que permitiu que nunca tivéssemos problemas materiais. A gente vivia sem<br />
luxo, mas com conforto, eu estava sempre muito bem vestida, muito bem<br />
arrumada e frequentava escolas maravilhosas. Quando saímos de São Paulo<br />
para o Rio de Janeiro, fomos morar num apartamento que o meu padrinho,<br />
Ademar, tinha determinado que fosse meu. Ele era alto funcionário do Banco<br />
do Brasil e o apartamento ficava num conjunto do Instituto de Aposentadorias e<br />
Pensões dos Comerciários (IAPC). Mamãe foi lá, viu, gostou e nos mudamos.<br />
Vida nova, colégio novo, bons vizinhos, um bom lugar para as aulas de piano<br />
da mamãe e ruas tranquilas para eu andar de bicicleta, a minha paixão...<br />
A debutante<br />
29
Precocidade e Independência<br />
Sempre fui dona do meu repertório<br />
Risque<br />
Ary Barroso<br />
Risque<br />
Meu nome do seu caderno<br />
Pois não suporto o inferno<br />
Do nosso amor fracassado<br />
(...)<br />
Mas, se algum dia, talvez, a saudade apertar<br />
Não se perturbe, afogue a saudade<br />
Nos copos de um bar<br />
Foi passeando de bicicleta nas ruas internas do conjunto do IAPC que vi uma<br />
faixa anunciando um concurso de canto que iria marcar o meu destino. Tinha<br />
cerca de oito anos. Li os dizeres daquela faixa e, independente e impulsiva,<br />
não pensei duas vezes: entrei no local – era uma espécie de associação de<br />
bairro – e me inscrevi. Só depois falei da minha ousadia ao papai, que ficou<br />
com a incumbência não só de comunicá-la à mamãe, como de convencê-la de<br />
que seria uma boa eu participar do concurso. Depois de muita argumentação<br />
do tipo, se ainda fosse uma audição de piano, cantar música popular, isso é lá<br />
coisa pra criança?, ela cedeu. Fui, cantei e venci. Cantei Risque, de Ari Barroso.<br />
Dali em diante perdi a conta de quantas vezes participei dos concursos do<br />
IAPC e de quantos prêmios ganhei. Mas lembro-me bem que um deles foi um<br />
pinguim de geladeira, outro um corte de tecido, e ainda outro um porta-retratos,<br />
que conservo até hoje. Não me esqueço também que foi no IAPC que conheci<br />
Sidney da Conceição, um biscuit negro, a coisa mais lindinha de se ver,<br />
que tocou uns acordes modernos – os primeiros que ouvi na minha vida.<br />
Em seguida, já em minha casa, passou inversões de acordes de violão para o<br />
piano – uma abertura definitiva para a minha cabeça.<br />
30
Não fui criança prodígio, até porque acho que elas são umas chatas.<br />
Mas precoce sempre fui. E independente. Desde cedo descobri que queria<br />
ser cantora e fui trabalhando para marcar a minha posição dentro de casa<br />
desde pequena, já que tinha pais tão rigorosos. Contava com o apoio do Dr.<br />
Gustavo, até porque ele tinha um filho músico, o Dudu. Já mamãe, depois de<br />
ter a resistência vencida, permitindo que eu participasse do concurso do<br />
conjunto residencial do IAPC, acabou por deixar as coisas correrem frouxas,<br />
porque, afinal, papai estava no comando. Estava lançada a minha carreira de<br />
cantora. Fui participar das matinês do Clube do Guri. Paralelamente, estudava<br />
piano a sério como bolsista do Conservatório com tudo o que isso significa:<br />
Czerny, Cortot, Bach e ensaios para as audições anuais. As festas de fim de<br />
ano eram um terror. Na terceira audição de piano, que era realizada no auditório<br />
da Associação Brasileira de <strong>Imprensa</strong> (ABI), a professora Maria Amélia de<br />
Oliveira resolveu juntar o grupo de meninas e propôs que terminássemos o<br />
concerto cantando Adeus Guacira, em lugar de tocar uma música. Uma por<br />
uma das alunas foi sendo testada até que chegou a minha vez e fui a escolhida<br />
para solar o maior trecho da música. Fiquei tão orgulhosa com os aplausos<br />
da plateia, tão vaidosa, que nunca mais deixaria de cantar...<br />
Cheguei com o meu pai ao Clube do Guri – o maior programa de rádio do<br />
País na época – recomendada por um Sr. Loureiro, que tinha ido perguntar<br />
a ele se eu não gostaria de participar do programa do Samuel Rosenberg.<br />
O programa era gravado no estúdio da Rádio Tupi. Eu tinha 10 anos, já tocava<br />
um pianinho regular e adorava cantar Risque que, decididamente, não é<br />
música para ser interpretada por crianças. O apresentador do Clube do Guri,<br />
Ari Rego, e o pianista Lucas acataram a escolha sob pressão, com restrições<br />
e sem alternativas. O final daquela minha primeira apresentação foi surpreendente,<br />
porque fiz um arremate. Até hoje arremato tudo o que canto, pois<br />
afinal de contas, quando a gente canta, não está recolhendo lixo – a música<br />
é composta de melodia, letra, ritmo e muito mais, não acaba enquanto não<br />
se faz o final. Os finais que o Tony Bennett dá às músicas que canta literalmente<br />
me matam. São todos muito bem pensados.<br />
31
O Clube do Guri foi levado para a TV Tupi em 1955, ainda em preto e branco,<br />
mas nasceu no rádio, em Porto Alegre, onde revelou Elis Regina. Durante 21<br />
anos reuniu crianças prodígio ou não, mães ansiosas e corujas. No Rio de<br />
Janeiro, o programa era realizado num maravilhoso auditório que ficava na<br />
Rua Venezuela. Meu Deus, por que acabaram com ele? Durante dois anos,<br />
todos os domingos, das 10 às 12 horas, Sônia Delfino, Thelma Elita, eu e<br />
muitas outras crianças fomos lá com nossos belos vestidos rodados, sapatos<br />
baixos, meias de seda curtinhas e laços nos cabelos, cantar músicas do<br />
repertório de Ângela Maria, Dalva de Oliveira, Dircinha Batista, Linda Batista,<br />
Nora Ney, Dóris Monteiro, Cauby Peixoto e Nélson Gonçalves – com o<br />
maestro Rui Silva ao piano, Victor Abauza e o japonês Antoninho Maciel –,<br />
músicas como Risque, Vingança e Se eu Morresse Amanhã de Manhã,<br />
entre outras.<br />
A partir do Clube do Guri não parei mais. Fui seguindo um caminho natural,<br />
querendo me transformar em cantora profissional. Então, veio o convite para<br />
me apresentar no programa do César de Alencar, na Rádio Nacional, localizada<br />
na Praça Mauá. Acompanhada pela grande orquestra do Maestro<br />
Chiquinho, cantei Se eu Morresse Amanhã de Manhã usando o arranjo de<br />
Dircinha Batista. O auditório veio abaixo e o César de Alencar disse: Eis aqui<br />
uma pequeninha cantando melhor do que muita gente grande. Eu trajava um<br />
vestido branco de seda e calçava lindos sapatos de verniz que papai me dera<br />
de presente, muito confortáveis. Engraçado como esses detalhes ficam em<br />
nossas lembranças para sempre. Naquela tarde, perdi dois anéis de ouro<br />
esquecidos na pia do banheiro. Mas em compensação no corredor da rádio<br />
vi pela primeira vez Dalva, Cauby, Ângela Maria, todos esperando a sua hora<br />
de cantar. E as macacas de auditório desses ídolos invadiram o palco após a<br />
minha apresentação e me carregaram no colo como se eu fosse uma pluma.<br />
32
Dudu, o irmão, empresário e arranjador<br />
Com o empreendedorismo do meu irmão Augusto Carlos Paulo da Silva,<br />
o Dudu, e a cumplicidade de papai, assinei um contrato com o Clube de<br />
Engenharia. Começava a me profissionalizar. Cantava nos fins de tarde e os<br />
ouvintes eram pessoas que trabalhavam nos escritórios localizados no<br />
centro da cidade. Não se chamava happy hour, mas era isso. Cantava no<br />
clube de segunda a sexta e aos domingos participava das domingueiras,<br />
bailes realizados nos diversos bairros da cidade e arredores. Começava a<br />
ganhar o meu dinheirinho, já não cantava mais de graça. Os músicos que<br />
me acompanhavam eram escolhidos por Dudu, que também tocava saxofone<br />
e flauta. Ele arregimentava os profissionais no Ponto dos Músicos,<br />
localizado na Praça Tiradentes, em frente ao Teatro Carlos Gomes. Assim,<br />
Dudu foi meu descobridor e primeiro empresário. Naquele período de minha<br />
vida, participei de inúmeros outros programas de rádio – na Mayrink Veiga e<br />
na Rádio Mauá – apresentei-me em clubes, festas dançantes e bailes.<br />
Foi graças ao Dudu que conheci o Permínio Gonçalves, uma das pessoas<br />
mais importantes em minha vida. Sua orquestra, grande, maravilhosa, era uma<br />
das mais, senão a mais, requisitadas para os bailes nas décadas de 1950 e<br />
1960, na Associação dos Empregados do Comércio, na Avenida Rio Branco.<br />
São inúmeros os músicos instrumentais que iniciaram suas carreiras lá e<br />
ficaram famosos, como o Wilson das Neves e o Bituca. Como está<br />
registrado em todas as referências biográficas, foi na orquestra de Permínio<br />
Goncalves que estreei profissionalmente como crooner – a pessoa que<br />
canta para o público dançar.<br />
33
Cantando no Clube do Guri com a famosa faixa<br />
34
A Bossa Nova<br />
O que vi e vivi no Beco das Garrafas<br />
Ainda fazia as domingueiras quando lá em Caxias apareceu, chamado por<br />
Dudu, um vibrafonista chamado Chuca-Chuca. Era sócio do Gigi, no Bacará<br />
– boate que ainda existe no Beco das Garrafas, à Rua Duvivier, 36 – marco<br />
importantíssimo em minha vida. Depois de me ouvir cantar e tocar piano no<br />
meio do baile, no Clube dos 500 – Lions, a missão do Chuca-Chuca passou a<br />
ser a de convencer o Gustavo de que não seria nenhum bicho de sete<br />
cabeças eu me apresentar no Beco, que sua boate poderia perfeitamente<br />
ser frequentada por uma moça de família.<br />
Para quem não é de minha geração, ou carioca, vou contar um pouco da<br />
história do Beco das Garrafas, berço da Bossa Nova, este movimento único<br />
que internacionalizou a nossa música para sempre. Afinal de contas, não<br />
posso imaginar histórias da Leny Andrade sem o Beco e sem a Bossa Nova...<br />
Sem essa de dizer que o Beco era barra pesada, um antro de boêmios que<br />
só sabiam beber e consumir drogas. Nada disso. O lugar foi batizado com este<br />
nome obviamente porque se tratava de uma rua sem saída e os moradores dali,<br />
irritados com o barulho que rolava altas horas da noite, jogavam garrafas lá de<br />
cima nos alegres transeuntes. É vero ma non o mais importante.<br />
A história que importa é que, no início dos anos 1960, três boates bombavam<br />
no Beco: Little Club, Bacará (que permanecem até hoje) e o Bottle’s (reaberta<br />
em fevereiro de 2010). No Beco das Garrafas se fazia a melhor música que o<br />
Brasil podia ouvir na época, com toda certeza. Os irmãos Giovanni e Alberico<br />
Campana (o da Plataforma), proprietários de três das quatro casas, abriam<br />
as portas para os jovens músicos e todos os que apareciam por lá eram<br />
jovens e talentosíssimos. Desse modo, as casas estavam sempre cheias de<br />
gente talentosa e de quem ia atrás dela apreciar suas artes. Gente como<br />
Lennie Dale, Tom Jobim, Johnny Alf, Baden Powell, Durval Ferreira, Paulo<br />
35
Moura, Carlos Lyra, Sergio Mendes, Luiz Eça, Luís Carlos Vinhas, Dom<br />
Salvador, Tenório Jr., Raul de Souza, J.T. Meireles, o maestro Cipó, Edu Lobo,<br />
Chico Feitosa (Fim de Noite), Roberto Menescal, Miele, Maurício Einhorn,<br />
Rildo Hora, Tião Neto, Manuel Gusmão, Bebeto Castilho, Dom Um Romão,<br />
Edison Machado, Airto Moreira, Wilson das Neves, Chico Batera, Vítor<br />
Manga, Hélcio Milito, Sylvinha Telles, Dolores Duran, Nara Leão, Marly<br />
Tavares, Betty Faria, Vanda Sá, Marisa Gata Mansa, Dóris Monteiro,<br />
Claudette Soares, Alaíde Costa, Elis Regina e Maysa Matarazzo, que resolveu<br />
deixar a tradicional família em São Paulo e vir para o Rio de Janeiro<br />
cantar. Ela saía a pé do tradicionalíssimo Hotel Copacabana Palace, descalça,<br />
e ia andando até o Beco para encontrar-se no Bottle’s Bar com Ronaldo<br />
Bôscoli, Miele e Menescal, e todos os que estão em seu primeiro grande<br />
disco, onde ela lançou O Barquinho. Juro que o ambiente não era pesado.<br />
Tinha uma casa de mulheres no início da rua, também dos irmãos Campana,<br />
mas que nunca influenciou o ambiente do Beco, nem se percebia a existência<br />
dela. Cantei durante muito tempo no Beco sem saber que havia naquela<br />
rua mulheres que cobravam para sair com os homens. Pra falar a verdade,<br />
nem sabia exatamente o que era isso – hoje sei que era uma casa de<br />
viração, como se dizia na época, e que se chamava Ma Griffe. Quem entrava<br />
no Beco desavisado não percebia nada e ninguém nunca passou por algum<br />
tipo de constrangimento ou dissabor por causa de sua existência. Nada!<br />
Toda a alta sociedade frequentava o Beco das Garrafas, acreditem. A chegada<br />
da Bossa Nova foi o desabrochar de um grande movimento no Rio de Janeiro.<br />
As casas noturnas à época só tocavam músicas modernas, super pra frente,<br />
e a fama do Beco das Garrafas deve-se ao fato de que as boates de lá<br />
abriram espaço para a vanguarda, fizeram uma música diferente de tudo o<br />
que existia, bem mais avançada. Quando o movimento terminava no Beco,<br />
quase todo mundo ia para a Fiorentina jantar. No restaurante do Leme ainda<br />
não havia o toldo branco de hoje, era tudo aberto com as pilastras se impondo.<br />
Era uma movimentação bárbara, um entra e sai de pessoas jovens e<br />
bonitas. O restaurante ficava aberto até muito tarde porque os artistas<br />
costumavam chegar quando encerravam o trabalho e os fãs iam atrás.<br />
Como acontece até hoje.<br />
36
Mais jantar dançante, piano nos intervalos<br />
37
Leny nas domingueiras<br />
38
Jantar dançante no Lions Club<br />
39
O fantástico caminho da Bossa Nova<br />
Eu tinha 17 anos, era praticamente uma criança, a mais jovem entre os<br />
artistas, e sentia uma alegria enorme em conviver com o povo já adulto.<br />
Era uma festa. Muitos encontros marcantes, muita troca de informação.<br />
Uma riqueza cultural absolutamente fantástica: Luis Carlos Vinhas, Luiz Eça,<br />
todos formando trios que estouravam. Teve a chegada do Lennie Dale ao Rio<br />
de Janeiro, que foi por si só um espetáculo porque significou a chegada da<br />
dança ao Beco das Garrafas. Lennie fez grandes shows lá: formou o<br />
Sambalanço Trio com o César Camargo Mariano, piano; Humberto Claiber,<br />
baixo; e Airto Moreira, bateria. Eles se apresentavam no Rio e em São Paulo<br />
e um belo dia gravaram ao vivo o Lennie Dale & Sambalanço Trio no Zum<br />
Zum. O Lennie foi uma vanguarda totalmente diferente. Eu me sentia amada<br />
e mimada por ele, que tinha altas conversas comigo, se metia nos meus<br />
arranjos, melhorava minhas coisas, dava ideias mirabolantes, inclusive essa<br />
desdobrada fantástica, que até hoje faz tanto sucesso quando eu canto<br />
Estamos Aí, do Durval Ferreira e do Maurício Einhorn, e também da Regina<br />
Werneck, uma vez que foi ela quem colocou letra nessa música. Tudo era<br />
muito rico e ainda está muito vivo em minha memória.<br />
Estou achando uma boa ideia escrever um livro sobre a minha vida porque<br />
acredito que não tivemos e nem vamos ter no Brasil outra cantora que tenha<br />
andado por esse caminho e permanecido em cena até os dias de hoje.<br />
Houve mais de um motivo para que isso acontecesse comigo, mas, o principal,<br />
foi que Papai do Céu assim determinou. Houve uma época em que a minha<br />
carreira e a da Eliana Pittman correram paralelas e eu gostaria muito que<br />
tivesse continuado assim. Além de bonita, Eliana era enteada de um grande<br />
músico de Nova Orleans, Booker Pittman, uma pessoa com raízes no jazz.<br />
Até hoje não entendi por que Eliana mudou o rumo de sua carreira. Era para<br />
ter vindo por esse mesmo caminho.<br />
Outro motivo de eu ter sido a única a seguir a trilha onde a Bossa Nova e o<br />
jazz tiveram um encontro tão expressivo, em minha opinião, foi que somente<br />
40
No auditório da Rádio Tupi<br />
41
alguém com conhecimento profundo de música poderia ter sacado o novo<br />
movimento musical. Aquela intensidade melódica, aquela harmonia, um jeito<br />
de construir as frases musicais totalmente diferente – isso foi a Bossa Nova.<br />
Uma linguagem, uma maneira diferente de se dizer: Dia de luz, festa de sol<br />
e o barquinho a deslizar no macio azul do mar... Era uma coisa totalmente<br />
nova, nunca dita, porque antes se dizia Adeus, adeus, adeus, cinco letras<br />
que choram..., assim, nesse compasso. E vinham todos os sucessos da<br />
Dalva. Ou... Não, eu não posso lembrar que te amei... Aí vinha a corrente do<br />
Ari Barroso: Brasil, meu Brasil brasileiro... e vinha... Risque, meu nome do<br />
seu caderno...; Eu gostei tanto, tanto quando me contaram..., que era Linda<br />
Batista. Era outra maneira de compassar. De repente chegou a Dóris<br />
Monteiro muito moderna, cantando Eu sou feliz, tendo você sempre ao meu<br />
lado... e mais Meu bem, esse seu corpo parece, do jeito que ele me aquece,<br />
um amendoim torradinho... e Você é dó, é ré mi fá, é sol, lá, sí... Coisas da<br />
vida da Dóris, do caminho da Dóris.<br />
O conhecimento profundo da música permitiu que eu caminhasse melhor<br />
por esse fraseado. Sacasse melhor as coisas que a Dolores estava começando,<br />
coisas importantes como Eu desconfio que o nosso caso está na<br />
hora de acabar... há um adeus em cada gesto, em cada olhar...<br />
Leny, profissão: músico<br />
Como aos 17 anos eu não tinha vivência emocional para alcançar o que<br />
estava acontecendo, outros conhecimentos de teoria musical, harmonia,<br />
etc., valeram e muito. Eles foram adquiridos através do estudo do instrumento<br />
poderoso e completo que é o piano. Eu possuía uma base musical<br />
fincada no chão para sacar as coisas, compreender as riquezas do que<br />
estava começando a ser dito musicalmente de uma forma inusitada.<br />
Sobre essa base adicionei riquezas, pois vivi rodeada de músicos maravilhosos,<br />
fui agraciada com a direção de grandes maestros, acalentada por muito<br />
afeto musical. Colecionei elogios do maestro Cipó, do maestro Nelsinho do<br />
Trombone, que fez todos os arranjos do meu primeiro disco, do Manoel<br />
Gusmão, contrabaixo, e do Edison Machado, bateria, músicos extraordinários<br />
que tocaram muitas vezes comigo no Beco. Fui encontrando os mestres<br />
pela vida por essa vivência do som nosso de cada dia. Eram pessoas maravi-<br />
42
lhosas com quem trocava ideias, que sentiam prazer em dividir comigo,<br />
fazer solos enquanto eu cantava nos shows. Essa gente me rodeava e a<br />
troca se dava mais com os homens. Das mulheres era apenas uma amiguinha,<br />
sem muita intimidade. Já os homens comentavam minha atuação,<br />
aconselhavam, sugeriam repertório, davam mil dicas: pede para o Carlinhos<br />
te mostrar uma música dele com o Ronaldo Bôscoli, que diz Brinca no ar um<br />
resto de canção, um rosto tão sereno, tão quieto de paixão... você tem que<br />
cantar isso, e ia por aí...<br />
Meu primeiro dinheiro na noite foi ganho na boate Bacará. Eu revezava no<br />
palco com o Altemar Dutra, que já conhecia algumas coisas da Bossa Nova,<br />
desse corte moderno que estou tentando descrever com palavras. Ele<br />
misturava novas composições com alguns boleros do seu repertório.<br />
Precoce, eu já tinha naquela época consciência de que a minha voz fazia<br />
parte do conjunto dos músicos – era um instrumento. Acho que por isso<br />
sempre fui considerada como um músico. O meu número na Ordem dos<br />
Músicos é 722. Isso é impressionante. Acho que a minha mãe era 723, a<br />
Marlene, minha madrinha, era 721. Praticamente inauguramos a Ordem.<br />
Coisas da Dona Ruth. Porque quando a Ordem dos Músicos foi constituída,<br />
mamãe me obrigou a me inscrever. Era a maneira de aceitar o meu destino<br />
do seu jeito – já que não haveria volta, precisaria ser com seriedade. Tive<br />
que seguir o Conservatório de Música até receber o diploma de pianista,<br />
depois me sindicalizar, em seguida me emancipar, manter os papéis em<br />
ordem, atualizados – exigências que continuo cumprindo. Mamãe realmente<br />
me profissionalizou.<br />
Mas, nas andanças na noite, foi meu pai quem me acompanhou. Vivia a<br />
tiracolo e havia alguns rituais familiares a seguir. Após os shows, a gente<br />
saía para comer, geralmente fora do bar. Aconteceram lances engraçados.<br />
De vez em quando, a polícia chegava dando batidas nas boates e eu ia parar<br />
no banheiro. Era bom estar com meu pai, embora eu não tivesse medo de<br />
nada. Como boa aquariana, sempre fui destemida.<br />
Esta festa durou muitas e muitas noites. Saí do Bacará quando fui contratada<br />
pelo Alberico para tocar na casa do lado – no Bottle’s – com o Sergio Mendes,<br />
no final dos anos 1950. Foi o maior acontecimento da época. A fila ia da porta<br />
do Bottle’s até a Avenida Nossa Senhora de Copacabana. A casa era pequena,<br />
bastavam 150 pessoas para lotar. Todos fumando, menos eu, que só fui fumar<br />
com 21 anos. Só que onde eu andava tinha tanta fumaça que, aqui pra nós,<br />
não fazia diferença. Ai pensei: é guerra? Vou fumar também.<br />
43
Easy rider com Dick Farney<br />
Quando estava no auge do sucesso, na crista da onda, muito elogiada pela<br />
imprensa, curtindo cantar como convidada especial do Jorginho Guinle em<br />
seu clube particular de jazz no Copacabana Palace (parêntese para o Jorginho:<br />
era um verdadeiro gentleman, meu superfã, não esqueço do dia em que<br />
beijou a minha mão), apareceu em minha vida outro homem cheio de<br />
charme e beleza, talvez o mais belo e elegante que conheci: Dick Farney.<br />
Ele fez um assédio geral à família. Chegou sem avisar, bateu à nossa porta,<br />
que mamãe abriu depois que vislumbrou aqueles olhos azuis pela portinhola,<br />
e com uma conversa mole e muito bem-educada, encostou meus pais na<br />
parede. Disse que me queria para crooner da sua orquestra itinerante, mas<br />
antes teria que convencê-los pessoalmente de que aquela era a melhor das<br />
ideias. Papai caiu na lábia do Dick, mas mamãe atacou de interrogatório: que<br />
orquestra era aquela, de onde era e para onde ia, quantos músicos tinha,<br />
etc. A cada resposta do Dick, contrapunha um impedimento. Disse-lhe que<br />
– mesmo que eu desejasse participar daquela aventura – seria impossível,<br />
porque eu tinha que concluir meus estudos, tinha planos de fazer História da<br />
Música e aquela vida de cantora tomava proporções muito grandes, estava<br />
ficando muito complicada, eu já gravara um disco, oito prêmios como<br />
cantora revelação, não seria possível continuar naquele ritmo.<br />
Dick usou então um argumento engraçado e lisonjeiro ao mesmo tempo:<br />
explicou que o maestro Erlon Chaves tinha mandado me buscar não porque<br />
em São Paulo não houvesse excelentes cantoras, mas porque ele precisava<br />
de alguém com meus princípios, pois, do contrário, ia ser um deus nos acuda:<br />
a moça que entrasse no grupo dez dias depois estaria namorando o primeiro<br />
trompete, depois iria trocá-lo pelo segundo sax, eventualmente poderia vir a<br />
querer o pianista e assim por diante..., até passar pelos 25 músicos dentro<br />
do ônibus... Aí foi a vez de papai corroborar com a posição da mamãe:<br />
definitivamente, a Lenizinha não iria.<br />
Dick Farney não desistiu. Prometeu mundos e fundos: não haveria limite de<br />
cachê, eles pagariam o que fosse necessário para me ter na orquestra.<br />
Fariam o que meus pais pedissem. Então, mamãe tomou a decisão: eu iria<br />
se um deles fosse junto, era uma condição sine qua non. Dick aquiesceu,<br />
garantindo que eu seria a estrela maior da orquestra, trabalharia em lugares<br />
onde haveria muito dinheiro circulando, com shows dia sim, dia não, tudo de<br />
primeira. E assim foi.<br />
45
Era um ônibus grande, confortável, que nem aqueles que a gente vê nos<br />
filmes americanos, com o nome da orquestra pintado nas laterais. Dentro,<br />
eu era a única mulher. Não me lembro se o nome do grupo era Orquestra<br />
Dick Farney, em português ou em inglês. Mas me lembro perfeitamente do<br />
Dick metido em um smoking elegantérrimo. Os 25 músicos não eram nada<br />
perto dele, de tão lindo que era. E ali é que estava o perigo, eu nem olhava<br />
muito para o lado dele, com medo de desmaiar. Durante um ano e meio<br />
tudo correu maravilhosamente bem, Nossa Senhora! Até hoje, quando faço<br />
shows em lugares por onde passei com a orquestra, as pessoas querem me<br />
contratar. Nós nos divertimos muito, podem acreditar...<br />
Pagina anterior: Cartaz Dick Farney e sua orquestra<br />
Dick Farney<br />
46
Com Dick Farney, uma elegância e tanto<br />
47
O Tamba Trio e a traição de Hélcio Milito<br />
Eu estava cantando no Manhattan Club, que ficava na Rua Vieira de<br />
Carvalho, em frente ao Kilt Club. O lugar era conhecido como Beco do Joga<br />
a Chave, Meu Amor. O trio que me acompanhava – Tenório Jr., piano; José<br />
Alves (Zé Bicão), baixo; Milton Banana, bateria – ia ao Chile participar de um<br />
festival de jazz. Por isso, resolvi convidar Octávio Bailly Jr., baixo acústico;<br />
Hélcio Milito, bateria; e Luiz Eça, piano, para tocar comigo. Tínhamos apenas<br />
uma semana para criar alguma coisa e estrear. Mesmo assim, eles pediram<br />
tempo para pensar. O lugar, de propriedade de meu amigo Saraiva, era<br />
pequeno, porém jeitoso, e o ambiente, muito nobre. Foi, portanto, em 1962<br />
que surgiu o Tamba Trio em sua primeira formação, porque antes não tinha<br />
nem tamba nem trio. Aquele pessoal ia pra noite era para namorar as fabulosas<br />
dançarinas trazidas por Carlos Machado do Teatro Maipú de Buenos Aires.<br />
Então, pensei: por que não vir tocar comigo no Manhattan Club?<br />
Hélcio chegou com ¼ de bateria – que era a tamba. Logo de saída avisei<br />
disse que não queria que o conjunto se chamasse Leny Andrade e o Tamba<br />
Trio. Poderia até ter sido Tamba Quatro, é verdade. Mas por essas coisas do<br />
destino, ficou sendo Tamba Trio e pronto. O estouro foi imediato, com muitos<br />
flashes pipocando em nossa cara e manchetes nos jornais. Com todo aquele<br />
talento junto, arranjos vocais e instrumentais de Luiz Eça, foi fácil botar fogo<br />
no Rio de Janeiro.<br />
Quando estávamos no auge, auge total, o Hélcio recebeu umas três ou<br />
quatro propostas e foi atrás delas arrastando os demais músicos.<br />
Despediu-se de mim pelo telefone. Faço questão de contar esta história.<br />
Aqui ou em qualquer outro lugar onde falem sobre mim ou sobre a minha<br />
carreira. Hélcio Milito me despediu pelo telefone quando eu fazia a primeira<br />
voz do Tamba Trio e o conjunto era o maior sucesso. Chegamos a gravar um<br />
disco compacto duplo para a RCA Victor.<br />
48
Durante apresentação<br />
49
O efeito daquela atitude caiu sobre a minha família como a bomba atômica<br />
em Hiroshima. Tínhamos nos mudado do Méier para ficar mais perto da<br />
noite – fomos morar no edifício Maragato, em Copacabana, para facilitar os<br />
inúmeros ensaios do Tamba Trio. Eram muitos dias sem dormir, horas e<br />
horas de trabalho, muita dedicação e cansaço. Nem gosto de recordar a<br />
minha reação. O choque foi tão grande que papai precisou mandar enfiarem<br />
meus pés num balde de água quente porque a pressão foi pro beleléu.<br />
Ele chegou a pensar, num primeiro momento, que alguém muito querido<br />
houvesse morrido. Contei-lhe que o Hélcio tinha dito ao telefone que o<br />
Tamba Trio seguiria sem mim, comecei a soluçar e passei dois dias chorando.<br />
Passei 48 horas chorando. Não podia imaginar que pudesse existir um ser<br />
humano capaz de fazer uma coisa daquelas, daquele jeito. Caramba! Quero<br />
deixar bem claro uma coisa: nunca quis ser dona de nenhum conjunto, de<br />
nenhum músico, só sou dona da minha carreira. Mas, quem convidou os<br />
três músicos para criar o que se chamou Tamba Trio fui eu: Leny de Andrade<br />
Lima. Eu merecia pelo menos respeito!<br />
Hoje, passados tantos anos, até consigo rir. Perdoei, embora jamais tenha<br />
esquecido. Aquariano perdoa, mas não esquece. Mas naquela época, que<br />
dor, meu Deus! Mesmo porque não havia nenhuma necessidade de ter sido<br />
daquela maneira. Nenhuma! Eu não era a dona do Tamba Trio e não me<br />
comportava como tal, pelo contrário, sentia muito prazer de ter grandes<br />
músicos ao meu lado. O show era um escândalo, parava qualquer um em<br />
qualquer lugar do mundo. Isso na primeira formação, ainda sem o Bebeto<br />
Castilho, que veio depois de tudo isso, com a saída do Octávio.<br />
Meu pai me consolou com sua grande sabedoria: Sabe, minha filha, se você<br />
não fosse quem já é, se ainda tivesse começando, eu ia dar um jeito para<br />
esse cara nunca mais tocar bateria. No máximo ele iria ficar só olhando.<br />
Mas a vida vai lhe dar muita porrada, deixe estar. Porque isso foi pesado.<br />
Fique calma, porque você ainda terá muitas oportunidades e viverá grandes<br />
momentos com a sua música. No meu íntimo, contudo, eu sempre soube<br />
que decepção como aquela não haveria outra igual. Fiquei muito mal mesmo!<br />
50
Nada como um dia após o outro<br />
Após o bilhete azul do Tamba, segui para São Paulo. E foi uma maravilha,<br />
porque comecei a namorar o Milton de Paula, uma das pessoas mais<br />
bonitas que conheci. Ele era de uma família bem de vida do interior de São<br />
Paulo. Apaixonado por música, tinha se mudado para a capital a fim de tocar<br />
piano profissionalmente. A gente se conheceu no João Sebastião Bar, que<br />
era reduto da Bossa Nova em São Paulo. Ele tocava à tarde e achei legal<br />
chamá-lo para me acompanhar à noite. Era um verdadeiro profissional, já<br />
tinha feito alguns outros bares. Depois de um mês trabalhando juntos,<br />
começamos a namorar.<br />
Milton tornou-se parceiro do Geraldo Cunha e acabei fazendo um LP duplo<br />
com quatro músicas deles, depois de ter gravado A Arte Maior de Leny<br />
Andrade. A Philips queria mais um disco, então aproveitei a oportunidade.<br />
O Geraldo era um excelente violonista e o trabalho foi muito agradável, tudo<br />
ficou exatamente dentro da minha proposta. Na realidade, nunca gravei para<br />
estourar. Desde cedo tive a consciência exata do que fazia, o repertório era<br />
selecionado com muito bom gosto, as melodias bem executadas, os arranjos<br />
e as harmonias mais ainda, e as letras que escolhia para cantar tinham<br />
que ter um por quê – o caminho sempre foi o mais difícil. Por isso, eu nunca<br />
seria popular.<br />
Era tempo dos festivais. Eu revezava com a Claudette Soares nas apresentações<br />
no João Sebastião Bar, e o que eu fazia lá era o top de linha em termos<br />
de música e cultura. O dono da casa, Paulo Cotrim, fazia questão de manter<br />
tudo em altíssimo nível: ambiente, frequência, intérpretes, repertório...<br />
Fiquei ali um tempo, muito feliz, quando apareceu um argentino que era<br />
apaixonado por meu trabalho e quis me levar para Buenos Aires. Falou sobre<br />
o Piazzolla, que havia revolucionado o tango, e de como era efervescente a<br />
noite portenha. Insistiu, insistiu, insistiu, minha mãe quase melou a viagem<br />
tamanha era a insistência dele, mas acabou cedendo e até foi junto. Lá tudo<br />
correu às mil maravilhas. Após o show íamos para o Boca e ficávamos até<br />
tarde: minha mãe, Milton e eu...<br />
51
Milton de Paula, um lindo piano e pura poesia<br />
Milton de Paula e eu vivemos um romance fadado ao insucesso por vários<br />
motivos. Seus familiares jamais aceitariam que ele se casasse comigo, pois<br />
pensavam que cantoras eram putas. Isso é bom registrar, porque era exatamente<br />
assim que as coisas aconteciam naquela época. A Claudette, por<br />
exemplo, andava com a mãe a tiracolo para não ficar malfalada. Por outro<br />
lado, Milton era um tanto possessivo. Não me largava um minuto, no palco<br />
e na vida. Deixei-o então ao sabor da família. Ele continuou em Ribeirão<br />
Preto, concluiu a faculdade de Administração e casou-se com uma das<br />
moças mais ricas da cidade, cuja família era dona de usinas de açúcar.<br />
Ele com o café e ela com o açúcar, foi uma combinação e tanto. Assim se<br />
passaram os anos. Ele ficou lá casado e eu aqui me casei com o Carmelo<br />
Senna, um madrilenho lindíssimo e riquíssimo, cuja história conto adiante.<br />
Certa noite, eu estava fazendo uma temporada no Chico’s Bar, anexo ao<br />
Castelo da Lagoa, um dos restaurantes do Chico Recarey, quando o maître<br />
chegou dizendo que um cliente do restaurante queria falar comigo. Fui ver<br />
quem era e dei de cara com o Milton de Paula, que pediu licença aos amigos<br />
e me levou lá fora para uma conversa. Demos uma volta inteira no quarteirão<br />
de mãos dadas, absolutamente mudos, num silêncio sepulcral. O nosso<br />
reencontro se resumiu nisso. Ele nada disse além do que já tinha falado à<br />
mesa. Nem sequer houve um gesto, uma tentativa de beijo, nada. Porém,<br />
foi o encontro mais emocionante que tive na minha vida. Um presente.<br />
Foi como se ele dissesse que ainda continuava comigo desde os tempos do<br />
João Sebastião Bar e de Buenos Aires, e que me amaria para sempre.<br />
Que tudo o que nós possuíamos dispensava palavras ou explicações.<br />
52
Quando soube que ele havia morrido, tudo ruiu ao meu redor. Senti-me só.<br />
Porque uma coisa é você estar separada da pessoa e os demais em sua<br />
volta saberem daquele amor ou daquele sentimento que existiu e respeitarem.<br />
Outra é saber que aquela pessoa não existe mais. Recordando aquele encontro,<br />
lembro-me também de uma música que ele fez para mim, letra e melodia<br />
me vêm à cabeça, é incrível como me lembro palavra por palavra, cada<br />
vírgula, cada pausa, e a emoção que me assoma é a mesma que sentia lá<br />
caminhando naquele quarteirão da Lagoa Rodrigo de Freitas. E me lembro<br />
da beleza que ele escreveu para mim: Quero hoje molhar você de pranto e<br />
saudade... como se eu fosse a chuva e você a terra virgem. Que sol do amor<br />
brilhe em dia eterno. Não venha a noite do talvez. Que a flor viva se conserve<br />
sem tempo de cair nem hora de morrer.<br />
Depois de sua morte, apresentei-me em Ribeirão Preto. Numa mesa reservada,<br />
encontrava-se a viúva de Milton de Paula, os quatro filhos e mais um<br />
casal amigo da família. No fim do show fui até lá, sentei-me por alguns<br />
instantes, conversei e dei autógrafo. Foram todos delicados e carinhosos.<br />
A viúva contou que – apesar dos compromissos que o Milton assumira com<br />
os negócios das fazendas – conservara o piano de cauda e não passava três<br />
dias sem tocar. Todos na família sabiam, de que maneira exatamente não<br />
sei, que Leny Andrade e Milton de Paula viveram uma história de amor<br />
eterno. Uma linda história de amor, que não poderia ficar de fora dessas<br />
minhas 1.001 noites. Necessito dizer que esse amor, esse afeto, foi como<br />
diz o mestre ascensionário Saint Germain: O amor verdadeiro existe, da<br />
cintura para cima.<br />
53
Estreia internacional em Buenos Aires<br />
54
Estreia Internacional<br />
La Noche de Astor Piazzolla<br />
Inaugurei minha carreira internacional em mi Buenos Aires querida, numa<br />
temporada de 20 dias. Estava bombando em São Paulo quando um empresário<br />
argentino me ouviu e me levou para me apresentar no programa<br />
Cassino Philips, o mais importante programa de TV da Argentina, no Teatro<br />
Maipú, onde as vedetes rivalizavam em beleza com as parisienses, e, por<br />
último, no La Noche, na Calle de Ayuntamiento. Três locais e um único e<br />
grande sucesso. Trabalhei muito, mas encontrei um tempinho para conhecer<br />
o Boca e comprar um monte de perfumes. Eu sou louca por perfumes e<br />
pela Argentina.<br />
Fui com a minha mãe, é claro. E lá estava em Buenos Aires, cantando no<br />
La Noche, acompanhada do Milton de Paula, um baixista e um baterista<br />
argentinos, cujos nomes já não me lembro, músicos fantásticos. Fizemos<br />
um baita show. Quando faltavam umas três músicas para o fim da apresentação,<br />
chegou ele, o dono da boate: Astor Piazzolla. Ele se apaixonou ao me<br />
ouvir cantar. Não por mim, mas pela Bossa Nova, aquele improviso, tudo muito<br />
relax e cantado em português. Consigo impactar com o meu comportamento<br />
em cena, porque quando canto estou inteira no palco. É como se o<br />
teatro, o bar fosse meu, como se estivesse na sala da minha casa. Não tenho<br />
nenhum problema com o stage, porque as audições de piano me deram<br />
esse background – e a outra parte que faltava aprendi fazendo bailes dançantes.<br />
Então, falo com a plateia como se estivesse me comunicando com você.<br />
Faço graça, comentários, fico solta, muito à vontade. A única vez que decorei<br />
textos foi no Gemini V. Eram scripts do Ronaldo Bôscoli e do Miele. De resto,<br />
sempre falei de improviso.<br />
O que o Piazzolla fez naquela noite foi inesquecível. No fim do seu show,<br />
disse para os presentes: Comprei um pacote confiando no meu agente e<br />
amigo. Ele trouxe essa jovem revolução musical brasileira para se apresentar<br />
em três lugares em Buenos Aires, sendo a última esta aqui, por 50 minutos.<br />
55
Porém, ninguém a deixa ir embora. Eu quero agradecer à sua mãe, ao<br />
excelente pianista que a acompanha e a ela própria, Leny Andrade, por este<br />
presente. Prestem atenção nesta baixinha, porque vocês ainda vão ouvir<br />
falar muito dessa menina.<br />
Depois de me apresentar, acomodei-me em uma das mesas com minha<br />
mãe e Milton e ficamos ouvindo o sexteto do Piazzolla durante uma hora e<br />
vinte. Achei que não fosse aguentar uma hora de tango. Era muito, pensei,<br />
até que ele atacou com o seu bandoneón, um dos pés em cima de um<br />
banquinho. Era outro tango, algo nunca dantes ouvido, misturado com jazz,<br />
com clássicos como Chopin e Tchaikovsky. Um poder incrível que aquele<br />
homem tinha de terminar cada música como ela tem que ser terminada.<br />
Aquele segredo que sei desde criança: as músicas têm que ter final, o<br />
público tem que ser arrebatado ao final. Às vezes os intérpretes não se<br />
preocupam com isso e o final fica sem impacto, assim como faz o Caetano,<br />
mas isso é detalhe, pois Caetano é um caso à parte, pode fazer o que<br />
quiser. A verdade é que os boleros são temperamentais, os tangos também,<br />
e ambos precisam de um grand finale.<br />
Eu já tinha bastante conhecimento de música e fiquei boquiaberta ouvindo<br />
Piazzolla. Comentei com minha mãe: Como é mesmo isso aí, mãe? Que<br />
homem é esse? Ele era um espetáculo! Escandalizando as pessoas, chocando.<br />
Como um cara ousava chegar numa coisa tão tradicional como era o<br />
tango e fazer aquela modificação tão incrível? Piazzolla colocou o jazz no<br />
tango. Assim como os brasileiros fizeram com a Bossa Nova. Como músico<br />
que sou, afirmo que é difícil encontrar uma evolução melódica, uma harmonia,<br />
que se junta e modifica uma música como aconteceu com o jazz no tango<br />
argentino e com o jazz na nossa Bossa Nova. Encontrei-me com Piazzolla<br />
algumas outras vezes em São Paulo. Sua atitude comigo sempre foi a de um fã.<br />
56<br />
Estreia internacional em Buenos Aires
Do Tabuleiro da Baiana para o Porão 73<br />
Uma semana depois, me ligou o Mario Castro Neves, irmão do Oscar. Ele<br />
disse que tinham derrubado o Tabuleiro da Baiana, no Largo da Carioca, e a<br />
prefeitura estava limpando o terreno para erguer uma tenda gigantesca no<br />
local, um teatro de arena. De imediato disse que topava cantar ali. Depois,<br />
pensei: um teatro de arena, no centro da cidade, eu acostumada com coisas<br />
pequenas, gente mais engomada, ia ser complicado. Mas encarei o desafio<br />
e montamos o Rio, Bossa e Balanço: Mario Castro Neves, piano; Fernando<br />
Maxnuk, vibrafone; Edson Lobo, contrabaixo; e Antonio Carlos Leite, bateria.<br />
Um som incrível. Três bailarinos dançavam quatro coreografias de Joás<br />
Lopes. E o texto do espetáculo era da minha grande amiga Regina Werneck.<br />
Ficamos quase um ano em cartaz quando apareceu uma proposta fantástica<br />
de levar o show para a Bahia. Fui e fui e voltei da cor de uma Malzbier.<br />
Minha mãe nem me reconheceu. Na Bahia conheci um músico chamado<br />
Alcivando Luz e mais um monte de pessoas maravilhosas. Fiquei enlouquecida<br />
com aquela terra. Foi uma festa e meia. Depois de três meses a gente<br />
não queria sair mais de lá. Fizemos muito sucesso. Eu não lembro o nome<br />
onde nos apresentávamos, mas era um lugar espaçoso, necessário por causa<br />
das coreografias. Eu me apaixonei pelo Alcivando Luz e ele nunca soube.<br />
Ao chegar de Salvador, soube que Miele e Ronaldo Bôscoli tinham passado<br />
lá em casa para apanhar a foto que seria colocada na porta do Porão 73,<br />
onde eu deveria estrear um show. Já havia um ensaio marcado para as 10<br />
da noite do dia em que cheguei, com o Ronie Mesquita, bateria; Octávio<br />
Bailly Jr., baixo; e Luiz Carlos Vinhas, piano. Pery Ribeiro e Leny Andrade<br />
vozes. Direção e produção de Miele & Bôscoli. Tive que atacar com as<br />
tonalidades do Pery. Saí do ensaio às 8 da manhã do dia seguinte e, às 22<br />
horas, nasceu o Gemini V. Tive poucas horas de ensaio, pouquíssimo tempo<br />
para pensar nas músicas para eu cantar sozinha – porque o restante já<br />
estava feito e não havia como mudar. Foi mesmo assim: 5, 4, 3, 2, 1 e a<br />
cápsula subiu...<br />
58<br />
Programa Rio, Bossa e Balanço
A Conquista do México<br />
Um deslumbramento e tanto<br />
Fui para o México com o Gemini V a convite do Rogelio Villarreal Vellarde e lá<br />
fiquei por quase seis anos. Rogelio era um empresário da noite que tinha<br />
vindo ao Brasil em busca de atrações para o seu novo espaço situado no<br />
bairro Zona Rosa – o El Señorial. Ficava na Calle de Hamburgo, um verdadeiro<br />
maracanãzinho situado no coração da capital mexicana. O complexo<br />
reunia o Leopardos, discoteca que tocava músicas estrangeiras com dois<br />
grupos de Londres; o Perla Negra, bar pequeno, que comportava cem<br />
pessoas no máximo; e o Elefante Rosa, com capacidade para 350 pessoas,<br />
onde nos apresentávamos. Que delícia!<br />
O incrível é que, quando o Rogelio nos convidou, nenhum de nós acreditou.<br />
Achamos que fosse conversa fiada, mesmo ele se apresentando como<br />
gerente-geral da cadeia internacional Western. Vocês vão morar no melhor e<br />
mais chique lugar do México, que é a Zona Rosa, prometeu, seguindo para<br />
São Paulo de onde voltaria três dias depois com o contrato na mão para a<br />
gente assinar. E sabem o que ele tinha ido fazer em São Paulo? Assistir ao<br />
espetáculo de Elis, Jair Rodrigues e Zimbo Trio. Acho que fez uma grande<br />
diferença ele ter visto o nosso show no Teatro Princesa Isabel, completo, com<br />
mais de uma hora de duração, muito bem cuidado, luz e som impecáveis.<br />
O México fervia. Tinha uma vida noturna agitada. Estava cheio de franceses,<br />
italianos, espanhóis. Homens poderosos desfilavam pela cidade em seus<br />
carrões. Cacifes muito altos, terno e gravata e belas amantes. Vivi na altaroda<br />
e tive amigos importantes. Com uma semana lá, comecei a falar<br />
espanhol porque tive que me virar para comer, falar com a camareira do<br />
hotel, pedir para lavar a roupa enquanto não me mudasse para um apartamento.<br />
Os demais do grupo já moravam em apartamentos maravilhosos<br />
com suas mulheres, cercados do maior conforto. Fizeram tudo o que sonharam,<br />
o que não poderiam ter feito no Brasil, pois o que imperava por aqui era<br />
o iê-iê-iê, um tipo de música que não era a nossa praia. Meu irmão Dudu,<br />
que sempre se comunicava comigo, nem se referia à Jovem Guarda quando<br />
falava sobre o movimento musical que rolava na época: era iê-iê-iê. E me<br />
aconselhava a ficar no México, onde eu estava bem, segura, recebendo em<br />
dólar, tinha carro importado e vivia com todo o conforto. Até Jacuzzi tinha no<br />
meu apartamento. Eu tomava banhos na minha Jacuzzi na alta madrugada.<br />
Era a própria Rainha de Sabá!<br />
61
Era 1º de agosto de 1966 quando estreamos. Sem o Pery, que havia ficado<br />
no Rio de Janeiro por causa de um filme que fizera com o Jerry Adriani,<br />
que por sinal fez muito sucesso. Ao montar o repertório com o radinho de<br />
pilha sintonizado numa emissora local, percebi que no México não se tocava<br />
quase nada de música brasileira. Combinei com o trio: vamos fazer uma<br />
rodada bem graciosa, só de Bossa Nova, para tocar muito gostoso, como<br />
sempre e, aos poucos, introduziremos outras coisas. Quando o Pery<br />
chegou, o show ficou completo. A estreia foi um verdadeiro espetáculo.<br />
O Rubem Fuentes, presidente da RCA Victor à época, que morava numa<br />
sofisticada residência em San Angellin, nos convidou para uma festa onde<br />
nos apresentou a todo o meio artístico da cidade e muito mais: atrizes e<br />
galãs, políticos, gente da sociedade. Ele colocou dois carros aguardando<br />
para nos conduzir até a festa após o show. Só troquei os sapatos e fui, de<br />
vestido comprido. Era uma linda casa de dois andares, com piscinas. Lá<br />
estavam a nata artística, uns dez licenciados do governo, o filho do presidente,<br />
o filho de não sei quem e embaixadores de vários países. Muitos<br />
conjuntos de músicos tocando e, para fechar com chave de ouro, os<br />
Mariachis Vargas, os melhores do México, chegariam às três da madrugada.<br />
Eu andava de namorico com um cantor chamado Pepe Soza, tinha-o avisado<br />
para ir ao show preparado, pois desconfiava que haveria recepção na casa<br />
do Rubem Fuentes. Contudo, Octávio, Ronie e Luiz Carlos condenaram o<br />
fato de ter convidado o Pepe. Disseram que eu não devia levá-lo. Sabem por<br />
quê? Porque o Pepe era uma criança linda. Um menino de família, maravilhoso,<br />
superbem-vestido com o seu smoking preto (acho que estava com a<br />
camisa aberta e um colar). Não dei bola e fui logo dizendo: não se metam na<br />
minha vida, porque não vai dar certo. Avisei só por consideração, já que iria<br />
em outro carro, com o Pepe.<br />
Os Mariachis Vargas chegaram muito mais tarde, alguns convidados já<br />
tinham ido embora, outros estavam bêbados. Depois das desculpas pelo<br />
atraso, eles começaram a tocar, nós todos sentados em volta da piscina.<br />
Bem trajados, com seus chapéus típicos, o suprassumo, os melhores do<br />
país. De repente, o primeiro trompetista vira-se para o garoto que estava<br />
comigo e o convida a cantar. Ele hesitou, mas depois de o Rubem convencê-<br />
62
lo, deu o tom, abriu a santa boca e cantou como um deus. O Rubem ficou<br />
maravilhado e imediatamente deu um cartão ao Pepe, dizendo que era da<br />
RCA, onde ele teria um encontro marcado para as 16 horas da quarta-feira<br />
seguinte. Adorou saber que ele tocava violão e baixo, e ele passou a se apresentar<br />
lá no mesmo complexo onde eu cantava com o Gemini V. O moço<br />
subiu como um foguete, um buscapé. Seu nome é Jose Jose. Nos 15 dias<br />
subsequentes, a gravadora trabalhava agitada, fazendo os trajes para capa e<br />
contracapa do disco que estava sendo feito e levando o jovem para cortar os<br />
cabelos. Jose Jose ficou conhecido como o Roberto Carlos do México. Na<br />
última vez que o encontrei, fui levada por um motorista especial a uma<br />
convenção da Petroleo Mexicano (Pemex) e lá tinha até barricada, porque o<br />
povo avançava e agarrava ele. Eram oito seguranças, tinha proteção para<br />
entrar e sair do camarim. Esse era o meu namorado. Uma criança maravilhosa!<br />
Uma criança que vou acreditar no que ele me disse: que fui sua<br />
primeira mulher. Esta história do Pepe não significa que eu goste de garotos,<br />
mas eles se atraem muito por mim. Às vezes até me sinto mal. Eles vão se<br />
chegando e eu percebo que, se eu quiser, posso terminar o show e levá-los<br />
para casa. Se eu quiser...<br />
Isso foi muito interessante, porque na mesma época de nosso contrato,<br />
a Rosana Tapajós, que foi uma das modelos mais bem pagas do Brasil,<br />
também estava no México. E cantava um pouquinho. Morava no mesmo<br />
prédio que nós onde havia um apartamento para o Ronie e o Octávio, um<br />
para o Pery e o Luiz Carlos, um para mim e outro para ela. O prédio era<br />
nosso, em plena Zona Rosa. Rogelio se apaixonou por aquela mulher semilouca<br />
que era a Rosana. Teve uma noite em que ela jogou uma cadeira de<br />
seu apartamento, fazendo um showzinho dos seus para o Rogelio. Esse era<br />
o seu jeito, tenho muitas saudades dela, adoraria vê-la. Nós nos encontramos<br />
em algumas temporadas em Acapulco e pintamos o 7, o 14 e o 21.<br />
A gente tomou conta do país. Enquanto eu cantava a Rosana desfilava e<br />
dizia assim: Caramba, você canta tudo isso, e eu só faço charme e o povo<br />
adora, que gente linda, que gente maravilhosa. Que momento que estamos<br />
vivendo. O México é apaixonado por tudo o que é do Brasil, até no futebol<br />
os mexicanos não se importam de perder, se for para time brasileiro.<br />
63
Chico Morán Quartet e Leny<br />
64
Gemini V – sucesso estrondoso no México<br />
66
O desmanche do Gemini V<br />
O Gemini V era nós cinco juntos: o Bossa 3, Pery Ribeiro e eu. A temporada<br />
no México durou 14 meses. Um belo dia, ou num mau dia, Pery Ribeiro<br />
decidiu ir cantar sozinho no Perla Negra – que ficava ao lado, exatamente ao<br />
lado do Elefante Rosa. E acabou com o nosso conjunto.<br />
Ele e o Vinhas foram os responsáveis por acabar com aquela joia que era o<br />
Gemini V. Seus egos inflaram demais, eles não aguentaram a pressão do<br />
sucesso. Nenhum dos dois soube privilegiar o grupo. Eram diferentes de<br />
mim que não consigo ficar sozinha. Acho bobagem fazer de conta que se é<br />
feliz sozinha. O sucesso quando compartilhado é uma das melhores coisas<br />
da vida. O desmanche do Gemini V foi uma insanidade. Inexplicável. Só<br />
tínhamos conhecido o sucesso. Vivemos momentos maravilhosos, tanto<br />
no Rio de Janeiro, no Porão 73 e no Teatro Princesa Isabel, quanto na<br />
Cidade do México.<br />
Lembro-me que, aqui no Brasil, a duração do espetáculo foi aumentada para<br />
uma hora e pediram ao dono da casa para prorrogar o contrato por mais um<br />
ano. Gravamos inclusive um LP de 1 hora e 20 minutos ao vivo, com um<br />
público enlouquecido dentro do estúdio. O Leny Andrade, Pery Ribeiro &<br />
Bossa Três é um disco de carreira, sucesso até hoje, nunca deixou de<br />
vender. No México, não foi diferente. O sucesso foi avassalador. O Rogelio<br />
teve que construir um jardim de inverno para abrigar de uma forma chique as<br />
pessoas que ficavam à espera para nos ouvir cantar. As noites eram de casa<br />
lotada, as pessoas tinham que aguardar a entrada confortavelmente. Foi<br />
montado um verdadeiro complexo para nos atender. Meu camarim era<br />
cor-de-rosa, com tapete de dois centímetros de altura, muito conforto, muita<br />
mordomia. O dinheiro jorrava. Com um mês de trabalho todo mundo já tinha<br />
carro importado. Se tivéssemos continuado, hoje estaríamos rodando o<br />
mundo exatamente com a mesma formação: piano, baixo, bateria e dois<br />
cantores. O Gemini V tinha o nível de um Black Eyed Peas. Era uma máquina<br />
de fazer dinheiro, semelhante a um Rolling Stones, um Sergio Mendes,<br />
que continua com o Brasil Six to Six pelo mundo. Mas brasileiro fora do País<br />
acha que faz cocô de ouro e xixi de prata. Aí a casa cai e não sobra nada.<br />
67
A notícia de que o Gemini V tinha acabado causou perplexidade, mas a vida<br />
continuou. Não desejo falar mais do que o necessário sobre o que achei e<br />
continuo achando da atitude do Pery Ribeiro em consideração à memória de<br />
sua mãe. Tenho a Dalva de Oliveira na conta de a maior cantora nascida em<br />
território brasileiro. O sentimento e a afinação dela eram únicos, sou louca<br />
por ela. Trago a história à tona porque ela é verdadeira e a minha <strong>versão</strong><br />
precisa ser contada para que as pessoas saibam que não foram somente<br />
flores que carreguei. Também tomei choques, fiquei perplexa, vi a pobreza<br />
espiritual das pessoas, vivi coisas que me machucaram muito! Claro que as<br />
pessoas não são todas iguais e boazinhas. Mas posso esperar um mínimo<br />
de ética profissional daquelas que convivem comigo. Qual teria sido o<br />
problema que não pôde ser conversado entre nós na época? Jamais saberei.<br />
A mim nada disseram e eu vi o meu companheiro de cena ir cantar em uma<br />
casinha para 80 pessoas, com um conjunto mexicano chamado Luiz Ocades<br />
Trio. Eu fiquei cantando na casa ao lado para 350 pessoas por noite, em cada<br />
entrada.<br />
Acredito que Pery Ribeiro e Luiz Carlos Vinhas não tinham consciência do<br />
que estavam fazendo. Desconheciam o poder daquela abertura montada por<br />
ele mesmo, mais Luiz Carlos, Octávio e Ronie, que executávamos todas as<br />
noites deixando o público sem ar. Era um poder incrível de um trio incrível,<br />
com duas vozes incríveis na frente. Dizem que a minha voz e a do Pery<br />
juntas continuam imbatíveis. Então, para se ter desfeito uma coisa dessas,<br />
era preciso não ter noção de nada, nada mesmo. Perguntam até hoje sobre<br />
o Gemini V. Até hoje. Se não vou mais fazer alguma coisa com eles. Não<br />
sinto vontade de repetir nada dessa história. Quem viu, viu; viu até oito<br />
vezes porque teve muita gente que saiu do teatro e entrou na fila para<br />
comprar outro ingresso. Para quem não viu, pena!<br />
68
Mais traições no México<br />
Quinze dias após o Pery Ribeiro implodir o Gemini V, Silvinha, a mulher do<br />
Luiz Carlos Vinhas, aterrissou no México com o filho e aquele nariz para<br />
cima. Ela sempre sofreu de apoteose mental, que nada mais é do que<br />
complexo de inferioridade. Foi fazer a cabeça do marido, induzi-lo a montar<br />
um grupo com outros músicos, na expectativa de ganhar muito mais<br />
dinheiro. Pensava que, sendo ele uma estrela, iria estourar. Bobagem. Nós já<br />
tínhamos estourado. Já éramos o maior sucesso local. O presidente da<br />
Capitol mexicana gravara um disco com o Bossa 3. Eu mesma gravei um<br />
disco solo, não tínhamos mais para onde ir. O México de então não era lugar<br />
que se entrasse com esquema armado a não ser que se fosse uma Maria<br />
Felix, que, aliás, sempre estava lá nos assistindo – assim como os maiores<br />
artistas do país e do estrangeiro. As esperanças da Silvinha ruíram. Os<br />
segredos da saída do casal do México ficam comigo. Sou uma pessoa<br />
misericordiosa.<br />
Seguindo a sugestão dos demais músicos, Ronie e Octávio, falamos com<br />
Rogelio e importamos o Osmar Milito, irmão do Hélcio, e montamos um<br />
som espetacular com ele. Sem cantor, só eu com o trio. Sequer pensamos<br />
em dar um novo nome, apenas criamos um repertório divino e seguimos em<br />
frente. Numa noite, durante um intervalo, estávamos sentados perto do jardim<br />
de inverno da casa e o Octávio Bailly Jr. veio falar comigo. Disse que nós<br />
íamos para Las Vegas. Exclamei: Que maravilha, que grande notícia. Um de<br />
meus maiores sonhos é cantar em Las Vegas! Aí, ele explicou que nós eram<br />
apenas eles, não me incluía. O trio iria tocar num lounge de um grande<br />
cassino a convite de um cara e já estavam todos prontos para zarpar. Ouvi<br />
aquela conversa toda e até hoje não sei explicar por que não perguntei na<br />
hora a razão de eu ter ficado de fora. Acho que foi por educação mesmo.<br />
Apenas desejei boa sorte para todos e fui para o camarim. Diante do espelho,<br />
69
disse para mim mesma: Viu, Leny? Você não quis ir com o Carlos, agora vai<br />
ficar aqui sozinha, na mão. Carlos era o empresário de Nat King Cole e<br />
grande acionista da Capitol americana, que me assistira no Gemini V e me<br />
convidara para ir aos Estados Unidos. Disse-lhe que só iria levando o conjunto<br />
todo. Ele pensou dois dias e voltou insistindo que o convite era só para mim<br />
e mostrando a oportunidade que eu estava deixando passar. Mas não mudei<br />
de ideia.<br />
Diante daquela nova traição, também chorei. Porém menos. Decidi que não<br />
voltaria ao Brasil. Estava muito bem, tinha acabado de renovar meu visto e<br />
não precisava deles. Fui falar com o Rogelio, em seu escritório manifestando<br />
meu desejo de cantar em outro lugar que ele fosse proprietário – Rogelio<br />
era o gerente-geral da cadeia Western no México, integrada por bares,<br />
hotéis e aviões. Ele não titubeou e reagiu com um simpático Fato consumado.<br />
Fui cantar no bar do Hotel Alameda onde se apresentava o Breno Sauer<br />
Quartet, formado por músicos gaúchos que fizeram muito sucesso no<br />
México. O líder do conjunto era Breno Sauer, acordeonista e vibrafonista,<br />
um instrumentista muito criativo. Ele introduziu o vibrafone na música<br />
brasileira, com a influência jazzística do Art Van Dame. Os demais músicos<br />
eram Adão Pinheiro, piano; Ernoe Eger, baixo; e Portinho, bateria. No Brasil<br />
eles fizeram uma bela carreira, tocando músicas do repertório internacional<br />
em bailes. Gravei um LP de Bossa Nova com eles, Leny Andrade e Breno<br />
Sauer Quarteto, com o selo do Rogelio, o RVV. Nós nos apresentamos no<br />
Alameda durante quase dois anos e fomos muito felizes.<br />
Cinco anos depois de eu estar no México, me aparece o Roberto Nascimento,<br />
compositor e violonista. Eu já havia gravado uma música dele e só. Ele baixou<br />
de oportunista, ficou morando um mês no meu apartamento sem ser<br />
convidado e, no final, ainda me roubou o quarteto na mão grande, como<br />
bom espaçoso que era. Dei-lhe guarida, abri-lhe várias portas, ele se deu<br />
muito bem nas empresas de jingle do país. E um belo dia veio me dizendo<br />
que tinha um contrato muito bom para o quarteto. Lá se foi o quarteto do<br />
Breno, atrás das novidades em dólar do Roberto Nascimento: um contrato<br />
de seis meses se acabou em apenas duas semanas. Então, depois de ficar<br />
de cara inchada de chorar mais uma vez, eu disse: chega de traição. Parei<br />
por aqui! Larguei todos para trás e fui cantar no melhor jazz club da Cidade<br />
do México: o Riguz. Ali fiz o meu PhD em jazz.
O despertar de uma deusa<br />
Durante um bom tempo meu nome brilhou no enorme letreiro luminoso da<br />
mais importante casa de música da Cidade do México. Engraçado é que fui<br />
lá uma noite para ouvir um som e curar um pouco a dor do meu coração,<br />
não para pedir emprego. Todos me rodearam, adorando a visita. E quando<br />
contei que tinha parado de tocar no outro bar, perguntaram o que eu achava<br />
de tocar com aquele sexteto. Foram dois anos e três meses e eu me espalhei.<br />
Era um grupo e tanto. Se eles tocassem aqui hoje, todo mundo ficaria<br />
de queixo caído. Eram músicos em dia com o verdadeiro e bom jazz, de<br />
quem sabe tocar, de quem escreve música, de quem faz arranjo. Eu cantava<br />
músicas brasileiras que todos adoravam – músicos e plateia. Viramos a grande<br />
sensação da casa. Certa vez, convidamos uns jornalistas, uma turma mais<br />
gostosa e interessada em música. Fizemos um bom relacionamento com<br />
eles, chamávamos para festejar aniversários no bar, aquelas ações de relações<br />
públicas. Tudo era feito pela Helena Julian, proprietária da casa, com o Chilo<br />
Moran, o melhor pistonista do México. Acabei indo morar com a Helena,<br />
que era também a namorada do Chilo. Ela cantou jazz durante muitos anos<br />
num trio com duas irmãs só de vocal. O convite para morarmos juntas foi<br />
muito simpático. O apartamento era enorme, com quartos separados por<br />
um banheiro muito grande. No Riguz, Helena não cantava. Cuidava da<br />
recepção e da divulgação.<br />
Quando olhei o calendário, já tinham se passado quase seis anos. Estava<br />
com saudades da minha família. E assim, no dia 10 de outubro de 1972,<br />
com a cara inchada de chorar de saudades antecipadas do México, vim para<br />
o Brasil, às vésperas do aniversário da minha mãe. Do México, guardo as<br />
melhores lembranças. Muitos grandes amigos e uma afilhada, Maria<br />
Guadalupe, filha do Portinho e da Haydée. O México foi o ponto de partida<br />
de onde saí para cantar em todos os países da América Latina e onde,<br />
descobri agradecida, me chamam de Deusa.<br />
71
Muitos Contratos e um<br />
Casamento<br />
Efervescência na noite carioca<br />
De volta ao Brasil minha vida de crooner seguiu como um barquinho em mar<br />
azul e vento de popa. Além das muitas viagens pelos festivais de jazz, aqui e<br />
pelo mundo.<br />
Logo que cheguei do México, uma surpresa: a volta do Pery Ribeiro era aguardada<br />
para a semana seguinte. Aliás, os músicos que zarparam do México rumo<br />
a Las Vegas não se deram tão bem quanto esperavam. Acabaram em Los<br />
Angeles acompanhando Gracinha Leporace, mulher do Sergio Mendes. Do<br />
ponto de vista artístico, tudo bem. Mas a festa durou pouco por causa dos<br />
egos. Muito sucesso na música, mas eram tantas as discordâncias na hora de<br />
tratar dos negócios que advogado algum conseguia conciliar.<br />
No Rio de Janeiro Miele e Bôscoli conversavam comigo sobre a possibilidade<br />
de, com a volta do Pery, montarmos um show que se chamaria Gemini<br />
5 Anos Depois. Assim foi feito. Repertório novo, músicas de Tom Jobim,<br />
Milton Nascimento, Marcos Vale, Ivan Lins e outros. Estreamos no Teatro<br />
Santa Rosa. Gravamos o show pela Odeon, um trabalho primoroso, com<br />
capa de Juarez Machado. Novamente estouramos. Tudo corria às mil maravilhas<br />
quando a tristeza foi tomando conta de nós todos: Dalva de Oliveira,<br />
mãe amantíssima do Pery e nossa muito querida amiga, desenganada, se<br />
despedia da vida. Saíamos do teatro para o hospital e do hospital para o<br />
show. Com sua morte terminamos a temporada antes do tempo previsto.<br />
Era grande a vitalidade da noite carioca à época e não me faltou trabalho.<br />
Ronaldo e Miele, por sua vez, faziam de tudo para eu não voltar para o<br />
México. Bons tempos o do Mons. Pujol, onde eles eram responsáveis pela<br />
72
direção artística. Muita gente importante passou por lá: o maravilhoso<br />
Lennie Dale e seus Dzi Croquettes, Johnny Alf, vindo de São Paulo, o trio de<br />
Pedrinho Mattar e eu, e muitos outros. Flávio Cavalcanti, no auge de seus<br />
bem-sucedidos programas de TV, jantava todas as noites no Pujol com seus<br />
famosos jurados. Foi lá que apresentei Vera Fischer a Perry Salles. Certa<br />
noite, ela visivelmente abatida porque surpreendera o seu amor (o maestro<br />
Erlon Chaves) jantando em companhia de outra no andar de cima da boate,<br />
desceu a escada em prantos e correu para o banheiro. Penalizada, fui atrás<br />
dela e, com a intenção de ajudá-la, falei: Tenho um grande amigo aqui que é<br />
um gentleman. Vou pedir a ele que fique com você até eu terminar de<br />
cantar. Pedi ao Perry Salles que tomasse conta dela, e ele assim o fez pelo<br />
resto de sua vida.<br />
As noites no People eram gloriosas. Certa feita, inventei uma temporada<br />
anticarnaval com meu amigo Zé Galinha, que além de bonito, com aqueles<br />
olhos verdes, era de uma delicadeza sem igual, sempre disposto a concordar<br />
com o que eu quisesse fazer em sua casa – e eu queria nada mais nada<br />
menos do que a casa inteira durante os três dias de carnaval. Três entradas<br />
por noite. Tinha gente saindo pelo ladrão. Numa daquelas noites, estava de<br />
olho fechado cantando Wave, quando na segunda parte da música escutei<br />
uma linda voz cantando em inglês ao meu lado. Abro os olhos e vejo o Tony<br />
Bennett. Terminamos a música dançando! Coutinho, seu íntimo amigo, lhe<br />
dissera onde ele me encontraria cantando naquele carnaval.<br />
Em outra ocasião, também durante o carnaval, apareceu um moreno claro<br />
de cabelo encaracolado falando um português atravessado, que disse<br />
quando passei por ele: Leny, eu vou lhe levar para a Holanda. Mais uma vez,<br />
não acreditei. Ele se chamava Jean Tupang. Era proprietário da maior loja de<br />
CD situada em uma cidade próxima a Amsterdã. Amigo íntimo dos donos da<br />
famosa Timeless, gravadora de jazz. Foi assim que cheguei na Holanda. Ele<br />
levou a mim e ao Trio B3 – João Carlos Coutinho, piano; Lúcio Nascimento,<br />
baixo; e Adriano de Oliveira, bateria. Laís Pires, a quem chamo de filha e ela<br />
a mim de mãe, tornou-se nossa produtora/guia/advogada. Este grupo,<br />
durante 16 anos, participou dos maiores festivais de jazz do mundo inteiro.<br />
Temos vários discos, inclusive um só com standards americanos, gravado na<br />
Holanda pela Timeless (Embraceable You) e no Brasil pela Som Livre.<br />
Participei de projetos interessantes no País, com destaque para o<br />
Pixinguinha – promovido pela Funarte. Fiz várias capitais brasileiras com o<br />
Emílio Santiago e a Elza Soares.<br />
73
Toots Stileman e Leny, na Holanda,<br />
com João Carlos Coutinho, Adriano de<br />
Oliveira e Laércio Nascimento<br />
75
Carmelo Senna da Cunha, meu marido<br />
Casei-me uma única vez na vida, com Carmelo Senna da Cunha. Conheci<br />
meu marido ao final de um Projeto Pixinguinha. Chegando de uma dessas<br />
viagens, fui dar um jeito no cabelo e, na vinda do cabeleireiro, com a cabeça<br />
envolta em um lenço, encontrei o Theo, meu secretário, e o Carmelo conversando<br />
com a minha família. Olhei para meu pai com espanto, porque ele não<br />
parava de falar castelhano. Então, ele me apresentou ao Carmelo, explicando<br />
que era madrilenho. Conversamos fiado, disse-lhe que gostaria de conhecer<br />
melhor Madrid porque passara por lá muito rapidamente durante um festival.<br />
De cara gostei do jeito do bicho. Combinamos nos encontrar no dia seguinte, no<br />
Teatro Rival, onde Pedrinho Martins, estilista famoso, me concederia um<br />
prêmio. No dia seguinte à entrega do prêmio, tive novo encontro com o Theo<br />
e Carmelo estava lá outra vez. Foi o suficiente. Não nos largamos mais.<br />
Carmelo não tinha a menor ideia de quem era a cantora Leny Andrade. E isso<br />
foi o que me pegou, teve um significado todo especial, guardado até hoje<br />
com muito carinho: meu marido, o único homem com quem me casei,<br />
apaixonou-se pela mulher Leny de Andrade Lima, sete anos mais velha do<br />
que ele, e não pela cantora famosa. A adoração dele por mim e pela minha<br />
família – mamãe, meu pai, minha madrinha, meu irmão Dudu – me cativou.<br />
E a família dele tem adoração por mim até hoje. Posso mandar um telegrama e<br />
dizer que estou chegando na casa deles, em Madrid, e ir tranquilamente,<br />
só com a roupa do corpo, que serei bem recebida.<br />
A vida para Carmelo era sempre festa. Ariano do dia 9 de abril, filho de uma<br />
mãe riquíssima, era um jovem impulsivo e impossível de ser controlado.<br />
Casei-me com ele em 25 dias porque seu visto ia vencer. Antes da cerimônia,<br />
porém, entramos no primeiro motel da subida da serra para Petrópolis e<br />
só saímos de lá três dias depois. Minha mãe ficou louca com o meu sumiço.<br />
Pelo telefone, eu ia tranquilizando Dona Ruth, sem dizer onde estava exatamente,<br />
só explicava que logo chegaria a Petrópolis. Com Carmelo. Ela achou<br />
tudo aquilo um absurdo. Na volta da aventura do motel, tratei de correr atrás<br />
de um monte de coisas relacionadas com o meu trabalho, porque tinha<br />
largado tudo. Chegara de viagem e tinha sumido de casa. O telefone tocou.<br />
Era Carmelo dizendo que precisava me ver, estava mal porque o cachorrinho<br />
76
Dona Ruth, Carmelo e Leny, Gustavo e Matilda, a mãe do noivo<br />
77
Leny e Carmelo com os familiares na sacristia da Igreja da Imaculada Conceição, no seu casamento<br />
78
que ele trouxera de Madri fora atropelado e teria que ser sacrificado, pedia<br />
que eu o encontrasse em seu ateliê em Laranjeiras. Carmelo era um artista,<br />
esculpia cristal. No ateliê, falou: Gordita, não puedo mais viver sem você.<br />
O que vamos hacer? O meu visto vence em um mês e dez dias. Terei que<br />
voltar e não quero. Quero ficar aqui no Brasil. Ele admitia ser um bon vivant,<br />
de família rica, solteiro e andarilho, mas até aquele momento não tinha tido<br />
nenhuma razão para mudar, pois ainda não me conhecera. E pediu-me em<br />
casamento. Achei que queria casar-se por causa do visto, mas ele garantiu<br />
que não, que era a sério, que seria no civil e no religioso. Aí, eu disse sim!<br />
Minha família não estava preparada para aquela bomba, até porque eu sempre<br />
afirmara que não me casaria, iria somente cantar na vida, onde quer que<br />
fosse, sem nada que me limitasse. Eu seria do mundo, não poderia ficar<br />
tomada de amores por ninguém. E se o cara fosse ciumento? Mas Carmelo<br />
não tinha ciúmes de nada. Nem dos fãs nem dos amigos que me agarravam<br />
e me davam beijos efusivos. Nada! Ele só queria era uma liberdade exagerada<br />
para ele, que eu logo percebi que não era para agir no terreno das<br />
mulheres. Tinha tranquilidade, sabia que poderia ir a qualquer lugar com<br />
aquele homem bonito que não corria perigo. Fui muito feliz por cinco anos.<br />
Foi muito bom.<br />
Atribuo o fim de meu casamento à minha própria falta de vivência. Porque<br />
se eu fosse um pouco mais evoluída, se tivesse vivido com ele por uns dois<br />
meses na Europa, talvez me acostumasse melhor com algumas histórias.<br />
Não era desconfiança de traição, mas sim o temor das drogas. Esse era<br />
meu medo e meu grande problema. Porque eu era do meio, cantava no<br />
Chico’s Bar com uma porção de malucos junto e o que poderia ser normal<br />
para muita gente, para mim não era. Então, esse meu amor foi ficando<br />
triste, se desiludindo, perdendo o viço. Fui desapaixonando só de pensar<br />
que pelo resto da minha vida eu ia ter esse tipo de preocupação: onde será<br />
que ele está? O que estará fazendo? E não era por ciúmes, a questão não<br />
era essa, porque vi o Carmelo dar o fora em mulheres importantes, que não<br />
quero citar o nome, o vi pedindo a elas que me respeitassem, dizendo que<br />
era casado e que me amava.<br />
79
Fui feliz dentro do que pude suportar, mas chegou um ponto, um limite, em<br />
que eu não conseguiria mais manter o meu amor no 30º andar. Ele já tinha<br />
caído para o 25º, para o 10º, para o 5º, e quando se espatifasse no chão, não<br />
ia sobrar nada. Não desejava passar a vida toda desconfiando de algo escondido<br />
em nossa casa. Porque tinha também a minha mãe e a minha madrinha,<br />
Marlene, que viviam do nosso lado e não tinham criado problema<br />
algum com relação ao casamento, mas não sabiam do mundo em que eu<br />
vivia, com um marido que tinha esse tipo de liberdade, uma cabeça de<br />
playboy europeu, que cresceu assim e não tinha como mudar.<br />
Meus argumentos eram muito fracos diante de sua prepotência. Carmelo se<br />
achava o máximo, nada aconteceria com ele. Era o Tarzan e o Hulk ao<br />
mesmo tempo. Abria a boca para dizer que poderia me comer todos os dias<br />
e jamais iria ficar broxa. Que não vivia sem o meu cheiro. Então eu lhe dizia<br />
para cheirar a mim e não ao resto. Porque se alguma coisa acontecesse com<br />
ele não seria com o Carmelo e sim com o marido da Leny Andrade. Todos<br />
iriam relacionar a história à minha pessoa. E havia um problema mais sério:<br />
minha mãe dirigia o coral da Igreja Imaculada Conceição e tinha muitas<br />
funções dentro daquela igreja. Era uma referência social que ele jamais<br />
compreendeu. Nunca entendeu o que seria para a Dona Ruth, mãe de uma<br />
pessoa pública, um escândalo desse tipo. Se uma história como essa saísse<br />
no jornal, ela morreria. Era uma libriana e eu sei que, se isso acontecesse,<br />
seria o fim para ela. Então, todos os sonhos que eu tive na vida não seriam<br />
tão fortes para convencer Carmelo de que ou era verde ou amarelo. E eu<br />
precisava que fosse verde, mas ele queria todas as cores. Não dava!<br />
Quando a maluquice chegou ao auge, conversei com meus parentes da<br />
polícia, com meu advogado, com minha sogra, e ela mandou prender o filho.<br />
Sim, ela mandou prendê-lo por duas semanas, mas me pediu para que não<br />
me desesperasse, porque tudo o que o filho dela havia tido de bom naqueles<br />
últimos cinco anos fora por minha causa. É interessante dizer isso hoje,<br />
tantos anos depois, porque já acabou. Como diria Paulinho da Viola: Foi um<br />
rio que passou em minha vida. Nada existe mais. Carmelo hoje não é nem<br />
sombra do cara que conheci, com quem vivi durante cinco anos, cheio de<br />
80
amigos, frequentando diversas festas, só ou acompanhado. Agora é outra<br />
pessoa. Convertido totalmente para a família, virou metodista, seguiu outro<br />
caminho. Quem me dera ele tivesse agarrado o meu caminho, o do esoterismo,<br />
que foi o que me segurou e deu forças durante esse tempo todo...<br />
Casei-me com a intenção de acabar os dias de minha vida casada. Primeiro<br />
no civil e, no dia seguinte, no religioso, na Igreja Imaculada Conceição.<br />
A cerimônia foi de parar o baile. Eu trajava um vestido cor de caramelo e<br />
tinha na cabeça um arranjo feito com rosas cor de champanhe. Fui penteada<br />
pelo Pedrinho, um must da época. Apesar do fracasso do meu grande sonho<br />
de mulher, sinto-me feliz por ter sido esse o final do relacionamento com<br />
Carmelo. Porque não sei aonde me levariam a convivência e a conivência.<br />
Conheço algumas mulheres que sofreram muito com esses homens e<br />
viraram um lixo na tentativa de cuidar deles e das preocupações que o<br />
problema traz. Isso não é vida e, se você entra nela, pode até tornar mais<br />
fácil a convivência, mas o perigo é muito maior.<br />
Carmelo foi um dos maiores artistas plásticos que já conheci. Um mestre na<br />
arte de esculpir o cristal. Em sua casa tinha um forno enorme que recebeu<br />
da mãe, diretamente da Espanha. Trabalhava com o cristal muito grosso<br />
nesse forno de alta tensão: queimava-o e desenhava por dentro dele sem<br />
deixar nenhuma lasca ou marca. Um tipo de arte que deixava as pessoas<br />
pasmas. Eram peças decorativas e às vezes esculturas enormes, pesando<br />
20, 50, 60 kg. Uma vez, ele fez uma cascata que jorrava água para cima e<br />
que ficava no meio da sala da cobertura de um árabe, que morava na<br />
Avenida Atlântica. Ganhou muito com aquele trabalho. Fez outra escultura,<br />
acho que para a casa do Prioli, dono do Canecão, outra para o Chico Recarey,<br />
que era muito seu amigo, porque os dois achavam que os espanhóis eram<br />
os machos do planeta. Ele preparou a casa do Chico na Gávea com muitos<br />
cristais. Também fornecia peças para uma loja chamada Cristalo, no<br />
Shopping da Gávea. Carmelo tinha um poder fora do comum com o cristal,<br />
uma imaginação muito fértil...<br />
81
Na Terra do Jazz<br />
Merecimento e proteção divina<br />
Costumava dizer que só iria a Nova York quando fosse convidada. As pessoas<br />
não acreditavam em minha sinceridade e ficavam me instigando, dizendo<br />
que eu devia cavar a oportunidade. Eu argumentava: quem se arriscou a ir<br />
desse jeito, foi e não achou.<br />
Eis que um dia chegou no Chico’s Bar meu velho amigo José Luiz de<br />
Oliveira, que há um ano e meio editava uma revista em Nova York. O Zé<br />
tinha sido diretor artístico da RCA Victor e quando Sarah Vaughan gravou seu<br />
primeiro disco no Brasil, com a participação do Milton Nascimento, Edson<br />
Frederico e vários outros grandes músicos, ele estava presente. É uma<br />
pessoa de múltiplos talentos, tão incrível que foi o primeiro a montar um<br />
teclado. Foi consagrado como o melhor iluminador de shows instrumentais.<br />
Eu o conheço desde o tempo do Gemini V, pois foi ele quem fez a luz para o<br />
conjunto na temporada no Teatro Princesa Isabel. Jantamos no Castelo da<br />
Lagoa naquela noite e ainda me lembro que recomendei que comesse a<br />
cavaquinha à moda da casa, prato que o Tom Jobim adorava. Ele ficou me<br />
provocando, perguntou se eu nunca iria para Nova York, porque não tinha<br />
aproveitado para pular a cerca quando estava no México etc. e tal. Respondilhe<br />
que não era profissional de bater em porta pedindo para fazer teste.<br />
Nunca tinha feito isso no Brasil, por que faria em outro país? Estava muito<br />
feliz, eu e meus músicos, com dois shows de 50 minutos na noite carioca<br />
Ele começou a falar sério, disse que era amigo dos donos do Blue Note, a<br />
casa de maior prestígio da noite nova-iorquina, e que gostaria de me apresentar<br />
a eles. Aconselhou-me a recolher material para divulgação, dois ou<br />
três discos, recortes da crítica e fotos, que ele levaria de volta. Insistiu em<br />
exaltar o prestígio do Blue Note. Seus donos tinham o mundo aos seus pés,<br />
garantiu-me. Todos os cantores sonhavam em se apresentar lá. Confesso<br />
que eu também. Para cantar nos Estados Unidos, só me interessava o Blue<br />
Note, o templo do jazz, que já recebera nomes consagrados como Ella<br />
Fitzgerald, Sarah Vaughan, Anita O’Day, além de outros que não conhecia<br />
pessoalmente, mas admirava muito e faziam parte do meu cotidiano musical.<br />
Não iria me trazer dinheiro, mas seria importante que eu abrisse a boca no<br />
Blue Note para as pessoas me descobrirem.<br />
82
Leny e Patrícia Barber<br />
Leny, Billy Strich, Liza Minelli e Laís Pires<br />
Wynton Marsalis e Leny<br />
84
O Zé voltou para Nova York com dois discos, um deles, Estamos Aí, que fiz<br />
com o Eumir Deodato. Um mês depois, estava no meio de um set quando<br />
ele ligou com a notícia que eu estrearia no Blue Note dia 27 de setembro de<br />
1983. E vaticinou: Se você estiver bem e o cara do New York Times a<br />
escutar, está feita.<br />
E assim aconteceu. Estreei no Blue Note numa curta temporada de terça a<br />
sábado, com um grupo formado por Portinho na bateria; Cláudio Roditi no<br />
trompete; Aluizio Milanês no piano; Lincoln Goynes no baixo, com quem<br />
ensaiei apenas uma semana. A apresentação foi boa e o crítico do New York<br />
Times, John S. Wilson, estava presente. Ele olhou para três convites para<br />
três eventos que sua secretária tinha colocado sobre a sua mesa de trabalho<br />
e escolheu o meu. Proteção divina. O convite dizia que eu cantava tudo de<br />
música brasileira mesclado com jazz e que era muito considerada em vários<br />
países, etc. Como ele só considerava duas cantoras brasileiras até então<br />
– Tânia Maria e Flora Purin – decidiu conferir. Ele mesmo me contou essa<br />
história quando retornei àquela casa no ano seguinte. Em sua crítica, escreveu<br />
aos leitores que o havia emocionado embora cantasse somente em<br />
português. Que bastava ouvir o som da minha voz e observar o movimento<br />
de minhas mãos, para entender o que a letra da música queria dizer. Essa<br />
crítica – um presente em minha vida – está reproduzida no interior da capa<br />
de um dos meus discos. Ou seja: não basta contar, tem-se que provar e<br />
com o original, xerox não serve. Se eu contasse, não acreditariam. Eumir<br />
Deodato estava na estreia, com George Shearing. É impressionante como a<br />
música de repente o coloca frente a pessoas com as quais você sonha<br />
encontrar um dia.<br />
Na segunda temporada no Blue Note, já tinham ido me assistir o Mark Murphy,<br />
John Patitucci, Paquito D’Rivera e sua mulher, Brenda Feliciano, que se<br />
tornaram meus amigos para sempre. Paquito não queria que eu voltasse ao<br />
Brasil, dizia que deveria engatar outros trabalhos. Mas eu queria ser sempre<br />
correta, queria passear por lá e conhecer gente boa. E, claro, no outro ano,<br />
me convidaram de novo. E em 1984, 1985 e 1986, também. Tenho a honra<br />
de possuir minha assinatura em uma das mesas daquele templo com uma<br />
caneta especial que escreve no bronze, junto da assinatura do Paquito.<br />
Tornamo-nos inseparáveis. Parece que somos irmãos, um nascido em<br />
Havana, outro no Brasil. Recentemente, ele fez um show em São Paulo<br />
com a Jazz Sinfônica e fui assisti-lo. Assim que me viu começou a fazer um<br />
desafio de improvisação comigo, ele do palco e eu na plateia. O teatro veio<br />
abaixo. Uma graça o Paquito D’Rivera.<br />
85
É bom estar passando a vida a limpo neste livro, aqui sentada com calma<br />
nesta manhã de domingo, tomando um cafezinho, até porque sem café eu<br />
não sou nada – abrirei até um parêntese para dedicar um capítulo a ele, o<br />
cafezinho, e aos pretos velhos também. Porque na minha casa não sai um<br />
café sem um copinho de água do lado, para os pretos velhos. Herdei boas<br />
proteções em minha vida através dos meus familiares de sangue e de<br />
coração como a tia Maria Conga de minha mãe verdadeira, a Ruth; o vovô<br />
Bertoldo, que trabalhava com meu pai, e muitas outras, até a mais recente,<br />
vovó Cipriana, que trabalha com a mãe do Altay Veloso – esta a maior<br />
rezadeira que já conheci. Então, é com grande respeito que me dirijo a essas<br />
entidades protetoras. Nos shows, também não entro sem café. Se não tiver<br />
água, tudo bem, mas sem um gole de café, não entro. Atrasei um festival na<br />
Espanha enquanto no camarim esperava pelo café. Depois me desculpei:<br />
não bebo vodca, uísque, conhaque, nada. Mas preciso de um café. Sem café<br />
não tem espetáculo.<br />
A partir de então, fui fazendo outros lugares nos Estados Unidos. Até que,<br />
em 1994, comuniquei à família que estava indo morar lá, onde fiquei direto<br />
até 2002. De lá para cá, comecei a vir ao Brasil com maior frequência, porque<br />
me pediram muitos shows e minha mãe começou a ficar doente. Foi quando<br />
eu conheci o Djalma Marques, que passou a cuidar de minha agenda.<br />
Com Djalma Marques, produtor e amigo<br />
86
Lições de Música<br />
A voz que assina o canto<br />
Sem sono, faço anotações para este livro. São 5 horas de uma quarta-feira,<br />
o ano é 2010. Há pouco estava com o meu radinho companheiro no ouvido<br />
sintonizado na MEC AM, que depois das 3 horas adentra a madrugada<br />
tocando músicas de fora do circuito comercial, quando escutei uma cantora<br />
da nova geração. Muito bem-intencionada, mas sem aquela coisa que Deus<br />
me deu, que foi o poder de assinar com a minha própria voz cada música que<br />
canto, como se faz com o próprio nome ao se terminar de escrever um texto.<br />
Então, um enorme sentimento de gratidão tomou conta de mim. Tirei o<br />
radinho do ouvido e lá mesmo, na cama, agradeci ao Criador. Conversando<br />
com Ele, disse-lhe o quanto estou feliz por ter sido agraciada com tanto<br />
vigor nas cordas vocais, e que muitas vezes me assusto quando ouço o som<br />
limpo e claro que sai de minha garganta. Dizer obrigada, meu Deus, é tudo o<br />
que me cabe fazer, reconhecendo que existe algo muito maior que determina<br />
que eu possua este instrumento mágico, seguro e infalível que é a<br />
minha voz. Isto pode soar como um convencimento, uma vaidade, um<br />
aplauso exagerado a mim mesma, mas ao mesmo tempo sei que tenho<br />
pago um preço muito alto que me torna merecedora dessa bênção.<br />
Meu grande orgulho como intérprete é esse: eu pego as músicas e autoro.<br />
Faço diferente e todo mundo chora. Até os homens saem em prantos dos<br />
shows. Derrubo todo mundo. Tem músicas que são verdadeiras obras-primas e<br />
alguns intérpretes cantam sem expressar o que suas letras realmente dizem.<br />
No entanto é preciso se inteirar de cada nota, de cada sílaba, de cada<br />
palavra e construir, ir ao fundo para depois subir ao topo. É preciso estar<br />
consciente também de que na plateia tem gente de todos os lugares e<br />
tipos. Durante anos vim me preparando na noite para fazer tudo isso em<br />
meus shows. Fui elaborando essas coisas ao longo do tempo. Hoje sei que<br />
o público é muito variado e se eu não chegar na geral não irei a lugar algum.<br />
88
Rituais de humildade e gratidão<br />
Tenho tido oportunidade de refazer a contabilidade do pedágio pago, ao<br />
reunir passagens de minha vida para colocar neste relato. Para abrir a minha<br />
boca e cantar como hoje, aos 67 anos, e com o prestígio que tenho, aqui e<br />
acolá, paguei realmente um pedágio e tanto. A começar pela postura que<br />
sempre tive diante da família, dos colegas, dos amigos, dos músicos e de<br />
mim mesma. Não beber, que talvez seja a mais cara das moedas. As cordas<br />
vocais se queimam se você bebe e os cantores não entendem isso, então,<br />
na maior parte das vezes chegam aos camarins sempre repletos de álcool.<br />
É difícil resistir diante de tantas ofertas. E tem ainda as circunstâncias de<br />
cada um: os nervos, a expectativa, a insegurança: será que vou agradar?<br />
Vou me entender com o público? Tudo isso passa pela cabeça do artista<br />
quando no camarim, ou já na coxia, ele para por instantes antes de subir ao<br />
palco. A sensação é semelhante à do toureiro que ao entrar na arena sabe<br />
que deverá controlar o touro. E não se enganem: quando se está atrás das<br />
cortinas, nunca se sabe o que vai rolar lá na frente. A cada apresentação,<br />
fazemos um teste. E temos que ter humildade.<br />
Nos últimos 15 anos, cumpro religiosamente um ritual nos minutos que<br />
antecedem o anúncio de meu nome em qualquer lugar do mundo, independente<br />
do que estiver acontecendo. Baixinho, evoco a proteção dos deuses,<br />
oferecendo a eles o meu canto: A vós, Palas Athena, minha amorosa amiga,<br />
ofereço o meu cântico dando-vos as boas-vindas. Preenchei todo o meu<br />
mundo com vossa verdade cristalina. Sua chama verde diviso, com olhar<br />
extasiado. A verdade me é muito cara. Em nome de Deus – Eu Sou. Com a<br />
força cósmica da vitória reivindico a verdade. Aí, entro muito calma e<br />
começo a cantar.<br />
Nem sempre foi assim. Durante 30 anos de minha carreira fiz shows com listas.<br />
Numerava as músicas que ia cantar. Número 1: Um Cantinho, um Violão;<br />
89
Leny durante apresentações<br />
90
número 2: Avião. E lá ia eu, número 3, 4, 5, 20, 25 até 30, uma atrás da<br />
outra, sem dirigir uma palavra sequer ao público. Num belo dia me dei<br />
conta de que as pessoas se esqueciam de mim logo ao sair da boate.<br />
Hoje, faço graça, todo mundo ri, até os músicos (meus filhos) se divertem.<br />
Me comporto sempre de uma forma simpática e o grupo se delicia. Fica<br />
tudo mais íntimo e pessoal. Afinal, somos simples mortais, iguais a todos<br />
os que estão na plateia. Temos que estabelecer contato. As pessoas mais<br />
simples que fazem música são as que mais emocionam. Mesmo quando é<br />
um megashow, o público tem de saber que você não faz cocô de ouro e<br />
xixi de prata.<br />
Às vezes, o público está frio, a gente percebe que as pessoas levaram os<br />
problemas de casa para o espetáculo. Devemos ter sensibilidade para<br />
perceber, desfazer aquele clima. Hoje, faço isso. Em meia hora, mudo tudo.<br />
Se você faz parte da minha plateia, é minha obrigação fazê-lo sair de lá<br />
divertido, prazeroso. Quando encontro um público que já bebeu, já comeu,<br />
já comentou tudo que ocorreu na semana e quer apenas assistir ao show<br />
para cumprir um compromisso social e se retirar, tento uma abordagem<br />
diferente, mudo a estratégia, crio um atalho para me fazer notar. Quando<br />
consigo, é mágico e apaixonante. Assistindo a algum colega, após as duas<br />
primeiras músicas já sei se aquele show dará certo ou se será mais um<br />
espetáculo chocho, pela maneira como ele entra no palco. Não existe<br />
público ruim, frio ou desinteressado. A forma de chegar do artista, o modo<br />
de conduzir, de entregar o repertório farão o milagre de estabelecer o<br />
contato, a comunhão com o público, resultando em desfrute de prazer, de<br />
choros e de risos.<br />
91
A harmoniosa roupagem do jazz<br />
Muitos já me ouviram cantando um pot-pourri de antigas músicas de carnaval,<br />
com arranjo do Fernando Merlino (José Fernando Appolonio Merlino). Ali,<br />
todo o tradicional foi posto abaixo. A modalidade jazzística apuradíssima do<br />
Fernando fez com que aquelas três músicas se transformassem numa única<br />
em rara harmonia. Aquilo é impressionante. Esse é o meu pianista. Além de<br />
tocar muito bem, quando mexe nas harmonias dá outra roupagem à música<br />
sem alterar o original. O público sabe o que eu estou cantando, sai cantando<br />
junto, mas a vestimenta ali é o jazz.<br />
A evolução de músicos, cantores e dos compositores se expande quando<br />
eles colocam o jazz e o clássico para a música popular. Porque Chopin,<br />
Beethoven, Wagner são maravilhosos. Você pega o Villa-Lobos, por exemplo.<br />
Ele bebeu nessa fonte, assim como o Cartola, e nenhum dos dois se preocupou<br />
em esconder esse fato. Vejam o Piazzolla: aquele argentino genial fez<br />
com o tango o que a nossa turma aqui fez com a MPB. Tom, Carlos Lyra,<br />
Maurício Einhorn, Luiz Eça, Gilson Peranzzetta, o próprio Sergio Mendes,<br />
que era o maior pianista de jazz do País quando a Bossa Nova chegou.<br />
Aliás, o Sergio e eu tivemos um grande problema, quando nos preparávamos<br />
para as apresentações no Bottle’s Bar. Ele dizia que não tocava samba e eu<br />
que não cantava jazz. Ele não acreditava, realmente, que eu não cantasse<br />
este estilo, até porque já havia visto eu improvisar, e quem improvisa canta<br />
jazz. Aí, o Alberico o aconselhou a sentar-se e conversar comigo, lembrou-<br />
-lhe que eu era apenas uma menina, alertando-o, contudo, que eu já fazia<br />
muito sucesso. O fato é que o Alberico dobrou o que eu ganhava no Bacará<br />
diante do sucesso que eu estava fazendo. Todo o público do Beco das<br />
Garrafas estava indo para lá, logo depois da morte da Dolores Duran, pela<br />
novidade que eu era. Enquanto isso, o Bottle’s Bar ficava vazio, embora lá<br />
estivesse o Sergio Mendes Trio recém-premiado no Chile. Depois de muita<br />
discussão, decidimos ceder. Eu aprenderia jazz e o Sergio tocaria samba.<br />
E deu no que deu. Se o Sergio nunca tivesse tocado samba, jamais emplacaria<br />
nos Estados Unidos com o Mais que Nada de Jorge Benjor. Foi bom<br />
para ele, foi bom para mim. Ele costuma dizer que metade do dinheiro que<br />
ele tem é meu. Já o xinguei de ordinário várias vezes carinhosamente.<br />
Temos uma linda amizade!<br />
92
Um show após outro<br />
Leny com Gilson Peranzzetta<br />
93
Entre o Prestígio e a Fama<br />
Nada de mágoa, apenas um desabafo<br />
De 1983 a 1994, fiz bastante coisa em Nova York, mas a principal delas foi<br />
sugar o entendimento do jazz. Ver e ouvir esses sons durante as 24 horas do<br />
dia. Escutei a WBGO (83,5 FM) dia e noite. Tenho o maior orgulho de ser sócia<br />
dessa rádio e, além disso, ser a intérprete mais executada entre todas as<br />
brasileiras que transitam naquele universo de excelente música. Quando não<br />
estava ouvindo rádio, cantava na noite nova-iorquina, ou viajava pelo mundo.<br />
Quando me refiro aos Estados Unidos com orgulho e gratidão, e digo que foi<br />
preciso ir lá para ser reconhecida no Brasil, nem sei se esta é a colocação<br />
correta. Talvez fosse melhor começar por estabelecer bem direitinho a<br />
diferença entre fama e prestígio, entre ser conhecida do grande ou do<br />
pequeno público, ser sucesso nacional, estadual ou municipal, estourar ou<br />
não, enfim... é por aí.<br />
Do que me ressinto hoje, por exemplo, é de um pouco mais de interesse<br />
por parte da mídia para eu não precisar contratar um assessor de impressa<br />
que plante fotos e notícias nos veículos cada vez que chego ao Brasil. Acho<br />
que a mídia brasileira tem mais do que a obrigação de saber quem é Leny<br />
Andrade e a responsabilidade de divulgá-la. Estou falando de 53 anos de<br />
carreira. Não comecei ontem. Então não vou contratar um assessor de<br />
imprensa para contar minha história aos jornalistas. Sabem por quê? Se<br />
pegarem o roteiro que tracei nesses 53 anos de carreira, verão que por onde<br />
passo para fazer um show, sempre volto. Ah, se volto... E acredito que isso<br />
se deva à emoção que coloco no que faço. Só se deve fazer música com<br />
emoção. Se você não a tem, então não faça. Se tem medo de se acabar por<br />
dentro cantando algo, fique em casa, por favor.<br />
A Bossa Nova é hoje o movimento musical mais chique. Não é superior, só<br />
mais chique, mais amado, respeitado e elogiado no mundo inteiro. Não há<br />
nada mais importante no exterior, hoje, do que a Bossa Nova. Não adianta,<br />
tem-se que parar de ser hipócrita e admitir. Uma coisa que me preocupa é<br />
94
verificar que diminuíram, pelo menos no eixo São Paulo – Rio, os lugares<br />
para se ouvir música de qualidade. As boates e casas de música das décadas<br />
de 1970 e 1980 do Rio e de São Paulo acabaram – Mons. Pujol, Flag,<br />
Number One, People, Chico’s Bar, Jazzmania, Mistura Fina, João Sebastião<br />
Bar, Jogral... Mas é preciso que surjam outras. Hoje no Rio tem o Bar do<br />
Tom, tem o Vinícius, tem o Lapinha, que para mim é único em qualidade de<br />
som, programação, cozinha – tudo lá é bom. E em São Paulo tem o Club A,<br />
o Tom Jazz, o Ao Vivo, pequeno e nobre. Em breve teremos no Distrito<br />
Federal o Brasília Rio, que vai chegar primando em qualidade. É preciso<br />
torcer para que essas iniciativas deem certo e proliferem.<br />
Se eu tiver sorte, quero terminar como dona de bar. Mas um que abra às 21<br />
horas e só feche às 9 da manhã seguinte, com café da manhã e som. Os<br />
músicos querem tocar. Será que ninguém nunca vai entender isso? Eu acho<br />
um desrespeito no Rio de Janeiro não existir um lugar para ouvir um som às<br />
3 horas da manhã. E isso é por causa da violência. Ninguém mais quer ter<br />
um dissabor depois de uma di<strong>versão</strong>. Todo dia eu agradeço por não ter<br />
sofrido nada, é que sou muito protegida espiritualmente.<br />
Voltando à minha carreira e sobre o nível que ela se situa aqui e lá fora, coisa<br />
que a toda hora querem saber, tentarei explicar de uma vez neste livro: o<br />
Carmelo, meu marido, um dia comentou na presença de meus parentes,<br />
causando espanto e estranheza: Leny, você nunca vai ser sucesso neste<br />
país. Sabe por quê? Porque você não tem um escândalo em sua vida. Está<br />
faltando um escândalo. Todos os que estão ganhando dez vezes mais do<br />
que você e que entraram na mídia tiveram um escândalo ligado a sexo,<br />
drogas, brigas, quebra-quebra, porres... você não teve nada disso... sua<br />
caminhada vai ser muito difícil. Mas eu acho que ninguém canta como você<br />
neste país. Ninguém entendeu nada. Os anos foram passando, passando, e<br />
eu fui chegando à conclusão que ele tinha uns 80% de razão. Mas isso só<br />
aqui, no Brasil.<br />
Do ponto de vista financeiro, durante 25 anos sempre tive grana, mas nossa<br />
vida de artista é como estar num elevador. Uma hora você está no 30º andar,<br />
outra, no sótão. Você não sabe como será o amanhã. Porque você trabalha<br />
com supérfluos e ninguém precisa de Leny Andrade para sobreviver.<br />
É exatamente aí que entra o fator prestígio, porque eu ouço colegas,<br />
amigos e gente do métier dizendo que tudo está muito difícil, que a vida<br />
está complicada, que o mundo está em crise. Mesmo assim, lá vou eu, sigo<br />
fazendo shows pelo mundo: Brasil, América Latina, Estados Unidos, Europa,<br />
alguns países da Ásia, agenda cheia o ano inteiro. É prestígio. É uma bênção,<br />
outro dia luminoso que nasce...<br />
95
O árduo e compensador garimpo do prestígio<br />
96<br />
Parto do princípio que o meu trabalho foi sempre<br />
garimpado com a intenção de colher prestígio.<br />
Tanto no Brasil quanto no exterior. Prestígio que o<br />
público manifesta em forma de confiança, com sua<br />
presença debaixo de chuva, na Semana Santa, no<br />
Natal ou no Réveillon, com a certeza de que vale a<br />
pena pagar para ir me assistir porque algo novo e<br />
bom vai acontecer naquela noite. São plateias<br />
enormes, culturas muito diferentes em todos os<br />
lugares do mundo: Estados Unidos, México, Chile,<br />
Argentina, Alemanha, Holanda, Itália, França,<br />
Espanha, Lituânia, Iugoslávia, Rússia, Dinamarca,<br />
Suécia, Noruega, Japão, Austrália, ufa!... Eu cantando<br />
em português, porque só canto Bossa Nova<br />
em português, e eles aplaudindo de pé e chorando,<br />
embora sem entender o que as palavras dizem.<br />
Eles sentem e se emocionam com o que a minha<br />
voz diz. Se contar um por um, creio que participei<br />
de mais de 300 festivais de jazz em toda a carreira.<br />
Na minha estante afetiva, prêmios, troféus, críticas,<br />
reconhecimento de colegas, elogios de amigos e o<br />
aplauso do anônimo estão lado a lado. Quando<br />
recebi o Grammy Latino em sua oitava edição, não me encontrava<br />
na plateia do teatro em Las Vegas aguardando a chamada.<br />
Assistia pela televisão aqui no Brasil. A apresentadora lia a<br />
premiação dos latinos, visivelmente com dificuldade de pronunciar<br />
os nomes por desconhecimento.<br />
Cartazes apresentando Leny<br />
na Rússia e no Japão
Leny em momento de premiação<br />
97
Dois momentos:<br />
Com César Camargo Mariano no Grammy<br />
Com Tony Bennett, fã e amigo<br />
98
Aí ouvi o meu nome e o do Cesar Camargo Mariano, meu parceiro no<br />
premiado disco Ao Vivo. No mesmo minuto ele me ligou exultante para dar a<br />
notícia. Eu dava cambalhotas tal qual uma criança, e festejei com ele do<br />
outro lado da linha. Alguém escreveu num blog que, como diva, não me<br />
deslumbraria com aquele prêmio. É verdade. Não me deslumbrei embora<br />
tenha adorado recebê-lo. Ficarei feliz se outros Grammy vierem e penso,<br />
inclusive, que Alma Mía, pela qualidade do repertório, dos arranjos e da<br />
interpretação, tem muita chance. Vou enviar o CD para o próximo Grammy.<br />
Mas a emoção de ter recebido o Troféu Raça Negra em 2009, da ONG<br />
Afobras, talvez supere a do Grammy. Será? Um reconhecimento pela<br />
contribuição do negro para o desenvolvimento do nosso país, para a construção<br />
de uma sociedade melhor. Um legado para as próximas gerações.<br />
E contribuí com o meu canto e na condição de negra, porque se tenho a<br />
pele clara, mamãe era uma mulata que lembrava a Elizeth, então estamos<br />
conversados: tenho o pé na África e muito me orgulho disso.<br />
Quando estou num restaurante, na Fiorentina, por exemplo, e alguém entra<br />
e me cumprimenta, quer dar um dedinho de prosa, fala de algum assunto de<br />
modo íntimo, como se fosse da família, isso é prestígio, não? É uma forma<br />
de reconhecimento. Ou ainda quando passo pelos países da América de<br />
língua espanhola – da Argentina ao México – e sou chamada de Deusa, o<br />
que é isso? Recebo com humildade essa homenagem e agora agradeço do<br />
meu jeito, cantando 13 boleros e um tango no Alma Mía. Ver o Tony Bennett<br />
na plateia de Nova York fazendo a minha caricatura enquanto canto (já tenho<br />
cinco caricaturas assinadas por ele) é outra forma de reconhecimento que<br />
chega e aquece. Também os bilhetes, elogios e até declarações escritas em<br />
99
Os registros no traço de Tony Bennett<br />
100
101
guardanapos de papel que recebo após as apresentações são lidos e<br />
guardados com carinho, pois me comovem. Tenho algumas que pela<br />
caligrafia percebo que são de alguém que me segue...<br />
A crítica internacional sempre foi generosa: Extraordinária, disse o New York<br />
Times; a Sarah Vaughan do Brasil, reforçou o New York Post, Uma das<br />
maiores capacidades de improvisação. Maravilhosa completou o The Globe.<br />
Esses títulos traduzem prestígio. Também não posso deixar de enumerar<br />
alguns registros feitos no Brasil, que vão pela mesma linha: Aqui também<br />
colecionei prêmios, títulos, troféus e críticas favoráveis, não posso negar,<br />
embora em menor escala. Já fui a Melhor Cantora de Jazz Brasileira e<br />
Cantora Musicista, pela habilidade de improvisação. Agora, quando a equipe<br />
inteira de uma revista japonesa chamada Latina vem ao Brasil para fazer uma<br />
edição exclusivamente com a cantora Leny Andrade, que coisa é essa,<br />
minha gente?<br />
Mais do que um ato de reconhecimento ou prestígio, considero uma bênção<br />
ter sido convidada pelo cônsul do Brasil em Nova York para cantar na missa<br />
de sétimo dia de Tom Jobim. A pequena igreja de São Michael, localizada na<br />
esquina da Rua 34 com a 11, quase encostando no rio, estava completamente<br />
cheia de pessoas encasacadas. Fazia muito frio, num dos dias mais<br />
frios daquele inverno de muita neve. O padre Luiz me anunciou e me dirigi<br />
ao local onde cantaria. Seriam precisos apenas 12 passos do banco até lá,<br />
mas pareceu que a distância foi maior, porque eu andei tão lenta e pesadamente<br />
enquanto o Aloísio Aguiar se dirigia ao piano. Achei que a única<br />
música cabível naquela hora era Por Causa de Você – Ah, você está vendo só,<br />
Do jeito que eu fiquei, E que tudo ficou, Uma tristeza tão grande, Nas coisas<br />
mais simples, Que você tocou... música do maestro com letra de Dolores.<br />
Letra que ela fizera sofrendo de amor, quase morta de amor, escrevera<br />
sobre um guardanapo com o lápis de sobrancelhas, a alma dilacerada porque o<br />
seu amado a deixara para sempre. Naquele momento, na igreja, os versos<br />
soaram de forma extraordinária. Com os olhos erguidos para o alto cantei e<br />
não me lembro de ter ouvido o piano me acompanhar. No fim, nenhum<br />
aplauso, é claro – primeiro um grande silêncio e depois um soluço só das<br />
700 pessoas que estavam na missa do Tom. Nossa, que emoção!<br />
Encheria páginas relacionando os prêmios e reconhecimentos em forma de<br />
gestos feitos por notáveis e anônimos. Contudo, é melhor ficarmos mais na<br />
emoção, no sentimento que marcou a trajetória desta minha vida de artista.<br />
102
Leny e Menescal no Japão<br />
103
Neste ano de 2010, minha atividade no Brasil tem sido muito intensa,<br />
prestigiosa e prestigiada. Tenho participado de shows muito especiais.<br />
Recentemente, houve no Teatro Carlos Gomes um espetáculo que a<br />
Prefeitura do Rio montou para receber convidados estrangeiros. Tinha gente<br />
da França, Holanda, Estados Unidos, Chile, México e Argentina. Antes da<br />
minha entrada teve apresentação de um balé bem brasileiro, mesclado com<br />
pontos de macumba, inclusive, e após 20 minutos para troca de palco, a<br />
própria secretária de Cultura da cidade do Rio de Janeiro, Jandira Feghali,<br />
me apresentou ao público. Cantei duas músicas e dei as boas-vindas falando<br />
um pouco em inglês e em espanhol. Um sucesso! No fim, tive que voltar<br />
com bis e tudo. São surpresas que acontecem. Às vezes você não leva fé<br />
num programa e a coisa acaba dando um excelente caldo.<br />
Logo no dia seguinte, com a ajuda do despertador, do chuveiro e de um<br />
cafezinho, consegui estar no aeroporto às 8h30. Djalma e meus músicos<br />
estavam no aeroporto e fomos todos ao misto quente antes de voarmos<br />
No Hollywood Bowl<br />
104
para São Paulo. Apenas com uma malinha de mão, pois sabia que a estada<br />
seria curtíssima, mas que iria desfrutar daquela suíte de sonho que a Rádio<br />
Eldorado e o Estadão sempre reservam para mim todas as vezes que faço o<br />
projeto Meus Melhores Momentos – um especial passado na hora, ao vivo<br />
na Rádio Eldorado. Dou uma entrevista sobre música brasileira, conto sobre<br />
os meus passos no exterior, sobre minhas vivências com astros da música<br />
de lá, os festivais de jazz, a trajetória do meu nome que segue crescendo lá<br />
fora... É tudo muito benfeito. Um entrevistador vem ao palco e faz as perguntas<br />
intercalando com as músicas; do lado de fora, um caminhão de<br />
gravação de DVD registra tudo e envia som e imagem para a rádio.<br />
Adormeço sempre muito tarde, com minha metade de Frontal porque<br />
sempre luto com a insônia. Fico remoendo ideias, pensando na vida, a noite<br />
é boa para isso mesmo, amar, cantar e contar histórias. Sou notívaga por<br />
natureza, de noite tudo é mais fácil, ao contrário do dia, onde tudo é mais<br />
difícil, arrastado, trabalhoso. Antonio Maria, aquele louco gordo e lindo<br />
escreveu, e Dolores Duran até gravou: Sou da noite do Rio, da noite macia<br />
do Rio, dou graças a Deus se tem lua, pois fico mais tempo na rua... Linda<br />
essa letra, vou cantá-la logo, logo. Dolores Duran, minha maior influência na<br />
música brasileira, foi quase aprisionada por Antonio Maria. Ele teve uma paixão<br />
por ela, daquelas lindas e perigosas que se tem nessa vida de meu Deus. Coisa<br />
que um aquariano não suportaria. Mesmo ele sendo Antonio Maria...<br />
Longe de mim ser ingrata aqueles que me prestigiam. Há muitos a quem<br />
agradecer. Meus 40 anos de carreira foram festejados no Canecão, numa<br />
105
superfesta organizada pelo Luiz Otávio, produtor e herói. Pois não é que ele<br />
conseguiu realizar a fantástica façanha de festejar a data exatamente como<br />
eu sonhava: cercada de músicos? Até o Romero Lubambo estava no Brasil e<br />
compareceu. Dei canja tocando quatro músicas. Muita gente famosa na<br />
plateia, no palco e nos camarins. Então, muito obrigada, Luiz Otávio, pela<br />
festa e pelos anos que passamos trabalhando juntos.<br />
Dez anos depois, nos 50 anos de carreira, a festa foi no Colégio Notre<br />
Dame, na Rua Barão da Torre, 308, em Ipanema. No dia 14 de julho de 2008,<br />
não esqueço. O salão do colégio foi alugado por Carlos Alberto Afonso, um<br />
louco apaixonado por música, proprietário da Toca do Vinícius. Organizou a<br />
festa com direito a convidados como Haroldo Costa, que protagonizou o<br />
Orfeu do Carnaval, o cônsul dos Estados Unidos para assuntos de Educação<br />
e Cultura, que veio ao palco fazendo questão do abraço. Foi uma festa linda,<br />
inesquecível, com 700 poltronas literalmente ocupadas. Estavam lá o presidente<br />
dos Diários Associados, Maurício Dinepe, e o diretor da minha amada<br />
Rádio Tupi, que ainda hoje me traz todas as informações que eu ouço pelo<br />
meu radinho preso à camisola. Bem, o Alfredo Raymundo e o Alfredo<br />
Raymundo Filho, vice-presidente, estavam lá, bem como todos os que<br />
trabalham nesse maravilhoso complexo e junto ao Jornal do Commércio,<br />
na TVA FM/Tupi AM, Tupi FM. Eu realmente adoro o rádio.<br />
106
Com Zico, no Japão<br />
Lais Pires, produtora e amiga, no Úmbria Jazz Festival<br />
Maucha Adnet, Nana Caymmi, Leny e Flora Purin, em festival na Itália<br />
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Encontro da Leny com a Leny<br />
Sobre perdão, inveja e merecimento<br />
Gosto de ler as previsões dos astros. Hoje um horóscopo dizia: Você pode<br />
começar o período desconfiado, mas observando bem os fatos, você vai<br />
relaxando e seu humor vai mudando e de uma coisa terá certeza: você<br />
estava fazendo tempestade em copo de água. Outro arrematava: ... facilidade<br />
de diálogo. Quem brigou terá sua chance de reconciliação. Não se<br />
apegue às mágoas. Pense com generosidade.<br />
Venho trabalhando muito a minha evolução espiritual e questões como<br />
perdão, ressentimento e inveja estão permanentemente em pauta. Minha<br />
amiga Regina Werneck está traduzindo um artigo sobre o câncer da minha<br />
afilhada que mora em Cancún me enviou, onde diz que o ressentimento é a<br />
porta de entrada para essa doença. Ruminar coisas que ficam entaladas no<br />
pescoço é ruim. Não fico assim, pois aquariano perdoa, embora não esqueça.<br />
Nosso problema não é com o perdão, é com a memória. Fica tudo escrito<br />
no caderninho. Mas o exemplo de mamãe me ajudou a suavizar esse traço.<br />
Por causa do seu signo, ela era amor 24 horas por dia, perdoando a todos,<br />
relevando tudo, arranjando desculpas para o indesculpável, dizendo que<br />
mágoas não levavam a nada. Assimilei um pouco do seu jeito único de ser.<br />
Passei anos sem ouvir falar do Hélcio Milito. Recentemente, Alaíde Costa,<br />
eu e mais quatro músicos fizemos um show para o Johnny Alf no Ginástico<br />
Português e o Hélcio veio me cumprimentar cheio de simpatia. Ele sentiu<br />
que eu não estava tão quente quanto poderia. Aliás, já o tinha visto uma vez<br />
depois do Tamba Trio, na Modern Sound, e o cumprimento não passou de<br />
um oi.<br />
Quanto ao Pery Ribeiro, falo com ele, até voltamos a cantar juntos depois do<br />
México, mais de uma vez. Certa ocasião, fui encontrar com ele, eu e o meu<br />
contrabaixista, na Polônia. Pery sabe perfeitamente da repercussão que o<br />
desmanche do Gemini V teve na minha vida, porque eu tive a franqueza de<br />
demonstrar isso em todas as oportunidades. O coração tem razão que a própria<br />
razão desconhece. Faz promessas e juras e depois esquece – Marino Pinto.<br />
108
109
Não tenho inveja de ninguém e esta é uma de minhas maiores riquezas,<br />
graças a Deus. Ainda mais no meio onde eu transito. Isto é, sem modéstia<br />
alguma, uma das coisas mais positivas que alguém pode ter. Até porque,<br />
como fui aprendendo com o decorrer dos anos, tudo o que a gente obtém é<br />
por merecimento, ou por uma força maior que vem daquela convicção do<br />
tipo: vou fazer e ninguém vai me impedir. Foi assim que funcionou quando<br />
fui para os Estados Unidos...<br />
Fazer este livro resultou em mais um encontro comigo mesma e algumas<br />
conclusões, ainda que não definitivas: como cantora e como intérprete,<br />
estou bem, obrigada. Como pessoa, estou melhor ainda. Não me sinto mais<br />
como há 20 anos, quando fui passada para trás e fiquei esquecida, sem<br />
importância, repelida. Durante muito tempo fantasmas enfearam e impediam a<br />
minha felicidade plena, porque eu vivia preocupada com o futuro de minha<br />
carreira, achava que continuaria dura pela vida afora. Só quando parei com<br />
isso e revi meus conceitos espirituais, desamarrei os nós de outras vidas,<br />
trazidos de outras passagens, tudo mudou. Isso através do esoterismo,<br />
do deixa tudo para lá, do senta e medita. A felicidade só chegou para mim<br />
depois que encontrei o meu caminho espiritual. E me considero apenas um<br />
aprendiz, porque esse lance não tem fim. Mas só de dizer Eu Sou, você já<br />
estabelece uma ponte fantástica com o poderoso Deus Supremo, o Criador.<br />
Eu Sou Deus, porque fui criada por Ele. Então, não há medo, não há receio.<br />
É tudo às claras, resolvido olho no olho. A franqueza é muito difícil de ser<br />
entendida. Geralmente ela não é. As pessoas só fazem questão de ser<br />
elogiadas. Elas precisam disso. E eu sinto muito, mas tenho que ser franca,<br />
porque sem franqueza, para mim, não há verdade. Jamais saberei dizer<br />
mentiras para agradar.<br />
Venho reconstruindo minha autoestima e a cada dia fico mais próxima de ser<br />
uma pessoa que tem cuidado com o outro, até porque quando você maltrata,<br />
sofre. Aqui mesmo. Você bate e na mesma hora recebe o troco. Tomo cuidado<br />
com as atitudes para não ser grosseira. São vários os caminhos e todos<br />
levam ao Pai. Sua casa tem vários cômodos: o do candomblé, da umbanda,<br />
do catolicismo, do islamismo. Então, procuro respeitar a linha que cada um<br />
segue e me dar bem com o outro.<br />
Houve um tempo em que não falava com ninguém enquanto o show não<br />
acabasse. Nem com a minha mãe. Não queria ver ninguém. Algumas pessoas<br />
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não entendiam. Ainda fico meio perturbada quando tem muita gente ao meu<br />
redor, quando estou em lugares que o acesso é fácil antes de entrar em cena.<br />
Mas estou melhorando. Percebo que à medida que Leny Andrade foi encontrando<br />
Leny de Andrade Lima, fui tendo outra compreensão da vida. Observar<br />
quando uma pessoa está mal e ficar ao seu lado até ela abrir a caixa de<br />
Pandora e revelar o motivo da sua tristeza, ouvir o necessitado, correr para<br />
acudir, é a coisa mais linda que se pode fazer na vida. São oportunidades que<br />
o Deus supremo nos dá para que aliviemos a dor do outro. Tenho feito horas e<br />
horas de ouvido de mercador... o outro falando e eu escutando. Às vezes sou<br />
fria e dura. Mas tenho que ser. Olho no olho e falar a verdade ajudam.<br />
Torno-me cada vez mais próxima do outro, ouvindo e me revelando.<br />
Ela sabe ouvir...<br />
111
Obrigada aos músicos, companheiros e amigos<br />
O carinho que tenho pelos meus músicos sempre existiu, mas hoje eu o<br />
escancaro, em público inclusive. Até porque no tipo de trabalho que faço,<br />
não existe a possibilidade de ser só você. Tem um todo envolvido que nos<br />
une. Então, para eu cantar aquele show da forma como canto e passar as<br />
coisas boas para a plateia, é preciso que atrás de mim estejam todos honrados,<br />
sintonizados, pagos, bem cuidados e ensaiados. É preciso que estejam<br />
bem, porque o músico tem uma sensibilidade muito intensa. E o público<br />
precisa perceber, previamente, que nós estamos bem. Sinto que existe uma<br />
admiração deles por mim. São vários músicos, em muitos lugares. Tenho<br />
receio de esquecer algum nome.<br />
Recordo-me do guitarrista Beto Yaniccelli, que liderava um quarteto no Boteco-<br />
Teco, situado no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro. Durante sete meses<br />
nos apresentamos lá com muito sucesso, depois fomos à Espanha com a Lais<br />
Pires, e mais César Camargo Mariano, Helio Delmiro e Paulo Moura. Foi<br />
inclusive no final de uma das apresentações com esse grupo que o Cesar<br />
subiu ao palco e fizemos de improviso o Da Cor do Pecado, composição do<br />
saudoso Bororó. Chegando ao Brasil, a ideia do duo – piano e voz – evoluiu<br />
para a produção do CD Nós, que ganhou o Grammy. Sou muito grata ao<br />
Cesar. Além de tudo o mais que ele colocou na minha vida, seu piano inconfundível,<br />
a primorosa luz e o palco como só ele sabe fazer. E ainda agradeço<br />
ao João Donato e o Emílio Santiago por tantos espetáculos que dividimos pelo<br />
Brasil afora, ao Gilson Peranzzetta pelos dois álbuns Cartola – 80 Anos e<br />
Nelson Cavaquinho, e ao João Carlos Coutinho pelos arranjos, as viagens pela<br />
Europa inteira, seu piano que fala com minha voz como se estivéssemos<br />
conversando, e mais uma vez ao Fernando Merlino que, com seu quinteto,<br />
fizeram do Alma Mía uma joia. Na trilha dos agradecimentos, sou muito grata<br />
por fim a todos os compositores dessa nossa música brasileira que me<br />
levaram para mais de 40 países longe dessa terra aonde eu nasci.<br />
112<br />
Leny, Simonal, Miele e amigos<br />
Nelsinho Careca, Emilio Santiago, Laércio de Freitas,<br />
Leny, Luizão e Ari Piassarolo no MAM, Rio)
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Adriano de Oliveira (falecido), Lúcio Nascimento (falecido), João Carlos Coutinho e Leny. Juntos por mais de 22 anos<br />
114
Para não me alongar mais ainda com os muito obrigada, muito obrigada,<br />
muito obrigada, mas ainda falando dos músicos, quero registrar que hoje,<br />
nos Estados Unidos, o Hélio Schiavo, além de ser meu baterista, faz o meu<br />
imposto de renda lá. (Sim, porque já renovei o Green Card duas vezes, tenho<br />
residência lá e cá, pago dois impostos, tudo dentro da legalidade.)<br />
Também canto com um trio formado por João Carlos Coutinho, piano;<br />
Rômulo Gomes, baixo; e Lúcio Vieira, bateria. Tem o Baião de 5, quinteto<br />
formado por Fernando Merlindo, piano; Jamil Joanes, baixo; Erivelton Silva,<br />
bateria; Arimateia Oliveira, flugel e trompete; e Julio Merlino, saxes e flautas.<br />
E ainda o Sambop, formado por Amiletto Stamatto, piano; Ney<br />
Conceição, baixo; Erivelton Silva, bateria; Paulinho Trompete, flugel e trompete;<br />
e Vidor Santiago, barítono e flautas. Nos Estados Unidos tem um trio<br />
formado por Klauss Muller, piano; Sérgio Brandão, contrabaixo; e Helio<br />
Schiavo, bateria. E mais o Dario Eskenazzi, piano, e o ótimo pianista Cliff<br />
Kormann e o baixista Keep Reed que vão tocar com um novo trio. Também<br />
não posso deixar de citar os parceiros como Gilson Peranzzetta, que entrou<br />
na minha vida e ficou para sempre, Maurício Einhorn, Roberto Menescal, os<br />
amados Cesar Camargo Mariano e Romero Lubambo, e mais o várias vezes<br />
citado neste livro Paquito D’Rivera, e os saudosos Paulinho Albuquerque e<br />
Durval Ferreira. Como não posso deixar de me referir aos meus representantes<br />
nos Estados Unidos, Put Philips e Ettore Stratta. Nossa, tenho realmente<br />
receio de causar ciúmes, é outra lista interminável, afinal são 53 anos de<br />
estrada.<br />
A sintonia e o respeito do artista aos seus músicos são importantíssimos.<br />
Percebo que isso existe nos shows do Tony Bennett, da Lisa Minelli, do Mark<br />
Murphy e da Madonna. Cuidado, honra e respeito resultam na atmosfera<br />
espetacular que aparece nos palcos. Já li matérias sobre o assunto com a<br />
minha ídala nº 1 do rock – Madonna. A mulher do Dario Eskinazi que trabalha<br />
na empresa dela me contou que são 150 empregados, todos com carteira<br />
assinada. Enquanto Madonna está fazendo tour pelo mundo, sua máquina<br />
funciona com perfeito azeitamento: bailarinos, coreógrafos, estilistas,<br />
figurinistas e maquiadores preparam os futuros shows. O respeito dela por<br />
essa gente toda é uma coisa fora do comum. Tenho uma máquina semelhante,<br />
muito menor, mas que funciona da mesma forma. É isso que faz<br />
progredir e leva ao sucesso.<br />
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Leny e Miele no show Um Brasileiro Chamado Jobim, em Fortaleza Cluve<br />
Leny e Dori Caymmi<br />
Zélia Duncan, Ângela Leal e Leny<br />
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Com Romero Lubambo, um parceiro querido<br />
Silvinha Góis, Paquito D`Rivera e Leny<br />
Wanda de Sá, Leny e Almir Chediak<br />
Adriano de Oliveira, Leny, Silvio Góis e Arismar do Espírito Santo no Úmbria Jazz Festival<br />
Leny, Fernanda Quinderé e Michel Legrand<br />
117
Leny e Menescal no Rival<br />
Com Altay Veloso<br />
118
Atualmente, conto experiências pessoais nos shows. O público passou<br />
tanto tempo sem me conhecer, que agora sinto necessidade de me mostrar,<br />
revelar o grande amor que tenho pela vida e o amor dobrado pela música,<br />
que é tudo para mim. Percebo inclusive que minha ligação com a música é<br />
tal que consigo expressar outros valores importantes através dela.<br />
A música tem me mostrado a cada dia como a história de uma vida é tecida<br />
por seu próprio autor. Esse é um dos propósitos deste livro. Mostrar exatamente<br />
quem sou, revelar minha alma. Quando for embora, não serei apenas<br />
saudade. Ninguém vai escrever o que achava que eu fosse. Aqui está a<br />
minha vida, contada por mim, num livro. Isso é fantástico!<br />
Leny e dois representantes da família Caymmi: Nana e Dori<br />
Leny, Toninho Horta e Fafá de Belém<br />
119
Alma Mía<br />
Alberto Cortez<br />
Alma mía... cómo pesan en tus alas las ausencias,<br />
cada día van sumando soledades indefensas;<br />
lejanías, avaricias, ansiedades y desvelos<br />
y una umbría sensación de irrealidad y desconsuelo.<br />
Alma mía... siempre en guardia vigilando mis entornos,<br />
día a día, mitigando los abusos y sobornos.<br />
Candilejas que me acosan sin clemencia con su brillo<br />
y que dejan una extraña sensación en mis sentidos.<br />
Alma mía... qué daría por volver a verte libre...<br />
sin estrías, dolorosas de misiones imposibles.<br />
Como antes... por delante de mis sueños y quimeras...<br />
Anhelante... de entregarte como fuera y donde fuera.<br />
Alma mía... cualquier día te irás yendo despacito;<br />
ya no mía... tu energía liberada al infinito....<br />
con tus velas... portadoras de la luz a todas horas...<br />
sin estelas... que te duelan, como duelen las de ahora.<br />
Alma mía... son tan frías las urgencias cotidianas...<br />
¡qué manía... de invertir cada presente en el mañana...!<br />
¡qué locura...la premura de vivir en cautiverio...!<br />
ataduras... por pavura irracional a los misterios.<br />
Alma mía... cuántas veces te he dejado abandonada<br />
en la vía de los trenes que van sólo de pasada.<br />
Cicatrices... sacudidas que la vida me ha causado,<br />
infelices... horas grises que los años no han borrado.<br />
Alma mía... menos mal que no te entregas derrotada;<br />
yo diría... que es a causa de seguir enamorada.<br />
¡Sensiblera... soñadora... perdedora o tempestiva...!<br />
¡Compañera... a pesar de los pesares, sigues viva!.<br />
Sequência no show do lançamento do Alma Mia, fotos do blog do Mauro Ferreira<br />
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Epílogo<br />
Um dique de emoções<br />
Ao finalizar este trabalho, mostrei à Leny a crítica que Mauro Ferreira publicou<br />
no dia seguinte ao lançamento do CD Alma Mía, no Canecão, sugerindo<br />
sua inclusão no livro. Visivelmente emocionada com o texto, ela entrou em<br />
contato com o Mauro, para pedir-lhe autorização.<br />
Uma graça a conversa virtual desses dois amantes da música. Disse a Leny,<br />
em seu e-mail: Mauro, sou eu, Leny Andrade, quem lhe escreve. Obrigada.<br />
Meu disco e meu show no Canecão, dia 18 de junho de 2010, não precisam<br />
de mais nada, só o que você escreveu basta. Sempre você me chamou a<br />
atenção pela forma de ver e ouvir a música. A música não é uma arte normal.<br />
Quem escrever sobre ela tem que realmente estar com ela dentro de<br />
si. É dentro ou nada. Estou nos finalmentes do meu livro Alma Mía, a Regina<br />
Ribas, que o está escrevendo (e se exaurindo comigo ao descrever esses 53<br />
anos da minha VIDA não só profissional, UFA, JÁ IMAGINOU?), esta adorável<br />
senhora, sugeriu colocar sua crítica no meu livro. Quero lhe dizer que<br />
espero que você goste dessa notícia, que irá acompanhada do meu<br />
HUMILDE ELOGIO à sua escrita sempre perfeita. Estou voando dia 26 para<br />
estrear 31 e ficar até 4 de setembro no Birdland, em Nova York, na 44th St.,<br />
pela quarta vez. Todo ano, nessa época, canto lá, só em português. Faço<br />
dois sets de MÚSICA BRASILEIRA. O Birdland é chamado de A Esquina do<br />
Jazz. Espero que este e-mail chegue às suas mãos e obrigada por tratar a<br />
música como ela merece.<br />
A resposta do Mauro veio rápida, com a autorização acompanhada de<br />
algumas palavras que revelavam sua felicidade pela distinção. Que bom!<br />
Senti mesmo que ele esteve em fina sintonia com Leny Andrade quando a<br />
assistiu interpretando pela primeira vez os boleros que foram gravados no<br />
Alma Mía. Sua crítica transborda sentimento. Um fecho perfeito para o relato<br />
de uma vida tecida de pura emoção. Nada melhor para ser o epílogo desta<br />
história. Obrigada, Mauro.<br />
122<br />
Regina Ribas
Bolero é bolero. Pop é pop..., diferenciou Leny Andrade no palco do Canecão<br />
(RJ), antes de cantar Nosotros (Pedro Junco), um dos boleros que a cantora<br />
depura em cena com sua técnica majestosa. Em sua estreia nacional, na<br />
noite de 18 de junho de 2010, o show Alma Mía reeditou o êxito do disco<br />
homônimo lançado em maio pela gravadora carioca Fina Flor. Leny sabe<br />
cantar um bolero no tom exato, sem cair no pantanoso terreno sentimental<br />
em que se jogam várias cantoras que encaram esse ritmo cubano que se<br />
popularizou no México. Leny canta boleros com bom gosto. Sem maracas,<br />
sem bongô e sem congas, como a própria intérprete ressaltou em cena.<br />
Em contrapartida, em sua única apresentação no Canecão, Leny contou<br />
com orquestra de cordas – formada por 12 violinos – e naipe de sopros.<br />
Tudo sob a chique direção musical do pianista Fernando Merlino, produtor e<br />
arranjador do ótimo CD.<br />
Como o disco que o inspirou, o show Alma Mía tem beleza por vezes linear.<br />
O tom e as tiradas pretensamente bem-humoradas de Leny sobre as letras<br />
– cujos conteúdos folhetinescos são descritos pela intérprete em bom e<br />
malicioso português – se repetem ao longo de boleros como Llévatela<br />
(Armando Manzanero) e Un Poco Más (Álvaro Carrillo). A entrada da orquestra<br />
de cordas, a partir de Lluvia en la Tarde (Arturo Castro), altera a pulsação<br />
dos arranjos sem desviar o show do trilho básico. Lluvia en la Tarde, a<br />
propósito, é bolero que deságua no Rio da Bossa Nova, em arranjo inspirado.<br />
Após Entonces (Arturo Castro), número em que sobressai o piano de<br />
Fernando Merlino, Leny acerta ao inserir um set de músicas brasileiras.<br />
Porque poucas cantoras interpretam um samba como Alvoroço (João de<br />
Aquino e Ivor Lancellotti) com tanta segurança e com tanto suingue. Se Sou<br />
Eu (Luana) impressiona pelo laço afro que reforça as afinidades entre o<br />
maestro Moacir Santos (1926 – 2006) e o letrista do tema, Nei Lopes, Batida<br />
Diferente (Maurício Einhorn e Durval Ferreira) mostra – para quem ainda não<br />
sabe – que Leny sabe cair com bossa no samba-jazz. Número de longa<br />
duração, Batida Diferente é pretexto para scats e solos da afiada banda.<br />
O bloco nacional esquenta o show a ponto de, na volta aos boleros, Leny<br />
seduzir de imediato a plateia ao realçar toda a beleza de Alma Mía (Maria<br />
Grever) e de Vete de Mi, o bolero de Virgílio Expósito e Homero Expósito<br />
que Caetano Veloso gravou e propagou no álbum Fina Estampa (1994). No fim,<br />
uma esplendorosa interpretação de El Dia que me Quieras – a canção de<br />
Carlos Gardel e Alfredo Le Pera que se transmutou em bolero, mesmo tendo<br />
sido criada no universo argentino do tango – ratifica a maestria do canto de<br />
Leny Andrade, intérprete que sabe que bolero é bolero e que pop é pop.<br />
Mauro Ferreira<br />
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DISCOGRAFIA<br />
2010 – Meus Melhores Momentos (Eldorado)<br />
2010 – Alma Mía (Fina Flor)<br />
2008 – Momentos da Bossa ao Vivo (Albatroz CD)<br />
2001 – E Quero que a Canção Seja Você (Albatroz CD)<br />
2000 – Leny Andrade Canta Altay Veloso (Paradox Music CD)<br />
1998 – Bossas Novas (Albatroz CD)<br />
1997 – Letra & Música / Leny Andrade e Cristóvão Bastos (Lumiar)<br />
1995 – Antonio Carlos Jobim, Letra e Música (Lumiar Discos CD)<br />
1995 – Embraceable You (Som Livre & Timeless)<br />
1995 – Luz Negra – Leny Andrade Canta Nelson Cavaquinho (Velas)<br />
1995 – Coisa Fina – Leny e Romero Lubambo (Perfil)<br />
1994 – Maiden Voyage – Fred Hersch (Chesky)<br />
1994 – Nós – Leny Andrade e César Camargo (Velas)<br />
1992 – Eu Quero Ver (Eldorado)<br />
1992 – Leny Andrade Canta Cartola (Velas & JVC)<br />
1991 – Luz Néon (Eldorado & JVC)<br />
1984 – Leny Andrade Live (Pointer)<br />
1980 – Registro com João Donato (SBS/Sony)<br />
1974 – Leny e César Camargo Mariano Quinteto (Odeon)<br />
1974 – Alvoroço (Odeon)<br />
1972 – Gemini V Anos Depois – Volume 1 (Odeon)<br />
1965 – Leny Andrade, Pery Ribeiro & Bossa 3 (EMI)<br />
1965 – Estamos Aí, com Eumir Deodato (Odeon LP)<br />
1962 – A Arte Maior de Leny Andrade (Polydor LP)<br />
1960 – Batida Diferente com Trio Tamba (RCA)<br />
1960 – A Sensação Leny Andrade (RCA LP)<br />
1955 – Toada sem Você (Palermo)<br />
124
Créditos fotográficos<br />
Márcia Moreira<br />
capa<br />
Demais fotografias pertencem ao acervo de Leny Andrade<br />
A Editora agradece quaisquer informações sobre os detentores dos direitos<br />
das imagens não creditadas neste livro, bem como de pessoas<br />
não identificadas nas fotografias, apesar dos esforços envidados para obtê-las.
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Ribas, Regina<br />
Leny Andrade: alma mía/ Regina Ribas – São Paulo : <strong>Imprensa</strong><br />
<strong>Oficial</strong> do Estado de São Paulo, 2012.<br />
132p. : il. – (Coleção aplauso. Série música / Coordenador geral<br />
Rubens Ewald Filho)<br />
130<br />
ISBN: 978-85-401-0026-8<br />
1. Música popular – Brasil – História e crítica 2. Bossa nova –<br />
Brasil 3. Cantoras – Brasil 4. Andrade, Leny, 1943<br />
I. Ewald Filho, Rubens. II. Título. III. Série.<br />
Índice para catálogo sistemático:<br />
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