o monólogo interior em uma Abelha na Chuva de Carlos de Oliveira
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DA VOZ ENQUANTO MIMESE: O MONÓLOGO INTERIOR<br />
EM UMA ABELHA NA CHUVA DE CARLOS DE LIVEIRA<br />
mantos <strong>de</strong> silêncio, e é <strong>em</strong> relação com situações <strong>de</strong>ste tipo que D, Cohn (1981:37-63)<br />
introduz a noção <strong>de</strong> psicorrelato. Álvaro Silvestre é <strong>uma</strong> figura tacitur<strong>na</strong>, que dá respostas<br />
<strong>de</strong>selegant<strong>em</strong>ente lacónicas. No escritório do Me<strong>de</strong>iros, “era <strong>uma</strong> concha <strong>de</strong> silêncio<br />
pasmado” (ibid.: 15); <strong>na</strong> viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> regresso, portou-se como um “hom<strong>em</strong> mole e silencioso”<br />
(ibid.: 19), que, após o <strong>em</strong>bate da charrete, “tentou erguer-se do assento”, para nele cair<br />
<strong>de</strong>pois “pesadamente s<strong>em</strong> <strong>uma</strong> palavra” (ibid.: 21), mergulhando <strong>de</strong> seguida <strong>na</strong> “meia<br />
sonolência <strong>em</strong> que ficam os gordos quando viajam” (ibid.: 32). Espicaçado pela mulher, não<br />
esboça a menor reacção:<br />
Respon<strong>de</strong>r para quê? a modorra ia-lhe <strong>em</strong>purrando os pensamentos até um sítio escuso da cabeça,<br />
don<strong>de</strong> não viriam aborrecê-lo por enquanto: e tenho sono, po<strong>de</strong>s mandar-me novas ferroadas; à<br />
vonta<strong>de</strong>. Bastava-lhe a ele cingir as pálpebras, apertá-las mais, um pouco mais ainda; quando sentia o<br />
canto dos olhos b<strong>em</strong> franzido, <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> a ouvir (ibid.: 33).<br />
Assim, “pouco a pouco, ia-se enconchando no seu próprio cansaço”, o que indig<strong>na</strong>va<br />
D. Maria dos Prazeres, irónica e mordaz: “Sua Excelência cabeceia, qual cabeceia, Sua<br />
Excelência dorme, indiferente ao que eu lhe digo”, “resso<strong>na</strong> há <strong>uma</strong> eternida<strong>de</strong> e há <strong>uma</strong><br />
eternida<strong>de</strong> que eu o oiço, que eu me mexo no bico dos pés para o não acordar” (ibid.: 33-34).<br />
Depois <strong>de</strong> chegar<strong>em</strong> a casa, durante o serão passado no “pasmo daquelas noites” (ibid.: 31),<br />
enquanto D. Maria dos Prazeres mostra a sua vivacida<strong>de</strong> no diálogo com as visitas, Álvaro<br />
Silvestre “<strong>de</strong>ixou-se ficar com <strong>uma</strong> golada <strong>de</strong> brandy <strong>na</strong> boca, a fazer bochechos lentos,<br />
distraídos” (ibid.: 44). Mas, aterrorizado pelo pensamento da morte, “atirou-se ao brandy para<br />
não gritar” (ibid.: 59 seg.).<br />
Para valorizar este mutismo, muito contribui a ocorrência <strong>de</strong> frequentes irrupções do<br />
real no imaginário, aquele a actuar neste como qualquer estímulo exterior – um si<strong>na</strong>l<br />
luminoso, um toque <strong>de</strong> campainha, um <strong>de</strong>spertador ou pedra lançada num lago, a própria<br />
chuva - que agita, saco<strong>de</strong> e acorda a perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>, fazendo-a <strong>em</strong>ergir da modorra e da rêverie,<br />
do “mundo turvo”, do fluir da consciência e pondo-a <strong>em</strong> contacto com o mundo exterior.<br />
Estas interrupções da rêverie verificam-se <strong>em</strong> D. Maria dos Prazeres, durante a viag<strong>em</strong>: o<br />
ligeiro aci<strong>de</strong>nte da charrete e o peso morto do marido maçador, que se encosta a ela <strong>de</strong>vido às<br />
oscilações do veículo, interromp<strong>em</strong>-lhe o fio das a<strong>na</strong>mneses, fio que retoma a seguir, quando,<br />
já <strong>de</strong>itada, se <strong>de</strong>ixa, solitária e enregelada, “arrastar àquele torpor <strong>em</strong> que ficava horas<br />
acordada, n<strong>uma</strong> espécie <strong>de</strong> sonho lúcido, que a chuva tamborilando <strong>na</strong> janela, trespassava”<br />
(ibid..: 81 seg.). Mas o ex<strong>em</strong>plo mais frisante verifica-se com Álvaro Silvestre <strong>na</strong> ce<strong>na</strong> da<br />
<strong>em</strong>briaguez. Esta <strong>de</strong>frontação entre a realida<strong>de</strong> e o <strong>de</strong>vaneio é-nos transmitida com<br />
intencio<strong>na</strong>l paralelismo, <strong>na</strong>s visões que t<strong>em</strong> o lavrador <strong>em</strong>briagado: “formas convulsas<br />
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