O Lobo da Estepe - Christian Rocha
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to, entretanto, não foi cremado. Descarregaram o caixão junto a uma simples cova aberta no<br />
solo, e vi o padre e os outros abutres <strong>da</strong> morte mais os agentes funerários executarem suas<br />
funções, procurando revesti-las de alta soleni<strong>da</strong>de e de tristeza; sua teatrali<strong>da</strong>de, confusão e<br />
fingimento eram tais que ficavam a um passo do ridículo. Vi como suas vestes negras caíamlhes<br />
flutuantes dos ombros e como se esforçavam por imitar a tristeza dos parentes e em<br />
dobrar o joelho diante <strong>da</strong> majestade <strong>da</strong> morte. Tal afã era inútil, pois ninguém chorava, o<br />
morto não parecia insubstituível para quem quer que fosse. Ninguém parecia disposto a<br />
piedosas reflexões, e quando o padre se dirigiu à comitiva chamando a todos de "meus irmãos<br />
em Cristo", silenciosos e mercantis aqueles negociantes e quitandeiros acompanhados de suas<br />
mulheres baixaram os olhos com muita serie<strong>da</strong>de, embaraçados e perplexos, movidos apenas<br />
pelo desejo de que tudo aquilo acabasse o quanto antes. Quando parecia ter chegado o fim, os<br />
dois irmãos em Cristo que estavam na frente apertaram a mão do orador e limparam os<br />
sapatos numa moita tirando-lhes o barro úmido em que fora sepultado o morto; logo os rostos<br />
voltaram a ficar imediatamente naturais e humanos e um deles me pareceu de repente<br />
conhecido; era, segundo imaginei, o homem que naquele dia carregava o cartaz, o mesmo que<br />
me entregou aquele pequeno livro.<br />
Naquele instante, como me parecesse havê-lo reconhecido, o homem se voltou, agachou-se,<br />
deteve-se a baixar a bainha <strong>da</strong>s calças de fazen<strong>da</strong> negra, que trazia arregaça<strong>da</strong>s sobre os<br />
sapatos, e afastou-se às pressas <strong>da</strong>li, com um guar<strong>da</strong>-chuva pendurado ao braço. Saí atrás<br />
dele, alcancei-o, cumprimentei-o com a cabeça, mas ele pareceu não me reconhecer.<br />
— Hoje tem espetáculo? — perguntei, tentando piscar um olho à maneira <strong>da</strong>queles que<br />
compartilham um segredo. Mas semelhante linguagem mímica havia deixado de ser natural<br />
para mim, pois, vivendo como vivia, quase perdera o hábito de falar e senti que to<strong>da</strong> a minha<br />
tentativa de fazer um sinal acabara não passando de uma estúpi<strong>da</strong> careta.<br />
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