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Maurice VaneauArtista Múltiplo


Maurice VaneauArtista MúltiploLeila V. B. GouvêaSão Paulo, 2006


GovernadorSecretário Chefe da Casa CivilCláudio LemboRubens Lara<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São PauloDiretor-presidenteDiretor Vice-presidenteDiretor IndustrialDiretora Financeira eAdministrativaChefe de GabineteHubert AlquéresLuiz Carlos FrigerioTeiji TomiokaNodette Mameri PeanoEmerson Bento PereiraCoordenador GeralCoordenador Operacionale Pesquisa IconográficaProjeto GráficoAssistência OperacionalEditoraçãoTratamento de ImagensRevisorColeção Aplauso Teatro BrasilRubens Ewald FilhoMarcelo PestanaCarlos CirneAndressa VeronesiAline NavarroJosé Carlos da SilvaAmancio do ValeSárvio N. Holanda


Apresentação“O que lembro, tenho.”Guimarães RosaA Coleção Aplauso, concebida pela <strong>Imprensa</strong><strong>Oficial</strong>, tem como atributo principal reabilitar eresgatar a memória da cultura nacional, biografandoatores, atrizes e diretores que compõema cena brasileira nas áreas do cinema, do teatroe da televisão.Essa importante historiografia cênica e audiovisualbrasileiras vem sendo reconstituída demanei ra singular. O coordenador de nossa coleção,o crítico Rubens Ewald Filho, selecionou,criteriosamente, um conjunto de jornalistasespecializados para rea lizar esse trabalho deapro ximação junto a nossos biografados. Ementre vistas e encontros sucessivos foi-se estrei -tan do o contato com todos. Preciosos arquivosde documentos e imagens foram aber tos e, namaioria dos casos, deu-se a conhecer o universoque compõe seus cotidianos.A decisão em trazer o relato de cada um paraa pri meira pessoa permitiu manter o aspectode tradição oral dos fatos, fazendo com que amemó ria e toda a sua conotação idiossincrásicaaflorasse de maneira coloquial, como se o biografadoestivesse falando diretamente ao leitor.


Gostaria de ressaltar, no entanto, um fator importante na Coleção, pois os resultados obti dos ultrapassamsimples registros biográ ficos, revelandoao leitor facetas que caracteri zam também oartista e seu ofício. Tantas vezes o biógrafo e obiografado foram tomados desse envolvimento,cúmplices dessa simbiose, que essas condiçõesdotaram os livros de novos instru mentos. Assim,ambos se colocaram em sendas onde a reflexãose estendeu sobre a forma ção intelectual e ideológicado artista e, supostamente, continuadanaquilo que caracte rizava o meio, o ambientee a história brasileira naquele contexto e momento.Muitos discutiram o importante papelque tiveram os livros e a leitu ra em sua vida.Deixaram transparecer a firmeza do pensamentocrítico, denunciaram preconceitos seculares queatrasaram e conti nuam atrasando o nosso país,mostraram o que representou a formação decada biografado e sua atuação em ofícios de linguagensdiferen ciadas como o teatro, o cinema ea televisão – e o que cada um desses veículos lhesexigiu ou lhes deu. Foram analisadas as distintaslingua gens desses ofícios.Cada obra extrapola, portanto, os simples relatosbiográficos, explorando o universo íntimo epsicológico do artista, revelando sua autodeterminaçãoe quase nunca a casualidade em ter se


tornado artis ta, seus princípios, a formação desua persona lidade, a persona e a complexidadede seus personagens.São livros que irão atrair o grande público, masque – certamente – interessarão igualmente aosnossos estudantes, pois na Coleção Aplauso foidiscutido o intrincado processo de criação queenvol ve as linguagens do teatro e do cinema.Foram desenvolvidos temas como a construçãodos personagens interpretados, bem como aanálise, a história, a importância e a atualidadede alguns dos personagens vividos pelos biografados.Foram examinados o relaciona mento dosartistas com seus pares e diretores, os processose as possibilidades de correção de erros noexercício do teatro e do cinema, a diferenciaçãofundamental desses dois veículos e a expressãode suas linguagens.A amplitude desses recursos de recuperaçãoda memória por meio dos títulos da ColeçãoAplauso, aliada à possibilidade de discussão deinstru mentos profissionais, fez com que a <strong>Imprensa</strong><strong>Oficial</strong> passasse a distribuir em todas asbiblio tecas importantes do país, bem como embibliotecas especializadas, esses livros, de gratificanteaceitação.


Gostaria de ressaltar seu adequado projetográfi co, em formato de bolso, documentadocom iconografia farta e registro cronológicocompleto para cada biografado, em cada setorde sua atuação.A Coleção Aplauso, que tende a ultrapassar oscem títulos, se afirma progressivamente, e espe racontem plar o público de língua portu guesa como espectro mais completo possível dos artistas,atores e direto res, que escreveram a rica e diversificadahistória do cinema, do teatro e da televisãoem nosso país, mesmo sujeitos a percalçosde naturezas várias, mas com seus protagonistassempre reagindo com criati vidade, mesmo nosanos mais obscuros pelos quais passamos.Além dos perfis biográficos, que são a marcada Cole ção Aplauso, ela inclui ainda outrasséries: Projetos Especiais, com formatos e característicasdistintos, em que já foram publicadasexcep cionais pesquisas iconográficas, que se originaram de teses universitárias ou de arquivosdocumentais pré-existentes que sugeriram suaedição em outro formato.Temos a série constituída de roteiros cinematográficos,denominada Cinema Brasil, que publi couo roteiro histórico de O Caçador de Dia mantes,de Vittorio Capellaro, de 1933, considerado o


primeiro roteiro completo escrito no Brasil coma intenção de ser efetivamente filmado. Paralelamente,roteiros mais recentes, como o clássicoO caso dos irmãos Naves, de Luis Sérgio Person,Dois Córregos, de Carlos Reichenbach, Narradoresde Javé, de Eliane Caffé, e Como Fazer umFilme de Amor, de José Roberto Torero, quedeverão se tornar bibliografia básica obrigatóriapara as escolas de cinema, ao mesmo tempo emque documentam essa importante produção dacinematografia nacional.Gostaria de destacar a obra Gloria in Excelsior,da série TV Brasil, sobre a ascensão, o apogeue a queda da TV Excelsior, que inovou os procedimentose formas de se fazer televisão no Brasil.Muitos leito res se surpreenderão ao descobriremque vários diretores, autores e atores, que nadécada de 70 promoveram o crescimento da TVGlobo, foram forjados nos estúdios da TV Excelsior,que sucumbiu juntamente com o Gru poSimonsen, perseguido pelo regime militar.Se algum fator de sucesso da Coleção Aplausomerece ser mais destacado do que outros, é o interessedo leitor brasileiro em conhecer o percursocultural de seu país.De nossa parte coube reunir um bom time dejornalistas, organizar com eficácia a pesquisa


docu mental e iconográfica, contar com a boavontade, o entusiasmo e a generosidade de nossosartistas, diretores e roteiristas. Depois, apenas,com igual entu siasmo, colocar à dispo siçãotodas essas informações, atraentes e aces síveis,em um projeto bem cuidado. Também a nóssensibilizaram as questões sobre nossa culturaque a Coleção Aplauso suscita e apresenta – ossortilégios que envolvem palco, cena, coxias, setde filmagens, cenários, câme ras – e, com referênciaa esses seres especiais que ali transi tam ese transmutam, é deles que todo esse material devida e reflexão poderá ser extraído e disse minadocomo interesse que magnetizará o leitor.A <strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> se sente orgulhosa de tercriado a Coleção Aplauso, pois tem consciênciade que nossa história cultural não pode sernegli genciada, e é a partir dela que se forja e seconstrói a identidade brasileira.Hubert AlquéresDiretor-presidente da<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São Paulo


Um protagonista do moderno teatrobrasileiroEra natural que o empresário italiano FrancoZampari, ao criar em 1948 o Teatro Brasileiro deComédia, convidasse para dirigir o elenco umconterrâneo seu. Por isso, ele trouxe para SãoPaulo Adolfo Celi, que se encontrava na Argentina.E, com o crescimento do trabalho, já queno início os espetáculos ficavam pouco tempoem cartaz, Celi chamou da Itália Luciano Salcee Flaminio Bollini Cerri, além de aproveitar aestada de Ruggero Jacobi e depois de Ziembinskino Brasil.11Como findara a Segunda Grande Guerra, companhiasde vários países europeus excursionaramà América do Sul, figurando entre elas o TeatroNacional da Bélgica, de excelente qualidade, emcujo repertório se distinguiu Barrabás, de Ghelderode,sob direção de Maurice Vaneau.O êxito de Barrabás levou Zampari a promovera permanência de Vaneau no Brasil. E ele foi umdos colaboradores mais relevantes, na consolidaçãodo teatro moderno entre nós.É a trajetória desse encenador, que sobressaiutambém em outros campos, o objeto de


Maurice Vaneau – Artista Múltiplo, escrito porLeila V. B. Gouvêa, embora utilize a forma deautobiografia .O qualificativo de múltiplo assenta bem em Vaneau,porque ele sempre se projetou com êxitonos campos teatrais da direção, da cenografia, daindumentária e da administração, e nas incursõespela dança, pela ópera e pela TV. E seu territórionão se limita à Bélgica e ao Brasil, estendendo-seaos Estados Unidos e ao Oriente. Pode-se qualificá-locomo cidadão do mundo.12A narrativa, porém, deixa patente que a presençano Brasil foi importante para nós e para ele. Paranós, porque Vaneau tem não apenas talento deartista, mas sabe administrar com pulso firmetanto um espetáculo como uma companhia. Oacabamento de suas montagens é prova do domíniosobre todos os aspectos da realização. E aunidade do desempenho revela a disciplina dotrabalho. Para Vaneau, a experiência brasileiraajudou-o também na carreira européia, além dedar-lhe a esposa, a bailarina e coreógrafa CéliaGouvêa, e os três filhos aqui nascidos.Os espectadores mais antigos conhecem a importânciaartística do TBC, que ainda abriu caminhopara a Cia. Nydia Licia-Sérgio Cardoso e a Cia.Maria Della Costa-Sandro Polloni. Muitos o criti-


caram por não ter dado primazia à dramaturgiabrasileira, preferindo os autores europeus e norte-americanos.De um lado, compreende-se queos encenadores dominassem melhor a produçãoalienígena. E, de outro, os autores brasileiroscom espírito moderno ainda eram poucos, queademais traziam para um estrangeiro a dificuldadeda língua.Vaneau, como também sobretudo Gianni Ratto,logo se interessou pela nossa dramaturgia, porémde início não tinha domínio do português.Assim, aqui estreou, em 1956, com a peça A casade chá do luar de agosto, do norte-americanoJohn Patrick, que já havia montado na Bélgica.Não obstante o propósito de apresentar um dramaturgonosso, encenou, na segunda incursão nopalco, Gata em teto de zinco quente, do tambémnorte-americano Tennessee Williams. E só na terceiramontagem ofereceu um texto brasileiro: AsProvas de Amor, de João Bethencourt. Além doêxito artístico, credenciou Vaneau a circunstânciade ser responsável pelas duas maiores bilheteriasdo TBC durante a sua colaboração: A casa de chádo luar de agosto e Os ossos do Barão, de JorgeAndrade.13O abrasileiramento de Vaneau conduziu-o aorganizar um Festival Nacional de Dança e parafazer jus, em 1992, ao título de cidadão paulista-


no, que lhe foi conferido. Ele assumiu a direçãoartística do Teatro Guaíra, de Curitiba, do qual sedesligou em fins de 1994. Na comemoração dos300 anos da capital paranaense, Vaneau dirigiue fez o cenário da ópera Aída, de Verdi.Vários artistas europeus, que vieram para o Brasilcom o fim da Segunda Grande Guerra, retornaramaos seus países de origem, recuperados artísticae financeiramente, enquanto nosso teatroconseguiu progredir muito pouco. Pelos vínculosfamiliares, além do talento de realizador, é desejávelque Vaneau ainda venha a atuar conosco.14E só nos cabe enaltecer o modelo deste livro que,se aproveitado com a biografia de outros artistasde mérito, contribuirá muito para o melhorconhecimento do teatro brasileiro.Sábato MagaldiSão Paulo, dezembro de 2005


IntroduçãoEle se movimenta sem cessar, anda de um ladopara o outro, olha pela janela e em seguida fixaum detalhe da roupa. Um perfeccionista obsessivo.Parece apressado, sempre nervoso, um poucoindiferente e, no entanto, nada lhe escapa. Osolhos muito azuis faíscam, contrastando com aface avermelhada; o sorriso irônico por vezesdeixa escapar certa ternura. E de repente ele nãohesita em manifestar um humor desconcertante,cáustico.Este retrato aproximado de Maurice Vaneau,feito décadas atrás por um jornalista belga, coincideem boa parte com aquele que eu mesma,intimamente, fiz dele em 1971, quando o conheciem São Paulo. Então ele já era um nome indissociávelda empreitada de profissionalização e demodernização do teatro brasileiro, impulsionadana década de 1950; já dirigira por duas vezes oTBC, sendo responsável pelos dois maiores sucessosda casa fundada por Franco Zampari; jálevara à cena muitos dos monstros-sagrados denosso palco – a começar por Walmor Chagas eCacilda Becker, que dirigiu três vezes, a últimadelas no talvez maior sucesso de sua carreira dediretor, a histórica montagem de Quem TemMedo de Virginia Woolf?, de Albee, produzida15


16Vaneau


também por ele. Vinha ainda de pôr em cena asua segunda ópera, O Barbeiro de Sevilha, emBruxelas. Enfim, também ele um (discreto) monstrosagrado, já com um irremovível lastro pelaEuropa e pelo Brasil não apenas como diretor,mas também ator, mímico, dançarino, iluminador,figurinista, cenógrafo, fotógrafo, produtor,autor de documentários para TV e desenhista defino traço. Homem de curiosidade insaciável, quepercorrera o mundo e, à primeira vista, intimidava.Acompanhei boa parte de seu trabalho nasúltimas décadas, no teatro, na dança, na ópera– e com ele tenho convivido desde os anos 1970,por laços de família.Mas por um desses infortúnios que muitas vezesa velhice acarreta, o Maurice Vaneau quefui encontrar em maio de 2005, para dar inícioàs memórias que se seguem, era já bem outro:golpeado na capacidade de lembrar, fragilizadocomo uma criança, mergulhado em um novodrama, sem fim e sem enredo que, este, nãologrará dirigir, adaptar ou iluminar. Muitasvezes não encontrava as palavras para dizer dopassado, nem em português nem em francês,as mais correntes dentre as cinco línguas quedominava até poucos anos atrás. Agora, quasetudo se embaralhava, se dissipava. Noutras vezes,contudo, era como se de repente pudesse17


18reviver as lembranças, a ponto de como quetentar agarrar o passado com as mãos – e osolhinhos azuis voltavam a brilhar, uma nota deternura ou um palavrão de revolta aflorava comímpeto de sua boca ou semblante, mediante umgesto ou uma expressão. Momentos pungentes,dolorosos, que me fizeram pensar nas palavrasde sua médica: trata-se irremediavelmente deum emotivo, pronto tanto a se comover compessoas, cenas ou fatos os mais corriqueiros,como também a explodir em ira incontrolável atémesmo diante de uma ninharia. Particularidadede temperamento decerto exacerbada pelo fatode Maurice Vaneau ter vivido, na adolescência,em carne e osso, a tragédia da Segunda GuerraMundial na Europa e a invasão de seu país pelosnazistas, eventos da história que não deixariamde marcar-lhe pela vida afora, além de haveremmutilado também a sua própria família.Nas incontáveis vezes em que estive, cadernoem punho, em seu apartamento na Rua Sergipe,em São Paulo, muita coisa foi dita, porémmuito também ficou silenciado pelos revezes ecaprichos de sua oscilante memória. Criou-se umimpasse: interromper o trabalho, e conceder a umpossível futuro esquecimento essa trajetória tãosingularmente rica, multifacetada e importantepara a história do teatro brasileiro ou, antes,


embrenhar-me em pesquisas que completassemos vazios de sua fala, os silêncios de sua memória?A opção, como se vê por este volume,inclinou-se por esta alternativa – e em minhapesquisa contei, a cada passo, com a colaboraçãoinestimável e luminosa da coreógrafa CéliaGouvêa, mulher de Maurice, minha irmã, e umaespécie de segunda memória do artista múltiplo– síntese achada por ela – especialmente no quediz respeito ao que ele realizou a partir de 1970,quando ambos se encontraram e se uniram navida pessoal e em incontáveis trabalhos. Hoje, éela a guardiã lúcida e abnegada de todo o vastoacervo reunido minuciosa e meticulosamente porMaurice Vaneau desde a sua estréia no palco,na companhia do Rideau de Bruxelas, em 1948,onde por sete anos atuou, dirigiu, confeccionoucenários, figurinos e projetos de iluminação paradezenas de montagens, assenhoreando-se comessa atividade intensiva de todos os aspectos,métiers e meandros da arte do espetáculo. Comoo próprio Maurice Vaneau chegou a dizer, oRideau foi o laboratório onde ele desenvolveuas suas próprias concepções de homem do teatrototal, inspiradas na vivência do dia-a-dia nopalco e também em correntes ancestrais da artecênica, como a Commedia dell’Arte, a pantomima,o vaudeville da Belle Époque, além daconexão com o inconsciente tão recorrente na19


tradição plástica flamenga e, claro, de toda atradição do teatro moderno. Concepções queele pôs em prática mais prolongadamente noBrasil, onde aportou em 1955 com uma mise-enscèneque marcou época: Barrabás, de Michel deGhelderode, apresentada pelo elenco do TeatroNacional da Bélgica no Teatro Municipal do Riode Janeiro e no Teatro Santana, em São Paulo (oMunicipal paulistano, que Maurice viria a dirigirem 1975/76, encontrava-se em reformas).20Desde então, Maurice Vaneau aqui realizou edirigiu perto de 80 espetáculos, entre peças deteatro, óperas, coreografias, documentários,teler reportagens, além de algumas participaçõesna teledramaturgia brasileira, afora os cerca de70 trabalhos que encenou ou de que participouna Europa. Aqui dirigiu importantes casas teatrais– além do TBC e do Municipal de São Paulo,também o baiano Castro Alves e o curitibanoGuaíra – e recebeu os principais prêmios dasartes cênicas: Saci, Molière, APCT, APCA, Inacene Governador do Estado, que vieram se somaràqueles que já conquistara na Europa. Aqui, ondeescolheu viver até o fim de seus dias, nasceramseus três filhos e, como ele costuma dizer brincando,por ter nascido num 25 de janeiro – háexatos 80 anos – tornou-se cidadão paulistano,título que lhe foi concedido em 1992.


Mas não pretendo avançar mais, uma vez que asmemórias que se seguem – mantidas, malgradoos revezes e os expedientes mencionados paracontorná-los, no formato de primeira pessoa jáconsagrado por esta admirável Coleção Aplauso– dirão muito mais, e com as cores que uma vidatão fecunda, uma personalidade tão complexae tal acervo de realizações sugeriram.Devo, porém, voltar a reiterar aqui meu agradecimentoa Célia Gouvêa, sem cuja preciosa colaboraçãoesta biografia não teria vindo à luz.Leila V. B. GouvêaSão Paulo, abril de 200621


22O bebê Vaneau


Capítulo IComo tudo começouNasci em 25 de janeiro de 1926 em Bornem, provínciade Anvers (Antuérpia), na Bélgica, em plenosanos loucos europeus. Josephine Baker e as jazzbands americanas estreavam ali perto, em Paris,no Folies Bergères. A capital francesa se tornaraum efervescente refúgio de artistas russos, que fugiamdo stalinismo, e americanos, que escapavamda lei seca, entre tantos outros. Mas, afinal, essaépoca seria apenas um prelúdio à Segunda GrandeGuerra com todas as suas atrocidades.Meu nome de batismo é Maurits Victor Van DenBossche. Em 1946, aos 20 anos, adotei o nomeartístico de Maurice Vaneau, mais sonoro e fácilde pronunciar, que até hoje me acompanha.Afinal, sou originário do lado francófono daBélgica, não do flamengo. Meus pais escolheramo nome Maurits porque nasci numa regiãoflamenga. Há tempos queria registrar minhasmemórias, ou, como prefiro dizer, mes moires – asdobras, os escaninhos de minha vida, de minhasrecordações de homem de teatro e de habitantedo planeta Terra. Cheguei a pensar em algunstítulos: O Bastardo Legítimo ou Um Balanço doSéculo 20. Mas o tempo foi passando e, apesar23


de muitas anotações acumuladas, não as escrevide próprio punho.24Passei a infância e parte da vida adulta na Europa.Apenas em 1955, aos 29 anos, eu desembarqueipela primeira vez no Brasil, cuja nacionalidadeadotei na década de 60 e onde desenvolveriagrande parte de minha vida artística. Fui o quartoe penúltimo filho de uma família de cinco irmãos,a mais velha mulher e os demais homens: LéonaJeanne Victorine, Guillaume Roger François,Robert Jules, eu e Raymond Charles. Houve umintervalo de cinco anos entre o nascimento demeu terceiro irmão e o meu. O médico havia ditoque minha mãe não poderia mais ter filhos. Masainda deu à luz a dois meninos.Segundo se recorda minha irmã, Léona, era lindaa casa onde nascemos eu e meu irmão caçula, Raymond,construída por meu pai, Victor Van DenBossche, cuja terra natal também era Bornem.Meu pai, na época, trabalhava com construçãoe fazia mosaicos com pedras, um típico trabalhobelga, dos quais ainda guardo uma amostra. Essesmosaicos eram também aplicados em pisos,paredes e até em monumentos fúnebres. Meu paifoi um bom sujeito e um modelo de honestidade.Lembro-me que ele fumava como um turco, eracomo a torre da fábrica de chocolates Côte d’Or,não parava de soltar fumaça. Acendia um cigarro


no outro, riscando praticamente um único fósforono dia, logo ao levantar da cama. Às vezesacendia um charuto cubano, que perfumava asala, e eu ficava como que hipnotizado, olhandoa cinza de vários centímetros que ele conseguiadeixar intacta, sem deixar cair! Era também umsujeito muito econômico. Morreu com 58 anos,de cirrose, quando eu estava com 26.Dizem que fui um garoto tranqüilo, sonhador,muito curioso e com grande senso de humor. Gostavade desenhar e de assistir filmes. Houve umtempo em que cheguei a ver três filmes por dia– desenhos animados, documentários e outros.Um de meus ídolos era Shirley Temple. Depois,Charles Chaplin e os Irmãos Marx.25Num aniversário, cheguei a ganhar de presenteum projetor de filmes e, ainda na escola, eu dirigiameus colegas em papéis de cowboy, gêneroque eu tanto apreciava então. Bem cedo um tio,meu padrinho, deu-me de presente uma câmerafotográfica e caixas de lápis de cor para desenhare pintar. Em Bruxelas, eu ia sozinho à escola euma vez, aos 7 anos, parei na volta para ver umjogo de futebol, me esqueci da vida, e minhamãe, preocupada, acabou chamando a polícia,até que apareci com ar de quem não tinha feitonada de errado. Gostava também de acompanharo acendedor dos candeeiros da antiga iluminação


pública. E era louco pelas cornetas de fritas, tãocomuns nas ruas de Bruxelas.26Minha mãe, Jeanne Marie Caroline Geniets VanDen Bossche, foi uma grande mulher, realmenteextraordinária. Muito paciente, equilibrada eamorosa, teve poucos estudos, mas era dotadade grande capacidade e firmeza. Sua atividadeequivalia à de umas cinco pessoas. Era muitohabilidosa, e tudo o que fazia era com perfeição,culinária ou costura, bordados, tricô, crochê. Trabalhosque fazia nas horas de lazer ouvindo asóperas que tanto apreciava, no rádio. Foi tambémassídua freqüentadora das óperas apresentadasno Théâtre de la Monnaie, em Bruxelas. É interessanteobservar que, já como homem de teatro,eu viria a montar várias óperas, tanto na Europacomo no Brasil. Minha mãe era uma verdadeirafada, como costuma dizer minha irmã.Falava o francês, nossa língua materna, com grandecorreção e não cometia erros de ortografia.Era tão sábia que, depois, soube se entendermuito bem com todas as suas noras. Sua vidacheia de valor me levou a concluir que, em geral,as mulheres são melhores do que os homens.Transcorridos mais de 30 anos de sua morte, minhamãe continua presente em minha vida e écomo se ela continuasse a me ajudar a cada dia.Que mulher fantástica!


A mãe, Jeanne Marie27


28Já menino, na Bélgica


Quando eu ainda era garoto, meu pai adoeceu,teve de deixar a atividade de construção e, pordecisão dela, minha família entrou nos anos 30para o ramo da hotelaria e da culinária. Primeiro,meus pais abriram um café tipo taverna emBruxelas, muito freqüentado por artistas, principalmenteatores e músicos, belgas e estrangeiros.Depois, um restaurante, onde se servia a verdadeiraculinária belga, à base de muita manteiga.Minha mãe dirigia a cozinha e recepcionava commuita cordialidade os fregueses, enquanto meupai cuidava do bar. Ele preparava drinques e explicavaas receitas aos clientes. Ali também se serviao verdadeiro café-filtre belga, num suporte deprata. Entre os clientes muitos senhores fumavamcachimbo e algumas senhoras me diziam: “Queljoli petit garçon”. De fato, alguns deles sentiama minha falta. E ao voltar da escola, zum!, eu iadireto para o restaurante.29Foi já durante a guerra que meus pais abriramesse estabelecimento, que ficava num bairro bemcomercial, chamado Schaerbeek, em frente auma praça, no andar térreo de uma casa de trêsandares. A cozinha era embaixo, no subsolo, e ospratos subiam à sala de refeições num pequenoelevador onde eram retirados pelos garçons.Morávamos no andar de cima, onde tambémhavia um salão no qual aconteciam festas. No


mesmo prédio funcionava ainda uma escola dedança clássica, atividade pela qual desde cedotive grande interesse.30Também na Bélgica, já se percebia fortementeo aumento do anti-semitismo, naquela época.Com a guerra, as pessoas de origem judaica eramobrigadas a usar uma placa, identificando essaorigem. Embora fôssemos de família católica– todos nós fomos batizados e fizemos a primeiracomunhão, mas, ao que me lembro, eu freqüenteia igreja uma única vez e nunca tive fé religiosa– meus pais, assim como outros comerciantesdas redondezas, sempre foram solidários com osjudeus, atitude que eu e meus irmãos herdamosdesde pequenos. Cedo aprendemos com meuspais que todos os seres humanos são iguais, independentementede credos, nacionalidades ouraças. Costumo dizer que meu país de origem éo planeta Terra. Cheguei a escrever em minhasanotações, para as memórias que não escrevi:“Eu também tenho Deus, mas não o do Vaticano.Ele não tem sexo, nem raça, não é branco, negroou amarelo. Ele não vive lá em cima nem aquiembaixo, na verdade está em mim, como Satanás.Às vezes, escuto a Deus, noutras, a Satanás.Meu Deus!”.Muitos judeus vinham comer no restaurante demeus pais. Os preços eram acessíveis e as porções ,


fartas. Minha irmã, Léona, que hoje vive emMálaga, na Espanha, se lembra de uma noiteem que meu pai, já na hora de fechar as portas,deixou entrar um jovem judeu perseguido pelapolícia. Mais tarde, ele fugiu pelo teto, e nuncasoubemos se conseguiu escapar de ser embarcadonos imundos trens da morte. Os nazistaschegaram a ameaçar meus pais de fechar nossorestaurante, caso continuassem recebendo judeus.Era comum ouvir à noite gritos de policiaisperseguindo-os, o que nos causava pesadelos.Outra cena inesquecível foi o assassinato, porsoldados nazistas, de um casal de músicos ouluthiers já idosos, de origem judaica, que freqüentavanosso estabelecimento. Eles tinhamuma pequena loja de instrumentos musicais ali,bem próximo, e um deles tocava violoncelo. Euobservei a cena através das cortinas da janela demeu quarto! Este foi um dos primeiros ataquesdos nazistas em Bruxelas, uma das incontáveisatrocidades do horrível Adolf, e a cena dos velhosmúsicos caídos no chão, mortos, em meio a outroscorpos, até hoje não me sai da lembrança. Porcosnazistas! Tudo isso certamente traumatizoua nossa adolescência que, entretanto, em casa,transcorria da melhor maneira possível, sempreorientada pela dedicação, pela firmeza de nossamãe, por sua determinação.31


Antes da guerra, nossa família abriu um primeirohotel em La Roche sur l’Ourthe, na Ardenne,bela região montanhosa já perto da fronteirada França.Era o Hotel Regina – e muitos anos depois eu viriaa casar com a coreógrafa brasileira Célia Regina,conhecida como Célia Gouvêa. Esse hotel tinhaum grande terraço que dava para as montanhas,onde os clientes tomavam aperitivos olhando anatureza.32Ele funcionava principalmente durante as temporadasde verão e inverno, e durante os feriadosLa Roche en Ardenne


prolongados. Depois, a família deixou o Reginae abriu o Hotel de l’Ourthe, próximo às ruínasde um castelo medieval e à beira do Rio Ourthe.Era também um estabelecimento para a classemédia, porém maior e muito fino, com serviçoem baixelas de porcelana e prataria, onde umdos pratos de maior sucesso do cardápio eram astrutas com molho de manteiga. Naquele tempo,meu pai continuava cuidando do café em Bruxelase, em La Roche, minha mãe dirigia o hotel.Meus irmãos mais velhos ficaram com meu pai, nacapital da Bélgica, eu e meu irmão Raymond commamãe, em La Roche. Para ficarmos perto dela,nós dois continuamos os estudos, equivalentesao ginásio, numa escola de frades católicos, nasredondezas, uma vez que não encontramos lugarna escola pública. Eu e meus colegas éramostraquinas, ríamos muito, levantando a tampa dacarteira para que os padres não vissem. Uma vezri tanto que um padre me chamou e mandou queeu estendesse as mãos para a palmatória.33Mas eu as retirei antes que ele me acertasse, eele me sacudiu pelos ombros. Rapidamente, eurevidei, segurando em sua gola. Tive de ficar duashoras quieto, olhando para a parede. Essa escolatinha uma rígida disciplina que, contudo, nãofuncionava muito para um rebelde como eu.Até hoje guardo um folheto com fotos das ins-


talações do Hotel de l’Ourthe. Ele dispunha dehall, terraço, tea room, viveiro de trutas, salade refeições, um fumoir onde, num armário demogno com portas de vidro bisotado, enfileiravam-secaixinhas com a cabeça de esfinge natampa, repletas de cigarros ovais da marca Khediveem cores pastéis: azul-celeste, verde-água,rosa. E com a piteira dourada. Eram destinadosaos lábios delicados das damas. Uma vez roubeiuma caixinha e, instalado numa das poltronasde veludo do fumoir, pus-me a experimentar umde cada cor. Mas que decepção! Todos tinhamo mesmo sabor. Cheguei a vomitar e tossi tantoque desisti, e nunca mais fumei. Havia tambémum salão de bilhar e, perto do restaurante, umpiano. As pessoas dançavam ali à noite, ao somda música – a sala de chá era transformada empista de dança. Um de meus irmãos, Robert, eraum grande dançarino e por vezes eu o acompanhavano papel de dama. Seu ídolo era o cantorde tangos argentino Carlos Gardel e ele, modelodo latin lover, passava brilhantina nos cabelos.35No inverno, turistas esquiavam nas redondezas ese promovia a caça do pequeno javali. Eu gostavade jogar bilhar, de pescar trutas e de patinar naságuas congeladas do rio nos meses frios e, navolta, sentia o hotel deliciosamente confortável.Um paraíso! Gostava também de colher frutas


36Interior do hotel


silvestres, como myrtilles, groselhas e framboesaspelas redondezas. Esse hotel de meus pais chegoua receber o primeiro prêmio no Referendum duBon Hôtelier e seu restaurante, onde tambémse servia o verdadeiro jambon d’Ardenne, foiclassificado entre os de premier ordre.Isso certamente influenciou meu posterior gostopela culinária. No passado, gostava de prepararmuitos pratos, como peixes, frutos do mar e coelhos,sempre elogiados por meus convidados,e para acompanhamento eu mesmo escolhiaos bons vinhos. Já no Brasil, fazia também umacaipirinha considerada imbatível, sacudindobem os ingredientes numa coqueteleira. Um demeus amigos, o crítico teatral Sábato Magaldi,apreciava muito a especialidade à base de rimque eu preparava, com vinho Madeira, seguindoum verdadeiro ritual. Uma de minhas duasfilhas com a coreógrafa Célia Gouvêa, Yara,hoje estuda gastronomia em Lyon, na França.De fato a culinária está no sangue da família.Três de meus irmãos chegaram a se profissionalizarnessa área: Guillaume, que chamávamosde Willi, ao terminar o ginásio, um dia quebroutodos os seus lápis, comunicando a meus paisque decidira ir trabalhar como ajudante de umchef, num restaurante de Bruxelas. Muitos anosdepois meu irmão caçula, Raymond, que chegou37


a trabalhar por um tempo como comissário debordo da Sabena, a companhia aérea belga, tornou-seo chef de um clube, em Miami, e Robertfoi patissier. Primeiro, abriu uma casa de chá emBruxelas, onde a cada dia renovava os estoquesde doces e salgados, colocando os da vésperanuma portinhola que dava para a rua, para seremretirados gratuitamente pelos transeuntes.Depois, foi confeiteiro no antigo Congo Belga(hoje Zaire), na África. De tanto lidar com farinha,ficou doente e lamentavelmente morreu cedo,aos 45 anos, de câncer.A fase feliz de minha infância com a famílianão durou muito. Em 1939, começou a guerra,com todo o horror do nazismo. Em 1940, a Bélgicafoi invadida pelos alemães. Eu estava com39


14 anos e meu irmão mais novo com 13. Meusdois irmãos mais velhos, Willi e Robert, o dançarinoque gostava de Gardel, foram convocadospara lutar nas forças de Resistência ao nazifascismo.Soldados belgas e depois alemães ocuparamnosso hotel e, em maio, minha mãe tentouseguir comigo e com meu irmão Raymond emdireção a Bruxelas, ao encontro de meu pai edemais irmãos, no ônibus usado para o transportedos turistas. Seguimos nós três, com o chofere sua mulher. Então começaram o pesadelo eo medo: a estrada estava bloqueada por umcomando militar, e os soldados nos obrigarama seguir em direção ao sul da França. Formou-seum congestionamento nunca visto. Aviões deHitler, os tenebrosos Stukas com suas sirenesabertas, passavam pela região em vôos rasantes,bem perto de nós! Os nazistas ameaçavamcom metralhadoras soldados e civis. Três diasdepois, ainda a bordo do ônibus, fomos pararem Villefranche-de-Rouergue, região francesade Aveyron, no Midi, já perto da fronteira coma Espanha. Havia ali uma igreja medieval, apraça de Notre Dame, com edificações em arcos,e o velho castelo de Loc-Dieu, com sua capela.Pessoas do lugar haviam montado cabanas paraabrigar os refugiados, e nós cinco ficamos numadelas, que tinha apenas quatro camas.41


42Mas logo o dono do castelo de Loc-Dieu mandouanunciar que estava à procura de um chefe decozinha para o preparo das refeições destinadasaos diretores de grandes museus de Paris quechegavam às pressas a Villefranche com obras dearte valiosíssimas, na tentativa de resguardá-lasdos saqueadores alemães. Um desses museus erao próprio Louvre. Como estratégia para nos pôra salvo, minha mãe se apresentou como proprietáriade hotel e de restaurante, e passou a dirigira cozinha nesse castelo, onde nós nos abrigamosacompanhados pelo motorista e sua mulher.Minha mãe mesma cozinhava para os hóspedes,auxiliada por um grupo de mulheres do NorteCastelo de Loc-Dieu


da África, vestidas de preto da cabeça aos pés.Chega mos a ver algumas das obras-primas queiam sendo guardadas no castelo. Inconscientesda dimensão e dos horrores da guerra, eu e meuirmão brincávamos naquele castelo enorme, cujaconstrução teve início no século 13. E eu atécolecionei folhas de árvores colhidas em seusbosques e jardins, que até hoje guardo coladasnum pequeno álbum.Permanecemos no sul da França por quase quatromeses, até conseguirmos voltar a Bruxelas, aoencontro de meu pai, que continuava à frente docafé. Ele e minha mãe então acabaram achandomelhor abrir o restaurante, embora quase todosos alimentos tivessem de ser comprados nomercado negro. Ali passamos os duros anos daguerra. Bruxelas foi libertada do poder nazistaapenas em 1944, e guardo uma foto desse anode meus dois irmãos que haviam lutado no conflito,tirada em frente ao restaurante de meuspais, em companhia de um amigo holandêsque no passado freqüentou a casa. Mas o fimda guerra ainda traria à nossa família amargosacontecimentos. Primeiro, reencontramos nossohotel, em La Roche, totalmente saqueado pelossoldados belgas e alemães. Nenhum vestígio dabela prataria, dos móveis, de nada que meus paistinham comprado para o estabelecimento. Maso mais grave é que meu irmão Willi morreu em43


1945, ainda servindo o Exército. Com apenas 25anos, ele faleceu na explosão de uma mina.Naturalmente a vida nunca foi a mesma para nósdesde então. Minha mãe teve uma depressãonervosa e a família vendeu o restaurante e semudou para o campo, na região de Waterloo.Esses traumas deixaram em todos nós marcasprofundas e decerto influenciaram o meu temperamentonervoso e irritadiço, as minhas tiradassarcásticas, talvez mesmo a aparição de certotique nervoso que me acompanharia por quasetoda a vida. Neurose de guerra, talvez.44Pouco a pouco, minha mãe foi recuperando aforça e a coragem, as quais foram decisivas paraOs pais, em Waterloo


que tentássemos continuar seguindo em frente.Em 1945, minha irmã, Léona, casou com o companheirocom quem vive até hoje, o escocês nascidoem Paris, David Alexander Hay, meu caro amigo.Com ele pratiquei meu inglês quando jovem,segunda entre as várias línguas que eu viria adominar ao longo dos anos – além do francês edo inglês, também o italiano e o português, mastambém conseguia me virar bem em alemão eespanhol – e que me foram muito úteis ao longodas numerosas viagens que fiz pelo mundo,quase todas elas por motivos profissionais. Daviddizia me achar um rapaz quieto, mas muitointeligente. E considerava os desenhos que eucontinuava fazendo cheios de humor. Chegou apensar que eu seguiria a carreira de criador dedesenhos animados.45Em 1944, já perto do fim da guerra, eu me inscrevina Académie Royale des Beaux Arts, em Bruxelas,embora desde criança acalentasse uma outrapaixão, o cinema. Cheguei a ir a Paris para meinscrever numa escola de filmagem, mas chegueiatrasado e perdi o prazo. Na Académie Royale,o curso gratuito era um atrativo a mais pois minhafamília tinha perdido quase tudo duranteo conflito. Era uma escola fantástica, instaladano centro da capital belga, nas proximidades daGrand Place e do símbolo máximo de Bruxelas,


46Grand Place, em Bruxelas


da irreverência do povo da cidade e de suas lutascontra as várias ocupações estrangeiras – a fontena forma da pequena estátua do Manneken Pis,aquele garotinho de pedra que faz pipi ininterruptamente,jorrando vida. Havia nessa escolaalunos de várias nacionalidades, principalmenteingleses, e um ambiente de grande efervescênciacriativa. Ali vi muitas exposições, freqüentei osalão de esculturas e conheci muitos artistas.48Todo esse contato com as artes foi muito enriquecedorpara mim e até hoje tenho mais facilidadeem comunicar meu afeto às pessoas por meio dedesenhos do que de palavras. Quando alguém dafamília chegava de viagem, eu costumava colarmeus desenhos e textos de boas vindas na portade entrada. O mesmo acontecia nos aniversários,quando eu cobria com eles toda a copa de casa,onde se toma o café da manhã.Também obtive na Académie des Beaux Arts oprimeiro prêmio de minha vida artística, o de pinturaornamental, num concurso em que obtive oprimeiro lugar com distinção. Essa formação seriaposteriormente útil à minha vida teatral, principalmentenos métiers de figurinista e criador decenários. A técnica do traço, não isenta de ironiaou mesmo de sarcasmo, também serviu para queeu mesmo criasse ilustrações, cartazes, programase filipetas para muitas peças, inclusive em meus


trabalhos no Brasil. Convém lembrar que o imagináriocriativo belga é bastante influenciadopelas artes plásticas, sobretudo pela tradição dapintura flamenga de artistas como JheronimusBosch, Pieter Brueghel, James Ensor, na qual oinconsciente é uma forte presença.49Estátua do Manneken Pis, o Manequinho


50Por essa época, para ganhar algum dinheirocomecei a trabalhar como vitrinista de lojas. Fiztrabalhos inclusive para uma famosa marca decigarros belgas e para casas de moda feminina.Também trabalhei por um tempo no escritórioda academia onde estudava. Eu já era, então,freqüentador assíduo do Palais des Beaux Arts,ainda hoje um dos principais centros culturais dacapital da Bélgica, vizinho da academia. Um dia,passando por um dos dois teatros desse centro,um professor que ensaiava me viu observandoe me convidou a participar. Eu disse que não,afinal continuava pensando em estudar cinema,mas fiquei interessado.Foi, talvez, a primeira vez que de fato me interesseipelo teatro. É como se alguma coisativesse despertado em mim naquele instante, ede maneira casual, o que não deixa de ter umlado cômico.Seja como for, em 1946, aos 20 anos, entrei paraa École d’Art Théâtral du Rideau de Bruxelas, fundadacinco anos antes pelo ator e diretor ClaudeÉtienne, escola que mantinha uma companhiade teatro, a qual Étienne viria a dirigir por quase50 anos; ele morreu em 1992, meses antes decompletar meio século na direção da escola e dacompanhia. Instalado no Palais des Beaux Arts, oRideau formava inúmeros atores, diretores, figu-


inistas, cenógrafos e outros profissionais parasuas sucessivas representações de um verdadeiroteatro de repertório. Étienne me inscreveu noThéâtre d’Essai, o teatro experimental destinadoaos jovens alunos, onde tomei contato ao longode dois anos com vários autores clássicos e modernose com todos os aspectos técnicos do métier.Lembro-me que, num dos testes, ele sussurrou noouvido de um dos professores que, se eu fosse unsdez centímetros mais alto, poderia desempenharo papel de galã em algumas peças. Mas não eraesse o meu objetivo. E encontrava consolo emnão ser alto ao lembrar de baixinhos famosos eaté geniais, como Einstein ou Charles Chaplin.O curso incluía aulas de artes marciais, sobretudoesgrima, além das disciplinas específicas: artedramática, direção, história do teatro, maquiagem,dicção e voz, aplicação técnica, educaçãocorporal, constituindo um verdadeiro celeiro deprofissionais para o palco. Além de Étienne eWerner Degan, que ensinavam arte dramática,tive professores como Herman Closson, HeikoKolt, Robert van Nuffel, Madame Maxane, GeorgesMony e Raymond Gérôme. A proposta deClaude Étienne era a de uma grande renovaçãodo teatro belga, rompendo com as tradiçõesacadêmicas que ainda o sufocavam. Para isso, elebaniu a tentação de um teatro fácil e de culto a51


vedetes, em busca de uma arte independente ede alta qualidade, que pudesse atingir um públicoamplo, não apenas a elite.52Ali reinava a atmosfera de uma grande famíliaonde cada um tinha um papel, pequeno ougrande, onde cada qual estava consciente de queuma pequena falha poderia arruinar todo um espetáculo.Todos deveriam estar a serviço da obradramática a ser representada, aí incluídos atores,diretores, mas também os que trabalhavam nosbastidores, como maquinistas, contra-regras,eletricistas, iluminadores. Havia um rodízio defunções e um ator numa peça muitas vezes eradiretor em outra, além de colaborar nos cenários,figurinos, e assim por diante. Todos deviamdominar os diversos métiers da arte dramática.Esse verdadeiro laboratório foi fundamental paraminha formação. Foi ali que entendi verdadeiramenteo teatro.Étienne e os demais diretores do Rideau selecionavampeças de comprovado valor literário,clássicas ou de caráter experimental, como erao caso dos textos dos autores novos, de múltiplasnacionalidades. García Lorca, TennesseeWilliams, Arthur Miller, por exemplo, constaramdas primeiras temporadas do Rideau, ainda nadécada de 40.


Nenhuma corrente importante da literatura e dopensamento da época era estrangeira a Étiennee sua equipe. Também não se buscava o sucessocomercial nem se encenavam obras que visassemapenas ao prazer imediato do público, o quenão impediu que a maioria das representaçõesdo Rideau alcançasse grande êxito de públicoe de crítica. Grande amigo da França e de suacultura, Étienne foi responsável por algumas dasprimeiras encenações de autores como Claudel,Montherlant, Anouilh, Giraudoux, Camus, Sartre,Cocteau, sem deixar de mencionar os autoresbelgas de expressão francesa. Várias peças domoderno teatro francês e europeu foram representadasna Bélgica antes de estrear em Paris.Muitas delas constaram do currículo de meuaprendizado no ano escolar de 1948-49, ao ladode Huis-Clos (Entre Quatro Paredes), de Jean-Paul Sartre, Le Baladin du Monde Occidental (OProdígio do Mundo Ocidental), do irlandês J.M.Synge, L’Inconnue d’Arras (A Desconhecida deArras), de Armand Salacrou – guardo até hoje umprograma no qual este autor me cumprimentavapelo desempenho no papel do Mendigo – e deMonsieur Faust, Madame et l’Autre (Senhor Fausto,Senhora e o Outro), comédia de Guy Béguin,jovem autor que também estudava na escola doRideau. Nessa peça, uma variação sobre o temade grandes autores como Goethe, fui conside-53


54rado pela crítica “um belzebu adorável”. Essasencenações dos estudantes do Théâtre d’Essaieram apresentadas ao público e à crítica no teatromenor do Palais des Beaux Arts, conhecidocomo Sala Vermelha, com 159 lugares. Havia umcorredor que ligava essa sala e o espaço maior,reservado ao teatro profissional e a concertos.Durante os ensaios e mesmo nos períodos maislongos em que eu tinha de esperar para entrarem cena, costumava dar umas escapadas e irconversar com artistas na coxia do grande auditório.Ali conheci grandes artistas internacionais,como Edith Piaf e Maurice Chevalier. Lembro queChevalier, ao entrar em cena, tirava o microfone,dizendo: “No meu tempo não se usava esse tipode coisa.” E o público ria. Mas todos ouviam bemChevalier.Foi no Rideau que estreei, como ator, em 1948,no papel de Dedé na peça Nuits de la Colère (Noitesde Ira), de Armand Salacrou, sob a direção deAndré Berger. Convém lembrar que nesse mesmoano, no Brasil, era fundado o TBC, do qual, nadécada de 50, eu viria a ser diretor artístico. Mas,antes disso, obtive como aluno o primeiro lugarcom distinção no concurso de interpretação doteatro moderno e clássico do Rideau. Fui umaluno atento, sempre extremamente curioso,e lá aprendi também a mímica, a técnica do


clown, a expressão corporal e a importância domovimento, que tinham para essa trupe um valorpreponderante.Eu ia descobrindo um mundo novo e apaixonante,que contribuía para cicatrizar as feridas deixadaspela guerra, quando fui atingido por uma novatragédia. Em setembro de 1951, ao voltar decarro de um ensaio com alguns companheirosde trabalho, em Bruxelas, sofremos um acidentegrave. A atriz Claude Dauzun, que há pouco tinhabrilhado no papel da Espanhola da peça Sexo frágil,morreu no local. Eu tinha contracenado comela naquele mesmo ano em Une femme qui a lecoeur trop petit (Uma Mulher de Coração DemasiadoPequeno), de Ferdinand Crommelynck, elano papel de Minna, eu no de Xantus. Fui lançadopara fora do carro e fiquei desmaiado na rua porum bom tempo. Transeuntes se aproximavam ediziam: “Oh la la, este já foi para o outro mundo.”Na verdade, eu tinha quebrado várias costelas efui para o hospital. Quem tinha passado para ooutro mundo era a encantadora Claude. O motoristae o contra-regra André Duprez escaparamilesos. Apesar do novo trauma, logo que merecuperei voltei para a companhia do Rideau deBruxelas. A escolha pelo teatro, essa arte do corpopresente, que reúne frente a frente espectadorintérprete, já era definitiva, então.55


56Continuei minha formação em arte dramática edireção teatral na Universidade de Yale, em NewHaven, Connecticut, com bolsas das fundaçõesFullbright e Smith-Mundt Award para o ano letivode 1952/53. Embarquei para os Estados Unidosno dia 19 de julho de 1952, na primeira classedo navio MS Noordam, no porto de Roterdã, echeguei a New Jersey dez dias depois. Permanecinos Estados Unidos por 13 meses. Nos prédiosgóticos de Yale descortinei um caminho novo,bem diferente da formação belga. A rotina eraintensa. De manhã, assistíamos às aulas teóricassobre todas as questões do teatro e, à tarde eà noite, participávamos de exercícios práticos eensaios. A sala de espetáculos da universidadetinha cerca de mil lugares e dispunha de todasas inovações técnicas, ateliês para confecção decenários e uma mesa de luz muito rara na época,que representava uma verdadeira revolução nailuminação do palco. Essa central elétrica permitiaobter luzes muito difusas e que se diluíam de ummodo que lembrava a arte dos pintores impressionistas.Sempre fui muito curioso e esse estágiotambém me introduziu nas técnicas da iluminação,aprendizado que acabei aplicando depoisno Brasil, onde elas ainda engatinhavam .O repertório americano também diferia muito doque se praticava então na Bélgica. Molière era


em conhecido por lá, mas pouco encenado, enquantoShakespeare era representado com umafantasia desconcertante. Os autores europeusmais estudados eram Ibsen e o belga Maeterlinck,que marcaram muito o teatro americano.Entre os modernos, Sartre, Anouilh e Giraudouxcausavam curiosidade e eram mais discutidos doque apreciados.Além do curso de direção em Yale, fiz um orientationprogram de seis semanas no Bard College,em Annandale on Hudson, Estado de Nova York,com uma bolsa do Departamento de Estado concedidaa um total de 47 estudantes de 18 países.Havia euro peus de várias procedências, além deindianos, japoneses, turcos e também um brasileiro,Oswaldo Osório, o qual viria a reencontraralguns anos depois no Brasil. Cheguei a ser convidadopara juntar-me à equipe do Bard College, etambém para dirigir um recém-construído teatrode arena, no Kansas, mas eu já me comprometeraa voltar para a companhia do Rideau, emBruxelas, onde os companheiros de trabalho meesperavam. Comprometera-me, também, com oThéâtre National de la Belgique, para o qual viriaa fazer desde então vários trabalhos. Foi, aliás,numa excursão do Théâtre National à Américado Sul que acabei aportando no Brasil, em 1955,país onde acabaria me fixando tempos mais tarde.57


58Depois dos cursos, percorri as costas Leste e Oesteamericanas, de trem, ônibus e avião, observandoricos e pobres, pretos e brancos, o interior e olitoral. Cheguei à Flórida e visitei a Universidadede Miami, entrando depois pelo Texas, ondeconheci a Universidade de Huston, até chegarà Costa Oeste e à Califórnia, onde vi peças emHollywood e soube da contratação de jovenspela Universal. Mas ali só se falava em dinhei ro,e desisti de tentar uma vaga. Afinal, eu queriafazer arte, não negócios. Passei ainda por SanFrancisco, Seatlle, Saint Louis, New Orleans, ondeassisti à comemoração do Mardi Gras, Chica go,Washington, entre muitas outras cidades, antesde voltar a Nova York – onde me encontrei commeu irmão Raymond, então comissário de bordoda Sabena – e tomar o caminho de casa, de volta àBélgica. Fiquei fascinado com aquele grande país,que tivera um papel tão importante na libertaçãoda Europa, e com sua atmosfera de democracia eliberdade. Desaprovei, porém, a segregação racialtão evidente na época e a devastação da naturezaem muitas regiões pelas quais passei. Gostei, claro,especialmente de Nova York, onde vi mais de cemespetáculos na Broadway e off-Broadway, economizandodinheiro para poder comprar ingressospara as matinês e as récitas noturnas. A Broadwaytinha na época 25 salas com cerca de dois millugares cada uma. As peças podiam ficar dois ou


três anos em cartaz. Tudo isso era uma grandenovidade para mim. A grande atração já eram ascomédias musicais, espetáculos já então luxuosos,interpretados por cantores que dominavam aomesmo tempo o can to e a arte de representar,sem, entretanto, repre sentar como cantoresnem cantar como ato res. Dentre os musicais, oque mais apreciei foi Porgy and Bess. Mas entãome aprofundei, sobretudo no conhecimento doteatro de autores americanos como Arthur Millere Tennessee Wil liams, que conheci pessoalmente,conforme relatarei adiante. De Williams, por sinal,eu já havia dirigido A Rosa Tatuada no Rideaude Bruxe las. Na Broadway, vi dele a peça CaminoReal, que introduzia um elemento novo no teatroda América, o surrealismo.59Vi também em outras partes experiências interessantes,como a do Teatro Negro de Karamu,fundado por brancos, com o objetivo de criaruma corrente de simpatia entre as raças naquelaépoca de segregação. E ainda a trupe francesade Madeleine Renaud e Jean-Louis Barrault emexcursão a Nova York, com uma esplêndida interpretaçãode um texto de Marivaux. Encontreiainda por lá amigos belgas do Rideau, comoRaymond Gérôme e Charles Mahieu, fundadorda série Os Espetáculos Clássicos na mesma companhiade Bruxelas.


60Essa temporada nos Estados Unidos, país ao qualeu voltaria muitas vezes, foi uma experiênciaque marcou minha vida de ator e de diretor. Lá,ainda, adquiri alguns hábitos americanos, comoo de vestir calças jeans e camisas xadrezas, alémdo consumo de Coca-cola com Bourbon. Sempreà noite, para relaxar.


Capítulo IIPrimeiro tempo no palcoEm 1948, aos 22 anos, entrei para a companhiado Théâtre du Rideau de Bruxelles, primeirocomo ator na trupe de jovens. Também viria aatuar ali como figurinista, contra-regra, cenógrafo,produtor, figurinista, iluminador e diretor emdezenas de obras, tanto clássicas como do teatromoderno e contemporâneo. Como já mencionei,a primeira peça em que atuei foi Nuits de lacolère (Noites de Cólera), então recém-escritapelo francês Armand Salacrou. Estreou no dia18 de fevereiro de 1948 em Charleroi, interiorda Bélgica. Salacrou exprime em suas peças aangústia do ser humano diante da existência,cujo significado lhe escapa. Em abril do mesmoano, eu já estava no papel de Claude, em LesIncendiaires (Os Incendiários), de Maurice Clavel,também escrita havia pouco. Esta era umapeça que falava da guerra, da resistência, comásperos conflitos de consciência, muito elogiadapelo dramaturgo Jean Anouilh.61O crítico Stéphane Jourat fez elogios à minhaatuação. E assim fui saltando rapidamente depapel em papel, conhecendo inúmeros autores,diferentes gêneros e personagens, que me le-


varam a meditar e muito me ensinaram sobre acondição humana, o espantoso bicho-homem.62Lembro-me que a companhia do Rideau costumavaexcursionar pelas cidades menores antes deestrear as peças na capital. Viajávamos de ônibuse nos divertíamos muito nessas curtas excursões,a Anvers, Brügges, Liège, Louvain, Gand, Spa,Ostende, Charleroi, onde o público universitáriolotava as récitas. Como até hoje faz falta,no Brasil, uma companhia de repertório comoessa, que atue como um verdadeiro laboratórioteatral e também excursione regularmente porregiões e cidades, acolhendo com prioridade osestudantes.Em Bruxelas, o ritmo era extenuante, o trabalhonos absorvia integralmente. Havia um granderodízio de peças, cujas temporadas eram relativamentebreves, mas quase sempre com matinês, às14h30 ou às 15 horas, além das récitas noturnas,que em geral começavam às 20h15. Várias daspeças eram reprisadas em outras temporadas.Ainda na temporada de 1948/49, atuei no papelde o Vagabundo em Le bon vin de Monsieur Nuche(O Bom Vinho do Sr. Nuche), peça de estréiado belga Paul Willems, sob a direção de ClaudeÉtienne, obra de marcante atmosfera de humore sonho, autor de outra obra para a qual eu logodepois faria cenário e figurinos, além de atuar no


papel de Jules, Lamentável Júlia. Ainda participeido elenco de Les Gueux au Paradis (Os Mendigosno Paraíso), de G. M. Martens, de A Dama daMadrugada, de Casona, nesta no papel de Quico,e do espetáculo medieval La Farce du Cuvier(A Farsa do Pote), neste fazendo o personagemJacquot, sob direção de Georges Mony.Paralelamente, eu já vinha atuando como contra-regraem peças como Les amours de DonPerlimplin (O Amor de Perlimplin e Belisa emSeu Jardim), de García Lorca, e Amphitryon 38(Anfitrião 38), de Jean Giraudoux, cujo elencotambém integrei. Logo estreei como cenógrafo,em Mon père avait raison (Meu Pai Tinha Razão),trabalho de que me incumbiria em muitasoutras montagens, tanto na Europa como noBrasil. Fui também figurinista de muitas obrase a primeira de que me lembro foi Voulez-vousjouer avec moá? (Quer Brincar Comigo?), quepouco depois eu viria a dirigir ainda em Bruxelase, bem depois, no Brasil. Fiz por essa épocafigurinos para duas peças de Pierre Marivaux,La double inconstance (A Dupla Inconstância) eLe jeu d’amour et du hasard (O Jogo do Amore do Acaso). E fui cenógrafo e figurinista de LesPlaideurs (Os Litigantes), meu primeiro Racine,de cujo elenco também participei como o personagemPetit Jean. Em 1950, testei as técnicas63


da mímica na montagem de Les chevaliers de latable ronde (Os Cavaleiros da Távola Redonda),na bela adaptação da lenda medieval escrita porJean Cocteau, e ainda participei do elenco deTime of your life, de William Saroyan, peça deestréia do TBC, naquela mesma época.64Quando dei por mim, eu já era um homem doteatro total. Foi em 29 de setembro de 1949que Claude Étienne, o diretor do Rideau, firmoumeu contrato para a temporada profissional de1949/50. Passei a ganhar 5 mil francos belgasmen sais pelos ensaios, apresentações, turnês,etc., com direito a um mês de férias no ano. Emtroca, eu deveria atuar com exclusividade nessacompanhia. Ali aprendi e optei por esse ofício,no qual exerci praticamente todas as funçõesao longo de minha vida, mas principalmentea direção. Apliquei todo esse aprendizado emmeu trabalho de diretor, tanto na Europa comono Brasil. Sempre fui extremamente meticuloso,detalhista e irrequieto, mesmo ansioso: ao dirigiruma peça, eu costumava subir em escadas, cuidarda iluminação, supervisionar cenários e figurinos,verificando com meus próprios olhos cada detalhe.Fui mesmo um diretor pau-pra-toda-obra.Sempre em busca do melhor espetáculo, o maisperfeito possível. Esse cuidado extremo nãodeixa de ter um lado tirânico, reconheço. Num


penetrante artigo sobre meu trabalho e minhapessoa, Bárbara Heliodora assinalou: “Constaque, quando ensaia seus atores, Maurice Vaneaué autoritário, quase ditatorial; porém a verdadeé que seu ritmo exigentíssimo de trabalho só expressaa sua permanente insatisfação, sua incansávelperseguição do melhor possível”. Eu mesmosempre costumava dizer que quem ama o teatrotem de ser ao mesmo tempo sincero e severo. Poramor. Concordo com Oscar Wilde quando disseque o bom diretor muitas vezes tem de ser umdéspota, um pouco ditador. Hélas!Ainda no Rideau, também fiz muitas amizades.Ali conheci um especial amigo, o ator JacquesDanois, que hoje, aposentado, vive em Mônaco.Ele é autor de vários livros. Até recentemente nosencontrávamos, quando eu ia à Europa, e aindahoje nos falamos ao telefone e nos correspondemos.Na juventude, em Bruxelas, saíamos muitocom outros amigos da companhia e lembro que,de meia em meia hora, Jacques ligava para a mãepara avisar que estava tudo bem. Mas ele deixouo teatro ainda jovem, tornando-se um granderepórter de televisão e, depois, funcionário doUnicef. Chegou a viver na Ásia e, já casado comuma atriz que se tornou jornalista, com quemteve um filho, adotou uma garota vietnamitacomo segunda filha. Sempre inconformado com65


as desigualdades, até recentemente Jacques trabalhavanuma ONG, a Amade (Association Mondialedes Amis de l’Enfance). Nossos caminhosprofissionais ainda se cruzaram várias vezes.A primeira peça que dirigi, segundo me recordo,foi L’ombre de la ravine (A Sombra do Desfiladeiro),do irlandês John M. Synge, em 1949, quandoestava com 23 anos, também representando opapel de Chemineau.Peça considerada um poema objetivo e realista,na qual minha direção foi considerada promis-66Com Jacques Danois em Mônaco, 1996


sora pela crítica. Logo depois veio Les beauxgestes (Os Belos Gestos), de Jean Sigrid, da novageração de autores belgas, que foi apresentadaem Bruxelas em abril de 1950. O tema, como eracompreensível no pós-guerra, girava em tornoda revolução e da resistência. Era um texto aomesmo tempo elíptico e violento, que punha emcena um grupo de fanáticos que, em obediênciaàs ordens de um comitê central, preparam umatentado. Punha a nu os covardes, os sádicos docrime, as rivalidades entre chefes, mas tambémas aspirações de um ideal, da liberdade, do amor,com os belos gestos do heroísmo. Eu tambémintegrava o elenco, ao lado de Jacques Danois,Arlette Schreiber, Guy Béguin, Pierre Michael,entre outros. A crítica, inclusive a do Soir, principaljornal belga, aplaudiu esse meu segundotrabalho na direção e avaliou que eu teria um caminhobrilhante pela frente nessa função. Poucodepois, ainda dirigi a primeira versão de Voulezvousjouer avec moá?, de Marcel Achard, para aqual também faria cenário e figurinos, além deatuar no papel de Crockson, e La Marguerite (AMargarida), de Armand Salacrou. Atuei aindano papel de Peterbono, na comédia Le bal desvoleurs (O Baile dos Ladrões), de Jean Anouilh,recebendo críticas muito favoráveis pela mímicade grande classe.67


68Bélgica, 1950


Depois de integrar, em novembro de 1950, oelenco de La comédie du monde (A Comédiado Mundo), de Hugo von Hofmansthal numaadaptação de El gran teatro del mundo, deCalderón de la Barca, no papel do Contraditore sob direção de Claude Étienne, a temporadade 1951/52 foi uma das mais estimulantes doinício de minha vida no palco, apesar daqueletrágico acidente automobilístico em que perdemosa atriz Claude Dauzun, ao qual já me referi.Convém lembrar que apenas nessa temporadao Rideau de Bruxelas, então formado por 40ato res, seis diretores – um dos quais já era eu– cinco cenógrafos, um contra-regra, mais pessoaltécnico e administrativo, montou 31 espetáculosdiferentes, apresentados em 335 récitas. Comomostra o programa de 1951/52, 210 foram emBruxelas, 68 no interior da Bélgica e as demais naAlemanha, na Itália e na África. Participei talvezde mais de um terço dessa produção toda. Oritmo dos ensaios era mais do que intensivo, deacordo com a meta de Claude Étienne e de todaa equipe: apresentar com o máximo de dedicaçãoobras dignas de cada público.69Em 1951 fiz a primeira grande turnê internacionalcom o Rideau, ao antigo Congo Belga, hojeZaire, na África, organizada pelo Centre Belgedes Échanges Culturels Internationaux (Centro


Belga de Intercâmbios Culturais Internacionais).Especialmente para um homem de teatro, viajar,descobrir novas culturas, povos e pessoas, aprendercom eles, é sempre da maior importância. Éindispensável conhecer o planeta no qual atuamos.Integrando uma trupe formada por maisde dez pessoas, entre atores, diretores, cenógrafos,pessoal técnico, embarcamos num DC-6da Sabena para uma temporada de dois mesesnaquela antiga colônia belga na África. Claude70Com Jacques Danois, Congo Belga, 1951


Étienne viajou conosco, assim como meu já grandeamigo Jacques Danois. Ali fizemos 32 récitas,na capital Leopoldville e em localidades comoLuluabourg, Elisabethville, Albertville, Merbeke,Usumbura. Em algumas dessas pequenas cidadessequer havia teatro, e nos apresentávamos emlocais improvisados, até em postos de correio.O público reagia aos espetáculos com grandeinteresse, num silêncio quase religioso. Atueicomo contra-regra em várias das peças, comoAmphytrion 38, de Giraudoux, Histoire de rire(História para Rir), de Salacrou, Britannicus, deRacine, Jean de la Lune (João da Lua), de Marcel71Na turnê do Rideau à África, 1951


Achard. Percorremos de carro, trem e avião todoo interior do país africano. Fiquei impressionadocom a dança tribal dos Watusi, com a florestaequatorial, com as culturas daqueles povos, mastambém com sua miséria.72O ator André Berger e eu tiramos várias fotos,muitas delas coloridas, e em algumas localidadeseu ia explicando a crianças do país como manipularuma câmera. Foi uma viagem inesquecívele, na volta, ainda paramos por uma semana noEgito e quatro dias na Grécia, berço da nossaarte. Lembro-me bem da viagem até o Cairo,num trem egípcio abarrotado de fellahs de todasas idades, animais, alimentos, um calor de lascare uma última garrafa de água mineral criandoo dilema: matar a sede ou refrescar a nuca? Edepois o Vale dos Reis, os colossos de Memon,o choque da civilização antiga! Enfim, eu começavaa descobrir o mundo, e com grande apetitee curiosidade. Eu já cultivava então o sonho deconhecer o mundo todo, o que consegui fazerem boa parte. Felizmente, eu vi muito em minhavida!Na volta, dirigi meu primeiro Molière, Le Médecinmalgré lui (Médico à Força), encenação para aqual também fiz o cenário e interpretei o papelde Thibaut. Depois que me recuperei daqueleacidente automobilístico, fui muito aplaudido


em minha volta, numa saudação do público àminha plena recuperação. Voltei à cena no papelde Skipps em Cette dame n’est pas pour lebûcher (Essa Dama Não é Para a Fogueira), doinglês Cristopher Fry, sob a direção de ClaudeÉtienne. Meus recortes da crítica da época dãoconta de que subi ao palco com ânimo novo eque fiz um papel impagável. O humor e a sátirasempre foram alguns dos meus fortes. O anoainda não tinha terminado e, nos dois últimosmeses, fiz alguns trabalhos: o cenário, bastanteelogiado pela crítica, e o personagem Lucien emFeu la mère de madame (A Finada Senhora SuaMãe), de Georges Feydeau. Nesse papel, fui consideradoo melhor ator-mímico da temporada.Depois integrei o elenco de Intermezzo, de JeanGiraudoux, no papel de um dos carrascos.73Com supervisão de Raymond Gérôme, aindadirigi meu primeiro Tennessee Williams, A RosaTatuada, autor que voltaria a dirigir também noBrasil em outra obra. A peça estreou em dezembrode 1951, quando eu estava com 25 anos. Foia primeira encenação da peça em versão francesa,antes mesmo da montagem apresentada emParis. Naquela época Williams despontava comoum monstro sagrado entre os dramaturgos. Eucheguei a conhecê-lo pessoalmente no Círculode Cinema de Bruxelas quando, logo depois do


74lançamento do filme La menagerie de verre (ÀMargem da Vida) rodado em 1950, fui escaladocom a atriz Simone Barry para interpretar diantedele uma das cenas da peça original, a qual eleafirmou conciliar inteligência e emoção. Quandodirigi no Brasil Gata em Teto de Zinco Quente, noTBC, registrei num pequeno texto, publicado noprograma, as minhas memórias de meus encontroscom Williams: “Conversei mais longamentecom ele durante o inverno de 1952/53, quandoeu era bolsista da Universidade de Yale. Com osoutros estudantes, eu tinha acabado de assistir àsua peça Camino Real. As reações foram extremamenteviolentas. Enquanto uma parte da platéiaelevava o autor aos pináculos, outros atiravama peça no lixo. Mas ele foi a Yale para explicaraquela sua última peça. Apresentou-se um homemgorducho, baixo, com um terno de tweedmal passado, visivelmente intimidado e sem dúvidaaborrecido com essa audiência. Um sorriso aomesmo tempo encabulado e irônico nos lábios,a voz suave, deliciosamente cantada, de sulista.Parecia um gato em teto de zinco quente. Faloumais de uma hora, dizendo poemas, sem responderclaramente. Como a maioria dos autores, nãopodia explicar as suas peças. Muitos estudantesabandonaram a sala, decepcionados. Depoisdisso, reencontrei Tennessee Williams no Texas,onde ele se dividia entre a direção de uma peça


no teatro de arena e as correções de seu CaminoReal. Olhos contemplativos, fumando numalonga piteira, voz dolente, falando muito poucosobre suas peças, nunca explicando-as”.A Rosa Tatuada enfoca os conflitos de imigrantesitalianos com a cultura americana, tão diversa,mesclando humor e alta voltagem emocional.Uma peça ao mesmo tempo lógica e apaixonada,em que, na nossa montagem, a atriz IreneVernal brilhou no difícil papel de Serafina. Essefoi o meu primeiro grande desafio na direção,mas fui estimulado pela crítica: “O trabalho deVaneau comprova que temos um novo diretorde grande classe, sabendo tudo resolver comminúcia”, publicou o Le Phare Dimanche.75O ano de 1952 começou igualmente em ritmomuito intenso e produtivo. Atuei no papel de LaFlêche no Avarento, de Molière, e no de Jeunesse,no Barbeiro de Sevilha, de Beaumarchais, e aseguir dirigi e fiz o cenário para A Quadratura doCírculo, do russo Valentin Kataiev, uma comédiade vaudeville escrita em 1926, como sátira deuma célula do partido, em que se podia exploraro jogo de paradoxos, um filão que sempre meatraiu. Peça que eu voltaria a dirigir em 1963já no Brasil, para o Oficina, sob o título QuatroNum Quarto.


76Compartilhei com Claude Étienne a direção de Airbarbare et tendre (Ar Bárbaro e Terno), de PaulWillems, cujo elenco também integrei. É umaespécie de conto de fadas, quase um poema a serencenado, prazeroso de ser trabalhado. Participeiainda do elenco de A Prova de Fogo, de HermanClosson, no papel de Gervais, de Juliette ou laclé des songes (Julieta ou A Chave dos Sonhos),de Georges Neveux, nesta fazendo paradoxalmente(para a época) o papel do Velho, e fui oMendigo em L’Inconnue d’Arras (A Desconhecidade Arras), de Salacrou, peça que levamos logoa seguir à Itália, com apresentações em Roma,Turim, Milão e Florença. Eu já conhecia a Itália eme encantei ao rever esse belo país; só não pudeapreciar muito o encontro que havia sido marcadopela trupe do Rideau com sua santidade, oPapa Pio XII, cujas omissões na Segunda Guerraface aos crimes nazistas já horrorizavam muitasconsciências! A seguir viajamos com Jean de laLune à Alemanha, texto para o qual eu tinhafeito o cenário.É claro que alguns trabalhos dessas primeirastemporadas deixaram de ser lembrados aqui;mencionei, sobretudo, os mais importantes.Depois da Alemanha, era hora de preparar abagagem e viajar, sozinho, aos Estados Unidos,para aquele estágio de 13 meses, sobre o qual já


contei. Dizem que sempre fui desembaraçado. Ede fato os novos desafios sempre me atraíram eforam estimulantes para mim.Quando voltei à Bélgica, em agosto de 1953, muitacoisa havia mudado em minha família. Meu pai játinha morrido e minha mãe se mudara do campopara Bruxelas, para uma grande casa na AvenueLouise, importante avenida que liga vários bairrosao centro da capital belga. A casa de quatro andares,com escadas forradas de tapetes vermelhos,ficava ao lado de uma pequena praça redondacom um gramado e flores e nas proximidades doBois de la Cambre, grande e belo bosque, comuma densa pequena floresta e um lago com aves,onde gostávamos de passear e respirar ar puro.Minha mãe morava no terceiro piso, alugava osdebaixo, e eu ocupei o quarto andar da casa, cujasparedes pintei ao meu gosto. Bruxelas era umacidade muito organizada e, apesar das guerras edas ocupações, continuava reunindo uma arquiteturaonde se encontram vários séculos e estilos:gótico, flamboyant, neoclássico, art nouveau, artdéco. Minha irmã, Léona, já havia partido paraa África, onde seu marido, David, trabalhou pormuitos anos numa indústria de objetos de cobre.Era o início do êxodo da família em busca do sol,de fuga ao clima chuvoso e frio e ao céu semprecinzento de Bruxelas.77


78A casa da Avenue Louise


Êxodo ao qual eu mesmo viria a aderir quando,anos depois, me encantei com o Brasil e o escolhicomo local para trabalhar e formar uma novafamília.Minha vida de homem de teatro também foimudando: passei a receber outros convites,além das atuações no Rideau de Bruxelas. Antesde chegar ao Brasil, realizei trabalhos para oThéâtre National de Belgique, a Opéra National,o Théâtre Royal du Parc, o Théâtre de la Monnaiee o Cirque Royal. Ainda viria a participar de váriosprogramas de teatro e dança no INR (Institut NationalBelge de Radiodiffusion), em colaboraçãocom George Skibine e Marjorie Tallchief, entreoutros. E dirigi um interessante espetáculo depantomima para o Théâtre Flottant, a bordo deum barco.79Mas, logo depois da temporada nos Estados Unidos,eu estava feliz de voltar para a companhiado Rideau e reencontrar os companheiros depalco, que me acolheram calorosamente. “Desdeo dia seguinte à sua partida, ele fez falta, assimcomo seu humor, seu precioso talento e tambémseu sorriso marcado por uma ternura irônica”,escreveu o pequeno jornal da companhia em setembrode 1953. Foi bom ter sentido que eu tinhafeito alguma falta. Logo fui incumbido de dirigiruma nova montagem de Voulez-vous jouer avec


80moá?, de Marcel Achard, peça que havia tornadoo autor célebre, para a qual também fiz cenário,figurinos e participei do elenco, obra próxima àpantomima e que nos introduz numa época maisdelicada, ainda dotada de um certo pudor desentimentos. Achard, considerado um herdeiroda comédia italiana, soube compreender comopoucos a psicologia do clown, por vezes infinitamentetriste sob a máscara de riso. Nessa obra,tive o prazer inclusive de dirigir meu já velhoamigo Jacques Danois, que por sua vez tinha medirigido antes em Um Pedido de Casamento, deTchecov, na qual interpretei o personagem Spina.A montagem de Voulez-vous, com música deGeorges van Parys, estreou em setembro de 1953,reabrindo a temporada do Rideau. Foi um novosucesso. Pouco depois preparei o cenário paraL’omelette fantastique (A Omelete Fantástica),velho vaudeville de Duvert e Boyer, no qual fiztambém o papel de Durandin, e ainda participeido elenco de duas ou três outras peças.Após cinco anos de intensa vivência nas maisdiversas funções do palco do Rideau, eu me encontravanuma fase de plenitude, a caminho damaturidade, quando fui convidado pelo ThéâtreNational de Belgique (TNB) para dirigir algunsespetáculos. Esse grande e tradicional teatrocom sede em Bruxelas, marcado pelo espírito de


pesquisa, lutava então para superar uma crisedeflagrada nos dois anos anteriores. O diretorgeraldo TNB era Jacques Huisman. Meu primeirotrabalho no National foi L’Amour des quatrecolonels (O Amor dos Quatro Coronéis), do entãojovem autor, ator e diretor inglês de ascendênciarussa Peter Ustinov, chamado na época de o novoOrson Welles, que estreou em outubro de 1953.Essa peça de Ustinov não obteve unanimidade,e a escolha do texto pelo teatro sofreu ressalvas,mas ainda assim, minha direção e a interpretaçãodos atores foram bem acolhidas pela crítica.Desde então, recebi muitos outros convites doTNB para atuar como diretor. Naquele mesmoano, dirigi ali em dezembro Malborough s’enva-t-en guerre (Malborough Vai Para a Guerra),de Marcel Achard, comédia leve, uma paródiaburlesca e antimilitarista em torno desse generale político inglês. Uma outra versão havia sidomontada pouco antes pela companhia parisiensede Madeleine Renaud e Jean-Louis Barrault, masa crítica avaliou que nossa encenação nada ficavaa dever à dos célebres franceses. Daquela vez,o Le Soir extrapolou: “Maurice Vaneau é o primeiroe o grande responsável por esse brilhanteêxito. Ele exigiu dos intérpretes e do cenógrafoum correspondente de suas próprias qualidadesde espírito, gosto, graça, finura e humor. Ele é81


um sucessor de outro grande diretor do ThéâtreNational, Raymond Gérôme.”, escreveu o críticoAndré Paris em dezembro de 1953, mencionandoo nosso companheiro de tantos anos também noRideau. O restante da imprensa tampouco poupouelogios, destacando a “justeza do ritmo, aqualidade do movimento” nas “deslumbrantes”mise-en-scène e interpretação dos atores.82Eu havia sido emprestado ao TNB por ClaudeÉtienne, principal dirigente do Rideau, que logovoltou a me convocar. Já no início de 1954 euestava preparando o cenário e ensaiando paraesta companhia Street Scene (Cena de Rua), doamericano Elmer Rice, peça com mais de 50 personagens,que estreou em fevereiro daqueleano. Fui escolhido para a direção também emdecorrência de minha recente e intensa vivênciado teatro americano. A obra, de forte realismourbano, havia sido originalmente apresentadaem 1929 na Broadway.Foi outro desafio, inclusive o de transcender ocaráter datado do texto, mas graças ao excepcionaltrabalho de equipe, marca registrada doRideau, conseguimos vencê-lo, conforme se vêpelos recortes da crítica da época. Continueifazendo muitos trabalhos para o Rideau – a direçãoe o cenário de Quintette, cinco episódios emum ato retirados de Os 27 Vagões de Algodão,


obra considerada menor de Tennessee Williams;a direção de Reviens, Petite Sheba (no Brasil, ÉPreciso Viver), do americano William Inge; umpapel em Zamore, de Georges Neveux.Naquele ziguezague entre as duas companhias,ainda dirigi no TNB, em colaboração com seudiretor titular Jacques Huisman, Casa de Chá doluar de agosto, a sátira bufa do americano JohnPatrick, que em francês recebeu o título de Lotuset Bulldozer, peça que eu também viria a montarpouco tempo depois no Brasil, para o TBC.No entanto, uma outra obra que dirigi para oThéâtre National representaria um turning pointem minha vida de homem de teatro e, conseqüentemente,também pessoal, um verdadeirosalto de qualidade: Barrabás, do expressionistabelga Michel de Ghelderode, trabalho que acabariame levando pela primeira vez ao Brasil.83A montagem estreou em Bruxelas em março de1954, quando eu já tinha completado 28 anos.Poucas obras dramatúrgicas foram tão impregnadasdas cores essencialmente flamengas, dolirismo plástico dos grandes pintores da região,como Rembrandt, Brueghel, Jeronimus Bosch ouEnsor, quanto as de Ghelderode e, sobretudo,Barrabás, escrita em 1928. Seu tema, como emoutras peças do autor, é a derrota dos puros. Dos


puros do bem ou do mal, do sublime e do grotesco,categorias que se misturam e se confundemem seus dramas. Nessa obra sobre personagensbíblicos em encarnações modernas, os puros,condenados ao desaparecimento nas sociedadescorrompidas, são Jesus e Barrabás. Em Barrabás,todos os personagens são trágicos, encerradosem suas convicções como em bolas de vidro. Seuconfronto apenas pode engendrar a morte. Todaa peça é centrada na passagem de Barrabás, darevolta individual à revolução. A progressãodramática é explosiva.84Em nossa montagem, o cenário, muito aplaudido,de René Moulaert, autor também dos figurinos,reconstituiu um ambiente imaginário, em quebonecos o impregnavam do folclore que estápresente em toda a obra do dramaturgo, emsintonia com a orientação de minha direção, queprocurou ser fiel à estética de Ghelderode. Estefoi um grande sucesso de público e de crítica,tanto para a direção como para a cenografia eo desempenho de atores como Jean Nergal, queatuou como Barrabás, Vanderic (Judas), CharlesMahieu (Herodes), Robert Londe (Cristo), entreoutros.No verão europeu daquele mesmo ano, 1954,essa montagem de Barrabás pelo TNB foi convidadaa participar da Bienal de Veneza, no XIII


Festival Internacional de Teatro, honraria sóconcedida anteriormente às mais renomadascompanhias européias, como a do Old Vic, a deJean-Louis Barrault, a do Théâtre National Populairede Jean Villar ou a Comédie Française.Apresentamos a peça no Teatro della Fenice,o célebre templo veneziano da arte dramáticae do canto lírico, espaço majestoso cujo acessotambém pode ser feito por gôndolas através doscanais. Além de Barrabás, que foi o espetáculode abertura da Bienal, o TNB apresentou suamontagem de As Feiticeiras de Salem, de ArthurMiller, com direção de Jacques Huisman. As duasencenações tiveram grande sucesso de público ede crítica.85Foi um grande estímulo para a companhia e, algunsmeses depois, seguiríamos com Barrabás eoutras peças para a América do Sul, onde eu faria,455 anos depois de Cabral, a minha descobertado Brasil. País pelo qual, segundo contava minhamãe, meu avô paterno sempre teve um grandefascínio. E aqui cheguei como que por acaso:apenas na última hora fui escalado para integraressa turnê oficial do TNB. Era o destino!


Capítulo IIIBrasil, o novo cenárioDesembarcamos no porto do Rio de Janeiro em15 de junho de 1955. Éramos uma equipe de 33profissionais, entre atores, diretores, contra-regra,eletricistas, chefe de costura, sob a administraçãode Roberto Vannueten, que organizavaas turnês do Teatro Nacional da Bélgica, o TNB.Um diretor do Old Vic, Denis Carey, também integravaa trupe, além de Jacques Huisman, LucAndré e de mim, que também atuei como ator.Trazíamos na bagagem algumas toneladas dematerial cênico. Nosso roteiro incluía Rio, SãoPaulo, Montevidéu e Buenos Aires, antes da voltaà Europa.87Tive um amor à primeira vista pelo Brasil. Pelabaía de Guanabara, a alegria e a hospitalidadedo povo, a miscigenação de culturas, a vegetaçãoexuberante, o calor e o brilho do sol, oflorescente interesse pelo teatro, principalmenteentre os jovens. Trazíamos um repertório devárias peças: A Noite dos Reis, de Shakespeare,em adaptação para o francês de Jean Anouilh,Os Lobos, de Romain Rolland, Malatesta, deHenry de Montherlant, A Escola de Maledicência,de Sheridan, Le Jeu des Quatre Fils Aymon,


de Herman Closson. Mas com destaque para AsFeiticeiras de Salem, de Arthur Miller, e Barrabás,de Michel de Ghelderode. Todas apresentadasem francês, inicialmente no Teatro Municipal daentão capital da República.88Era a época de auge do estrelato de CarmenMiranda, o começo da bossa nova e de uma arquiteturaabsolutamente fascinante e inovadora.De grandes poetas, como Drummond, Cecília,Bandeira, Vinícius. Villa-Lobos e Portinari tambémainda estavam vivos. O presidente era CaféFilho. Fiquei surpreso ao saber que o presidentedeste país grande exportador de café tinha essenome, o qual já pelo som me fez lembrar o tãocaracterístico café-filtre belga. O Pão de Açúcartambém me levou a pensar no pain de sucre,uma típica guloseima da Bélgica. E logo viriamJuscelino Kubitschek e a construção de Brasília.Apesar dos fortes contrastes sociais, captava-seum clima de otimismo no ar.Eu sentia estar diante de um país jovem, diferentede tudo o que tinha visto, e que tinha aindatudo por fazer diante de si. Ficamos hospedadosnum hotel que tinha uma grande piscina, achoque era o Copacabana Palace. Depois das récitas,dançávamos samba até tarde no hotel; ali descobrimosum dos melhores coquetéis do mundo, acaipirinha. Mas tínhamos de acordar logo cedo


e correr ao Teatro Municipal para retomar osensaios. E nos desesperávamos com o sumiço demaquinistas e outros funcionários nas horas emque mais precisávamos deles – “Foram tomarcafezinho no bar da esquina”, nos explicavam.“Mas voltam?”, perguntávamos. “Se Deus quiser”,alguém respondia.Nessa turnê, Barrabás teve música de cena deYvan Daylly e cenários e figurinos de Denis Martin,enquanto eu continuava assinando a direçãoe desempenhando um pequeno papel na peça.Os atores que representavam os apóstolos usavammáscaras de Jeronimus Bosch e James Ensor,enquanto Jesus transfigurava-se num espectro,à El Greco.89Os pobres e mendigos movimentavam-se comonuma coreografia. Por seu caráter libertário e inconformista,a peça chocou alguns espectadores,mas colheu também muitos aplausos do público eda crítica. Foi mesmo considerada o maior sucessoda temporada, tanto no Rio como em São Paulo,onde estivemos entre fins de junho e início dejulho – na Paulicéia, tivemos de nos apresentar noantigo Teatro Santana, pois o Municipal estavaem reforma – e nos outros países da América doSul. “O inestimável valor da encenação de MauriceVaneau foi o de ter provado que é possívelencarar uma peça expressionista como um texto


90No Viaduto do Chá, 1955


clássico, que já se inscreveu no tempo e já ganhouo seu lugar na história”, escreveu O Estado deS. Paulo. “A peça de Ghelderode nos faz odiarnão os fora-da-lei, mas, ao contrário, os homensda lei, os chamados homens de bem, Caifás,que trapaceia, Herodes, que não acredita maisem nada, Pilatos, que se abstém. Escolhas dessetipo, somos chamados a fazer constantemente.Embora interpretada por um elenco numeroso,Barrabás é, antes de mais nada, o triunfo de umaencenação lúcida e imaginosa, pronta a participarda ironia selvagem ou do pathos grandiloqüentedo texto.” A revista Anhembi, de Paulo Duarte,em seu número de agosto de 1955, também nãodeixaria por menos: “Barrabás foi a quarta récita.Um grande espetáculo, em todos os sentidos, delonge o melhor da temporada e um dos melhoresa que já temos assistido nesse gênero. Só elejustificaria a vinda dos artistas belgas ao Brasil.Brilhante a direção de Maurice Vaneau. Por todosos títulos: ritmo, composição plástica, jogo deluzes, valorização do texto”.91Entre os espectadores de Barrabás, estava FrancoZampari, o fundador do TBC. Companhia que,como alternativa ao teatro de vedetes, vinhaencenando grandes autores modernos: Cocteau ,Sartre, Tchecov, Wilde, Williams, Pirandello,além de clássicos e de jovens autores brasileiros.


Fui apresentado a Zampari na beira da piscinade uma casa do Jardim América, em São Paulo.Fiquei sabendo que ele tinha fundado anos antesa companhia de cinema Vera Cruz, de onde saiuum filme premiado em Cannes, O Cangaceiro.92Depois ele convidou toda a equipe do teatrobelga para um jantar em sua casa de campo e,ali mesmo, fez o convite para que eu integrassea direção artística do TBC, ao lado de Ziembinskie Gianni Ratto. Fiquei de pensar, embora argumentandoque não sabia uma só palavra de português.“Isso não importa, você pode aprendera língua em dois meses”, Zampari replicou. Mas,afinal, eu seguiria ainda com o TNB ao Uruguaie à Argentina.De todo modo, o Brasil já tinha irresistivelmenteme seduzido. O êxito do TNB e, uma vez mais,de Barrabás em Montevidéu e Buenos Aires nãofoi menor. Público e imprensa aplaudiram asperformances e mises-en-scènes. Apreciamos enos divertimos nas duas cidades às margens doPrata. Descobrimos que o teatro, essa jovem artede 3 mil anos, conhecia um impulso renovadortambém na América do Sul. No Brasil, com oTBC, no Uruguai, com a Comédia Nacional, ondepudemos assistir a uma montagem de nossoCrommelinck, e também na Argentina, ondeautores como Anouilh, Claudel, Miller ou Ben


Jonson faziam sucesso. Até que chegou a hora deembarcarmos de volta à Europa, com uma escalana Alemanha antes do retorno à Bélgica. Aindaem Montevidéu, eu tinha recebido um telegramade Franco Zampari dizendo que as condições quecheguei a esboçar para, eventualmente, assumira direção artística do TBC tinham sido aceitas.“Com a condição de se encontrar o protagonista,seu primeiro trabalho poderá ser Barrabás”, elepropunha. Eu pensei muito com meus botões.E resolvi despedir-me de meus companheiros doTNB em Buenos Aires e tomar um avião rumo aSão Paulo. “Eram 33 na partida, mas 32 desem-93São Paulo, 1956


arcaram de volta à Bélgica”, registraria a revistado TNB em artigo sobre a turnê.Voltei ao Brasil no dia 18 de agosto de 1955.Desembarquei no aeroporto de Congonhas.Encontrei meu irmão Raymond, que viera a SãoPaulo em seu trabalho de comissário de bordoda Sabena. E disse o sim a Franco Zampari. Assimpassei do TNB ao TBC. São Paulo ainda viviaa ressaca do Quarto Centenário. Sentia-se umcheiro de cimento fresco no ar.94A cidade parecia um imenso canteiro de obras.Uma dinâmica fora do comum... Tchac-tchacbum,tchac-tchac-bum... A música de fundo eramas marteladas dos pedreiros e as máquinas dosoperários de construção. Fiquei muito impressionado,encantado mesmo, com todo esse vigor. Ecom a efervescência cultural. São Paulo, cidadeque não pode parar, fundada num 25 de janeiro,o mesmo dia em que nasci! Aonde viriam a nascermeus três filhos! E onde eu acabaria, mais tarde,por me radicar. E onde receberia o título de cidadãopaulistano 37 anos depois, em 1992.Blaise Cendrars dizia que era fácil ser francêsno Brasil, e eu logo vi que era verdade: muitosbrasileiros falavam um francês perfeito naquelaépoca! E fui percebendo que não era fácil apenasser francês no Brasil, mas também belga, alemão,


italiano, árabe, japonês, espanhol, polonês. Tambémnos restaurantes, já era possível encontrarentão comidas do mundo todo.Logo conheci gente de teatro e os críticos Déciode Almeida Prado e Sábato Magaldi. E tambémuma porção de paulistas de 400 anos que, sinceramente,não aparentavam tanta idade. Muitosdeles eram sócios do TBC. Conheci também seupresidente de honra, Ciccilo Matarazzo. Claro,sem esquecer todos os italianos – Adolfo Celi,Aldo Calvo, Luciano Salce, Gianni Ratto, RuggeroJacobi, Flaminio Bollini, afora o polonês Ziembinski– que lutavam por construir aqui um teatronacional, à altura do que se realizava na Europa.Uma alternativa ao teatro de boulevard, no qualse representava num estilo ultrapassado.95O fundador do TBC voltou a sugerir uma novamontagem de Barrabás no Brasil, com atoresbrasileiros. De fato, a encenação belga da obrade Ghelderode abocanhara inúmeras distinções.Apenas o paulistano Ronda de Ouro de 1955conferiu quatro premiações a essa montagemna categoria de temporadas estrangeiras: as demelhor drama, melhor espetáculo, melhor diretorde drama e melhor diretor do ano, além deuma menção especial ao ator Jean Nergal porseu desempenho no papel de Barrabás. E tudoisso num ano em que haviam se apresentado


no Brasil outras companhias estrangeiras, comoa de Renzo Ricci com o teatro italiano. Aindarecentemente encontrei Antônio Abujamra queme disse, entusiasmado: “Maurice, você tem demontar um outro Barrabás!”. Mas nunca maisvoltei a encená-la.96Zampari chegou a encomendar a tradução dapeça de Ghelderode a Mário da Silva e Brutus Pedreira,conhecidos tradutores do teatro na época.Mas tivemos de fato dificuldade em encontrar umator para o papel de Barrabás. Afinal, tratava-sede um personagem arrasador, da envergadurade um Otelo, até mesmo de um Édipo. Depoisde incontáveis testes, cheguei a pensar que Ziembinskise sairia bem como o personagem-título.Surgiram, entretanto, outros problemas técnicos.No TBC do Rio e no TBC de São Paulo, comeceia me acercar dos atores brasileiros. Freqüenteioutros grupos, inclusive de amadores. O teatrobrasileiro então se ressentia de um mal típicode sua juventude: muitas companhias e poucosatores. Eram apenas 22 nos dois TBCs, em suamaioria muito jovens. Vários deles me fascinaramdesde o início. Cacilda Becker, por exemplo, queeu viria a dirigir por várias vezes e de quem metornaria amigo, me agradou de imediato, e admireimuito seu desempenho em Maria Stuart,de Schiller, encenada em 1955. Logo também


conheci Paulo Autran, Leonardo Villar, WalmorChagas, Fernando Torres, Cleyde Yaconis, NathaliaTimberg. Afora Ziembinski, o nosso Zimba – elembrei que zimba quer dizer leão em swahili,uma das línguas da África Equatorial. Na verdade,não faltavam talentos. Faltavam ainda emalguns jovens trabalho árduo, a consciência deque o teatro é um recomeço a cada nova peça,a cada nova récita. De que é preciso aprender arespirar, a falar, a andar, a se movimentar, antesde se considerar um verdadeiro ator. Idéias que,em parte, logo expus numa conferência que fizna sede do TBC, na Major Diogo, na qual abordei,num português já razoavelmente fluente, minhalonga experiência no teatro belga, tendo sidoapresentado ao público por Ziembinski.97Uma das diferenças positivas que logo notei emrelação ao teatro na Bélgica era o ambiente demaior improviso e espontaneidade.Ao contrário dos atores de Bruxelas, que sobum contrato oficial por vezes se acomodavame se comportavam como funcionários públicos,aqui essa quase ausência de planejamento eraum elemento a mais de criatividade. Outra erao interesse enorme da imprensa não apenasquanto às estréias, mas também quanto ao desenvolvimentode cada etapa de uma montagem,desde os ensaios. Quase como numa novela em


98capítulos. O que revelava ainda o suspense quecercava o trabalho teatral no Brasil, mais cheiode riscos, acasos e aventura do que na Europa.Um pouco como acontecia em Nova York, aquicada estréia era uma verdadeira batalha. Quandofazia sucesso, uma peça podia ficar muitotempo em cartaz e viajar em turnê por todo opaís, mas quando fracassava logo saía de cena,antes mesmo da programação inicial. Naquelaépoca, a crítica, aí de maneira parecida com oque acontecia na Bélgica, era extremamenteatuante e integrada por grandes nomes, comoem São Paulo o de Décio de Almeida Prado e,logo depois, Sábato Magaldi.Em dezembro de 1955, eu já havia escolhido aprimeira peça que iria dirigir no Brasil: Casa deChá do luar de agosto, do americano John Patrick,que eu já encenara em Bruxelas, em colaboraçãocom Jacques Huisman, e recém-premiada em NovaYork, inclusive com o Pullitzer. Peça que tambémdesfazia alegremente o mito de eficiência total eabsoluta dos Estados Unidos, o qual tinha começadoa se espalhar pelo mundo no pós-guerra.Uma sátira à ocupação americana de Okinawa,uma fina comédia impregnada de fantasia e,também, um contraponto às obras pouco antesencenadas pelo TBC: Maria Stuart e Volpone, deBen Jonson. Além de ajudar a formar atores, eu


queria contribuir para a formação do público, oque implicava revezar peças clássicas com o teatromoderno, bem como dramas e comédias. Eram facesda mesma missão proposta pelo TBC: a de criarum verdadeiro teatro nacional, com a encenaçãode peças de brasileiros e de estrangeiros.100Começaram os ensaios. Meu português ainda erasofrível, embora eu já estivesse tomando aulase estudando o idioma em livros. Poucos atoresentendiam o francês, outros tantos o italianoou o inglês. E eu ia me expressando nas três línguase me servindo da mímica, que tanto haviaestudado na Bélgica. Mas, quando tentava mearriscar no português ou mesmo em outra língua,por vezes ocorriam cenas mais cômicas do que asda própria comédia que estávamos ensaiando!Certa vez, pedi em italiano e em inglês para umaatriz relaxar o pescoço. Ela não entendeu. Tenteio francês: “Ton cou est trop dur! Il faut relaxer lecou”. Foi uma gargalhada geral. Logo os atoresme ensinaram todos os palavrões da época.Conseguimos formar um bom e grande elencopara Casa de chá, que estreou no dia 20 defevereiro de 1956 no TBC da Rua Major Diogo,315, em São Paulo. Ítalo Rossi no papel de Sakini(perso nagem interpretado por Marlon Brandono cinema), Mauro Mendonça, no do SargentoGregovitch, além de Eugênio Kusnet, Sérgio


Brito , Fregolente, Fábio Sabag, Oscar Felipe, CéliaBiar e da estreante Nathalia Timberg. Eram 32per sonagens em cena, e a grande maioria dosatores estreava no TBC. Os cenários, executadosnas oficinas do TBC, eram de Mauro Francini, osfigurinos de Clara Heteny e a música de EnricoSimonetti.A tradução, também muito elogiada, era assinadapela dupla Mário da Silva e Renato Alvim.Inspirei-me nas estampas japonesas de Utamaro101Elenco de A casa de chá do luar de agosto


para compor a personagem Flor de Lótus, interpretadapor Maria Helena Dias, jovem e promissoraatriz na época.102Aos poucos, fui introduzindo mudanças na rotinados atores: eles começaram a receber aulas deginástica rítmica – e propus a Franco Zamparia criação de uma escola de dança, que temposdepois passaria a funcionar no primeiro andar doprédio do TBC. Incumbi a professora Maria Joséde Carvalho de reforçar as aulas de voz e dicção– o que resultou em progressos logo reconhecidospela crítica: “Pela primeira vez no TBC vemos osatores utilizarem a voz como um instrumento amploe maleável”, escreveu Miroel Silveira depoisde ver a peça. Propus ainda a transformação daantiga cabine de comando de luz, no fundo daplatéia, em sala de controle dos diretores, parasupervisionar o desenvolvimento dos espetáculos,o que foi prontamente atendido. Além disso,eu revia regularmente as récitas para as devidascorreções ou remarcações. De fato, eu exigiaconcentração total dos atores, sob hipótese deretomar os ensaios gerais em plena temporada.Até a cabra requerida pelo texto da Casa de Chá,denominada Lady Astor, para ser aceita tambémpassou por testes, e em recompensa pelo bom desempenhorecebia refeições especiais preparadasno Nick Bar. Depois de 350 horas de trabalho, eu


estava feliz de estrear no Brasil, e com uma peçaalegre, que poderia fazer rir centenas ou milharesde pessoas. Afinal, costumo lembrar, não é o risoo mais régio dos presentes que um ser humanopode oferecer a seus semelhantes?Casa de Chá foi um sucesso estrondoso. De público,uma vez que teve um total de 457 récitasentre São Paulo e o Rio. E de crítica: logo depoisda estréia, registrava O Estado de S. Paulo (26de fevereiro de 1956): “Brilhantíssima a estréiade Maurice Vaneau no TBC. Nos oito anos deexistência do teatro, ainda não tínhamos vistouma platéia tão alvoroçada, tão feliz como a(presente na estréia). E não se trata desta vez dealguma interpretação excepcional, mas isolada.O entusiasmo dirigia-se ao espetáculo comoum todo, visando diretamente ao trabalho doencenador belga que em tão boa hora FrancoZampari trouxe para São Paulo. A ele, sentiu-o opúblico, deve-se tudo o que vimos de excelenteno palco e, em primeiro lugar, essa leveza, essagraciosidade aparentemente fácil, esse ar contagiantede despreocupação e bom humor queé a nota característica da peça de John Patrick”.Minha peça de estréia também bateu o recordede bilheteria do TBC, com cerca de 350.000 cruzeirospor semana, o que não era pouco paraum teatro de 365 lugares. Eu ganharia também103


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107A casa de chá...o prêmio da APCT como melhor diretor de 1956,e a peça seria considerada o melhor espetáculodo ano. Enfim, eu tinha acabado de completar30 anos de idade – comemorados numa animadafestinha na sala de ensaios do TBC, com muitosatores – e me sentia um homem de teatro quaserealizado! Iniciei então a pesquisa de autoresbrasileiros. Meu português tinha evoluído o suficientepara permitir isso. A idéia era encenarquanto antes um texto escrito aqui.


108Mas a segunda peça que dirigi no TBC foi odrama Gata em Teto de Zinco Quente, de meucaro Tennessee Williams, texto que inspirariaum sucesso de Hollywood. Foi a primeira vezque dirigi Cacilda Becker (no papel de Maggie),que acabava de completar quinze anos de palco,oito dos quais no TBC, além de um bom elencocomposto por Walmor Chagas (Brick), CéliaBiar, Ziembinski, Dina Lisboa, Sadi Cabral, JorgeChaia, Leonardo Villar, com alguns dos quaiseu tinha trabalhado em A casa de chá. A peçaestreou em São Paulo em 1956 e também foiencenada no Rio. Como outros do autor, o textotinha como que o dom poético de varar umaparede para se comunicar com o mais íntimode cada espectador, e chocou parte do públicoprovinciano de então. Williams aludia a temascomo o homossexualismo e a morte por câncer,e o uso de palavrões era farto. Nada além doque fazia, por exemplo, um Nelson Rodrigues.Mas alguém, em protesto, chegou a enviarao TBC um caminhão cheio de rolos de papelhigiênico. As bruxas pareciam mesmo soltas: apeça sofreu uma interrupção devido ao incêndioocorrido no Teatro Ginástico, base das operaçõesdo TBC no Rio. Acabou sendo retomada noMunicipal e depois no Maison de France. Destavez, um crítico, parece que foi Paulo Francis,encontrou em meu trabalho algumas marcas


Cacilda Becker e Walmor Chagas em Gata em Teto deZinco Quente109


110de Elia Kazan, de fato um dos diretores que eumais admirava, ao lado de Peter Brook. Mas eunem sequer vira aquela montagem! Segun doalguns, havia nessa crítica certo nacio nalismo,uma rejeição aos diretores de fora que haviamsido chamados para dar impulso à renovação doteatro brasileiro. Seja como for, o êxito dessaencenação não foi equivalente ao de A casa dechá do luar de agosto.


Eu tinha decidido que a terceira peça sob minhadireção no TBC teria de ser de um autor brasileiro.Fui tomando contato com obras de AbílioPereira de Almeida, Augusto Boal, GianfrancescoGuarnieri, Lourival Gomes Machado, Edgar daRocha Miranda, entre outros. Cheguei a escolhero texto A Casa Assassinada, de Antonio Callado,que me propôs sua encenação, mas surgiramalgumas dificul dades e ele foi apenas objeto de111


112Walmor Chagas e Ziembinski em Gata...


uma leitura dramática no TBC. Curiosamente,demorou para que eu travasse contato com aobra de Nelson Rodrigues. A peça afinal escolhidae encenada foi As Provas de Amor, de JoãoBethencourt, bom comediógrafo, que pertenceraao Teatro do Estudante. Era ao mesmo tempoum texto inédito e de um jovem autor, como eupretendia. Dirigi e fiz os cenários, procurandoevocar o tom ingênuo e a ironia do texto, numaalusão ao processo de um Fernand Léger. Noelenco, Walmor Chagas, Leonardo Villar, Ziembinski,Jorge Chaia, Fredi Kleeman e ElisabethHenreid.Antes que expirasse meu contrato de dois anoscom o TBC, dirigi, ainda, em 1957, A Rainha eos Rebeldes, de Ugo Betti, então consideradoo maior dramaturgo italiano, depois de Pirandello.Conforme registrou no programa RuggeroJacobi, que traduziu o texto, a peça podia serconsiderada um poema da dignidade humana emmeio às trevas, um elogio da revolta. Mais umavez escalei Ziembinski, Walmor Chagas, CleydeYaconis, Eugênio Kusnet e Dina Lisboa, além dedirigir então recém-estreantes como Raul Cortez,enquanto Mauro Francini outra vez assinava oscenários. Depois dessas quatro peças, emboraainda cultivasse um projeto sobre o folclorebrasileiro, tinha chegado a hora de me despedir113


114do TBC e do Brasil, ainda que provisoriamente, ede voltar a trabalhar em Bruxelas e, logo depois,Paris. Na Bélgica, além de minha mãe, que continuavamorando na grande casa da Avenue Louise,e dos amigos, um outro Tennessee Williamsme esperava: Vinte e Sete Vagões de Algodão,que dirigi para o Rideau de Bruxelas, para a qualtambém fiz o cenário. Ainda em 1959, monteipara a mesma companhia a fantasia cômica Picnic,do americano William Inge, numa encenaçãoconsiderada das mais originais do teatro belganos últimos anos e reprisada dois anos depois e,em 1961, Supplement au Voyage de Cook, deJean Giraudoux. No ano seguinte, participei doelenco de La guerre de Troie n’auras pas lieu (AGuerra de Tróia Não Ocorrerá), do mesmo autor,em nova reprise do Rideau.Voltei também a colaborar para o TNB, com oqual eu havia aportado no Brasil, dessa vez coma direção de Jugement provisoire (JulgamentoProvisório), de Joseph van Hoeck, autor da Bélgicaflamenga, considerado então um descendentede William Shakespeare.Com atores que eu bem conhecia, como RenéHainaux, Arlette Schreiber e Robert Lussac, apeça estreou no festival de verão do TNB de1959, realizado no famoso balneário belga deSpa, evocado em obras de artistas e poetas, como


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116Cenas de A Rainha e os Rebeldes, com Walmor Chagas,Eugênio Kusnet, Ziembinski e Cleyde Yaconis


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118A Rainha e os Rebeldes, com Leonardo Villar, Cleyde Yaconis,Eugênio Kusnet, Ziembinski e Walmor ChagasRonsard. A montagem, apresentada no teatro doCassino, versava sobre o caso do espião atômicoKlaus Fuchs e nela utilizei recursos que lembravamos de um thriller cinematográfico.Mas o triênio 1958/1961 passei principalmenteentre Bruxelas e Paris. Na capital francesa, dirigiduas peças para o Théâtre Fontaine, fundado em1951 por André Puglia. Morei na rua Perdonnet,no décimo arrondissement.E me lembro que a proprietária sempre me cumprimentavapor manter o pequeno apartamentoimpecável.


Nesse teatro, fui incumbido de montar Visita aum Pequeno Planeta, então recém-escrita peloamericano Gore Vidal, e a comédia Rididine, deAlexandre Breffort, co-autor do grande sucessoIrma, la Douce. Em Rididine, dirigi Renaud Mary,René Harvard, Hugette Hue e Bernard Musson,entre outros, e Gisèle Tanalias assinava o cenário.Foi nova e importante etapa de minha vida dehomem de teatro.Eu estava em Paris quando soube que a companhiade Maria Della Costa e Sandro Pollonitinha chegado para apresentar Gimba, de GianfrancescoGuarnieri, no Teatro Sarah Bernardt,durante o Festival das Nações. Logo me encontreicom eles, e acabei ajudando na montagem e na119


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comunicação com os técnicos na língua local.Maria e Sandro acabaram me convidando paradirigir uma peça no Brasil. Foi assim que voltei aSão Paulo, no final de 1961, para montar O MaridoVai à Caça, de Georges Feydeau, no TeatroMaria Della Costa.Desta vez, eu não cheguei sozinho. Tinha deixadode ser um celibatário convicto, e estava acompanhadode Marie Claire van Vuchelen, que eu tinhaconhecido no Teatro Nacional da Bélgica, emBruxelas, onde ela trabalhava no departamentode publicidade. Marie Claire tinha interesse peloteatro e, ao mesmo tempo, reunia muitas habilidadescomo figurinista. Afinal, também havia seformado na Academia de Belas Artes de Bruxelase depois realizou estágios em cerâmica, cestaria,pintura e alta costura.121Em Paris, chegou a desenhar cenários para aremontagem de uma peça de Françoise Sagan,Chateau en Suède (Castelo na Suécia), e, na Bélgica,ajudou a criar alguns figurinos de Le voyageau supplement de cook e Jugement provisoire,sob minha direção. Resultado: ela acabou setornando uma colaboradora em várias peçasque dirigi, e a primeira no Brasil foi O MaridoVai à Caça, para a qual criou os figurinos, elamesma confeccionando os do elenco feminino.Depois, tornou-se também cenógrafa, realizando


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124Com Marie Claire e Peri, 1963trabalhos inclusive para o grupo franco-brasileiroStrapontin, que atuou no teatro da AliançaFrancesa de São Paulo na década de 60.Marie Claire é a mãe de meu primeiro filho, opaulistano Peri – o nome já era um sinal dasminhas descobertas das melhores coisas doBrasil. Ele nasceu em 11 de abril de 1963 na MaternidadeSão Paulo. Peri também viria a cursarartes plásticas, na Universidade de Liège, e hojetem uma empresa de computação gráfica nessa


cidade belga, onde realiza trabalhos inclusivepara a área artística, como programas de óperas.Na verdade, Peri estreou aos quatro meses,quando participou de uma das últimas récitasnum trecho da peça Os Ossos do Barão, antesdesempenhado por um boneco.Marie Claire é também irmã de outra figurinista,Ninette van Vuchelen, cujo trabalho, semprecaracterizado por grande requinte, também125Zeloni, Cleyde Yaconis e Peri, em sua estréia


se tornaria conhecido e admirado no teatro doBrasil, para peças como Hedda Gabler, de Ibsen.Ninette casou com o cenógrafo e pintor TúlioCosta, que também foi meu amigo e faleceuna década de 90. Trabalhamos juntos e Túlioseria contemplado com o primeiro prêmio daBienal de Teatro da V Bienal de São Paulo. Hoje,as duas irmãs van Vuchelen também vivem naEuropa.126A escolha da peça de Feydeau para a montagemno Teatro Maria Della Costa se deveu à visãoque tínhamos da obra do autor, diversa dos quea consideravam simplesmente como vaudeville.Mais do que um amuseur, eu o considerava umautor extraordinário, de personalidade, humorsagaz e invenção delirante. O texto tambémtinha um papel excelente para Maria, que anteso tinha interpretado com um diretor italiano,enfocando o adultério e um triângulo amorosoque, além da atriz, incluía Sebastião Campos eFernando Balleroni. A produção era de SandroPolloni e os ensaios, contando as interrupções,duraram seis meses. Eu ia recorrendo ao meumétodo, que em primeiro lugar procurava ser omais fiel possível ao autor e ao texto. Mas nãoera e nunca foi um método com maiúscula, oque nos permitiu trabalhar em clima de diálogoe compreensão.


Cena de O Marido Vai à Caça, com Maria Della Costa127


Cenário para O Marido Vai à Caça128 A estréia ocorreu em 22 de agosto de 1962 noteatro da Rua Paim. Eu fiz também os cenáriose Marie Claire, minha mulher na época, os figurinos.A tradução era de Mário da Silva. Maria,no papel de Leontina, foi muito aplaudida porpúblico e crítica, assim como a minha direção, ea montagem ficou em cartaz por alguns meses,obtendo um grande sucesso comercial. Enquantoeu examinava uma proposta para dirigir Casa deChá em Portugal, o que acabou não ocorrendo,fui então procurado por José Celso Martinez Corrêapara dirigir uma peça leve, numa transição dogrupo Oficina para um novo projeto cultural. Otexto escolhido foi Quatro Num Quarto, do autorsoviético Valentin Kataiev, que eu tinha dirigido


na Bélgica sob o título La Quadrature du Cercle,e que se ajustava bem ao jovem e bom elenco doOficina: Célia Helena, Rosa Maria Murtinho, RenatoBorghi, Ronaldo Daniel. Depois Célia Helenaseria substituída por Miriam Mehler. A traduçãoera de Eugênio Kusnet, os figurinos de Marie Clairee eu também assinava os cenários. Tratava-sede uma comédia escrita uma década depois darevolução, de uma sátira política ao puritanismorevolucionário e aos problemas da transição dasociedade russa para o regime socialista, e que vinhafazendo sucesso em várias partes do mundo,como Paris e Nova York, além de Moscou, ondese passa a ação. Foi mais um sucesso, também debilheteria, desde a estréia, em dezembro de 1962,no teatro da Rua Jaceguai. A peça ficou meses emcartaz e foi considerada o maior êxito do Oficinaaté então. Um dos pontos altos foi consideradoa coreografia das danças típicas russas, interpretadaspelos próprios atores.129Para isso, chamei o coreógrafo Paulo Zemeroff.Desde o início de minha vida no teatro, sempreconsiderei a dança e o movimento corporal aspectosda maior importância nas artes cênicas e,dessa vez, tínhamos a oportunidade de incluí-lasem rodeios.Na verdade, ainda em São Paulo eu acompanheiessa montagem na condição de diretor geral do


TBC, para o qual tinha sido novamente chamado,dessa vez para tentar superar uma crise, a maisgrave desde a sua fundação, quinze anos antes.Muitas companhias tinham surgido no país, comoas de Cacilda Becker, Sandro e Maria Della Costa,Nydia Licia, a do Arena, de Augusto Boal, a dopróprio Oficina, apenas em São Paulo. E cadauma com sua própria casa. Muitos dos melhoresatores do TBC tinham migrado para as novascompanhias.130Mas assistia-se a progressos na organização eno acabamento dos espetáculos, bem como noprofissionalismo dos jovens diretores. Ia se consolidandotambém nova dramaturgia de qualidade,com autores como Dias Gomes, Jorge Andrade,que me fazia lembrar Tchecov, GianfrancescoGuarnieri, Ariano Suassuna, que empregava ofolclore do Nordeste de maneira similar à dos dramaturgosbelgas em relação ao folclore flamengo,afora, claro, Nelson Rodrigues. Mas o TBC,ameaçado de fechar as portas, buscava entãonovo eixo, enquanto aguardava uma subvençãodo governo para equilibrar o caixa.Permaneci por dezenove meses na função dediretor geral do TBC, entre janeiro de 1963 ejulho de 1964, e voltei com a decisão de encenaroutra vez um texto de um autor brasileiro. SeriaOs Ossos do Barão, fina comédia do paulista


Jorge Andrade, que dera ao TBC sucessos comoA Escada, então um expoente da nova dramaturgiado país. A nova peça enfocava São Paulo,a imigração e a riqueza do café, a ascensão equeda de duas diferentes classes sociais, páginaque ainda estava sendo escrita naquele exatomomento da história do Brasil. Estreou em marçode 1963, e com grande elenco: Cleyde Yaconis,Lélia Abramo, Rubens de Falco, Dina Lisboa, SílvioZilber, Aracy Balabanian – que acabava de sair daEscola de Arte Dramática, a EAD – e Otelo Zelloni.Dessa vez, Marie Claire, que acabara de recebero prêmio da APCT como revelação de figurinista,assinava também o cenário, com preciosos móveisde época, além dos figurinos.131Para a ambientação, na companhia de FernandoMilan nós dois tínhamos visitado vários casarõesdos Campos Elíseos, procurando captar aatmosfera das mansões das famílias tradicionaispaulistas. Foi outro grande sucesso, na verdadeo maior da história do TBC – e ficaria feliz emsaber que eu tinha sido o diretor dos dois maioresêxitos dessa companhia: A Casa de Chá e Os Ossosdo Barão. Esta última, em vários dias da semanacom duas récitas, entrou pelo ano de 1964, ficoumais de quinze meses em cartaz e chegou a servista por mais de 120.000 espectadores! Paraa sua divulgação, desenhei de próprio punho


inúmeras filipetas, muitas delas publicadas naimprensa, trabalho que voltaria a fazer paraoutras encenações. E recebi o troco pelo humorde meus desenhos para Ossos: um jornalista sugeriuque eu mudasse meu nome para MaurícioVanossos.Outra peça que dirigi por essa época foi a comédiaamericana Qualquer Quarta-feira, de MurielResnik, um vaudeville climatizado que entãofazia sucesso nos Estados Unidos, e que eu tinhavisto na Broadway.132


Ela estreou no Rio, no Teatro Copacabana, comum renomado elenco: Tonia Carrero, que foiquem escolheu o texto, Jardel Filho, MargaridaRey e Sérgio Viotti. Pude aceitar o convite nointervalo em que Antunes Filho dirigia Veredada Salvação no TBC. Jardel achava que essapeça tinha a graça e o encanto do filme Se MeuApartamento Falasse, de Billy Wilder. A produçãofoi de Oscar Ornstein, o cenário de Marie Clairee a tradução de Tati de Moraes, ex-mulher deVinícius. Era a primeira vez que eu dirigia umapeça para estrear primeiro no Rio, antes de SãoPaulo ou da Europa.Críticos como Van Jafa e Yan Michalski consideraramQualquer Quarta-feira, portanto, a minhaprimeira direção carioca. Além do registro dacompetência artesanal da direção, houve muitoselogios aos atores, principalmente a Jardel eTônia – atriz que eu voltaria a dirigir em 1967 noRio, ao lado de Othon Bastos e Raul Cortez, emOs Corruptos, da americana Lilian Hellman.133Em 1965, uma remontagem de Ossos do Barãopercorreu em turnê várias cidades do país, começandopelo Teatro Ginástico, no Rio. Esse trabalhofoi também um de meus mais plenos sucessos decrítica, estendido a vários atores, como Otelo Zeloni,Cleyde Yaconis, Lélia Abramo, entre outros ,além de cenário, figurinos, sem deixar, claro, de


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mencionar a excelência do texto. Até AlbertoSordi, então um dos maiores atores do cinemaitaliano, foi ver a peça no TBC quando veio filmarno Brasil, e elogiou muito o trabalho. Umafesta com esticada na Baiúca marcou todo esseêxito inédito, com uma canja de Zeloni, no canto,Dina Lisboa dançando can-can e eu mostrandomeus dotes na mímica. Afinal, tínhamos o quecomemorar: podia-se dizer adeus àquela primeiragrande crise do TBC! Durante a encenação deOssos do Barão, o TBC comemorou quinze anosde fundação, com uma grande festa em torno dosaudoso Franco Zampari, então home nageadopor uma fala do poeta Guilherme de Almeida,que então presidia o teatro. Nesse período eu me135Tônia CarreroJardel Filho


136tornei pai pela primeira vez e o Brasil assistiu aogolpe militar que introduziu a ditadura. Apesarde tudo, sobretudo a ditadura, que para alguémque tinha vivido o totalitarismo sangrento daúltima guerra era algo particularmente terrível,foi uma boa época. Havia muito trabalho no TBCe também iam se sucedendo convites para queeu dirigisse peças para outras companhias.Com a família instalada em São Paulo, foi a primeiravez que pensei em permanecer definitivamente


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no Brasil. De fato, em 1965 obtive o título decidadão naturalizado brasileiro. Vivia-se umperíodo de florescente nacionalismo e por vezesme incomodava quando se referiam a mim como“o belga Vaneau”. Nesse mesmo ano, abri umafirma de produtor, a Maurice Vaneau ProduçõesArtísticas (MVPA), cuja meta era apresentar textose montagens de altíssimo nível em São Paulo, Rioe outras cidades do país. Eu me sentia bem aqui,tanto do ponto de vista profissional e cultural,como ser humano. O sol, o povo acolhedor, anatureza, que, entretanto, já ia sendo devastadaa olhos nus.138E lembro que tive um grande ímpeto de revoltaao ver, numa viagem, os madeireiros derrubandoárvores da floresta amazônica, num prenúnciodo que assistiríamos depois em escala muitomaior! Aliás, como em toda parte. Na Europa,nos Estados Unidos, na Ásia, sempre a ação predadorado bicho homem! Com freqüência eu mepergunto: o que será de nosso planeta?? Comoele sobreviverá a tantos ataques predatórios??Mas, apesar disso e do subdesenvolvimento, doscontrastes sociais tão fortes, mesmo chocantes, eda ditadura, eu tinha, como disse, me afeiçoadoao Brasil.Também apresentada originalmente no Rio foiO Preço de um Homem, de Steve Passeur, monta-


da por encomenda da companhia de CacildaBecker. A peça, como eu disse meio brincandoaos atores, era um meio termo entre a tragédiagrega e a telenovela, e pouco antes tivera ótimarepercussão em Paris, na direção do dramaturgoJean Anouilh. Com Cacilda Becker, em maisuma esplêndida atuação, Fregolente, RofranFernandes, Kleber Macedo, Adriano Reis, numgrande desempenho, além de Jorge Chaia e aindaa encantadora estreante Leila Diniz, a peçaestreou em outubro de 1964 no Teatro Mesblae ficou em cartaz por vários meses. Os cenárioseram de Júlio Senna; os figurinos, de Marie Claire;e a tradução, muito boa, de Nelson Seabra,que também produziu a montagem. Antes devoltar a dirigir Cacilda, atuei como cenógrafona montagem que ela fez em seu teatro, emSão Paulo, da comédia O reco-reco, de CharlesDyer, dessa vez sob direção de Walmor Chagase com Cleyde Yaconis, Francisco Cuoco e SebastiãoCampos.139Em fins de 1963, acompanhado de Marie-Clairee meu filho Peri, que seria apresentado à famíliaem Bruxelas, voltei à Europa – Itália, França, Bélgica,Inglaterra – e passei por Nova York, ondetambém me atualizei com o repertório teatral daépoca. O que mais admirei então foi a montagemde Galileu, Galilei, de Brecht, dirigida por Giorgio


Strehler para o Pequeno Teatro de Milão, textoque o Oficina encenaria pouco depois em memorávelmontagem. Vi ainda Hamlet, sob a direçãode Zefirelli, em Roma, o Workshop Theatre, deJoan Littlewood, que apresentava Oh, Que Delíciade Guerra em Londres e, em Bruxelas, a opereta AViúva Alegre, numa polêmica montagem. E volteirenovado para o meu posto no Brasil.140Os Ossos do Barão ainda estava em turnê quandoiniciei os preparativos para encenar uma das maisdensas e apaixonantes peças que dirigi: o dramaQuem Tem Medo de Virginia Woolf?, do dramaturgoEdward Albee, grande revelação do teatroamericano na época, autor de vanguarda que,ao mesmo tempo, arrastava multidões às salasde espetáculo. Logo eu comprei os direitos paraa montagem do texto no Brasil, então encenadosimultaneamente em mais de vinte capitais domundo – de Nova York a Tóquio, de Londres ePraga a Paris.Essa foi a primeira obra produzida pela minharecém-criada empresa, a MVPA. Afinal, coma peça eu estaria também comemorando dezanos de atividades no Brasil, e queria que fossecom um grande texto e nova direção de CacildaBecker e Walmor Chagas, então meus amigos.A princípio, tinha pensado na encenação deuma peça nacional: Bonitinha, Mas Ordinária, de


Nelson Rodrigues, foi a primeira idéia. Mas elahavia sido montada no Rio onde, além do mais,Ziembinski estava encenando naquele momentoToda Nudez Será Castigada. Também pensei emSenhora na Boca do Lixo, de Jorge Andrade, maso prazo de opção concedido pelo autor era excessivamentecurto. Acabei optando pelo dramade Albee, autor de obras da maior importânciapara a literatura dramática moderna, como TheZoo Story e, sobretudo, Virginia Woolf.Demorou um pouco até que eu encontrasse osoutros dois atores para formar o quarteto deAlbee, enfim composto com Lilian Lemmertz e141


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Fulvio Stefanini. O texto exigia atores à altura deum dramaturgo disposto a explorar as emoções“até as raias do intolerável”, num verdadeirostrip-tease psicológico executado pelos dois casaisde personagens numa noite de bebedeira, o qualpunha a nu a solidão implacável do ser humano,o seu desespero cósmico, a sua impossibilidadede comunicar-se.144Os ensaios, em ritmo acelerado, começaram emabril de 1965. Fiz um longo trabalho de texto comos atores e procurei tornar a direção praticamenteinvisível, quase que apagando o meu papelde intermediário entre o autor e os intérpretes.Estudei a peça no sentido de lhe emprestar omaior realismo possível. O problema se resumiaem tornar a obra o mais direta e simples. Nemfoi preciso discutir com os atores que tudo estavaali, no texto. Buscávamos conjuntamente umdesempenho despojado. Sempre fui tambémmaníaco pela exatidão, pelo detalhe.Mas alguns problemas colocados na peça eu preferideixar no ar, numa dúvida pirandelliana, queafinal o próprio Albee emprega. Um exemplo,passos na escada, em lugar de uma escada.Criaram-se um grande suspense e uma enormeexpectativa – a imprensa ia soltando regularmentenotas ou matérias sobre o andamento


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146Recebendo Cacilda Becker e Walmor Chagas no aeroporto,para o início dos ensaios


Foto com Cacilda Becker, Walmor Chagas e Marie Claire147


148Vanda Lacerda substitui Cacilda


da montagem. Duas semanas antes da estréia,o professor Anatol Ronsefeld e o crítico SábatoMagaldi fizeram um debate, no próprio teatroCacilda Becker, sobre Albee e o texto que estávamosensaiando. Às vésperas da estréia, Cacildaficou totalmente afônica, também devido àdolorosa e desgastante intensidade do texto e àextensão da fala de sua tão absorvente personagem(Martha), o que nos obrigou a adiá-la poruma semana. Tudo contribuía para que a peçade Albee se tornasse a mais esperada daquelatemporada que, entretanto, incluía Sófocles eMax Frisch em outros teatros paulistanos, aforaos espetáculos Opinião e Zumbi. Só que dessavez tínhamos, infelizmente, um elemento novoem cena: a truculência da censura.149Que, daquela vez, depois de ter visto quatroensaios, até que foi relativamente civilizada,restringindo-se a poucos cortes, sobretudo dealguns dos generosos palavrões do texto.Dois meses depois de iniciados os ensaios, estreamosno Teatro Cacilda Becker. Na montagem, atradução, ótima, era de Nice Rissone, ex-repórterda Tribuna da <strong>Imprensa</strong>; os cenários e figurinosficaram a cargo de Marie Claire, num trabalhotambém muito bem recebido. A quantidade derecortes de matérias, notas e críticas que a encenaçãomereceu da imprensa expressa, em parte,


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o sucesso de público e de crítica que nossa montagemde Quem Tem Medo de Virginia Woolf?obteve. Na verdade ela foi considerada o maiorêxito do ano de 1965 no teatro paulista. O críticoSábato Magaldi, por exemplo, assinalou que setratava talvez da “mais perfeita montagem doteatro brasileiro” até então. Atores, diretores ecríticos do Rio e de outras cidades se deslocavampara São Paulo para assistir à peça, entre os quaisZiembinski, Tônia Carrero, Jardel Filho, BárbaraHeliodora, então diretora do Serviço Nacionalde Teatro, Van Jafa, do Correio da Manhã. Bárbaraescreveria: “Quem viu Virginia Woolf, comCacilda Becker e Walmor Chagas, não poderájamais esquecer a segurança com que ia sendoexacerbado o conflito, com que controle exatoa direção dominava o espetáculo e, ao mesmotempo, tirava o maior rendimento dos atores”.Por sua vez, Yan Michalski, o respeitado críticodo Jornal do Brasil, escreveu que o espetáculoinaugural de minha companhia produtorahonrava a “inteligência do teatro brasileiro” epercebia a minha direção como sóbria e “extremamentetrabalhada nos menores detalhes e nasmenores intenções do texto, com um senso demedida, um equilíbrio, um acerto na valorizaçãode cada efeito”.151


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Foram também inexcedíveis os comentários favoráveisà atuação dos quatro atores, sobretudode Cacilda e Walmor, nos quais a crítica viu asmelhores atuações de suas carreiras até então, etambém de Lilian Lemmertz, então vivendo seuprimeiro grande desafio no palco. Minha queridaamiga Cacilda, lamentavelmente desaparecidatão cedo, disse à imprensa que trabalhar nessepapel sob minha direção foi uma das melhores emais proveitosas experiências de sua vida teatral.Meu velho amigo Raymond Gérôme, do qualeu havia sido diretor assistente por dois anosem Bruxelas, e que representou o personagemGeorge na encenação da peça em Paris sob adireção de Franco Zefirelli, também foi ver nossamontagem no Teatro Cacilda Becker, quandoem turnê pelo Brasil, aplaudindo em particularo desempenho de Walmor Chagas no mesmo papel,e comparou: “Enquanto Zefirelli acrescentamilhões de marcações, gestos e lazzis, a versãobrasileira é completamente despojada e, ao mesmotempo, mais fiel ao texto. O diretor italianotratou a obra como um drama barroco, enquantoVaneau projetou a peça de Albee como umatragédia clássica”. Em julho de 1965, o SuplementoLiterário de O Estado de S. Paulo, entãoeditado por Décio de Almeida Prado, publicava,uma entrevista-debate de página inteira sobreAlbee e Virginia Woolf, com Gérôme, Walmor,153


154os críticos Sábato Magaldi e Delmiro Gonçalves,além de mim. Tanto Gérôme, na França, quantoWalmor, no Brasil, receberam vários prêmiospela atuação no papel de George. Cacilda, FúlvioStefanini e Lilian Lemmertz, a tradutora e o espetáculocomo um todo também foram premiadospela APCT. A montagem ainda ganhou cincoSacis, nas categorias melhor espetáculo, diretor,atriz, ator e melhor coadjuvante feminina – e ojúri era formado pelos maiores nomes da crítica:Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi e DelmiroGonçalves – e três Molière, que foram paraCacilda e Walmor na primeira edição do prêmioem São Paulo, além de outro para mim próprio,o meu pela encenação carioca no ano seguinte.Os dois ainda receberam o prêmio Governadordo Estado por essa atuação.Quem Tem Medo de Virginia Woolf? ficou emcartaz por mais de cinco meses em São Paulo,quase sempre com casa cheia, inclusive nas récitasduplas diárias programadas para os fins desemana, e depois seguiu para o Rio, onde estreouem janeiro de 1966 no teatro Maison de France.Foi nessa época que me aproximei, acho quepor via da tradutora Nice Rissone, da fotógrafaMaureen Bisiliatt, que realizou um belo ensaiofotográfico sobre nossa montagem de Albee, ede seu marido, Jacques Bisiliatt, que se tornaria


155Cacilda Becker e Walmor Chagas em Virginia Woolfum de meus mais próximos amigos no Brasil,infelizmente já falecido.Virginia Woolf ainda estava em cartaz em SãoPaulo quando fui convidado pelo grupo Le Strapontinpara dirigir e ao mesmo tempo atuarcomo ator, produtor, cenógrafo e figurinistanuma peça que lembrava os meus primeirostempos no palco, ainda na Bélgica: Voulez-vous


156Cenário para Voulez-vous jouer avec moá?jouer avec moá? (Quer Brincar Comigo?), a farsacircense próxima da pantomima escrita pelofrancês Marcel Achard. Apresentado em línguafrancesa, o espetáculo seria levado na AliançaFrancesa de São Paulo e também no Rio, Manaus,Belém, Recife e Salvador. Texto que, em traduçãopara o português, tinha sido apresentadoalguns anos antes no Teatro de Arena com EvaWilma, John Herbert e José Renato. Como recusar?Seria, também, a terceira vez que eu pisariao palco brasileiro como ator, desde Barrabás.Na segunda, com o mesmo grupo Le Strapontin,interpretei o papel de Jean em La Grammaire


(A Gramática), de Eugène Labiche e o de L’Huissierem L’Apollon (O Apolo), de Jean Giraudoux. Dessavez, as músicas originais – na primeira versãode autoria do poeta Max Jacob e na segunda deGeorges van Parys – seriam interpretadas pelopianista Paulo Herculano, incluindo no elencoo brasileiro Carlos Murtinho, o francês BernardDiez e a suíça Maulde Coutau. Assim, viajeinova mente ao Nordeste, para onde em 1962 eutinha feito uma longa excursão a bordo de umjipe, e cheguei à Amazônia. E fiquei ainda maisfascinado pelo Brasil! Apesar da devastação dosrios e da floresta, o que me deixava, e até hojeme deixa, veementemente indignado.Depois disso, examinei vários textos e propostas,como Chat en poche (Saco de gatos), de Feydeau,e mesmo O Rei da Vela, de Oswald de Andrade,convidado por Zé Celso. E a qual ele mesmoacabaria por dirigir num dos grandes saltos doOficina, não é? Enquanto se resolvia o impasse,o qual afinal não se resolveu do meu lado, volteia preparar a transferência de Virginia Woolfpara a encenação no Rio. A estréia carioca foiem 6 de janeiro de 1966 e a crítica, como em SãoPaulo, reagiu com extraordinária receptividadeà encenação. O poeta Carlos Drummond de Andradededicou-lhe toda uma crônica no Correioda Manhã, assinada com suas célebres iniciais,157


158C.D.A., logo depois da estréia: “É um espetáculofascinante. Cacilda e Walmor travam essa lutasem quartel, com a ferocidade de lobos que sedivertem em ser ferozes, utilizando o refinamentoque a civilização deu à mente humana para oexercício da crueldade e também da autopunição.Vaneau armou sabiamente o jogo de luz esombra. (...) Saí do espetáculo esmagado e feliz,com a minha visão do ser humano aprofundada”.Até mesmo o crítico Fausto Wolff, que até entãosempre implicava com minhas montagens no Rio,daquela vez aplaudiu meu trabalho. E um júri decríticos cariocas, integrado por Wolff, concedeuo maior número de pontos ao espetáculo numaampla listagem. Fico feliz em saber que até hojea montagem de Virginia Woolf é consideradaum dos maiores momentos da história teatralbrasileira. E que estudiosos do porte de JacóGuinsburg e Maria Thereza Vargas dedicaram umimportante trabalho à interpretação de Cacildae Walmor nessa peça.Mas, dois meses e pouco depois da estréia no Rio,Cacilda Becker adoeceu gravemente e, após umabreve substituição com a atriz Vanda Lacerda,que realizou uma histórica proeza ao assumir opapel em poucos dias, os demais atores preferiramsair quando venceu seu contrato, no iníciode maio. Criou-se uma situação dificílima, pois


minha produtora, a MVPA, se comprometera como arrendamento do teatro da Maison de Franceaté o final do ano. Acabei fechando contratocom Sérgio Viotti para a produção nesse espaçoda montagem de Um Pouco de Loucura Não FazMal a Ninguém, de Michel André, brilhante erapidamente adaptada e dirigida pelo próprioViotti, que ainda integrou o elenco.A estréia aconteceu nessa sala em 1º de junho de1966. De fato, o ano de 1966, embora extremamenteprodutivo, não seria dos mais fáceis paramim. Claro, a solução da repentina substituiçãode Virginia Woolf com Viotti e Vanda naquelaadaptação na Maison de France foi a melhorpossível e durou vários meses. E, pouco tempodepois, consegui remontar a peça de Albee, quereestreou em fim de setembro no Teatro doRio, no Catete, com novo elenco: Paulo Padilha,Souza Lima, Claudia Martins, além da própriaVanda Lacerda no difícil papel de Martha. Mas,depois de uma estimulante vinda ao Brasil deminha mãe, Jeanne Marie Geniets van den Bossche,que me acompanhou na mudança para oapartamento da Rua Sergipe em que moro atéhoje, no bairro de Higienópolis em São Paulo, oestado de saúde de meu irmão Robert se agravoue logo ele acabaria morrendo. Minha mãechegou a seguir do Brasil para o Zaire ainda para159


vê-lo. Além disso, Marie Claire van Vuchelen e eunos separamos definitivamente, depois de umasérie de crises, em parte causadas por meu difíciltemperamento.160Lembrei das palavras de Schopenhauer quehaviam servido de epígrafe ao programa deQuem Tem Medo de Virginia Woolf?: “Duranteum áspero dia de inverno, apertam-se osporcos-espinhos uns contra os outros para seproporcionarem mútuo calor. Mas, ao fazê-lo,ferem-se reciprocamente com seus espinhos,de modo que terão de se separar devido à dor.Com o frio, voltam a se aproximar e depois a seferir. E assim indefinidamente. Essas alternativasde aproximação e afastamento durarão até quelhes seja dado encontrar uma distância médiaem que ambos os males fiquem mitigados.” Esseé o drama de Virginia Woolf e de todos nós,pobre sociedade de porcos-espinhos. De bichoshomens!Foi para mim um grande golpe a partida deminha ex-mulher com meu filho para tão longe,na Bélgica, em fins de 1966. Mas tínhamostentado sem sucesso uma reconciliação. Aindatrabalhamos juntos na montagem de O SistemaFabrizzi, ela como figurinista e diretora de produção.Era uma peça de Albert Husson, autorfrancês de sucesso no pós-guerra, com situações


Débora Duarte e Leonardo Villar em O Sistema Fabrizzi161análogas ao contexto brasileiro da época e quefoi encenada no Teatro Aliança Francesa. Parao elenco minha produtora, a MVPA, tinha conseguidoa participação de Leonardo Villar, queacabara de atuar em O Pagador de Promessas,filme dirigido por Anselmo Duarte, premiado emCannes. Eu considerava Villar um grande ator,e tinha-o dirigido no TBC em Gata em Teto deZinco Quente e As Provas de Amor. Dessa vez,o cenário foi concebido pelo também premiadoTúlio Costa e a tradução era de Luís de Lima.Depois de uma série de testes, escolhi a jovemrecém-estreante Débora Duarte, então com


dezesseis anos, para o papel da protagonistaAmélia. Riva Nimitz, Lea Surian, Zé Luiz Pinho,Luis d’Ávila, Ivan Mesquita, entre outros, participaramdo elenco. A peça estreou em setembrode 1966. Ela representava a minha volta a SãoPaulo, depois de Virginia Woolf. Mas a estréiateve de ser adiada em razão de um repentinoproblema de saúde de Débora que, entretanto,acabou sendo considerada a atriz revelação damontagem pela APCT.162Mas o ano de 1966 ainda não tinha terminado.Com produção de Oscar Ornstein, tradução deMillôr Fernandes, cenário de Pernambuco deOliveira e com Yoná Magalhães e Carlos Albertono elenco, ainda dirigi no Rio Um Amor Suspicaz,comédia do americano Bill Manhoff queentão fazia grande sucesso na Broadway. A peçaestreou no fim de novembro no Teatro Copacabana,ficando por meses em cartaz. A récita deestréia teve a bilheteria destinada à campanhaAjude uma Criança a Estudar.Afinal, quem duvida, e ainda hoje, de que umdos maiores problemas do Brasil é a educação?Assim, perto do fim de ano eu tinha duas peçasdirigidas por mim no Rio – Virginia Woolf e UmAmor Suspicaz – além da produção de Um Poucode Loucura Não Faz Mal a Ninguém e da direçãode O Sistema Fabrizzi, esta em São Paulo.


Depois desses trabalhos, viajei à Europa em 1967para rever meu filho, Peri, e me atualizar como que se levava à cena, passando pelos EstadosUnidos. Na verdade, por compromissos familiarese profissionais, passei um bom tempo numaespécie de ponte aérea entre o Brasil e a Europa,sempre com escalas nos Estados Unidos, principalmenteNova York, para me pôr a par com o queera levado no teatro. Nessas viagens triangulares,costumava ainda me deslocar para a Flórida paravisitar meus irmãos, onde ficava por uma semanaliteralmente de papo pro ar, descansando. Volteiem junho de 1967 para uma série de compromissosno Rio, dando início aos ensaios de O OlhoAzul da Falecida (Loot), comédia recém-premiadaem Londres, do inglês Joe Orton, que pouco antestivera uma peça encenada por Maria Fernanda.Dirigi Loot para a Companhia Carioca de Comédia.No elenco, Rosita Tomás Lopes, Ítalo Rossi,Emílio di Biasi, Mário Brasini, Érico de Freitas. Atradução era de Bárbara Heliodora, cenários efigurinos de Napoleão Moniz Freire. Joe Orton,ainda jovem, faleceu quando nossa montagemainda estava em cartaz.163E logo comecei os ensaios de novo texto, OAssa ssinato da Irmã Geórgia, de outro jovemautor da dramaturgia inglesa, Frank Markus,drama sobre a vida de uma estrela de TV. Com


164tradução de Millôr Fernandes, cenários de TúlioCosta e figurinos de Ninette van Vuchelen, dirigia grande Tereza Rachel, que também produziu amontagem, e ainda Iracema de Alencar, LourdesMayer e Vera Gertel, num elenco exclusivamentefeminino e excelente. A peça, uma das primeirasa abordar o homossexualismo feminino, estreouem setembro no Teatro Gláucio Gil, antigo Teatroda Praça, no Rio. Antes mesmo dessa estréia,dirigi ainda a versão carioca do show O RelatórioKinsey, de Daversa com música de Rildo Hora,no Rui Bar Bossa, baseado na pesquisa sobrecomportamento sexual do conhecido psicólogoamericano, espetáculo afinal encenado depoisde muita briga com a censura. No elenco, ÍtaloRossi, Leina Krespi, Gracindo Júnior. Foi minhaprimeira incursão pela área do show.Sempre achei mais gostoso morar no Rio, cidade,porém, onde era mais difícil de trabalhar do queSão Paulo – para onde voltei quase no fim de1967 a fim de dirigir Lisístrata, de Aristófanes,em mais uma ótima tradução de Millôr Fernandese com música também admirável de JulioMedaglia. No elenco, Ruth Escobar no papeltítulo,em desempenho considerado pela críticao melhor de sua carreira até então, mais DinaLisboa, Assunta Peres, Cassaré, Elizabeth Hartman.Os figurinos foram criados por Ninete van


Vuchelen. O clima político no Brasil esquentava eaproveitei o texto engajado e pacifista do comediógrafogrego sobre o amor e a guerra para umprotesto contra a ditadura, focada indiretamentena Grécia, daí a inclusão de uma grande foto daatriz militante Melina Mercouri no cenário, deWladimir Cardoso.A peça estreou em fins de 1967 no Teatro Galpão,causando certo frisson não apenas emdecor rência da crueza do texto mas também doexpediente de, em meio à greve do sexo proclamadapelas personagens femininas em protestocontra a guerra, se inserir uma pequena torneirano órgão sexual dos atores. E o fecho era umafesta à moda pacifista hippie.165Com a elevação da temperatura política, participeiem junho de 1968 da manifestação deprotesto dos artistas que resolveram devolver asestatuetas do prêmio Saci, concedido pelo jornalO Estado de S. Paulo, por entenderem que umrecente editorial defendia a censura federal eao mesmo tempo atacava aqueles que tinhamparticipado da I Feira Paulista de Opinião, cujaprópria realização tinha sido ameaçada. Éramosum grupo grande nesse ato de devolução doSaci: Cacilda, Walmor, Fernanda Montenegro,Etty Fraser, Tônia, Maria Della Costa e Sandro,


166Jorge Andrade, Gianfranceso Guarnieri, AugustoBoal, Zé Celso, Paulo Autran, Flávio Império,Flávio Rangel e muitos outros. Naquele mesmo1968, participei de várias passeatas de estudantes,intelectuais e artistas contra a ditadura e acensura, aderindo ao movimento de jovens quepretendiam mudar o Brasil por meio de reformassociais e políticas, e também pela cultura.Juro que acreditei que daria certo! Meu espíritopacifista e libertário, tornado agudo pela minhavivência pessoal da guerra e do totalitarismonazista, revoltava-se contra as novas ameaças àsliberdades e aos direitos de artistas e cidadãosem geral. Ameaças que afinal se consolidariamcom o fechamento do Congresso e com o AI-5baixado no final daquele ano. Hoje se vê que aditadura não teve um único aspecto positivo, aocontrário, só deixou o país mais pobre, tambémculturalmente. A maciça distribuição de diplomasrevelaria forte queda no nível do ensino. Todasas emissoras de televisão davam apoio irrestritoao regime militar. Tudo isso repercutiu dramaticamentetambém sobre o teatro.Logo ficou bem mais difícil trabalhar no Brasil,mas, afinal, tínhamos de continuar. Voltei em1968 ao Rio para produzir e dirigir Black Comedy,peça em um ato do inglês Peter Shaffer, para aqual fiz também cenários e figurinos.


Mais uma vez, consegui reunir ótimo elenco: DinaSfat, Helena Inês, Paulo Padilha, Beatriz Lyra,Napoleão Moniz Freire, José Augusto Branco. Eeu mesmo assumi a tradução em parceria comCarlos de Moura. A peça estreou em outubro de1968, permanecendo por uma curta temporadano Teatro Maison de France. Não foi muito bemrecebida pela crítica, mas sua encenação foi umaforma de conviver com a truculência da censura,que ia fechando o círculo e encurralando asliberdades.Em 1969, início dos anos de chumbo, tivemos aindaa grande perda de Cacilda Becker, não apenasuma grande e excepcional atriz, mas um verdadeirobicho do teatro, alguém que se esforçava,se dedicava e se entregava a cada trabalho comopoucos atores que conheci em minha longa vidade diretor. Como última homenagem, levei ao seuvelório uma fita gravada com músicas de Bach eBeethoven, que foi acionada por alguém. Aquelefoi mesmo um ano de grandes e dolorosas perdas:com 75 anos, minha mãe faleceu em Miami, ondese encontrava em visita ao meu irmão Raymond.167Ali essa mulher extraordinária, que tanto marcouminha vida e a de meus irmãos, foi enterrada.Pouco depois voltei à Europa, para realizar filmespara a televisão e dirigir minha primeira ópera,


168Helena Ignês, Dina Sfat e José Augusto Branco em BlackComedy


em Bruxelas: Marouf, com música de Henri Rabaud,com cerca de duzentos figurantes, inclusivebailarinos. Ao regressar, dirigi Célia Helena emSão Paulo, então grande atriz, e Selma Caronezziem As Moças, da então jovem dramaturga ejornalista Isabel Câmara, que abordava justamenteas dificuldades de comunicação entre seresmarginalizados. Selma acabava de obter grandesucesso por sua interpretação em Cemitério deAutomóveis, de Arrabal com direção de VictorGarcia e produção de Ruth Escobar. Em As Moças,assinei também a produção, a iluminação e ocenário, dotado de recursos multimídia e efeitosespeciais de luz, que, assim como o trabalho dasatrizes, foram bem recebidos pela crítica. Maisuma vez eu punha em cena a minha concepçãolongamente estudada da iluminação, dessa vezcom projeções sobre o tule que compunha ocenário.169Iluminar um espetáculo é uma operação equivalenteao processo de claros e escuros na pintura.Afinal, a maior ou menor intensidade da luz éum dos fatores que criam a atmosfera numamontagem. O texto foi-me indicado por SábatoMagaldi e tive como assistente de direçãoe produção Antonio Bivar. Com subvenção doConselho Estadual de Teatro, em importantecampanha para a encenação de novos autores,


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a montagem estreou em outubro, cumprindotemporada popular no Teatro Cacilda Becker.Em minha última viagem à Europa, fiquei sabendodo concurso promovido por Maurice Béjart,o criador do Ballet du XXème Siècle, aberto ajovens bailarinos do mundo todo, interessadosem completar sua formação ao longo de três anosno Mudra – Centro Europeu de Aperfeiçoamentoe Pesquisa dos Intérpretes do Espetáculo, que ocoreógrafo estava abrindo em Bruxelas. Semprefui apaixonado pela dança e pelas artes do corpo.Na verdade, se quando comecei Béjart já estivesseem Bruxelas, provavelmente eu teria me tornadobailarino em lugar de homem de teatro.171E, assim, apressei-me em divulgar a informaçãosobre o novo curso no Brasil, naturalmente semsaber que esse gesto logo acabaria por transformarminha vida pessoal e, tempos depois, porrepercutir também em minha vida profissional.Em meus tempos de TBC, tinha organizado apresentações,às segundas-feiras, de coreografiaspor alguns grupos, como o de Renée Gumiel, dequem me tornei amigo. Ainda naquele 1969, fuiconvidado por Renée para colaborar na montagemdas coreografias Crença em Quatro Formase Fedra, que seriam apresentadas por seu grupode Dança Contemporânea Brasileira na segunda


172edição de um festival organizado por MiroelSilveira no Teatro São Pedro, com patrocínio doConselho Estadual e da Secretaria da Cultura,numa iniciativa de promoção da arte coreográfica.Fiz para esse espetáculo o cenário, a iluminação,os adereços e os figurinos. E ali conheci váriosbailarinos, entre os quais a jovem Célia Gouvêa,então com menos de 20 anos, que também estudavaFilosofia na USP e dava aulas de dança naacademia de Renée Gumiel e em outras instituições.Uma das coreografias desse balé enfocava ocandomblé, e nela Célia fazia um solo de Iemanjá.Desde aí fiquei enfeitiçado. Mas a garota aindanamorava um estudante de arquitetura. Só nosreencontraríamos mais tarde.Em 1970, dirigi Os Rapazes da Banda, do americanoMart Crowley, peça que aborda o homossexualismomasculino e o preconceito corrente nãoapenas quanto ao tema mas também relacionadoa judeus e negros, às minorias em geral, com traduçãode Millôr Fernandes, cenário de Cyro delNero e detalhes decorativos de Carmélio Cruz.Lembro que Cyro costumava me chamar de “o reida ironia”. O texto continha uma fina análise psicológicae também era um libelo contra os moralismos,e a peça fazia na época grande sucesso emNova York. A produção foi de John Herbert e naassistência de produção e de direção contei com


Cena de Rapazes da Banda173a atriz Eva Wilma. Walmor Chagas, Paulo Cé sarPereio, Raul Cortez, Jorge Dória, Otávio Augus to,Benedito Corsi, Denis Carvalho e o próprio JohnHerbert, entre outros, formaram o elenco emduas encenações que realizei. A peça foi apresentadaprimeiro no Teatro Cacilda Becker, emSão Paulo, onde ficou por dez meses em cartaz,e depois foi para o Rio, onde enfrentou sériosproblemas com a censura. Eram as contradiçõesda mesma censura federal. Lutamos no Rio atéconseguir liberá-la. Mas, enfim, valia mais correresse tipo de risco do que praticar a autocensura.Afinal, sempre achei que a liberdade não é dada,é sempre alguma coisa a ser conquistada.


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Logo depois da estréia paulistana, em outubro,segui para a Europa a fim de dirigir O Barbeirode Sevilha de Rossini para a Ópera Nacional, emBruxelas. Na capital da Bélgica, onde tinha vividopor tantos anos e consolidado minha formaçãode homem de teatro, um encontro (ou reencontro)iria mudar a minha vida. E me ajudaria nacrise da perda ainda recente de minha mãe.175


Capítulo IVE também dança, administração, óperasAntes mesmo de chegar a Bruxelas, fiquei sabendoque Célia Gouvêa tinha sido uma das duasbrasileiras selecionadas por Maurice Béjart paraintegrar a primeira turma dos cursos do Mudra,o centro experimental recém-aberto a bailarinosdo mundo todo pelo diretor do Ballet du XXèmeSiècle. A outra era Juliana Carneiro da Cunha,hoje atriz no Théâtre du Soleil de Paris. Ambasforam escolhidas em meio a 400 candidatos detodos os continentes, numa turma inaugural de24 jovens. Instalado numa antiga fábrica, emfrente à famosa indústria de chocolates Côted’Or, o Mudra (gesto, em sânscrito) propunhauma formação fascinante de atores-bailarinoscantores-acrobatas,enfim, de criadores e intérpretescompletos dos quais sempre achei que asartes cênicas tanto necessitam.177Em Bruxelas, telefonei ao Mudra para falar comCélia, e naquela mesma noite fomos ver juntosum espetáculo do mímico Marcel Marceau – porcoincidência, no Palais des Beaux Arts, que, entreoutras atividades, abrigava o Rideau de Bruxelas,onde estudei e trabalhei por tantos anos antesde viajar para o Brasil. Vimos também ali uma


178Marcel Marceau


exposição de arte maia e depois fomos cumprimentarMarceau, que conhecia há anos. Fizemosentão uma esticada à Grand Place, um dos íconesda capital da Bélgica. E não preciso dizer que foiuma paixão à primeira (ou segunda) vista. AqueleNatal de 1970 passamos juntos em Paris. Apesarda diferença de idade, eu tinha então 44 anos eCélia 20, estamos juntos até hoje, num pas-dedeuxque já dura 35 anos. Célia, o grande amorde minha vida, é mãe de minhas duas filhas, Yarae Vânia, que hoje vivem e trabalham na Europa.Depois de cursar duas faculdades de artes noBrasil - numa das quais, a FAAP, ingressou emprimeiro lugar - Yara estudou na École de BeauxArts de Lyon e participou de exposições de jovensem Paris. Cursou alta culinária em Lyon, um dosprincipais centros gastronômicos da França, ondehoje trabalha em renomados restaurantes. Vânia,como a mãe, escolheu a dança.179Depois de obter o baccalauréat em Paris, foiselecionada pela escola PARTS (Performing ArtsResearch and Training Studios), herdeira doMudra, em Bruxelas, dirigida pela coreógrafaAnne Theresa de Keersmaeker. Embora aindamuito jovem, excursionou por toda a Europacomo intérprete da coreografia Les porteuses desmauvaises nouvelles, de Win Vandekeybus. Vâniae seu companheiro, o bailarino e coreógrafo


catalão Jordi Gali, foram convidados no final de2005 para integrar a companhia da coreógrafaMaguy Marin, sediada em Lyon.Assim, minhas duas filhas moram agora nessamesma cidade francesa. Célia Gouvêa e euviríamos a trabalhar e a criar juntos inúmerosespetáculos.180Juntos daríamos início, poucos anos depois, aomovimento do Teatro de Dança, em São Paulo,viabilizado por Marilena Ansaldi. Foi Célia quemme converteu definitivamente a essa outra antigapaixão, a dança, a mais antiga manifestaçãoritualística da humanidade, muitas vezes capazCom Célia e as filhas, São Paulo 1984


de expressar pensamentos e emoções melhordo que as palavras. Com Célia e meu filho Perina Bélgica, passei a alternar mais regularmentetrabalhos entre o Brasil e meu país natal. Assim,até certo ponto procede a observação de MariaThereza Vargas de que, depois que me naturalizeibrasileiro, fiquei por um período mais tempona Europa do que no Brasil, sobretudo entre 1971e 1974. Cheguei a pintar uma reprodução da florestaamazônica em toda uma grande parede dasala de minha casa da avenue Louise, para ondeCélia se mudou. Era uma maneira simbólica decontinuarmos perto do Brasil.Nesse intervalo, dirigi algumas óperas e realizeifilmes para a Rádio e Televisão da Bélgica, especialmentedocumentários e reportagens, osquais abordarei adiante. Claro, também volteia atuar e a dirigir peças, entre elas O Auto daCompadecida, de Ariano Suassuna, que, sob otítulo Le Testament du Chien, obteve grandeêxito tanto no Festival de Spa quanto no TeatroNacional da Bélgica, responsável pela produção.A versão para o francês foi de Michel Simon e oelenco era formado por atores belgas como BerdardDetti (Chico), que acabava de atuar em FalaBaixo, Senão Eu Grito, de Leilah Assumpção, naBélgica, além de Raymond Avenière (João Grilo)e Liliane Vincent (Mulher do Padeiro). Encenei181


o auto como uma festa de feira em pátio deigreja, onde alguns passistas dançavam capoeira,músicos tocavam sambas e melodias popularesdo Nordeste em instrumentos típicos que leveià Bélgica e coloquei em cena até mesmo umbumba-meu-boi. Para tudo isso, reuni um grupode músicos brasileiros que moravam na Europapara tocar e cantar com um coral belga, todosem português.182Na verdade, identifiquei na obra de Suassuna umparalelismo com a comédia flamenga medieval.Admirava esse autor, assim como outros brasileirosque vinham produzindo obras com marcadavisão social, entre eles Leilah Assumpção,Plínio Marcos, Gianfrancesco Guarnieri, MillôrFernandes, os quais ia citando e recomendandona Bélgica.Nessa temporada na Europa, atuei pela primeiravez como dançarino, além de mímico, no espetáculoLes mariés de la tour Eiffel (Os Noivos daTorre Eiffel), de Jean Cocteau, na programaçãoCocteau et la Danse, promovida pelo Ballet duXXème Siècle, ciclo no qual também dançaramCélia Gouvêa e Juliana Carneiro da Cunha. Namesma época, dirigi peças como A Megera Domada,de Shakespeare, encenada no Théâtre duParc; Miséria e Nobreza, de Edoardo Scarpetta,levada no Festival de Spa e reapresentada em


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184Cirque Royal de Bruxelas, Les mariés de la tour Eiffel(esq.)Bruxelas, no Teatro Nacional; Au Bal des Chiens(No Baile dos Cães), de Remo Forlani, sobre o movimentode maio de 1968 na França, no Rideau;e apresentei no Teatro Nacional e depois transpuspara a TV A Fiaca (La flemme), do argentinoRicardo Talesnik.Todos esses trabalhos obtiveram sucesso e o críticoJean Leirens publicou em Le Phare: “Desdeque voltou do Brasil, Maurice Vaneau não párade nos encantar”. Em 1974, recebi o prêmio Eveda União da <strong>Imprensa</strong> Teatral da Bélgica, peloconjunto de minhas realizações teatrais naquelestrês anos de trabalhos no país, sobretudo O Auto


da Compadecida, A Megera Domada, No Bailedos Cães e A Fiaca. Pela mesma época, tive minhasegunda atuação num espetáculo de dança,como protagonista de Eh, Johnny, Regarde!, deMicha Van Hoecke, do Ballet du XXème Siècle,apresentado em 1973 na Ópera de Lyon. Já doisprojetos no Brasil, de montar Um Equilíbrio Delicado,de Albee, com Walmor, Glauce Rocha,Nathalia Timberg, e a ópera O Barbeiro de Sevilhanuma versão moderna e arrojada, acabaramnão dando certo.Assim fui ficando na Europa. Ao lado de JulianaCarneiro da Cunha, Célia Gouvêa foi um dos oitoalunos que conseguiram concluir o curso multidisciplinarcom Maurice Béjart. Depois de três anos185Cena de A Megera Domada


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de uma rotina estafante, mas apaixonada dessesjovens, a qual assisti de perto, foi emocionanteassistir à apresentação final do grupo no CirqueRoyal de Bruxelas. Célia, Juliana, Maguy Marine outros egressos do Mudra fundaram entãoum grupo experimental, o Chandra – Théâtrede Recherche de Bruxelas, que, sob direção deMicha Van Hoecke, casado na época com MaguyMarin, e a participação de Dominique Bagouet,importante bailarino e coreógrafo desaparecidoprematuramente, se apresentou em váriascidades da Europa ao longo de um ano, ao fimdo qual os jovens artistas resolveram seguir cadaqual o seu caminho. Em 1974, o pai de Célia, o Dr.Herculano Gouvêa Netto, advogado e pequenoindustrial em Campinas, faleceu, depois de umaviagem com a família à Europa, na qual tinhamnos visitado. Decidimos por essa época regressarao Brasil e nos reinstalar na Rua Sergipe, em SãoPaulo. Antes, porém, fomos visitar em Praga oateliê de cenários e figurinos do Teatro Nacional,dirigido pelo célebre Svoboda. Travamosentão contato com outro conhecido cenógrafocheco, Ladislav Vyshodil, premiado nos anos 60na Bienal de São Paulo e que nos hospedou emsua casa. Conhecemos seu acervo de maquetesde cenários, com uma experimentação fantásticade materiais que incluía da madeira ao tule, dometal e jornais à juta.187


188Cheguei ao Brasil em outubro de 1974 – Céliatinha vindo antes, ao saber da morte do pai. Ela,que viria a acumular ao longo dos anos prêmiose bolsas como os Virtuose, Vitae, da fundaçãoGuggenheim, Governador do Estado, afora seteAPCAs, trazia na bagagem o sonho de formarum grupo estável de dança no Brasil, e tambémo roteiro de uma coreografia, Caminhada. Tinhauma vontade enorme de realizar aqui um trabalhomultidisciplinar na área da dança contemporânea,de transmitir e apresentar em seu paístudo o que aprendera em seu longo estágio noMudra. Soubemos então por Marilena Ansaldique a Comissão de Dança da Secretaria de Estadoda Cultura havia alugado o Teatro Galpão, noconjunto Ruth Escobar, na Rua dos Ingleses, disponibilizandoo espaço a grupos de dança, emborahouvesse ali muitos problemas técnicos, comogoteiras durante as chuvas e defeitos no piso.Fomos juntos até o Galpão e, apesar dos problemasencontrados, decidimos instalar ali nossopróprio núcleo de pesquisas, impulsionando oainda embrionário Teatro de Dança, cuja virtualfundadora foi Marilena Ansaldi, com apoio doentão secretário estadual da Cultura, Pedro deMagalhães Padilha.Nessa volta ao Brasil, de fato preferi me introduzircom Célia nessas novas experiências de lingua-


gem, numa fusão de diferentes técnicas, a montar,como tantas vezes antes, um novo sucesso deParis, Londres ou Nova York. Considerava que oteatro de texto estava gasto pela comercializaçãointensa, pela reprodução em série de um sucessoaté o seu esvaziamento total, encontrando-se,enfim, numa verdadeira encruzilhada. Pensavaentão que, voltando às suas origens, à dança, oteatro poderia encontrar uma fonte renovada decriatividade, aproveitando também a vertentetão enraizada na Bélgica flamenga de trazer àtona o inconsciente, certa libertação da lógicae do realismo estreito. Estava disposto, enfim,a investir tempo e dinheiro nesse laboratório,nessas pesquisas e pensei que a melhor maneirade voltar à cena aqui seria, com a Celinha, reunire trabalhar com um grupo de bailarinos-atoresjovens e entusiastas, permitindo ao público brasileiroreceber um pouco dessa tentativa de umteatro aberto, fundamentado no espaço e nocorpo, um teatro espelho das angústias e aspiraçõesdo homem contemporâneo.189Estreamos o Teatro de Dança, ainda em caráterextra-oficial, em 5 de dezembro de 1974 comCaminhada, concebido e coreografado porCélia Gouvêa e dirigido por mim, espetáculocom dança, música, canto, expressão corporale grande plasticidade. A coreografia abria com


solos de Célia e, em outras partes, contava coma participação de um elenco de doze intérpretesformados por Ruth Rachou – ela mesma suaintegrante – entre os quais Júlio Villan, DebbyGrowald, Rui Frati, Mara Borba, Daniela Stasi eThales Pan Chacon. Eu mesmo aparecia em cenacom um bigode verde enquanto Célia tocavapiano. A terceira parte era repleta de alusõespolíticas e de críticas ao ambiente repressivo,num momento em que a abertura dos militaresainda nem começara.190As inovações dessa criação foram comentadaspelo crítico Sábato Magaldi: “Caminhada éum espetáculo perfeito e, ainda mais do queisto, um novo caminho e uma nova linguagem”.A pe ça teria sessenta apresentações, fato inéditona época para um espetáculo do gênero. Outroincentivo foi o prêmio de melhor coreografiateatral e menção especial da APCA de 1974.Caminhada iria “dar o tom do Galpão como Teatrode Dança”, observou Lineu Dias, com suasexperiências de linguagem bastante avançadaspara a época. Lineu chamaria esse espaço de“um santuário da criatividade e da inteligência,uma ponta de lança vanguardista em meio àrenúncia quase geral às experiências”. Tambémse apresentaram no Teatro de Dança grupos ecompanhias como Ballet Stagium, de Marika


Gidali e Décio Otero; Marilena Ansaldi, que aliapresentou um espetáculo inesquecível, Ou Issoou Aquilo; Andança; e os de J.C. Violla, comacabamento de Naum Alves de Souza; ClarisseAbujamra; Sônia Mota; Ruth Rachou e FranciscoMedeiros, além do próprio Corpo de Baile Municipal,hoje Balé da Cidade de São Paulo.Ao longo de 1975, quando eu comemorava vinteanos de Brasil, Célia, eu e também Iracity e AntônioCarlos Cardoso demos vários cursos ali, respectivamentede expressão corporal, interpretação,balé clássico e dança moderna. O objetivo era aformação de intérpretes completos, uma aberturapara o ator que só usava a voz, para o bailarinoque ia pouco além da técnica da dança. Enfim,a abertura do intérprete a todas as potências deseu corpo. Levamos ainda ao Teatro de Dançaprofessores convidados, inclusive estrangeiros,entre eles o mimo argentino Benito Gutmachere o diretor e coreógrafo americano AlwinNiko lais, que deram ali workshops memoráveis.Organizamos ainda atividades paralelas, comoprojeção de filmes sobre dança e teatro gestual.Patrocinadas pela Secretaria Estadual de Cultura,então sob a gestão do culto, sensível e empreendedorJosé Mindlin, as aulas eram gratuitas.Houve grande afluência de interessados e, tendoem vista as limitações do espaço, tivemos de fazer191


uma seleção. Entre os alunos, estavam o atorAntônio Pitanga e muitos estreantes que logo setornariam verdadeiros profissionais, como IsmaelIvo, Denise Stoklos, Rosi Campos, João Maurício.Ivo logo passaria a desenvolver uma prestigiadacarreira em Viena, Denise também se firmounacional e internacionalmente como mímica eshow-woman e João Maurício seria admitido naThe Paul Taylor Dance Company, então uma dasmais conhecidas dos Estados Unidos.192O Teatro de Dança tornou-se nossa segunda casa.Quase todos os dias, íamos para lá de manhãcedo e saíamos à meia-noite. Ali reapresentamosCami nhada e, em agosto e setembro daqueleano, Allegro ma non troppo, espetáculo que criei,interpretei, dirigi, produzi e para o qual desenheitambém cenário e figurinos, em que fazia duocom Célia Gouvêa. Era minha estréia numa experiênciaautoral no palco, quando encontrava umprazer semelhante ao de criar filmes para a televisão,e que resultaria em outros espetáculos comoPara Governador ou A Tigresa, este inspirado emtexto de Dario Fo, em que penso ter atingido aplenitude do trabalho de ator total.Luiz Damasceno, Dolores Fernandes e Aron Aroncompletavam o elenco de atores-dançarinos emAllegro ma non tropo. O espetáculo consistianum conjunto de oito seqüências tragicômicas


Allegro ma non troppo193


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196Com Célia e Dolores em Allegro...que utilizavam a pantomima como linguagem,além da dança, do canto e da mímica, e tambémum texto bastante econômico. O tema tratava dapoluição em suas várias formas, desde a visual àambiental e à mental, com ironia e humor corrosivo:o lixo das cidades, a violência nas ruas, adestruição de áreas verdes, congestionamentosdo trânsito, o consumismo, a alienação e o papelhipnótico da televisão no imaginário das pessoas.Enfim, coisas que infelizmente permanecemtão atuais! Chamei Allegro de um espetáculoecológico. Afinal, a ecologia sempre foi uma dasminhas preocupações ao longo de toda a vida.


A peça ainda aludia à recente proibição pelacensura da peça Abajur Lilás, de Plínio Marcos– um dos intérpretes atravessava silenciosamenteo palco tendo nas mãos um abajur dessa cor. Acrítica não poupou elogios, como os de “um dosmais inteligentes espetáculos cênicos do ano”,“a melhor experimentação de 1975, que vai dafúria criativa do circo à delicadeza da caixinhade música rococó”, “Maurice Vaneau e CéliaGouvêa tecem uma tapeçaria nobre, generosa eabrangente”, etc.Nossa caminhada por essa área limítrofe entrea dança e o teatro aberto, ainda que quasesempre deficitária para a minha produtora,a MVPA, prosseguiu por muitos anos, mesmoquando eu me ocupava de outras atividades.Em setembro daquele 1975, fui convidado peloentão secretário municipal de Cultura, SábatoMagaldi, a dirigir o Departamento de Teatrosda Prefeitura.197O que não me impediu de fazer uma proposiçãona primeira parte de Pulsações, coreografia edireção de Célia Gouvêa, apresentada em novembrono Teatro de Dança, com Ismael Ivo, DebbyGrowald, Henri Michel, Zina Filler, Ana Michaela,George Otto e outros alunos de nossos cursosna Rua dos Ingleses. O espetáculo foi agraciadocom o prêmio Governador do Estado, um


198Entrevista com Sábato Magaldi e o maestro Davi Machado,como diretor do Departamento de Teatros da Prefeiturados mais impor tantes da época, e depois seriareapresentado pelo Corpo de Baile Municipal.Assumi o Departamento de Teatros da Prefeitura,Municipal incluído, com muitos planos. Seriauma nova e ampliada experiência na função deadministrador, antes exercida no TBC. Mas valia odesafio de procurar intervir mais diretamente nodesenvolvimento cultural da cidade. Assumi tambémvários problemas: a suspensão das temporadaslíricas, o prédio do Teatro Municipal, paraonde me transferi, estava atacado por cupins,exíguo espaço para a área administrativa, neces-


sário aumento do número de músicos da SinfônicaMunicipal, de cantores do Coral Paulistano,fundado por Mário de Andrade, e de bailarinosdo corpo de baile. Reivindiquei também a criaçãode um calçadão em toda a volta do Municipal,como meio de evitar os terríveis ruídos do trânsito,e o que seria apenas parcialmente atendidomuitos anos depois. Outro problema que medeixava indignado era o cabide de empregos emque a administração do teatro se apoiava! Logoconseguimos, porém, aumentar o número anualde espetáculos e o de espectadores. Promovemoso Festival Internacional de Teatro, produzidopor Ruth Escobar, o qual revelou aqui o genialencenador americano Bob Wilson, e com grandevariedade de culturas e de gêneros apresentados;e o Festival Internacional de Música e Dança, coma mostra de 40 espetáculos no período de ummês, além dos concertos em comemoração aocentenário de Manuel de Falla. E mais o MúsicaBrasileira Hoje, talvez a mais importante realizaçãodo Municipal em 1976 que, sob o comandodo maestro David Machado, apresentou a umgrande público a importante e incompreendidaobra de compositores contemporâneos, muitosdeles ainda pouco conhecidos então, num totalde 71 peças de 37 autores vivos, entre os quaisH.J. Koellreutter, Almeida Prado, Guerra Peixe,Ricardo Tacuchian, Kilza Setti, Gilberto Mendes,199


200Ernst Mahle, Mário Ficarelli, Marlos Nobre, ErnstWidmer. A temporada lírica foi retomada e tevelotações esgotadas, inclusive com obras nacionais,como O Chalaça, de Francisco Mignone – um denossos objetivos era contribuir para a criação deum mercado nacional também nessa área, parao cantor, o diretor, o cenógrafo, o maquinista. E,quando possível, o compositor. Organizamos atéum minifestival de teatro infantil. Um de meusobjetivos era atrair ao Municipal também genteque nunca ousara entrar nele. Eu mesmo fiz umapesquisa e constatei, por exemplo, que as criançase motoristas de táxi da região conheciam bem oMappin, a loja de departamentos que ficava emfrente, mas não o Teatro Municipal do outro ladoda rua. E uma parte deles passou a freqüentálo.Criamos a Sessão Coruja, da meia-noite, cujaprogramação diversificada surpreendentementeinteressou a muita gente, sobretudo jovens – afinal,os problemas de segurança não eram os dehoje – e a sessão Vermouth no saguão, com osciclos de Beethoven interpretados pelo Quartetode Cordas do Teatro às 18h30, para quem saíado trabalho no centro. E ainda o Natal no Municipal,que proporcionava a um grande públicouma opção cultural entre uma compra e outra– as atrações abriam-se às 15 horas e se prolongavamem regime non stop até a meia-noite.Grande parte dessa programação toda a preços


populares. Graças a uma “direção inventiva”, oTeatro Municipal de São Paulo deixara de “vivercomo um museu” e “abria-se ao povo”, diziamalguns artigos na imprensa. Era, sem dúvida, onosso propósito. Afinal, não havia ele abrigadoa Semana de Arte Moderna de 1922?Houve também muitas pedras no caminho. E amaior delas aconteceu durante a 1ª Feira de Poesiae Arte que o Municipal promoveu em novembrode 1976, a qual contou com a participação deescritores conceituados como Lívio Xavier, AlmeidaSalles, Renata Palottini, Dora Ferreira da Silva,Cláudio Willer, entre outros, incluindo concertosde música erudita e uma coreografia do BalletStagium. Houve também performances de dançano saguão e nas escadarias do teatro, a cargo deCélia Gouvêa com o grupo do Teatro de Dança.A lotação se esgotava a cada noite. No entanto,numa das récitas um dos participantes subiu aopalco e nele urinou, num aparente ato de infantilexibicionismo. A repercussão negativa do episódio,sobretudo nos meios mais conservadores,foi enorme. Sábato Magaldi e eu chegamos apensar em infiltração de um agente interessadoem sabotar nosso trabalho e pusemos nossoscargos à disposição. Mas o então prefeito OlavoSetúbal entendeu que deveríamos continuar.Amigos e admiradores da gestão promoveram201


um jantar de desagravo a Sábato. Mas em janeirode 1977 resolvi me demitir, também em razãodos insuperáveis entraves burocráticos postosdiante do projeto de uma gestão efetivamenterenovadora. E recebi inúmeras manifestaçõesde solidariedade. Na carta em que aceitou meupedido de exoneração, Sábato Magaldi sublinhou:“Competência, zelo, defesa intransigentedos dinheiros públicos, trabalho além do temponormal são algumas das virtudes que admirei emvocê. Tenho certeza de que dificilmente outrodiretor reunirá as mesmas qualidades por vocêdemonstradas”.202Antes que eu retomasse projetos que permaneciamem stand by, recebi novo convite paraadministrar um teatro oficial, o Castro Alves,em Salvador, feito por Vicente Calderón e DulceAquino. Pensando que talvez pudesse afinalbotar em prática idéias que não pude executarno Departamento de Teatros de São Paulo, aceiteio novo desafio e me transferi para a Bahia,em meados daquele 1977. Paralelamente, fuiconvidado a dar um curso na Escola de Música eArtes Cênicas da Universidade Federal da Bahia.Em pouco tempo, consegui introduzir no CastroAlves uma atividade constante e diversificada,atendendo a vários gêneros de público, comoum recital do violonista Pedro Soler, em parceria


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com a Aliança Francesa; outro do mimo americanoAdam Darius, além de festivais de dança ede música. Um dos frutos dessa temporada foi amontagem, sob minha direção, da nova versãodo Auto da Compadecida, de Suassuna, uma superproduçãoem parâmetros da Bahia, com umelenco local formado por Armindo J. Bião, AydilLinhares, Mário Gadelha, Wilson Melo, MiltonGaúcho, entre outros.204Mas bastaram poucos meses para me ver vencidopela burocracia kafkiana, pela falta de verbas, decondições técnicas e de apoio logístico. E, outravez, pedi demissão. Adeus planos de manterum vivo intercâmbio com artistas, intelectuaise universitários; de fazer uma pesquisa do queexistia em termos artísticos também no interiorda Bahia; de transformar o Castro Alves numverdadeiro centro de produção. Como se diziaentão, lamentavelmente aquele enorme teatrohavia se transformado num elefante branco!Fui então ao encontro de Célia Gouvêa, que,depois de dirigir um elogiado trabalho comoartista residente na Universidade de Illinois,realizava um segundo estágio com o Alwin NikolaisDance and Theatre em Nova York. Céliasonhava em ter um filho. E eu lhe telefonei dizendoque, se ela me esperasse com uma tortade myrtilles, minha fruta preferida e que tanto


lembra minha infância, eu me casaria com ela.Conforme, aliás, tinha expressamente recomendadomeu falecido sogro quando nos visitou emBruxelas! Passei meu 52º aniversário com Célia,em Nova York, em janeiro de 1978. Moramospor um tempo num flat do West Side, Rua 79.Foi uma das fases mais felizes de minha vida. Alitambém reencontrei meu velho amigo JacquesDanois, colega dos primeiros tempos no Rideaude Bruxelas. Ele então chefiava o departamentode TV do Unicef e, a seu convite, realizamos umprograma para crianças, A Child’s Dream (UmSonho de Criança), eu como diretor, Célia comobailarina. Numa das gravações, encontramosPelé nos estúdios da ONU; ele também participouda série, chamada As Crianças do Mundo. Fiztambém outros vídeos para o Unicef e ainda ailuminação para a peça Dances and Paper Pieces,que Célia criou em parceria com a artista plásticaHenrietta Bagley, apresentada no Cubiculo’sTheatre, num projeto dirigido para a inovaçãodas artes cênicas.205De Nova York seguimos para a Flórida, onde entãoviviam meus dois irmãos, Raymond e Leona. Efoi lá, e com meus dois irmãos por testemunhas,que Célia e eu nos casamos. Afinal, ela tinhame esperado com a torta de myrtilles! Entãovisitamos juntos o túmulo de minha mãe, na


206Com Pelé, na gravação do programa As Crianças do Mundoe, à direita, no casamento com Célia, em Miami, 1978


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208Flórida, como que a pedir sua bênção. Por certoJeanne Marie teria gostado muito dessa sua norabrasileira. Em nossa volta a São Paulo, em 1978,Célia e eu criamos juntos o espetáculo Isadora,Ventos e Vagas, em comemoração ao centenáriode Isadora Duncan, com patrocínio da Secretariade Estado da Cultura, cuja Comissão de Dança eraentão dirigida por Casimiro Xavier de Mendonça.Célia concebeu e coreografou o espetáculo, euo produzi e o dirigi e Ninette van Vuchelen fezos figurinos. Isadora foi apresentado no TeatroCultura Artística. Além de Célia – que dançouaté dois dias antes de dar à luz, no dia 14 de novembrode 1978, à nossa filha Yara Alexandra, acujo parto na Clínica Tobias eu assisti – o elencoO nascimento de Yara


era formado só por mulheres, todas talentosasbailarinas: Juliana Carneiro da Cunha, Ruth Rachou,Júlia Ziviani, Vivien Buckup, Ana Michaela,Marília de Andrade, filha de Oswald de Andrade,que conhecera Isadora quando ela se apresentouno Brasil em 1916.Marília dançava com suas três filhinhas. O únicohomem em cena era o violinista João AntônioNogueira, que atravessava o palco interpretandopeças de Beethoven e Debussy, conforme asonoplastia de Flávia Calabi. Isadora foi um dosmomentos mais altos da produção coreográficade Célia Gouvêa, que incorporou nesse trabalhoas pesquisas sobre a dança natural da revolucionáriabailarina e coreógrafa, seu espírito deentrega e paixão. Também montamos no saguãodo teatro uma exposição de fotos e documentosde época de Isadora Duncan, inclusive sobre suapassagem pelo Brasil, em homenagem ao centenáriode seu nascimento.209Nossa filha Yara ainda era um bebezinho quando,em 1979, Célia criou a coreografia TremFantasma e Outras Danças, que dirigi e paraa qual fiz a programação visual, apresentadano Teatro Municipal e depois levada ao Rio deJaneiro. Além de Célia, compunham o elencoMazé Crescenti, bailarina que lamento ter falecidoprematuramente, Luciana Gandolpho, Lúcia


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Mer lino, Soraya Sabino, Sílvia Rosembaum, ZinaFiller, entre outros.212A coreografia ainda teve uma memorável participaçãoda veterana Renée Gumiel. Apesar de todasas dificuldades em montar espetáculos de dança,continuávamos recebendo inúmeros estímulosda crítica: “Trem Fantasma arrasta a platéia paraum mundo de sonho e magia em que as imagensoníricas se sucedem como uma colagem em movimento,para a qual colaboram outras formas deexpressão artística como a palavra poética, o circo,o teatro”, resumiu, por exemplo, a crítica CorinaFigueiredo. Também Sérgio Viotti e Acácio VallimJr., espetáculo após espetáculo, não nos regateavamelogios, registrando sempre uma leiturapenetrante e sensível desse nosso trabalho.Nossa pesquisa de novas linguagens para o palco,sempre com coreografias criadas por Célia Gouvêa,prosseguiu com Contrastes para Três, commúsica de Bela Bartók, interpretada por Célia,José Maurício e Mazé Crescenti e, depois, J.C.Violla e Zélia Monteiro, e Promenade, com dançasde Célia, Rose Akras e Mazé, ambas de 1980;Expediente, a dança urbana de um homúnculo,um herói kafkiano segundo Viotti, perseguidona metrópole, com música de Luciano Berio, quesegundo a crítica apresentou o melhor momentode Violla desde sua estréia; Quatro Corpos, Dois


Estranhos, com figurinos de Ninette, e Urugungo,desta vez com o nosso grupo do Teatro de Dançae música de Nana de Vasconcelos, de 1981. Outrosucesso desse período foi De Pernas para o Ar,para o qual fiz direção e cenários. Dessa vez, Céliase inspirou em Alice no País das Maravilhas, deCarroll, criando um espetáculo no qual personagenscirculavam por mundos abstratos e oníricos,como os do tempo, do vazio, do amor, com fusãode todas essas experiências, e também inseriuversos de Hilda Hilst, ditos em gravação especialfeita por Irene Ravache. Era o fruto de uma suapesquisa sobre o gesto e a fala que, depois detrês meses de intensivos ensaios, levou ao palcotreze intérpretes, entre os quais Rose Akras eZélia Monteiro, além da própria Célia.213Mas o ponto culminante dessa safra foi a coreografiade Célia Assim Seja?, que estreou noTeatro Cultura Artística, com música de PierreHenry e Keith Jarret, para a qual fiz a direçãoe a programação visual, inclusive a iluminação,também muito aplaudida pela crítica. A partir depalavras da Bíblia, Célia criou uma missa profana,um ritual vivido por um povo oprimido, noqual se fundiam as tradições ritualísticas católica,africana e esotérica, num retorno da dança e doteatro à sua origem, ao rito, aliando a dança àmímica, a sons e ruídos. O elenco, além de Célia,


214era formado por Gabriela Rodella, João Senna,Brazília Botelho, Rose Akras, Mônica Monteiro,Zé Índio, entre outros. Helena Katz viu nesseespetáculo “frases que são verdadeiras aulasde composição, tal a justeza com que misturammúsica, espaço, corpo em ação e iluminação”.De fato, a excelência desse trabalho nos levoua reencená-lo várias vezes, inclusive em Portugal,onde foi apresentado em 1988 com grandesucesso de público e crítica na Mostra de DançaContemporânea Brasileira, ao lado de outrosquatro espetáculos, de Ismael Ivo, Sônia Motae Zeca Nunes, Mara Borba e do grupo mineiroTrans-forma. O patrocínio da turnê foi da FundaçãoCalouste Gulbenkian e do Minc.Além da direção, eu contribuía com todo ocomovente esforço de Célia para, com muitosacrifício, manter viva a chama desse teatro dedança, desenhando cartazes e filipetas, assumindoa iluminação, além de trabalhos recorrentesde cenários e figurinos. Vários desses espetáculosencerraram a temporada com algumas récitasno Teatro Municipal, o que me permitia lhes darenfim um “perfeito acabamento” visual nesseespaço privilegiado, conforme escreveu SérgioViotti. Na verdade, desde que Célia concluiu seucurso com Maurice Béjart em Bruxelas, fomossempre colaboradores um do outro. Ela fazendo


a parte de criação coreográfica e eu a direçãocênica, o trabalho de palco. Além disso, suas pesquisasvinham ao encontro do que eu há muitobuscava: a criação cênica multidisiciplinar. Incluomeentre os admiradores de seu trabalho, que,independentemente dos laços que nos unem,considero da maneira mais isenta possível umdos melhores, mais criativos, ousados e pessoaisdentre os já realizados na história da coreografiabrasileira.Por essa época, outro espetáculo que criei integralmente,desde o texto, foi a sátira Para Governador,que estreou em julho de 1981 no TeatroMaria Della Costa, no qual também atuei comoone-man show nas funções de ator, narrador,mímico e bailarino, vestido numa das cenas comroupa de bailarina clássica, com tutu, sapatilhasde ponta e maquiagem, no melhor estilo daCommedia dell’Arte que tanto marcou minhaformação teatral. Era uma espécie de ratatouillede nosso tempo, de um quebra-cabeça que semontava a cada noite a partir da reação da platéia,em que eu também aproveitava elementosdo gênero quase esquecido do cabaré-teatro.Principalmente quando se serve do improviso, oteatro é exatamente o avesso do “pronto parauso e consumo” que caracteriza a indústria culturaldos enlatados, das telenovelas, etc., e pude215


aí explorar à vontade esse filão do estreitamentodo contato ator-platéia. A palavra-de-ordemera sacudir o tédio, inclusive pela via do humorgrotesco. “Com uma simples observação ou umgesto, Vaneau leva a platéia ao riso aberto”,observou Sábato Magaldi.216Foi, enfim, uma época de grande fertilidade criativa,tanto minha como de Célia, e que coincidiucom o nascimento de nossa segunda filha, VâniaLuana, no dia 28 de abril de 1982, hoje seguindoos caminhos da dança na Europa. Afinal, ela játinha dançado muito na barriga de sua mamãe.Foi nesse ano que cheguei à conclusão de queeu tinha de começar de novo no teatro de texto.Então dirigi, co-produzi e fiz cenário, iluminaçãoe a própria coreografia para a comédia AsMalandragens de Escapino, de Molière, maisuma incursão minha pelo legado da Commediadell’Arte e a pantomima, enfim pela tradiçãomais pura do teatro. A tradução era de ninguémmenos que Carlos Drummond de Andrade, naverdade feita a meu pedido no início da décadade 60, quando eu pretendia encenar o texto noTBC, mas realizei uma montagem experimentalcom alunos da EAD, quando ali dei um curso.Cheguei a trocar nessa época breve correspondênciacom o grande poeta. “Que pena! Como euprevia, não será possível estar presente à estréia


do Scapino. Minha mulher não está em condiçõesde viajar e eu tenho de fazer-lhe companhia emcasa. Espero que o espetáculo esteja alcançandoo merecido sucesso, no belo tratamento cênicoque, sem dúvida, V. deu a Molière”, escreveu-meele no dia 27 de junho de 1982. Com figurinosde Ninette van Vuchelen, direção de produçãode Elizabeth Ribeiro, minha colaboradora desdeos tempos do TBC, e um elenco de jovens atores,vários deles ainda estudantes da EAD, entre osquais Flávio Colatrello no papel de Escapino, apeça foi apresentada no Teatro Sérgio Cardosonuma produção de minha MVPA e patrocínioda Rhodia.Por essa mesma época, criei e dirigi o espetáculoA História do Soldado, baseado na obra deStravinski com libreto de Ramuz, apresentadono Festival de Inverno de Campos do Jordão. Foidançado por Célia Gouvêa e J.C. Violla, e nele fizo papel do diabo, que eu já tinha desempenhadomuitos anos antes em Bruxelas. Pouco tempodepois, Célia faria a coreografia de Petruchka,também inspirada no compositor russo, para J.C.Violla, primeira de uma série de colaboraçõescom esse extraordinário bailarino e dessa vezsob direção de Naum Alves de Souza, e no anoseguinte ela voltava à cena com o duplo divertissementVolte para Casa, Sente-se ao Piano e217


218Para Governador, 1981


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Toque um Tango Argentino, inspirado no poemaPneumotórax, de Manuel Bandeira, e Gente feliz,em duo com Lis de Carvalho, espetáculo para oqual fiz a iluminação.220Porém, mesmo nesse longo período quando medediquei quase que em prioridade à dança, realizeioutros trabalhos no teatro, antes e depoisde Escapino, quase sempre atendendo a convitesinsistentes de atores ou produtores amigos. Doisanos antes, tinha dirigido A Calça – Cada Qual noseu Lugar, do alemão Carl Sternheim, em traduçãoe adaptação de meu amigo Millôr Fernandes,que ambientou o texto na classe média cariocade início do século 20. Com Oswaldo Loureiro,Cenário para Escapino


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que a produziu, mais Bete Mendes, Ítalo Rossi,Ricardo Petraglia e outros, a peça ficou em cartazpor 11 meses no Teatro Princesa Isabel, no Rioe depois foi reapresentada com novo elenco noTeatro FAAP, em São Paulo. E no final de 1983,a convite de John Herbert, dirigi o vaudevilleToalhas Quentes, de Marc Camoletti, com adaptaçãode Bibi Ferreira e elenco formado por JonasMello, Arlete Montenegro, Joana Mello, IveteBonfá, Zélia Martins e o próprio Herbert. Tratavasede um entretenimento leve e simpático, quefoi levado no Teatro Zaccaro.222Oh La La! Belle Epoque!, com Nathalia Timberg e RivaNimitz


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226Minha volta ao teatro se consolidaria naquele1983, quando aluguei o Teatro da Aliança Francesa,na Rua General Jardim, em São Paulo, commuitos planos de inovações cênicas. O primeiroespetáculo que montei ali nessa época foi Oh lala! Belle époque, um divertimento inspirado emGeorges Feydeau com minha cumplicidade e ade Millôr Fernandes, autor da tradução. Comigoestavam no elenco Nathalia Timberg, que tambémcuidou da produção executiva, Riva Nimitz,Eleu Salvador e outros. A direção musical era dePaulo Herculano, a coreografia de Célia Gouvêae eu também me incumbi da produção, direção,cenário, figurinos, além de ter desenhado e editadoo programa e as filipetas.Era um divertimento em duas partes, CabaréParis 1900 e A Finada Senhora sua Mãe, mais umgrand final com O Cancan das Gulosas com toda acompanhia. A crítica não foi muito favorável. Maseu estava completando meus 35 anos de teatroe a melhor forma de comemorá-los, pensei, seriaum espetáculo no qual eu voltasse a atuar comohomem de teatro completo.Também produzi vários espetáculos nessa fase noAliança Francesa. Um dos mais importantes foi ooratório Romanceiro da Inconfidência, inspiradona obra-prima de Cecília Meireles, com direção,seleção de poemas e montagem de textos da atriz


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Maria Fernanda, filha da poetisa, que atuou aolado de Rubens de Falco e Oswaldo Neiva, coma música de Edino Krieger interpretada por LuizFernando Gallon, filho da atriz e neto de Cecília.Era também uma maneira de homenageara grande escritora que até hoje sinto não terconhecido pessoalmente quando, nos anos 50,passei tanto tempo no Rio. Ainda produzi ali umshow de Patrício Bisso e a comédia Belas Figuras,de Ziraldo, com Nathalia Timberg e Jorge Dória,sob direção de Wolf Maia.228Voltei ao palco como one man show em 1985com A Tigresa e Outras Histórias, conjunto detrês breves fábulas de Dario Fo, com tradução


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de Millôr, para o qual mais uma vez desenheicartazes e filipetas. O texto me havia sido sugeridopor Sábato Magaldi e imediatamente mefascinou. Afinal, Fo, gênio do teatro que viriaa receber o Nobel de Literatura, é um grandeherdeiro da Commedia dell’Arte, o teatro purocom inspiração e tradição cômica popular, onde amímica, a magia e a expressão corporal se fazemtão essenciais quanto as palavras.232Nessa peça, em que me autodirigi e apresenteisem cenário nem figurinos, só um tablado forradode vermelho e com luz, gestos e voz, conteicom Célia Gouvêa e João Senna como umaespécie de preparadores, de maneira a procurarexplorar todos os recursos físicos e faciais, enfim,a própria poesia do corpo. O espetáculo estreouem março no Teatro Cultura Artística e depois foilevado ao Sérgio Cardoso e ao Centro CulturalSão Paulo. Dediquei-o à memória de Ziembinski ea todos os atores que pelo mundo afora representamnuma língua que não é a materna. Era umaforma de me redimir de meu renitente, emborajá declinante, sotaque francês! “O espetáculode Maurice Vaneau é, certamente, a versão maismadura de uma obra de Dario Fo encenadaentre nós”, assinalou Sábato Magaldi. Por suavez, Fausto Fuser considerou que com Tigresa apalavra e o gesto teatrais reencontravam “uma


vida que há tempos havia desaparecido”. Esta eraafinal a missão a que eu vinha me propondo nosúltimos anos, em busca de recuperar a essênciado teatro por meio do jogo do intérprete total.Encenei Tigresa já em pleno ensaio de outra peçade meu antigo amigo Tennessee Williams, suaobra-prima Um Bonde Chamado Desejo, com aqual Tereza Rachel reestreava o teatro que levavaseu nome, no Rio de Janeiro. Era um desafiodirigi-la no papel de Blanche Dubois, anos antesinterpretado entre nós por outra grande atriz,Maria Fernanda. Mas foi uma boa montagem.Além da direção, incumbi-me da iluminação eda trilha sonora, os cenários foram de MarcosFlaksman, os figurinos de Rosa Magalhães, ecompuseram o elenco Luiz Guilherme, LouiseCardoso e Osmar Prado, entre outros.233Em 1986, quando completei 60 anos, voltei a medividir entre o teatro, um cargo administrativo,dessa vez na Secretaria de Estado da Cultura, ea dança. Primeiro, a convite de Fulvio Stefanini,dirigi Grita Paixão, de Walcir Carrasco, com opróprio Fulvio e Cléo Ventura no papel dos protagonistasFernando e Talita. O cenário foi de Cyrodel Nero, os figurinos de Suely Cecini e eu me incumbitambém da iluminação. Em maio daqueleano, organizei em São Paulo o Festival Nacionalde Dança – Dos Pés à Cabeça, coordenado por


234Célia Gouvêa e inaugurado com os extraordináriosbalés Prelúdios e Bachiana do grupo Corpo,dirigido por Rodrigo Pederneiras. Ao longo dedois meses, 18 dos mais representativos gruposdo país desfilaram suas coreografias pelo palcodos teatros Galpão e Sérgio Cardoso, transformadosnuma grande vitrine da melhor dançacontemporânea brasileira. Paralelamente, organizamospalestras, debates, projeção de filmese workshops, que enfocavam as pesquisasdesenvolvidas e discutiam a organização dessesprofissionais, no esboço de um grande balançodo que se vinha fazendo nos últimos 15 anos,quando a dança conheceu um grande essort noBrasil, com o surgimento de dezenas de novosgrupos, entre os quais o Stagium, o Cisne Negro,o próprio grupo Corpo e o nosso Teatro deDança, que apresentou um conjunto de quatrocoreografias criadas por Célia Gouvêa, para asquais fiz figurinos e iluminação, além da direção:Assim seja?, Ciclos de Vidro, Expediente e Alhos eBugalhos. Quando perguntado por um jornalistasobre a enorme diferença entre o orçamento dapassagem pelo Brasil do Balé Bolshoi, naquelemesmo ano, e o de nosso festival, lembrei queéramos movidos por toneladas de boa vontadee de paixão pela dança, combustíveis que nosfaziam continuar. E que nos permitiriam criar,na gestão do secretário de Cultura Jorge Cunha


Lima, um espaço também para a dança nas OficinasCulturais Oswald de Andrade, no bairro doBom Retiro, onde no final da década de 80 leveiMaurice Béjart para fazer uma palestra. A idéiadesse festival já vinha sendo heroicamente postaem prática na Bahia por minha amiga DulceAquino e, no ano seguinte, fui convidado a darum curso na Oficina Nacional de Dança Contemporâneaem Salvador, organizada por ela. Doisanos depois, Debby Growald assumiu a direçãodo Balé do Teatro Castro Alves, de Salvador, eCélia foi convidada a criar uma coreografia parao grupo, assim nascendo Pé de valsa, pesquisa dajunção erudita e popular na dança, para a qualfiz cenografia, iluminação e figurinos.235E assim continuei pulando no palco entre o teatroe a dança. Em 1987, a convite de John Herbert,que a produziu, dirigi e fiz iluminação e figurinospara uma nova versão de Black Out, de FrederickKnott, a conhecida peça de suspense que haviasido dirigida 20 anos antes por Antunes Filho,dessa vez com tradução de Millôr e apresentadano Teatro Hilton. Os cenários foram feitos porCyro del Nero a partir da planta da montagemoriginal na Broadway, e reunimos outra vez ótimoelenco: Lúcia Veríssimo, no papel de Suzy, aprotagonista cega que enfrenta e acaba vencendoum grupo de bandidos – e para se preparar,


Lúcia foi observar durante semanas o comportamentode deficientes visuais numa instituiçãode São Paulo – Sérgio Mamberti, Mayara Magri,Jacques Lagoa, Márcio de Luca e o próprio JohnHerbert, entre outros. Pouco depois, fui chamadopor meu amigo Walmor Chagas para dirigiralgumas peças no Teatro Ziembinski, no Rio.Numa admirável iniciativa ele tinha criado esseespaço para a apresentação de um repertórioexclusivo de autores brasileiros, produzido porsua própria empresa.236Ali dirigi ? – só um ponto de interrogação, mesmo– de Millôr Fernandes, com cenografia de HélioEichbauer, e um elenco composto por DéboraFigueiredo, Clara Becker, Paulo Villaça, o próprioWalmor e outros; e também Deu Ladrão, de HerbertDaniel, ex-médico e ex-guerrilheiro, novamentecom cenário de Hélio Eichbauer e figurinosde Diana Eichbauer, e elenco formado por AnaRosa, Tarcísio Ortiz, Sílvia Aderne, Paulo Villaça,Rider Santos. Data mais ou menos dessa épocaminha direção do espetáculo Festarola, comcoreografia de Célia Gouvêa e apresentado noTeatro Sérgio Cardoso, resultado de uma longapesquisa que ela desenvolveu sobre a identidadee o gestual da dança brasileira com uma bolsado CNPq. Conforme indicou a crítica e bailarinaAna Michaela, tratava-se de uma reinvenção do


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folclore nacional, de um painel alegórico e críticoda realidade do país, em que os bailarinos (HelenaBastos, Alberi Lima, Aloísio Avaz, CláudioCrespo, Eliana Couto e outros) oscilavam entremovimentos apolíneos e dionisíacos, numa releiturada tradição que ia de reminiscências davindima grega ao nosso carnaval.Em 1989, dirigi outra coreografia de Célia, SapatasFenólicas, apresentada no Centro CulturalSão Paulo, a qual, segundo Helena Katz, reunia“com alta competência as marcas da pós-modernidade”.Dessa vez, Célia contracenava comnossas duas filhas ainda pequenas, Yara, entãocom dez anos, e Vânia, com sete. Mas essa não239Célia, com Vânia e Yara, em Sapatas Fenólicas


foi a primeira experiência de Yara sob os refletores:com apenas cinco anos, ela atuou, apósconcorridos testes de seleção, no filme de JohnBoorman A Floresta de Esmeraldas, rodado em1985 na Amazônia, quando eu a acompanheidurante as filmagens e acabei fazendo umaponta como ator.240Contudo, nas artes plásticas ou na culinária, Yarairia preferir atuar longe das câmeras e do palco,enquanto Vânia, vista por Boorman rindo e rodopiandona sala dos testes, e com apenas dois anosconsiderada por ele uma futura estrela, seguiria,como disse antes, o caminho da dança.A década de 90 começou bem para mim e, maisuma vez, com muito trabalho. Um dos primeirosfoi o projeto de instalação de um cenário decontos de fadas para a seção infantil da <strong>Livraria</strong>da Vila.Em 1991, dirigi e produzi Trasgo, trabalho dedança-teatro de Célia, resultado de pesquisasrealizadas dessa vez com uma bolsa Vitae deArtes, para o qual mais uma vez fiz tambémcenário, iluminação e figurinos. O título aludiaao trickster, o espírito travesso e moleque, tãoencontrado no povo brasileiro. Com textos deJorge Luis Borges e Herculano Villas-Boas, poeta efilósofo irmão de Célia, e apresentado no Teatro


Cenário para a <strong>Livraria</strong> da Vila241


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Sérgio Cardoso, o trabalho teve um elenco deoito bailarinos, entre os quais Emilie Sugai, KikaAntunes, Francisco Rider e Ricardo Fornara.Em 1991, Célia tinha sido convidada a criar umacoreografia para o Ballet Teatro Guaíra, deCuritiba, e escolheu a música A Bela Moleira, deSchubert, para esse trabalho. Fiz cenários e figurinos.Foi um dos pontos mais altos do universopoético de sua linguagem coreográfica, no quala protagonista se agarrava à roda de um moinhoe girava em seu eixo. E em 1992 recebi o título decidadão paulistano – afinal, além de sempre tergostado muito de viver e trabalhar nesta cidade,nasci no mesmo dia que ela. E, ao mesmo tempo,fui contemplado com uma bolsa Vitae de Artespara desenvolver o projeto de memória visual demeus principais trabalhos cênicos.243Pouco depois, eu seria convidado a dirigir a óperaColombo, criada um século antes por Carlos Gomescom libreto do italiano Albino Falanca, noCentro Cultural Teatro Guaíra, de Curitiba, sob aregência do maestro Roberto Duarte à frente daOrquestra Sinfônica do Paraná e do Coral TeatroGuaíra. Criei também os cenários e deleguei acoreografia a Célia Gouvêa. A montagem foi umêxito e, logo em seguida, fui chamado a assumira direção artística do Guaíra e, ao mesmo tempo,a ali dirigir outra ópera: Aída, de Verdi. Na


verdade, eu já acumulava então considerável experiênciana montagem e direção de espetáculoslíricos, iniciada ainda no final dos anos 60 com aÓpera Nacional da Bélgica, no Théâtre Royal dela Monnaie, em Bruxelas, quando dirigi Marouf,Sapateiro do Cairo, do francês Henri Rabaud,inspirada num conto das Mil e Uma Noites.Cerca de 15 bailarinos do Ballet du XXème. Siècledançaram então a coreografia criada por PaoloBortoluzzi e a cenografia foi de Yves Bosquet.Pouco depois, no final de 1970, dirigi para a mesmacompanhia O Barbeiro de Sevilha, de Rossini,244Cenário para Aída


para a qual viria a fazer cenografia e figurinosquando de sua montagem no Municipal de SãoPaulo, sob regência do maestro Isaac Karabtchevsky,em 1995. A ópera, segundo penso, éuma modalidade de teatro multidisciplinar outotal, à medida que os cenários possibilitam acriação plástica, além de reunir música, canto erepresentação.Com essa experiência com a música, eu me consoleium pouquinho de uma das poucas frustraçõesde minha vida profissional: a de não ter aprendidoa tocar um instrumento.Aída foi levada ao palco do Guaíra em março de1993, em comemoração aos 300 anos de Curitiba,e nessa encenação, além da direção geral, meincumbi da cenografia. O regente da Sinfônicado Paraná era Roberto Duarte e o dos coros,Emmanuel Martinez, enquanto a soprano Luizade Moura fez Aída e o tenor Eduardo Álvares,Radamés. Entusiasmado com os resultados deColombo, voltei a escalar Célia Gouvêa para acoreografia da ópera de Verdi, interpretada peloBallet do Teatro Guaíra e uma vez mais muitoaplaudida, e os figurinos, em parte emprestadosa uma montagem realizada no Rio de Janeiro,ficaram a cargo de Dada Salagieri. Além de dirigiruma equipe de perto de 300 pessoas, coloquei,em minha reconstituição do Egito, animais em245


246Cenas de Aída


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248carne e osso no palco: a fêmea de elefante Mila,um camelo e um cavalo. A montagem foi consideradapela crítica uma das melhores produções atéentão realizadas pelo Guaíra, enquanto algunsse excederam ao classificar minha direção comogenial. Seja como for, críticos do eixo Rio-SãoPaulo se deslocaram a Curitiba para assistir à nossaAída, e entre eles Luiz Paulo Horta destacou,além do trabalho de intérpretes, a direção, oscenários e a coreografia. “É extremamente bela areconstituição do Templo de Vulcano na cerimôniaem que Ramfis entrega a Radamés a espadasagrada”, assinalou, por exemplo, elogiando a“imaginação cenográfica” da montagem. Emagosto daquele ano, com variações, Aída foiencenada no Teatro Municipal de São Paulo,


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numa produção que aproveitou meus cenários ea elogiada coreografia de Célia.250Na mesma época, dirigi e fiz cenários e iluminaçãopara Tosca, de Giacomo Puccini, apresentadana abertura da temporada lírica do Municipalpaulistano e cuja gravação foi exibida pela TVCultura. Regência e direção musical foram domaestro Tullio Colacioppo e com um elencoítalo-brasileiro nessa montagem, com SilviaMosca (Tosca), Alberto Cupido (Cavaradossi) eAlberto Noli (Scarpia) nos papéis principais. Maseu tinha sido emprestado pelo Teatro Guaírade Curitiba, para onde voltei para completar aextensa programação que havia planejado, taiscomo a montagem de A Viúva Alegre, a operetade Franz Lehár, em 1994, dessa vez sob direçãogeral de Oswaldo Loureiro, direção musical domaestro David Machado, com tradução de MillôrFernandes, cenário e iluminação de CarlosKur e coreografia de Célia Gouvêa. No elenco,Celine Imbert no papel título, Paulo Fortes comoo Barão Zeta e Eduardo Álvares como o CondeDanilo. No Guaíra ainda programei As Cançõesde Wesendock, de Richard Wagner, e A Sagraçãoda Primavera, de Stravinski, entre muitos outrosespetáculos.Foi muito frutífera essa temporada à frente doGuaíra em Curitiba, onde permaneci até fins


de 1994. Outros trabalhos me esperavam naminha volta a São Paulo. Contudo, em meadosda década de 90, recém-septuagenário, minhasaúde iria me pregar uma peça. Mas, enfim, nãoposso reclamar dela. Desde os tempos de menino,quando tomava xarope para sarar da tosse,seria a primeira verdadeira doença numa vidabastante animada.251


Capítulo VTelevisão. E as despedidas do palco.Fui sempre crítico ferrenho da televisão, da maneiracomo ela tende em geral a nivelar por baixo,procurando e conseguindo anestesiar a mentede centenas de milhões de pessoas em todo omundo, quase sempre passando ao largo das verdadeirasmanifestações culturais e artísticas. Mas,apesar de todo o meu espírito crítico, cheguei afazer trabalhos para a telinha, alguns poucos nafrente, mas os mais numerosos e interessantesdeles atrás das câmeras.Participei, como ator, em apenas duas telenovelasda televisão brasileira: Carmem, de Glória Perez edireção de José Wilker, levada ao ar pela antigarede Manchete entre 1987 e 1988, com LucéliaSantos no papel principal e Paulo Betti, BeatrizSegall, Rosita Tomaz Lopes, José Dumont, minhaamiga Juliana Carneiro da Cunha e o próprio Wilkerno elenco, entre outros, além de mim. Fiz opapel do Dr. Junot, empresário duro e poderoso,que acabava nas mãos de um mau-caráter, Ciro,interpretado por Paulo Betti.253Um dos poucos méritos dessa novela era enfocar,já na época, o problema da aids. Minha segunda


254Cenas de Carmem, na TV Manchete


experiência no gênero foi no papel de Richilieu,em Brasileiras e Brasileiros, de Carlos AlbertoSoffredini e Walter Avancini, com direção deste,que foi quem me convidou a integrar o elenco.Essa foi apresentada no SBT entre 1990 e 1991 eo título aludia à fala de José Sarney, que quandopresidente se dirigia ao povo com aquela expressão,possivelmente inspirado em presidentesfranceses. O elenco também era muito bom,formado por atores como Edson Celulari, FulvioStefanini, Carla Camurati, Rubens de Falco, NeyLatorraca. Mas essa novela teve pouca audiência,e uma das explicações, para meu espanto, erao fato de ser ambientada na camada pobre dasociedade. Teria mesmo razão Joãozinho Trinta,quando dizia que pobre gosta de luxo e quemgosta de pobreza é intelectual? Porém, minhaestréia na TV brasileira foi na minissérie A Máfiano Brasil, inspirada em texto de Mário Prata, levadaao ar em 1984 na Rede Globo sob direçãode Roberto Farias, com apenas 20 capítulos.255Além de inúmeros programas de dança e teatropara crianças, realizados em estúdio na TVbelga, dos quais participei na década de 50, doque gostei mesmo de fazer nessa área foram ostelefilmes, reportagens e documentários para aRádio e Televisão da Bélgica (na época INR/RTB,hoje RTBF), com um dos quais recebi o prêmio


256de Montecarlo em 1964. Transmitidos em programascomo Neuf Millions e Faits divers, nelesexerci uma interessante experiência autoral queme levou a várias partes do mundo, do Brasil à Índia,da então União Soviética a países da EuropaOcidental. Na volta a Bruxelas, eu me incumbiada montagem e da edição dos filmes. Com umapequena equipe, em geral composta por PierreManuel, o câmera Manu Bonmariage e AlbertRupf, nosso objetivo era valorizar a imagem e osom, a palavra e o gesto. Fazíamos um tipo decinema-verdade que nos punha em contato compessoas e ambientes os mais diversos: tranqüilos,alegres, violentos, cruéis, poéticos, etc. Tambémpor isso, acredito que essa experiência enriqueceumeu trabalho no palco.Creio que fiz o primeiro desses filmes quandovoltei à Europa no final dos anos 50, depois deminha primeira temporada no Brasil. Um dos queobtiveram grande audiência na televisão belgafoi uma entrevista feita, se bem me lembro emRoma, com o geógrafo e sociólogo pernambucanoJosué de Castro, autor de importantes trabalhoscientíficos sobre o problema da fome nomundo, como Geografia da Fome, quando erapresidente do conselho da FAO, o órgão da ONUpara alimentação e agricultura. Aliás, Josué teveos direitos cassados pelo regime militar brasileiro,


quando foi demitido dos cargos internacionaisque ocupava, então se transferindo para Paris,onde foi professor universitário e morreu. Um deseus livros, destinado à alimentação de crianças,teve co-autoria de Cecília Meireles, que o pôsem versos.Vários desses documentários rodei no Brasil. Umdeles foi sobre a Bahia de Todos os Santos e de360 Igrejas e a Capoeira de Origem Africana.Outro, numa co-produção belgo-alemã, sobreo Nordeste, enfocando temas como o analfabetismo,os mocambos, a miséria, crianças sedrogando com cola.257Um terceiro consistia de entrevistas com líderespolíticos, como Carlos Lacerda, comunista quepassou à extrema direita, sobre os motivos pelosquais ele acabou se opondo à ditadura, e comintelectuais, como o escritor Antonio Callado,sobre a natureza do regime militar. No Texas,filmei uma penitenciária modelo, prisioneirosque se banhavam e se barbeavam, dispunhamde um bom refeitório, faziam parte até de umgrupo vocal e instrumental e, no corredor doscondenados à morte, os dedos de dois homensque jogavam dominó por trás das grades e que,no dia seguinte, iriam para a cadeira elétrica.


Ainda nos Estados Unidos, mostrei um dia navida de Mr. Lafayette Hunt, então o homemmais rico do mundo, que içava ele próprio abandeira americana todas as manhãs em seujardim; e, em Fahrenheit, filmado no Arizona,enfoquei o fabricante de cápsulas destinadas ahomens e mulheres doentes que recomendavamseu congelamento em cilindros metálicosaté o dia em que pudessem ser curados, ou setornar belos como Marilyn Monroe, no caso dasmulheres.258Penitenciária no Texas


Em 1967, fui à Índia filmar cenas de rua, as vacassagradas, e de repente, um pai aparece dianteda câmera dando algumas palmadas em seu filhoque, aparentemente, não era sagrado. Alguns filmesrodamos na França, como o cotidiano de doispadres nos subúrbios vermelhos de Paris, e muitosoutros na própria Bélgica, um dos quais, em 1972,tematizou a vida e os rituais da comunidade ciganae, outro em 1974, Roman-photo (fotonovela),que enfocava a produção de um desses trabalhos,baseado em A Cidadela, de Cronin, e tinha comotema o desprendimento do cotidiano, o sonhode vivenciar uma outra realidade e de alcançarcerta notoriedade. Documentários como esses,alguns dos quais também transmitidos pela TVfrancesa e suíça, foram a melhor forma de acertaros ponteiros com o projeto de fazer cinema, quetanto alimentei na adolescência.259O período que sucedeu à minha estada no Guaíra,em Curitiba, foi ainda rico de realizações eprojetos sobretudo na área da dança, com umaúltima incursão no teatro. Mal regressei a SãoPaulo, em 1994, mergulhei na criação do cenárioe da iluminação para um conjunto de coreografiascom que Célia Gouvêa comemorava seusvinte anos de dança contemporânea: Pedra noCaminho, inspirada no célebre poema de CarlosDrummond de Andrade; Romance de D. Mariana,


260com música tradicional portuguesa; A Morte ea Donzela, inspirada na obra de Schubert e Periódico,com trilha de Hermeto Paschoal. Inserinessa série um número de improvisação, que eumesmo interpretei, Andares. Afinal, Célia e eutambém comemorávamos vinte anos de pas dedeux no palco, iniciado no Teatro Galpão comCaminhada. “Gouvêa e Vaneau marcaram essasduas décadas de carreira com a persistência dosobstinados, sempre protestando contra a orfandadeem que as políticas culturais locais mantêmseus artistas. Graças a esse empenho pessoal,doaram à dança brasileira uma coleção de obrasimportantes”, escreveu Helena Katz na época.Sem dúvida, essa obstinação pela construção deuma dança contemporânea brasileira foi um atode resistência!Essa série foi apresentada primeiro no CentroCultural São Paulo e, em seguida, no teatro doSesc-Anchieta, e teve, além da própria Célia, aparticipação dos intérpretes Ricardo Fornara,Rosa Primo, Marisa Godoy e Francisco Rider,além de minha filha Vânia Vaneau em A Mortee a Donzela. Minha participação no trabalho eratambém, como escrevi no programa, uma maneirade homenagear o empenho de Célia em conquistarcondições materiais mínimas, indispensáveisà consolidação de um longo e belo trabalho


ealizado – no qual sempre lidou com imagens,como um poeta, reconhecera Sérgio Viotti – nosentido de criar uma dança contemporânea emseu país, como as que existem na Alemanha, naFrança, nos Estados Unidos. Causa pela qual elasempre lutou como poucos no Brasil. E, no anoseguinte, além do trabalho de cenografia e figurinospara a montagem da ópera O Barbeiro deSevilha na montagem do Teatro Municipal de SãoPaulo, eu voltaria a criar cenários e iluminaçãopara outro espetáculo de Célia, Abrigo, dançadopor ela e Ricardo Fornara, e apresentado no Sesc-Pompéia e no Sesc-Ipiranga.Completei 70 anos de vida no dia 25 de janeirode 1996. Fiz então, com Célia e minhas duasfilhas, uma viagem sentimental à Europa. Chegamosa Portugal e depois seguimos de carroaté Nice, onde reencontrei meu querido amigoJacques Danois. Em seguida tomamos o rumoda França e da Bélgica, onde realizei um sonho:reunir novamente meus três filhos, Peri, Yara eVânia, então respectivamente com 33, 17 e 14anos. Todos paulistanos. O encontro aconteceuem Liège, onde ainda hoje vive Peri. Foi umagrande emoção! Voltei a São Paulo com minhasfilhas, e Célia permaneceu em Portugal a fimde realizar trabalhos na Companhia de Dançade Lisboa.261


262Na volta a São Paulo, fui convidado por MauroChaves para dirigir sua peça Beethoven, sobreo genial compositor alemão, neto de um bommúsico belga. A montagem, apresentada noTeatro Sérgio Cardoso, estreou em março de1997 com um elenco formado por Stênio Garcia,Ester Góes, Gustavo Engracia, Luiz Serra, RicardoFornara, entre outros. A trilha sonora com amúsica de Beethoven era do próprio autor dotexto, grande conhecedor da música do compositor,que também assumiu a produção,e CéliaGouvêa incumbiu-se da preparação corporal eda coreografia dos atores. Esta seria minha últimaincursão no teatro de texto. Seria tambémCom Mauro Chaves e Stênio Garcia


a despedida do trabalho de diretor total, istoé, aquele que concebe o espetáculo como umtodo, criando todo o universo cênico, da direçãoe da cenografia aos figurinos e à iluminação,os quais uma vez mais também realizei. Enfim,um gênero de trabalho que marcou toda umageração de diretores, aqui, nos Estados Unidos,na Europa.No final daquele ano, fiz a supervisão cênica e ailuminação para uma nova coreografia de Célia,Ladeira da Misericórdia, espetáculo que, segundonossa proposta de décadas, unia dança, teatro,música e artes circenses. Seus personagens eramandarilhos, viajantes sem destino, recolhendomateriais toscos encontrados pelas ruas e colocandoas eternas questões do ser humano: deonde viemos, para onde vamos? Eram os excluídos,os descartáveis, os que ficam com os restos,com as embalagens, enquanto os privilegiadosficam com os produtos.263Os breves textos inseridos por Célia provinhamde depoimentos desses marginalizados recolhidospor Miriam Chnaiderman e Regina Hallacke havia também frases de José Saramago. Osintérpretes foram Gabriela Rodella, Dario Bruno,Helena Bastos, Márcio Moraes, Ricardo Fornara eLara Dau (ex-Pinheiro), encarregada nessa versãotambém de cenários e figurinos. Essa montagem


264Stênio Garcia como Beethoven


foi apresentada em 1997 na 2ª Mostra NacionalComfort em Dança no Teatro Sérgio Cardoso.Foi durante os ensaios de Ladeira da Misericórdiaque me senti mal. Pensei que era uma crise degarganta, mas logo foi diagnosticado um problemacardíaco. A causa: uma artéria entupida.Consultei o cardiologista Joaquim Brilhante efui parar no Einstein, o primeiro hospital emque me internei na vida desde aquele acidenteem Bruxelas, nos anos 50. Estava então com 71anos. Foi esse o começo do declínio de uma saúdeverdadeiramente de ferro! Mas não me deipor vencido e continuei a trabalhar, embora emritmo mais brando. Mais tarde, Célia e eu até nosserviríamos de um dos exames cardiológicos quefiz, a cinecoronariografia, para criar um outroespetáculo.265Comemorei meus cinqüenta anos de teatro, em1998, colaborando em uma nova montagem deLadeira da Misericórdia, dessa vez apresentadacomo parte do projeto O Realismo Mágico naDança, com apoio do Fundo Nacional de Cultura,do Minc. A nova versão foi levada no Memorialda América Latina, onde se promoveu um coquetelem homenagem ao meu meio século devida no palco. Criei os cenários para essa apresentação,procurando explorar as sutilezas dosubmundo dos marginalizados, ambiente que


oscila da violência à doçura, da poesia à alegria,de maneira mais radical do que acontece comtodos nós.Pouco depois, Célia partiria com Vânia, nossa filhamais nova, para a França, para realizar novas266O Bosque das Artes Cênicas


pesquisas, dessa vez no Centre ChoréographiqueNational de Rillieux-la-Pape, de Maguy Marin, nosarredores de Lyon, graças a uma bolsa Virtuoseque recebeu do Ministério da Cultura. Fiquei emSão Paulo com Yara, nossa filha mais velha. E,metido num macacão, me pus a trabalhar dia e267


noite, colaborando na montagem da exposiçãocomemorativa da reinauguração do TBC que,já cinqüentenário, reabriu suas portas em 1999depois de reformas. Fiz uma instalação para amostra, na forma de uma nuvem com fotos deatores que trabalharam na casa criada por FrancoZampari, que centralizava a nuvem ao lado deCacilda, Walmor, Leonardo Villar, Cleyde Yaconis,Fernanda Montenegro, Ziembinski, ElisabethHenreid, Eugenio Kusnet, entre tantos outros, e aela dei o título de Bosque das Artes Cênicas.268Mas fiquei por pouco tempo em São Paulo. Em1999, segui para Paris, onde minha mulher e filhaentão residiam, a fim de colaborar e fazer ailuminação para uma nova coreografia de Célia,Mãe tzé-tzá, dançada por ela e por nossa filhabailarina, Vânia Vaneau. O trabalho foi apresentadoem dezembro daquele ano na sala deensaios da Cartoucherie de Vincennes, sede dofamoso Théâtre du Soleil de Arianne Minouchkine,e depois seria levado a Lyon e a Bruxelas. “É auma demonstração de riqueza das possibilidadesda dança contemporânea ao que nos convidaesse canteiro coreográfico: passos clássicos, ritmosafricanos, expressividade teatral, reflexãoirônica, sempre preservando a emoção simplesde uma carícia”, compreendeu a crítica da revistaparisiense Les Saisons de la Danse.


E, no ano seguinte, novamente em Paris, voltei acolaborar com Célia na criação de outro trabalho,Cinecoronariografia, que tomou como ponto departida aqueles meus exames cardiológicos, naverdade um filme que registrava uma espéciede viagem profunda e invasiva pelo interior docorpo humano.O meu próprio corpo. Nele atuei como criadorintérprete,ao lado de Célia e dos bailarinos AlexRoccoli e Agnès Denis. Essa coreografia foi apresentadaem fevereiro de 2001 no mesmo espaçode Vincennes, com trilha sonora especialmentecomposta por Carlos Bernardo, músico brasileiroque trabalhou no Théâtre du Soleil, intercaladapor fragmentos de textos médicos escolhidos porCélia. No programa, dessa vez, um desenho denossa filha mais velha, Yara, que então já se transferirapara a França. Meu projeto de desenvolverUm Balanço do Século 20 me permitiu entãoreceber uma bolsa da John Simon GuggenheimMemorial Foundation, em 2001.269Viajei a Nova York e, na volta a São Paulo, inicieio roteiro, do qual minha atuação como criadorintérpreteem Cinecoronariografia em Paris jáconsistira uma primeira parte. Outra foi o vídeodesse trabalho, realizado em São Paulo por LeonardoCrescenti, do qual, como no registro cênico,fui o protagonista. Já o projeto de criar em


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São Paulo uma escola de formação do intérpretetotal, nos moldes do Mudra de Maurice Béjart,o qual cheguei a encaminhar ao então ministroda Cultura, Francisco Weffort, infelizmente nãose concretizou.Depois disso, fiz ainda a iluminação, em 2002,para a apresentação de Mãe tzé-tzá, de Célia,no Centro Cultural Banco do Brasil em São Paulo.Uma nova versão, em que ela novamente dançavacom nossa filha Vânia e ambas eram acompanhadasao piano por sua mãe e avó, Odete Villas-Boas Gouvêa, minha sogra, que foi professorado instrumento na juventude. Três gerações nopalco, um espetáculo mágico e tocante. Mas asluzes já começavam a se apagar para mim.271Minha intenção, com a bolsa Guggenheim, alémde protagonizar Cinecoronariografia, era criarum novo espetáculo, que reunisse de maneirasingular, numa verdadeira e última síntese, todasas artes cênicas – teatro, dança, pantomima, cenografia,figurinos, música, iluminação, etc. Comtexto falado, cantado, cantarolado, com músicamoderna e popular, brasileira e de outros países.Os artistas cênicos, todos, teriam de dominar oteatro, a dança, a pantomima, o canto. O texto,que comecei a escrever, devia ser supersatírico,mesmo um tanto herético. Ele partia de umaconstatação: minha turnê terminou. Agora, para


onde vou? Para o céu, para o inferno? Mas esseroteiro ainda hoje permanece inconcluso. Outroprojeto, o de eu mesmo escrever minhas memórias,também não avançou. É que minha própriamemória começou a embaralhar. No começo, eraaté cômico: eu passava de uma língua a outrasem me dar conta. Mas foi duro perceber que,na verdade, eu não conseguia mais me expressar,achar as palavras, nem em francês, nem emportuguês, inglês, alemão ou italiano.272Línguas que eu falava tão bem! Dizem que issoé normal para alguém já perto dos oitenta anos.Mas estarei mesmo condenado ao silêncio?Depois de ter atuado, cenografado, iluminadoe dirigido mais de cem peças e espetáculos, noBrasil e na Europa, de receber cerca de vinte prêmios,dentre os mais importantes do Brasil e daBélgica, de realizar incontáveis filmes, de escreveralguns roteiros, de produzir tantas encenações,de administrar teatros, de desenhar cartazes,programas, filipetas, de acolher aplausos, exegesese também críticas, algumas vezes duras,de ter viajado tanto por este nosso tão agredidoplaneta. Depois disso tudo, não posso deixar deestranhar esse repentino silêncio, de estranhar amim mesmo. Esse meu novo e indefinido papel,esse silencioso cenário. Mas, às vezes, apesar detudo, acho que a vida é boa mesmo na velhice.


Célia me leva a passear no parque; observo asárvores, as folhas, os pássaros, o céu, o sol. Céliame dá os remédios, me leva ao médico, ao barbeiro,cuida de mim como se eu fosse uma criancinha!Dizem que fiquei mais doce, mais calmo,embora ainda tenha minhas explosões! Aindarego as plantas de nosso apartamento, dia sim,dia não. Não temos mais uma pequena florestaexuberante, como no passado. Mas restaramgerânios, samambaias, avencas, dos quais sou opequeno jardineiro, e que atraem passarinhosem meu terraço. Nas refeições, ainda tomo meuvinho. Nenhum dos tintos que eu tanto conheciae apreciava. Um vinho mais fraco e adocicado,que tomo gelado e que me dá prazer. Minhasfilhas virão nos visitar em São Paulo. Então estareicom o meu trio, minhas três graças. Célia, Yara eVânia. Além de minha mãe, ainda tão presentedentro de mim, são elas o que tenho de maisprecioso na vida.273Estou no caminho da morte, e gostaria que elaocorresse de maneira calma, em paz. Não mesurpreende que o homem tenha inventado Deus.E me sinto contente de ter feito e visto tantascoisas!


274


CronologiaTelevisão1984• A Máfia no Brasil (Minissérie Rede Globo – Dir.:Roberto Farias)1987/88• Carmen (Novela de Glória Perez - TV Manchete)Intérprete: papel do empresário Jean-PierreJunot1990/92• Brasileiros e Brasileiras (Novela de C.A. Sofredinie Walter Avancini - SBT) Intérprete: papelde Richilieu275


Teatro no BrasilDireção (e outras atribuições simultâneas)1955•Barrabás (Michel de Ghelderode) Equipe doThéâtre National de Belgique, Teatro Municipal-RJ e Teatro Santana-SP1956• A casa de chá do luar de agosto (John Patrick)Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)-SP e TeatroGinástico-RJ276• Gata em Teto de Zinco Quente (TennesseeWilliams) TBC-SP e Teatro Maison de France-RJ1957• As Provas de Amor (João Bethencourt) TBC-SP• A Rainha e os Rebeldes (Ugo Betti) TBC-SP1962• O Marido Vai à Caça (Georges Feydeau) TeatroMaria Della Costa-SP• Quatro Num Quarto (Valentin Kataiev) TeatroOficina-SP1963• Os Ossos do Barão (Jorge Andrade) TBC-SP


1964• Qualquer Quarta-feira (Muriel Resnik) TeatroCopacabana-RJ• O Preço de um Homem (Steve Passeur) TeatroMesbla-RJ1965• Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (EdwardAlbee) Teatro Cacilda Becker-SP• Voulez-vous jouer avec moá? (Marcel Achard)Teatro Aliança Francesa-SP e depois Rio, Manaus,Belém, Recife e Salvador1966• Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (EdwardAlbee) Teatro Maison de France-RJ277• O Sistema Fabrizzi (Albert Husson) TeatroAliança Francesa• Um Amor Suspicaz (Bill Manhoff) Teatro Copacabana-RJ1967• O Olho Azul da Falecida (Joe Orton) TeatroGinás tico-RJ• Os corruptos (Lilian Hellman) Teatro Ginástico-RJ


• O Assassinato de Irmã Geórgia (Frank Markus)Teatro Gláucio Gil-RJ• Lisístrata (Aristófanes) Teatro Galpão-SP1968• Black Comedy (Peter Schaffer) Teatro Maisonde France-RJ1969• As Moças (Isabel Câmara) Teatro Cacilda Becker-SP2781970• Os Rapazes da Banda (Mart Crowley) TeatroCacilda Becker-SP e Teatro Maison de France-RJ1975• Allegro ma non troppo (Maurice Vaneau) Teatrode Dança (Galpão)-SP1979• A Calça – Cada Qual no Seu Lugar (Carl Sternheim)Teatro Princesa Isabel-RJ e Teatro Faap-SP1981• Para Governador (Maurice Vaneau) TeatroMaria Della Costa-SP1982• As Malandragens de Escapino (Molière) TeatroSérgio Cardoso-SP


1983• Toalhas Quentes (Marc Camoletti) Teatro Zaccaro-SP• Oh la la! Belle époque (Georges Feydeau, adap.Maurice Vaneau e Millôr Fernandes) Teatro daAliança Francesa-SP1985• A Tigresa e Outras Histórias (Dario Fo) TeatroCultura Artística, Teatro Sérgio Cardoso e CentroCultural São Paulo• Um Bonde Chamado Desejo (Tennessee Williams)Teatro Tereza Rachel-RJ1986• Grita Paixão (Walcir Carrasco) Teatro CulturaArtística-SP2791987• Black Out (Frederick Knott) Teatro Hilton-SP1988• ? (Millôr Fernandes) Teatro Ziembinski-RJ• Deu Ladrão (Herbert Daniel) Teatro Ziembinski-RJ1997• Beethoven (Mauro Chaves) Teatro Sérgio Cardoso


Outros trabalhos1963• O reco-reco (Charles Dyer) cenário - TeatroCacilda Becker-SP• L’Apollon (Jean Giraudoux) e La Grammaire(Eugène Labiche) intérprete - Teatro AliançaFrancesa-SP Grupo Le Strapontin1966• Um Pouco de Loucura Não Faz Mal a Ninguém(Michel André) produção - Teatro Maison deFrance2801975• Benito Gutmacher - produção - Teatro Galpão1982• Riou&Pouchain - produção - Teatro CulturaArtística1983• Romanceiro da Inconfidência (Cecília Meireles)produção - Teatro Aliança Francesa-SP• Belas Figuras (Ziraldo) produção - Teatro AliançaFrancesa-SP• Patrício Bisso (show) produção - Teatro AliançaFrancesa-SP


Direção e administração de teatros1956-57Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)1963-64Teatro Brasileiro de Comédia (TBC)1975-76Theatro Municipal e Departamento de Teatrosda Prefeitura de São Paulo1977Teatro Castro Alves, Salvador, Bahia1992-94Centro Cultural Teatro Guaíra, Curitiba, Paraná281Óperas1969• Marouf, Sapateiro do Cairo (Henri Rabaud) direção- Opéra Nationale de Belgique, Bruxelas1970• O Barbeiro de Sevilha (Gioacchino Rossini) direção- Opéra National de Belgique, Bruxelas1992• Colombo (Carlos Gomes) direção e cenografia- Teatro Guaíra, Curitiba


1993• Aída (Giuseppe Verdi) direção e cenografia- Teatro Guaíra, Curitiba1994• Tosca (Giacomo Puccini) direção, iluminação,cenografia - Theatro Municipal-SP1995• O Barbeiro de Sevilha (Gioacchino Rossini): cenografiae figurinos - Theatro Municipal-SPDança2821969• Fedra (Companhia Renée Gumiel) cenário, iluminação,figurinos - Teatro São Pedro-SP1973• Eh, Johnny, regarde! (coreografia de Micha VanHoecke) intérprete protagonista - Opéra de Lyon• Les mariés de la tour Eiffel (Jean Cocteau) interpretaçãoe mímica - Ballet du XXème Siècle,Bruxelas1974• Caminhada (coreografia de Célia Gouvêa) direção- Teatro de Dança de São Paulo (Galpão)


1978• Dances and Paper Pieces (coreografia de CéliaGouvêa e Henrietta Bagley) iluminação - Cubiculo’sTheater, Nova York, EUA• Isadora, Ventos e Vagas (coreografia de CéliaGouvêa) direção - Teatro Cultura Artística-SP1979• Trem Fantasma e Outras Danças (coreografiade Célia Gouvêa) direção e programação visual- Theatro Municipal-SP1980• Lenda e Contrastes para Três (coreografias deCélia Gouvêa) cenários, figurinos e iluminação -Teatro de Dança de São Paulo, Galpão e TheatroMunicipal2831981• Quatro Corpos, Dois Estranhos e Urugungo(coreografias de Célia Gouvêa) direção - Teatrode Dança de São Paulo, Galpão1982• De Pernas para o Ar (coreografia de Célia Gouvêa)direção - Teatro de Dança de São Paulo,Galpão• Assim Seja? (coreografia de Célia Gouvêa) direção,iluminação, programação visual - Teatro


de Dança de São Paulo, Galpão, e Mostra deDança Contemporânea Brasileira (Lisboa, Portugal1988)• A História do Soldado (sobre música de Strawinski)criação, direção e intérprete - Festival deInverno de Campos do Jordão1988• Festarola (coreografia de Célia Gouvêa): direção,cenário e iluminação2841989• Pé de Valsa (coreografia de Célia Gouvêa) cenário,iluminação, figurinos - Teatro Castro Alves,Salvador, Bahia• Sapatas Fenólicas (coreografia de Célia Gouvêa)direção - Centro Cultural São Paulo1991• Trasgo (coreografia de Célia Gouvêa) direçãoe produção• A Bela Moleira (música de Franz Schubert; coreografiade Célia Gouvêa) cenários, figurinos,iluminação - Teatro Guaíra, Curitiba1994• Pedra no Caminho, Romance de D. Mariana,Periódico, Andares, A Morte e a Donzela (coreo-


grafias de Célia Gouvêa) cenário e iluminação- Centro Cultural São Paulo e Sesc-Anchieta-SP1995• Abrigo (coreografia de Célia Gouvêa) cenáriose iluminação - Sescs Pompéia e Ipiranga-SP1997 e 1998• Ladeira da Misericórdia (coreografia de CéliaGouvêa) supervisão cênica e iluminação - TeatroSérgio Cardoso e Memorial da América Latina-SP1999• Mãe tzé-tza (coreografia de Célia Gouvêa) iluminaçãoe supervisão cênica - Cartoucherie deVincennes, Paris2852001• Cinecoronariografia (coreografia de Célia Gouvêa)criador-intérprete - Cartoucherie de Vincennes,Paris2002• Mãe tzé-tzá (coreografia de Célia Gouvêa) iluminação- Centro Cultural Banco do Brasil-SPFilmes e documentáriosA partir da década de 60 – realizações para aRádio e Televisão da Bélgica• Entrevista com o geógrafo e sociólogo brasileiroJosué de Castro


• Entrevistas com Antônio Callado e Carlos Lacerdasobre o golpe militar de 1964• Alagados na Bahia e Nordeste – Brasil• Fahrenheit – EUA• Penitenciária Modelo – EUA• O Homem Mais Rico do Mundo – EUA• Roman-photo - Bélgica• Cenas de Rua – Índia286• Subúrbios Vermelhos – Paris(e muitos outros)Teatro na EuropaRideau de Bruxelas1948-50• Les Nuits de la colère (Armand Salacrou) intérprete• Les incendiaires (Maurice Clavel) intérprete• Le bon vin de Monsieur Nuche (Paul Willems)intérprete


• Les gueux au paradis (G.M. Martens) intérprete• A dama da madrugada (Alejandro Casona)intérprete• Os amores de dom Perlimplin (García Lorca)contra-regra• Lamentable Julie (Paul Willems) cenário e figurinos• Beaucoup de bruit pour rien/Muito Barulho porNada (William Shakespeare) intérprete• Amphytrion 38 (Jean Giraudoux) intérprete econtra-regra287• La farce du cuvier (anônimo) intérprete• Les fourberies de Scapin/As Malandragens deEscapino (Molière) intérprete• Mon père avait raison - cenário e figurinos• Voulez-vous jouer avec moá ? (Marcel Achard)intérprete e figurinos• La double inconstance e Le jeu d’amour et duhasard (Pierre Marivaux) figurinos• Les Plaideurs (Jean Racine) cenário e figurinos


• Time of Your Life (William Saroyan) intérprete• L’ombre de la ravine (John M. Synge) direçãoe intérprete• Voulez-vous jouer avec moá ? (Marcel Achard)cenário, figurinos e direção• Le bal des voleurs (Jean Anouilh) intérprete• La comédie du monde (Hugo von Hofmansthal)intérprete288• La ménagerie de verre / À margem da vida(Tennessee Williams) contra-regra• Une demande de marriage / Um pedido decasamento (A. Tchecov) intérprete1951-74• Le médecin malgré lui (Molière) cenário edireção• Cette dame n’est pas pour le bûcher (CrhistopherFry) intérprete• La Rose Tatouée / A rosa tatuada (TennesseeWilliams) direção• L’avare / O avarento (Molière) intérprete


• O Barbeiro de Sevilha (Beaumarchais) intérprete• La guadrature du cercle / Quatro Num Quarto(Valentin Kataiev) cenário e direção• Air barbare et tendre (Paul Willems) co-direção(com Claude Étienne) e intérprete• A Prova de Fogo (Herman Closson) intérprete• Juliette ou la clé des songes (Georges Neveux)intérprete• L’inconnue d’Arras (Armand Salacrou) intérprete• Jean de la lune (Marcel Achard) cenário289• Um pedido de casamento (Tchecov) intérpreteL’omelette fantastique (Duvert e Boyer): cenárioe intérprete• Street Scene (Elmer Rice) cenário e direção• Quintette (Tennessee Williams) cenário e direção• Reviens, petite Sheba / É preciso viver (WilliamInge) direção• Zamore (Georges Neveux) intérprete


• Vingt-sept wagons de cotons / Vinte e SeteVagões de algodão (Tennessee Williams) cenárioe direção• Picnic (William Inge) direção• Supplement au voyage de cook (Jean Giraudoux)direção• La guerre de Troie n’auras pas lieu (Jean Giraudoux)intérprete• Au bal des chiens (Remo Forlani) direção290Théâtre National de Belgique1953• L’amour des quatre colonels (Peter Ustinov)dire ção• Malborough s’en va-t-en guerre (Marcel Achard)direção• Lotus et Bulldozer / A casa de chá do luar deagosto (John Patrick): co-direção com JacquesHuisman1954•Barrabás (Michel de Ghelderode) direção, posteriormentelevada à Bienal de Veneza e ao Brasil,Uruguai e Argentina


1959/60• Jugement provisoire (Joseph van Hoeck) direção1971/1972• La flemme / A fiaca (Ricardo Talesnik) direção• La megère apprivoisée / A megera domada(William Shakespeare)1972/73• Le testament du chien / O auto da compadecida(Ariano Suassuna) direção1973/74• Misère et noblesse / Miséria e nobreza (EdoardoScarpetta) direção2913. Théâtre Fontaine, Paris1958-59• Visite à une petite planète (Gore Vidal) direção• Rididine (Alexandre Breffort) direção4. Théâtre Royal du Parc1972• A Megera Domada (William Shakespeare)direção


PrêmiosTeatro19481º Prêmio com distinção como intérprete do teatroclássico e moderno da École d’Art Théatraldu Rideau de Bruxelas, Bélgica1955Ronda de Ouro: Melhor Drama, Melhor Espetáculo,Melhor Diretor, Melhor Diretor de Dramana categoria de espetáculos estrangeiros, porBarrabás2921956APCT: Melhor Diretor e Melhor Espetáculo porA casa de chá do luar de agosto1957Saci: Melhor artista do ano pela direção de A casade chá do luar de agosto1965Sacis: Melhor Diretor e Melhor Espetáculo, porQuem Tem Medo de Virginia Woolf?1966Molière: Melhor Diretor, por Quem Tem Medode Virginia Woolf?


1974Eve (União da <strong>Imprensa</strong> Teatral da Bélgica):Melhor Diretor pelo conjunto das realizaçõesteatrais nos três anos anteriores1982Inacen: Melhor Espetáculo, por As Malandragensde Escapino1984Governador do Estado: Melhor Figurinista – Ohla la belle époqueDança1975APCA: Melhor coreografia em espetáculo teatral,por Caminhada2931976Melhor coreografia em espetáculo teatral, porAllegro ma non troppo1980APCA: Melhor direção de espetáculo, por TremFantasma1989APCA: Melhor programação visual por SapatasFenólicas


Televisão1964Prêmio Montecarlo, Mônaco, por documentáriose telerreportagensArtes plásticas19461º Prêmio com distinção em pintura ornamental:Académie des Beaux Arts de BelgiqueBolsas2941952/53Fullbright e Smith-Mundt Award para cursar artedramática na Universidade de Yale, EUA1992Vitae de Artes Cênicas2001John Simon Guggenheim Memorial Foundation


SumárioApresentação - Hubert Alquéres 5Um protagonista do modernoteatro brasileiro - Sábato Magaldi 11Introdução - Leila V. B. Gouvêa 15Como Tudo Começou 23Primeiro tempo no palco 61Brasil, o novo cenário 87E também dança, administração, óperas. 177Televisão. E as despedidas do palco. 253Cronologia 275


Créditos das fotografiasFotos e desenhos: acervo de Maurice VaneauMaureen Bisiliatt 148, 150, 152, 155Marcelo Pestana 266, 267


Coleção AplausoPerfilAnselmo Duarte - O Homem da Palma de OuroLuiz Carlos MertenAracy Balabanian - Nunca Fui AnjoTania CarvalhoBete Mendes - O Cão e a RosaRogério MenezesCarla Camurati - Luz NaturalCarlos Alberto MattosCarlos Coimbra - Um Homem RaroLuiz Carlos MertenCarlos Reichenbach -O Cinema Como Razão de ViverMarcelo LyraCleyde Yaconis - Dama DiscretaVilmar LedesmaDavid Cardoso - Persistência e PaixãoAlfredo SternheimDjalma Limongi Batista - Livre PensadorMarcel NadaleEtty Fraser - Virada Pra LuaVilmar LedesmaGianfrancesco Guarnieri - Um Grito Solto no ArSérgio RoveriHelvécio Ratton - O Cinema Além das MontanhasPablo VillaçaIlka Soares - A Bela da TelaWagner de AssisIrene Ravache - Caçadora de EmoçõesTania Carvalho297


298João Batista de Andrade -Alguma Solidão e Muitas HistóriasMaria do Rosário CaetanoJohn Herbert - Um Gentleman no Palco e na VidaNeusa BarbosaJosé Dumont - Do Cordel às TelasKlecius HenriqueNiza de Castro Tank - Niza Apesar das OutrasSara LopesPaulo Betti - Na Carreira de um SonhadorTeté RibeiroPaulo Goulart e Nicette Bruno - Tudo Em FamíliaElaine GuerriniPaulo José - Memórias SubstantivasTania CarvalhoReginaldo Faria - O Solo de Um InquietoWagner de AssisRenata Fronzi - Chorar de RirWagner de AssisRenato Consorte - Contestador por ÍndoleEliana PaceRodolfo Nanni - Um Realizador PersistenteNeusa BarbosaRolando Boldrin - Palco BrasilIeda de AbreuRosamaria Murtinho - Simples MagiaTania CarvalhoRubens de Falco - Um Internacional Ator BrasileiroNydia LiciaRuth de Souza - Estrela NegraMaria Ângela de JesusSérgio Hingst - Um Ator de CinemaMaximo BarroSérgio Viotti - O Cavalheiro das ArtesNilu Lebert


Sonia Oiticica - Uma Atriz Rodrigueana?Maria Thereza VargasUgo Giorgetti - O Sonho IntactoRosane PavamWalderez de Barros - Voz e SilênciosRogério MenezesEspecialDina Sfat - Retratos de uma GuerreiraAntonio GilbertoGloria in Excelsior - Ascensão, Apogeu e Queda doMaior Sucesso da Televisão BrasileiraÁlvaro MoyaMaria Della Costa - Seu Teatro, Sua VidaWarde MarxNey Latorraca - Uma CelebraçãoTania CarvalhoSérgio Cardoso - Imagens de Sua ArteNydia Licia299Cinema BrasilBens ConfiscadosRoteiro comentado pelos seus autoresCarlos Reichenbach e Daniel ChaiaCabra-CegaRoteiro de DiMoretti, comentado por Toni Venturie Ricardo KauffmanO Caçador de DiamantesVittorio Capellaro comentado por Maximo BarroA CartomanteRoteiro comentado por seu autor Wagner de AssisCasa de MeninasInácio Araújo


O Caso dos Irmãos NavesLuís Sérgio Person e Jean-Claude BernardetComo Fazer um Filme de AmorJosé Roberto ToreroDe PassagemRoteiro de Cláudio Yosida e Direção de Ricardo EliasDois CórregosCarlos ReichenbachA Dona da HistóriaRoteiro de João Falcão, João Emanuel Carneiro e Daniel FilhoO Homem que Virou SucoRoteiro de João Batista de Andrade por Ariane Abdallah eNewton CannitoNarradores de JavéEliane Caffé e Luís Alberto de Abreu300Teatro BrasilAlcides Nogueira - Alma de CetimTuna DwekAntenor Pimenta e o Circo TeatroDanielle PimentaLuís Alberto de Abreu - Até a Última SílabaAdélia NicoleteTrilogia Alcides Nogueira - ÓperaJoyce -Gertrude Stein, Alice Toklas & Pablo Picasso -Pólvora e PoesiaAlcides NogueiraCiência e TecnologiaCinema DigitalLuiz Gonzaga Assis de Luca


© 2006Dados Internacionais de Catalogação na PublicaçãoBiblioteca da <strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São PauloGouvêa, Leila V.B.Maurice Vaneau : artista múltiplo / por Leila V.B.Gouvêa. – São Paulo : <strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de SãoPaulo, 2006.304p. : il. – (Coleção aplauso. Série teatro Brasil /coordenador geral Rubens Ewald Filho).ISBN 85-7060-233-2 (Obra completa) (<strong>Imprensa</strong><strong>Oficial</strong>)ISBN 85-7060-461-0 (<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong>)1. Teatro – Produtores e diretores 2. Teatro – Brasil– História e crítica 3. Vaneau, Maurice - Biografia I. EwaldFilho, Rubens. II.Título. III. Série.CDD – 792.023 3Índices para catálogo sistemático:1. Diretores e produtores de teatro : Brasil 792.023 098 12. Teatro : Brasil : historia e crítica 792. 015 098 1Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional(Lei nº 1.825, de 20/12/1907).Direitos reservados e protegidos pela lei 9610/98<strong>Imprensa</strong> <strong>Oficial</strong> do Estado de São PauloRua da Mooca, 1921 - Mooca03103-902 - São Paulo - SP - BrasilTel.: 11 6099-9800Fax: 11 6099-9674www.imprensaoficial.com.br/lojavirtuale-mail: livros@imprensaoficial.com.brSAC 0800-0123401


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