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o monólogo interior em uma Abelha na Chuva de Carlos de Oliveira

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DA VOZ ENQUANTO MIMESE: O MONÓLOGO INTERIOR<br />

EM UMA ABELHA NA CHUVA DE CARLOS DE LIVEIRA<br />

- Muito con<strong>de</strong>, muita léria, mas há vinte anos que me comes as sopas. Quando houve fome lá<br />

pelos palácios, foi aqui que a vieste matar, com a família atrás. E vinham todos mais humil<strong>de</strong>s,<br />

vinham quase <strong>de</strong> rastos. Nesse t<strong>em</strong>po o que a prosápia queria era broa.<br />

Tornou a passar-lhe o amoníaco pelo <strong>na</strong>riz e <strong>de</strong>clarou <strong>na</strong> sua voz um pouco velada:<br />

- Havia <strong>em</strong> Alva um cocheiro que falava mais ou menos assim e certo dia meu pai não teve<br />

outro r<strong>em</strong>édio senão chicoteá-lo.<br />

O rosto <strong>de</strong>la, espantosamente pálido, abria um fulgor ácido <strong>na</strong> penumbra da sala.<br />

- Mas não tenhas medo, Silvestre, po<strong>de</strong>s insultar-me à vonta<strong>de</strong>. Os mortos não<br />

<strong>em</strong>punham chicotes (ibid.: 74-76).<br />

Imediatamente a esta troca <strong>de</strong> insultos, segue-se um parágrafo, s<strong>em</strong> qualquer<br />

introdução <strong>de</strong>clarativa:<br />

Não ? Os retratos dos nobres Pessoas pend<strong>em</strong> solenes das pare<strong>de</strong>s do escritório. Olhe para eles,<br />

D. Maria dos Prazeres. Os mortos estão <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sta sala, com um chicote implacável. O orgulho dos<br />

velhos senhores, as carrancas severas, o pó das calendas, as tretas do costume. O seu marido t<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>struir os mortos. De tentar, pelo menos. Que outra coisa po<strong>de</strong> ele fazer? Deixe-o experimentar. Ou<br />

eu me engano muito ou vai sair-se mal. Ora repare” ((ibid..: 76).<br />

É este o primeiro dos três enunciados referidos no princípio <strong>de</strong>ste trabalho, que<br />

levanta a fundamental questão da voz. Qu<strong>em</strong> primeiro se pronunciou sobre o assunto 4 foi<br />

precisamente o Prof. Aguiar e Silva. Com efeito, já <strong>na</strong> 3ª edição, <strong>de</strong> 1973, a pági<strong>na</strong>s 337, <strong>na</strong><br />

nota 156 da sua Teoria da Literatura, po<strong>de</strong> ler-se o seguinte a propósito da chamada<br />

“focalização interventiva”:<br />

Em Uma abelha <strong>na</strong> chuva <strong>de</strong> <strong>Carlos</strong> <strong>de</strong> <strong>Oliveira</strong>, ocorre <strong>uma</strong> modalida<strong>de</strong> rara <strong>de</strong> comentário ao<br />

comportamento <strong>de</strong> <strong>uma</strong> perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>: o <strong>na</strong>rrador tor<strong>na</strong>ndo subitamente b<strong>em</strong> visível a sua presença,<br />

interpela a própria perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong>, marcando claramente a distância i<strong>de</strong>ológica e ética que os separa.<br />

Veja-se este ex<strong>em</strong>plo:.” – Mas não tenhas medo, po<strong>de</strong>s insultar-me à vonta<strong>de</strong>. Os mortos não<br />

<strong>em</strong>punham chicotes ...”.<br />

4 - Mas, que eu saiba, nenhum dos que sobre ele se <strong>de</strong>bruçaram o disseram até hoje. E, contudo, a sua Teoria da<br />

Literatura, cuja primeira edição r<strong>em</strong>onta ao ano <strong>de</strong> 1967, refundida e enriquecida <strong>na</strong>s sucessivas edições, se<br />

transformou no incontornável magnum opus <strong>de</strong> consulta obrigatória, a que têm recorrido gerações <strong>de</strong> estudantes<br />

e investigadores – <strong>na</strong>s quais me incluo -, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há quase quatro décadas e ocupa lugar <strong>de</strong> honra <strong>na</strong> galeria das<br />

obras que pelo seu carácter inovador, marcaram <strong>uma</strong> data no século XX (cf. Fer<strong>na</strong>ndo Pinto do Amaral, C<strong>em</strong><br />

Livros Portugueses do Século XX. Uma Selecção <strong>de</strong> Obras Literárias, Lisboa, Instituto Camões, 2002).<br />

5 - Pelo menos à primeira vista, esta leitura parece ser favorecida pelos <strong>de</strong>ícticos do discurso. Há implícito o<br />

pronome <strong>de</strong> segunda pessoa que só po<strong>de</strong> referir-se a D. Maria dos Prazeres; há um “ele”, que só po<strong>de</strong> ser Álvaro<br />

Silvestre. Portanto, o “eu” explícito que nele aparece ficaria reservado, por exclusão <strong>de</strong> partes, para o próprio<br />

<strong>na</strong>rrador, que, “tor<strong>na</strong>ndo subitamente b<strong>em</strong> visível a sua presença”, adoptaria neste passo a “focalização<br />

interventiva”, interpelando directamente a perso<strong>na</strong>g<strong>em</strong> concreta que é D. Maria dos Prazeres, <strong>de</strong> forma a “marcar<br />

claramente a distância i<strong>de</strong>ológica e ética que os separa” (Silva, 3 1973: 337). Tratar-se-ia, por outras palavras, <strong>de</strong><br />

<strong>uma</strong> das “intrusões explícitas do <strong>na</strong>rrador”, que, <strong>em</strong> obediência ao seu “código i<strong>de</strong>ológico”, procuraria <strong>de</strong>ste<br />

modo, como locutor do enunciado, “<strong>de</strong>smistificar as contradições que o presente da história patenteia” (Reis,<br />

1976:348). Esta interpretação é compreensível, pois trata-se <strong>de</strong> um aspecto muito margi<strong>na</strong>l <strong>em</strong> relação aos<br />

objectivos da sua obra.<br />

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