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Fernando Henrique Cardoso


Ciclo <strong>de</strong> Conferências<br />

Centenário <strong>de</strong> Morte <strong>de</strong> Nabuco I<br />

Democracia e memória<br />

em Joaquim Nabuco *<br />

Fernando Henrique Cardoso<br />

Senhor Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sta ilustre <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, meu prezado amigo,<br />

senhores que estão aqui nos acompanhando na mesa, senhores<br />

acadêmicos, senhoras e senhores. Começo por agra<strong>de</strong>cer. Eu nunca<br />

imaginei que meu nome fosse lembrado para estar aqui esta tar<strong>de</strong><br />

falando sobre Joaquim Nabuco na casa que foi <strong>de</strong>le na época da<br />

fundação. E não fossem a estima, a amiza<strong>de</strong> e os préstimos do meu<br />

caro amigo Marcos Vilaça, estimulados por muitos outros amigos<br />

que tenho aqui, nada justificaria chamar-me para prestar esta homenagem.<br />

Apesar do que foi dito pelo presi<strong>de</strong>nte Vilaça, estou longe<br />

<strong>de</strong> ser um especialista em Joaquim Nabuco, e mesmo nos temas com<br />

os quais ele lidou. Começo também por me <strong>de</strong>sculpar, porque estou<br />

afastado da vida acadêmica em um percurso, como todos sabem,<br />

bastante atribulado na vida política. De modo que é uma ousadia<br />

dirigir-me a essa <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> para celebrar o centenário <strong>de</strong> Nabuco.<br />

* Texto apresentado no Ciclo “Centenário <strong>de</strong> Morte <strong>de</strong> Joaquim Nabuco I”, em 18 <strong>de</strong><br />

marçco <strong>de</strong> 2010, no Teatro R. Magalhães Jr. (ABL).<br />

11<br />

Sociólogo,<br />

cientista político e<br />

político brasileiro.<br />

Professor emérito<br />

da Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> São Paulo,<br />

lecionou também<br />

no exterior,<br />

notadamente na<br />

Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Paris. Senador da<br />

República (1983<br />

a 1992), Ministro<br />

das Relações<br />

Exteriores (1992),<br />

Ministro da<br />

Fazenda (1993 e<br />

1994) e Presi<strong>de</strong>nte<br />

do Brasil por duas<br />

vezes (1995 a<br />

2002). Em sua<br />

bagagem literária,<br />

<strong>de</strong>staca-se A arte<br />

da política: a história<br />

que vivi.


Fernando Henrique Cardoso<br />

No tormento enorme da responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar sobre o homenageado<br />

procurei ler, reler, on<strong>de</strong> possível e <strong>de</strong>ntro das minhas limitadas possibilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> tempo, o que foi escrito por ele ou sobre ele. E <strong>de</strong>ntre os muitos textos<br />

lidos voltei a algumas conferências que Nabuco proferiu nos Estados Unidos,<br />

notadamente uma em Yale. E quase <strong>de</strong>sisti <strong>de</strong> vir aqui. Quase <strong>de</strong>sisti porque<br />

era fácil perceber o cuidado que Nabuco tinha para preparar as suas falas, em<br />

qualquer lugar, nos Parlamentos, nos comícios, na campanha abolicionista,<br />

mas sobretudo nas universida<strong>de</strong>s. E da sua pena, da sua voz, saíram obras literariamente<br />

perfeitas. Mais do que isso, o raciocínio <strong>de</strong>le fluía cartesianamente.<br />

E sempre envolto por palavras bem escolhidas, com uma lógica que convencia<br />

e uma maneira <strong>de</strong> escrever que seduzia. A tal ponto que, na conferência que<br />

fez sobre Camões, em Yale, fiquei fascinado. Primeiro, ele traduziu, verteu<br />

para o inglês – ele próprio, ele mesmo – poemas <strong>de</strong> Camões – que mais tar<strong>de</strong><br />

foram publicados no Brasil. Teve o cuidado <strong>de</strong> fazer o que todos os oradores<br />

que são bons na relação com o auditório sabem fazer: escolheu um jovem<br />

americano, <strong>de</strong> um professor amigo, para que lesse os poemas que ele havia<br />

vertido. Com isso fazia pausas, quebrava a monotonia da fala. Isso mostra<br />

seu cuidado extraordinário ao falar. Não só tinha uma cultura basicamente<br />

francesa como tinha domínio do inglês, meu Deus, que inveja! Nós que somos<br />

obrigados a falar, e mal, em várias línguas, sabemos como é difícil falar bem<br />

– escrever, nem se fale – numa língua estrangeira. Pois isso era Nabuco. Fazia<br />

tudo isso com muita competência.<br />

Portanto, não dispondo dos dotes <strong>de</strong> Nabuco eu lhes dirijo a palavra, realmente<br />

com ousadia, e também com uma certa vaida<strong>de</strong>. Todo mundo diz que<br />

eu sou vaidoso; reconheço a vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser ouvido aqui nesta sala.<br />

Mas essa não foi a razão que me trouxe aqui. Seria ridículo. A razão foi,<br />

não só o convite amável, como a admiração, que sempre senti, por Nabuco.<br />

Ainda era aluno da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, lá se vão muitos anos, no começo<br />

dos anos 50, 51, 52, eu ainda não era nem professor assistente e trabalhava<br />

numa pesquisa dirigida por Roger Basti<strong>de</strong> e por Florestan Fernan<strong>de</strong>s sobre<br />

as relações raciais entre negros e brancos. Mais tar<strong>de</strong> eu próprio fiz pesquisas<br />

sobre o tema no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul. Mas muito antes disso, quando<br />

12


Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />

trabalhávamos sob a direção <strong>de</strong> Roger Basti<strong>de</strong> e <strong>de</strong> Florestan Fernan<strong>de</strong>s li O<br />

abolicionismo do Nabuco. E posso dizer com toda sincerida<strong>de</strong>, que nós, jovens<br />

na época, ansiosos por mudar o Brasil, queríamos um país mais igualitário,<br />

queríamos transformar o Brasil. Ao lermos o capítulo sobre “O mandato da<br />

raça negra”, que é um dos mais belos capítulos do abolicionismo, ele teve um<br />

efeito sobre nós, se me permitem <strong>de</strong> novo a ousadia, equivalente ao que Renan<br />

causou em Nabuco quando mudou o seu modo <strong>de</strong> ver. Com uma diferença:<br />

Renan era cético. Nabuco não. Nabuco nos infundia esperança. A quase certeza<br />

<strong>de</strong> que o manto da escravidão, que tinha coberto o Brasil, que obscurecia<br />

o Brasil, um dia iria acabar. Duraria tempos, para que se dissolvesse o manto<br />

da escravidão. Nós éramos testemunhas em nossas pesquisas das duas coisas.<br />

Não só <strong>de</strong> que a luta <strong>de</strong> Nabuco tinha sido recompensada com a abolição,<br />

mas que as consequências da escravidão permaneciam, e nós ainda as estávamos<br />

estudando nos anos 50. Mas nós <strong>de</strong>positávamos esperanças no futuro,<br />

como Nabuco, e nos inspiramos nele para enten<strong>de</strong>r melhor o que acontecia.<br />

A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um mandato, concebida pelos abolicionistas como uma espécie <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>legação, que é irrenunciável, trazia consigo a visão política <strong>de</strong> Nabuco. Diz<br />

ele, que não terá sido por generosida<strong>de</strong> ou por compaixão, nem mesmo religiosa,<br />

que os advogados da causa emancipacionista a abraçaram: “Abraçaram-<br />

-na como homens políticos, por motivos políticos. E assim representamos”<br />

– aí a <strong>de</strong>legação – “os escravos e os ingênuos, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> brasileiros que<br />

julgam o seu título <strong>de</strong> cidadão diminuído, enquanto houver brasileiros escravos”.<br />

Isto é, eles abraçavam a causa no interesse <strong>de</strong> todo o país e no próprio<br />

interesse. Nabuco concebia, portanto, a luta contra a escravidão como uma<br />

luta pela cidadania. Junto com essa concepção, havia uma outra muito forte,<br />

<strong>de</strong> que, além da injustiça praticada contra o escravo, que era um mártir, a<br />

emancipação significaria também “a eliminação simultânea dos dois tipos<br />

contrários, no fundo os mesmos: o escravo e o senhor.” Essa afirmação tem<br />

uma força muito gran<strong>de</strong>, porque o horizonte <strong>de</strong> Nabuco não se restringia ao<br />

institucional e nem se limitava à análise da pequena política. Ele se orientava<br />

por valores e tinha uma visão abrangente do processo sociopolítico. A escravidão<br />

era ruim para o escravo, mas ela também transformava o senhor em parte<br />

13


Fernando Henrique Cardoso<br />

do mesmo sistema. Embora, como quase todos que trataram da biografia <strong>de</strong><br />

Nabuco sublinham, ele fosse um rebento excelso da aristocracia – diga-se<br />

<strong>de</strong> passagem, no caso mais <strong>de</strong> uma oligarquia burocrática do que propriamente<br />

uma aristocracia – e tivesse gosto pelo estilo <strong>de</strong> vida próprio <strong>de</strong>ssa camada,<br />

eu acho que o espírito <strong>de</strong> Nabuco corria solto. Exemplificaria talvez o que<br />

Karl Mannheim acreditava ser o específico da camada intelectual. A capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> olhar o conjunto <strong>de</strong>spindo-se <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> classe. Mannheim<br />

não negava, obviamente, a existência das classes, e mesmo o papel <strong>de</strong>cisivo que<br />

elas têm na História, e não era infenso, obviamente, à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> luta <strong>de</strong> classe.<br />

Mas acreditava que, por características específicas da secularização do mundo,<br />

e pela <strong>de</strong>mocratização, incluindo-se nesta a mobilida<strong>de</strong> social, o intelectual se<br />

tornara capaz <strong>de</strong> integrar no pensamento as discrepâncias da vida em socieda<strong>de</strong>,<br />

a <strong>de</strong>speito do seu travejamento social. Para mim isso foi o mais expressivo<br />

em Nabuco. Ao mostrar, por exemplo, que a abolição não nascera <strong>de</strong> uma<br />

compaixão religiosa mas <strong>de</strong> um sentimento político, ele na verda<strong>de</strong> retomou<br />

a linha, aqui mencionada pelo nosso querido Presi<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> José Bonifácio,<br />

na Representação à Assembleia Geral <strong>de</strong> 1823. Bonifácio foi uma espécie <strong>de</strong><br />

ancestral intelectual direto <strong>de</strong> Nabuco, indo até mais longe, porque <strong>de</strong>screve<br />

com minúcias o que fazer para assegurar aos ex-escravos acesso à terra, educação,<br />

e tudo o mais.<br />

Provavelmente no século XIX só esses dois pensadores – José Murilo <strong>de</strong><br />

Carvalho mencionou isso uma vez – tiveram a visão <strong>de</strong> que era preciso uma<br />

integração efetiva do escravo à vida nacional. Do negro à vida nacional. A<br />

obsessão <strong>de</strong> José Bonifácio em terminar a escravidão estava diretamente ligada<br />

ao que José Murilo, num livro que eu aprecio muito, chamado Pontos e<br />

bordados, chama <strong>de</strong> “a razão nacional”. Não era outro o projeto <strong>de</strong> Nabuco.<br />

Como formar a nação se ela está sendo carcomida pela <strong>de</strong>gradação da escravidão?<br />

Os dois estavam sendo carcomidos: o senhor e o escravo. Era preciso<br />

um projeto <strong>de</strong> nação que os integrasse. Esse é o ponto <strong>de</strong> partida da visão <strong>de</strong><br />

Nabuco. E em condições especiais, como também José Murilo notou, pois no<br />

Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, a miscigenação racial conduzia à<br />

miscigenação política. Ou nos recuperávamos todos, ou o projeto nacional<br />

14


Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />

continuaria capenga. E Murilo <strong>de</strong> Carvalho acredita mesmo que a influência<br />

da vertente filosófica, que em outros países teve muito peso na luta contra a<br />

escravidão, aqui não teve tanto peso assim. Nabuco era familiarizado com os<br />

pensadores da época. Qualquer um que tenha tido acesso aos seus livros sabe<br />

disso. E no livro <strong>de</strong> Marco Aurélio Nogueira, sobre o encontro <strong>de</strong> Joaquim<br />

Nabuco com a política há ampla referência às origens do pensamento <strong>de</strong> Nabuco,<br />

a seu liberalismo etc. Outro autor que tratou, ainda mais em <strong>de</strong>talhes<br />

a formação intelectual <strong>de</strong> Nabuco, Vamireh Chacon, no livro Joaquim Nabuco:<br />

revolucionário conservador, também mostra a teia imensa <strong>de</strong> autores com que<br />

Nabuco era familiar. E muitos <strong>de</strong>les foram e são fundamentais para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

das i<strong>de</strong>ias básicas <strong>de</strong> individualismo, <strong>de</strong> liberalismo, e mesmo na<br />

discussão sobre Montesquieu e os rousseaunianos etc. Entretanto, em nosso<br />

caso, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e a noção <strong>de</strong> direito natural não foram os argumentos<br />

fundamentais da posição abolicionista. Não se vê isso em Nabuco. Vê-se em<br />

José Bonifácio, que, numa certa altura, na mesma representação mencionada,<br />

apela a algo próximo da i<strong>de</strong>ia da liberda<strong>de</strong>, um direito inerente ao indivíduo,<br />

para justificar a abolição. E faz uma frase muito bonita perguntando como<br />

po<strong>de</strong>ria haver justiça quando não só os escravos, mas os seus filhos e os seus<br />

netos continuarão sem ter acesso à liberda<strong>de</strong>.<br />

Em Nabuco não existe a mesma fundamentação. Sua fundamentação vem<br />

<strong>de</strong> outro lado. A verda<strong>de</strong> é que, quando se lê José Bonifácio, e eu vou citar<br />

apenas um pequeno trecho, fica claro o fundamento <strong>de</strong> seu pensamento antiescravidão:<br />

“A socieda<strong>de</strong> civil tem por base, primeiro a justiça, e por fim<br />

principal” – e isso é grego – “a felicida<strong>de</strong> dos homens. Mas que justiça tem<br />

um homem para roubar a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um outro homem? E o que é pior,<br />

dos filhos <strong>de</strong>ste homem e dos filhos <strong>de</strong>sses filhos”? Quando alguém critica<br />

a liberação dos escravos porque ela ofen<strong>de</strong>ria o direito <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>, Bonifácio<br />

contrapõe o argumento dizendo que a liberda<strong>de</strong> humana é um valor<br />

maior do que qualquer outro direito. Há nele, portanto, uma fundamentação<br />

abolicionista em termos filosóficos, em função da i<strong>de</strong>ia da liberda<strong>de</strong>. Mas<br />

tanto em José Bonifácio como em Nabuco, a liberda<strong>de</strong> chamada liberda<strong>de</strong> dos<br />

antigos, isto é, da organização política e da preeminência dos valores da vida<br />

15


Fernando Henrique Cardoso<br />

pública e dos direitos públicos, obscurece as preocupações pela liberda<strong>de</strong> dita<br />

dos mo<strong>de</strong>rnos, isto é, as preocupações dos que veem nos direitos inalienáveis<br />

do indivíduo o fundamento da <strong>de</strong>mocracia. Não é por esse ângulo que eles<br />

olham a questão. É pelo outro.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois que Nabuco fez sua primeira viagem aos Estados Unidos,<br />

<strong>de</strong>scobriu essa nova forma <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>. Mas não foi a partir <strong>de</strong>la que<br />

fundamentou o abolicionismo. Em Um estadista do Império, que é a gran<strong>de</strong> obra<br />

<strong>de</strong> Nabuco, ou mesmo na correspondência, em suas notas soltas, em seus<br />

pensamentos breves, quem sabe mesmo em Minha formação, talvez fique a impressão<br />

<strong>de</strong> que Nabuco teria sido o que hoje se chama um cientista político, e<br />

dos melhores. Era arguto na análise das pessoas, dos interesses, sem se <strong>de</strong>spreocupar<br />

das instituições. Entretanto, mesmo no abolicionismo, – quem sabe eu<br />

puxo a brasa para a minha sardinha – há mais <strong>de</strong> sociólogo na visão <strong>de</strong> Nabuco.<br />

Ele não via a política “à la Machiavel”, como fruto apenas das ambições<br />

dos homens, da vaida<strong>de</strong>, da cobiça. Procurava ver, ao mesmo tempo, o que<br />

estava por trás da vida política e analisar as estruturas das socieda<strong>de</strong>s. Como<br />

já disse, Nabuco se apaixonava por suas causas, não fazia uma separação nítida<br />

entre coração e razão. Tinha uma visão muito mais complexa. E nunca usou<br />

argumentos puramente econômicos para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a abolição. O que o preocupava,<br />

não era somente a questão do escravo como instrumentum vocalis, como<br />

se dizia na época, um instrumento que fala. Não há no raciocínio em <strong>de</strong>fesa<br />

do abolicionismo uma i<strong>de</strong>ia propriamente econômica, como, por exemplo,<br />

a <strong>de</strong> que o trabalho livre seria mais proveitoso para a economia, argumento<br />

que posteriormente eu próprio usei na tese que escrevi sobre capitalismo e<br />

escravidão, e da qual alguns historiadores discordam. Em certas condições,<br />

utilizar a escravidão talvez fosse mais vantajoso do que usar o trabalho livre.<br />

Não é a minha visão, pelo menos no caso do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul, quando<br />

comparei as charqueadas livres da Argentina e do Uruguai com a charqueada<br />

na base escrava do Brasil. Não vou entrar nesses <strong>de</strong>talhes, porque eu fiz uma<br />

interpretação usando Marx, e também (meu Deus... naquela época a gente fazia<br />

tanta coisa confusa!) Lukács, para discutir o tema da consciência em si, da<br />

possibilida<strong>de</strong> do escravo ter consciência liberadora quando não podia <strong>de</strong>sejar<br />

16


Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />

a generalização <strong>de</strong> sua condição, o que suporia a escravidão, pois do contrário,<br />

tornar-se igual a seu contrário, o senhor, que era livre.<br />

Nabuco mostra isso bem. Seria preciso que o escravo se transformasse no<br />

outro, e portanto virasse cidadão e não escravo. Mas isso são outras histórias.<br />

Refiro-me a elas só para dizer que Nabuco não utilizava esse tipo <strong>de</strong> argumentação<br />

econômica como fundamento <strong>de</strong> sua posição abolicionista. E ele<br />

pensava, na verda<strong>de</strong>, que “a raça negra é um elemento permanente da população,<br />

parte homogênea da socieda<strong>de</strong>.” Mesmo porque dizia: “a raça negra não<br />

é tampouco para nós uma raça inferior, alheia à comunhão ou isolada cujo<br />

bem-estar nos afete como qualquer tribo indígena maltratada pelos invasores<br />

europeus.” Ele achava que o negro era parte da nacionalida<strong>de</strong>. Em seu projeto<br />

nacional, ou bem se incorporava o escravo, como homem, como negro, ou<br />

não haveria possibilida<strong>de</strong> da formação da nação. A frase que eu acabei <strong>de</strong> ler<br />

po<strong>de</strong> dar a impressão, um pouco equivocada, <strong>de</strong> que, referindo-se aos outros,<br />

às tribos isoladas, Nabuco guardasse um certo preconceito racista. Mas não.<br />

Na verda<strong>de</strong> ele estava criticando os abolicionistas europeus, que nunca se<br />

preocuparam, não precisavam se preocupar, com o efeito da abolição sobre<br />

o sistema político, porque estavam lidando com alguma coisa muito distante<br />

<strong>de</strong>les, enquanto Nabuco e seus colegas abolicionistas lidavam com algo muito<br />

próximo. Nabuco queria que o ex-escravo, livre, fosse alfabetizado para ser<br />

cidadão e votasse. Estava, portanto, dizendo: “Olha, nós achamos que tem <strong>de</strong><br />

ser assim, e apesar <strong>de</strong> sabermos que isso vai ser assim, queremos que isso seja<br />

assim”. Ou seja, não se trata <strong>de</strong> um pensamento piedoso, religioso, mas <strong>de</strong> um<br />

pensamento político, reafirmado nas frases relativas à integração dos escravos.<br />

De on<strong>de</strong> proviria essa estranha empatia para com uma “raça”, que na época,<br />

mesmo os “bem pensantes”, e quem sabe até hoje relutam, ou relutavam, em<br />

<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar, ainda que subliminarmente, como uma raça inferior.<br />

Em Nabuco isso não existe. Em todos os seus escritos, há o tempo todo uma<br />

apreciação diferente do que era o ser negro e o ser escravo. Mais ainda o ser<br />

negro, não só o ser escravo.<br />

Nabuco já foi esquadrinhado, como toda gente sabe, por seus biógrafos,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a filha Carolina Nabuco, passando por vários outros, passando mais<br />

17


Fernando Henrique Cardoso<br />

recentemente, por Ângela Alonso, ou por Luiz Viana Filho, que escreveu livros<br />

realmente <strong>de</strong>liciosos sobre Nabuco. O certo é que <strong>de</strong>le se sabe quase tudo.<br />

Sabe-se até <strong>de</strong>mais. Sabe-se <strong>de</strong> seus flertes, <strong>de</strong> suas paixões, enfim, <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes<br />

a respeito <strong>de</strong> sua pessoa. É difícil encontrar alguma coisa nova e humana sobre<br />

Nabuco, porque tudo já foi <strong>de</strong>vassado. Até sua beleza: ele tinha um apelido,<br />

“Quincas, o belo”, imaginem. Quem não gostaria <strong>de</strong> ter um apelido <strong>de</strong>sse,<br />

não é? Nabuco tinha também uma espécie <strong>de</strong> voracida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conhecer os gran<strong>de</strong>s<br />

da época. Quando se vê em Minha formação com que prazer ele <strong>de</strong>screve seu<br />

contato com os gran<strong>de</strong>s pensadores franceses, os escritores, os filósofos. Nos<br />

Estados Unidos ele chega quase ao narcisismo. Não obstante, a explicação <strong>de</strong><br />

como Nabuco <strong>de</strong>senvolveu laços afetivos tão fortes com os escravos e com os<br />

negros é menos clara. As páginas clássicas a respeito estão no capítulo mais famoso<br />

<strong>de</strong> Minha formação, que é o “Massangana”, sem dúvida alguma uma joia.<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista literário, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> reminiscência, do ponto <strong>de</strong><br />

vista da <strong>de</strong>scrição do que era o sistema escravocrata e tudo o mais. Nabuco resume<br />

nesse capítulo seu sentimento e seu pensamento e mostra que o escravo<br />

estava acorrentado a uma or<strong>de</strong>m social injusta e a uma or<strong>de</strong>m que, não obstante,<br />

moldou-o, a ele, Nabuco. Moldou tanto que às vezes se tem a impressão,<br />

não se po<strong>de</strong>ria dizer que ele escreveu ao modo <strong>de</strong> Gilberto Freyre, mas<br />

ao contrário, Gilberto Freyre escreveu ao modo <strong>de</strong> Nabuco. Chegou a dizer<br />

que os negros tinham tanta doçura que foram capazes, <strong>de</strong> alguma maneira, <strong>de</strong><br />

contaminar os senhores com o seu ser. E se refere, estranhamente para quem<br />

era Nabuco, a virtu<strong>de</strong>s quase míticas atribuídas ao negro, como sendo as que<br />

produziram na cultura brasileira e no modo <strong>de</strong> ser dos brasileiros alguma<br />

coisa muito especial. Na verda<strong>de</strong> ele estava mostrando que as relações entre<br />

os senhores e os escravos, afinal, acabaram por ser muito próximas mesmo.<br />

Leio um pequeno trecho. Diz ele em Minha formação: “Quanto a mim,” – sobre<br />

a escravidão – “absorvia o leite preto que me amamentou. Ela envolveu-me<br />

com uma carícia muda toda a minha infância. Aspirei-a da <strong>de</strong>dicação <strong>de</strong> velhos<br />

servidores que me reputavam her<strong>de</strong>iro presuntivo do pequeno domínio<br />

<strong>de</strong> que faziam parte. Entre mim e eles, <strong>de</strong>ve ter-se dado uma troca contínua<br />

<strong>de</strong> simpatia, <strong>de</strong> que resultou a terna e reconhecida simpatia que vim a ter pelo<br />

18


Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />

seu papel.” São reflexões bastante curiosas porque revelam que, <strong>de</strong> alguma<br />

maneira, foram os negros que trouxeram para os senhores as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

doçura que se atribuem aos brasileiros, e que os senhores as absorveram. Com<br />

isso Nabuco quase absolve também os senhores. Como quem dissesse, “temos<br />

uma cultura que envolve a todos”. Se fosse Gilberto Freyre a dizer isso,<br />

eu enten<strong>de</strong>ria, porque ele tinha uma visão mais abrangente do papel do negro<br />

e <strong>de</strong> sua cultura na formação da nacionalida<strong>de</strong>. No caso <strong>de</strong> Nabuco, que era<br />

muito mais agressivo na crítica à or<strong>de</strong>m escravocrata, parece até um tanto estranho.<br />

E ele diz mais: “Na escravidão da infância, eu não posso pensar sem<br />

um pesar involuntário. Tal qual o pressenti em torno <strong>de</strong> mim, ela conserva-se<br />

em minha recordação como um jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas<br />

também orgulho interno do escravo. Alguma coisa parecida com a <strong>de</strong>dicação<br />

do animal que nunca se altera, porque o fenômeno da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong><br />

penetrar nela.”<br />

São frases estranhas, quando ditas por Nabuco. É certo que ele faz a ressalva:<br />

“isso não é geral”. É só nas antigas proprieda<strong>de</strong>s, é só em certas circunstâncias<br />

que se produz esse casamento. E eu não estou reproduzindo estes<br />

textos para diminuir a gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> Nabuco. Isso seria uma injustiça, um<br />

exercício vulgar <strong>de</strong> iconoclastia, que não tem nada a ver com o ambiente em<br />

que nós estamos, que é, ao contrário, um ambiente para entendê-lo e enten<strong>de</strong>r<br />

a sua gran<strong>de</strong>za. Acho, entretanto, que é preciso ver um pouco mais a fundo<br />

que ambiguida<strong>de</strong> é essa. Que relação complexa é essa, <strong>de</strong> um homem que,<br />

ao mesmo tempo, tem a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar a or<strong>de</strong>m escravocrata, que<br />

critica duramente os senhores e, <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>monstra essa relação um pouco<br />

ambígua no tema que dominava. Em certo momento, quando Nabuco volta a<br />

Massangana, doze anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>ixado o engenho, se pergunta sobre o<br />

porquê <strong>de</strong> ele se revoltar contra a escravidão. Qual foi o episódio que o iluminou<br />

sobre seu significado? Volta a Massangana e rememora o que aconteceu.<br />

Numa tar<strong>de</strong>, ele estava sentado na escadaria, quando <strong>de</strong> repente se aproxima<br />

um escravo <strong>de</strong> 18 anos mais ou menos e lhe pe<strong>de</strong>, pelo amor <strong>de</strong> Deus, que seja<br />

comprado por sua madrinha, que era senhora <strong>de</strong> Massangana. Na casa on<strong>de</strong><br />

vivia com outro senhor, diz o escravo, era maltratado, era castigado. Nabuco<br />

19


Fernando Henrique Cardoso<br />

teria sentido naquele momento, naquele episódio, todo o horror da escravidão.<br />

É possível. E para quem é como eu, mais ou menos ingênuo em matéria<br />

psicológica, teria a impressão, meu Deus, <strong>de</strong> que, <strong>de</strong> fato, a partir daquele<br />

momento, o menino se revoltou. Entretanto, como é possível que alguém que<br />

é um senhorzinho <strong>de</strong> repente se tome <strong>de</strong> uma paixão arrebatadora por uma<br />

causa e se i<strong>de</strong>ntifique tanto com ela?<br />

Por coincidência, ao reler O abolicionismo, eu tinha lido um ensaio chamado<br />

Acaso, <strong>de</strong>stino e memória, <strong>de</strong> um psicanalista, Luiz Meyer, que também se entusiasmou<br />

pelos textos <strong>de</strong> Massangana e tratou <strong>de</strong> verificar melhor, do ponto<br />

<strong>de</strong> vista <strong>de</strong> alguém que penetra mais na alma humana, o que teria produzido<br />

tanta paixão em Nabuco, no ser complexo que ele foi. Luiz Meyer tomou um<br />

outro texto em que Nabuco <strong>de</strong>screve a morte da madrinha como base para sua<br />

interpretação. É um momento em que o Nabuco está absolutamente comovido<br />

pelo que aconteceu. Ele foi <strong>de</strong>spertado no meio da noite pela criadagem,<br />

todos choram. Descreve a cena comparando-a a um naufrágio, uma tragédia.<br />

Uma experiência que o tocou profundamente. E o autor continua analisando<br />

um pouco mais em <strong>de</strong>talhe. A certa altura do capítulo Nabuco diz: “O traço<br />

todo da vida é para muitos, um <strong>de</strong>senho da criança esquecido pelo homem,<br />

mas ao qual ele terá sempre que se cingir, sem o saber. Os primeiros oito anos<br />

da vida foram assim como certos sentidos da minha formação instintiva ou<br />

moral <strong>de</strong>finitiva.” Diz mais: “Só eles” – os traços da infância – “conservam<br />

a nossa primeira sensibilida<strong>de</strong> apagada. Eles são, por assim dizer, as cordas<br />

soltas, mas ainda vibrantes, <strong>de</strong> um instrumento que não existe mais em nós...<br />

Meus mol<strong>de</strong>s <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias e sentimentos datam quase todos <strong>de</strong>ssa época.”<br />

Portanto o próprio Nabuco está revelando no local em que reviveu sua infância,<br />

em Massangana, ao recontar sua história, o que ele tem <strong>de</strong> mais profundo.<br />

Luiz Meyer acha que a frase que eu acabei <strong>de</strong> citar fornece um insight, uma intuição<br />

tão forte, que até parece que: “Nabuco foi freudiano avant la letre, antes <strong>de</strong><br />

Freud ter escrito. Porque efetivamente ele está se referindo a que o traço todo da<br />

vida provém daquela experiência infantil. Na verda<strong>de</strong> foi um momento dramático<br />

aquele em que Nabuco viu que seu mundo estava se acabando”. Freud tem<br />

uma frase muito parecida com o que disse Nabuco. Com uma diferença, neste<br />

20


Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />

ponto, entra o Luiz Meyer, para os psicanalistas não se po<strong>de</strong> tomar a recordação<br />

como se fosse a expressão do que verda<strong>de</strong>iramente ocorreu. A recordação, em<br />

geral, é uma reconstrução, ex-post, sobre o que teria ocorrido parcialmente e cada<br />

vez que nós nos recordamos, nós mudamos um pouco. Muitas vezes, a recordação<br />

po<strong>de</strong> também expressar, não o que nós realmente queremos dizer, pois<br />

po<strong>de</strong>mos estar substituindo o que não queremos dizer pelo que dizemos. Eu,<br />

repito, não sou psicanalista, mas o achado é interessante. Meyer foi buscar no<br />

texto ao qual me referi sobre a morte da madrinha, a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um momento<br />

realmente dramático para Nabuco. Por quê? Porque naquele momento ele também<br />

foi <strong>de</strong>spossuído. Ele tinha 8 anos. Nabuco três ou quatro meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

nascer foi entregue à mulher do compadre do pai <strong>de</strong>le, Conselheiro Nabuco.<br />

Ele viveu longe da família. A família que se tornou sua era a da madrinha. Os<br />

escravos, a mãe, ele se refere várias vezes também a sua ama-<strong>de</strong>-leite, uma escrava.<br />

Mas a mãe era a madrinha, que se referiu a ele escrevendo a seu pai, como<br />

“o nosso filhinho”. Ela tinha um carinho todo especial por Nabuco. Havia a<br />

presunção <strong>de</strong> que Nabuco fosse herdar Massangana. Não era uma presunção do<br />

ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> uma ambição material, mas os escravos que o ro<strong>de</strong>avam, segundo<br />

o próprio Nabuco, teriam o “sonho” <strong>de</strong> um dia pertencerem ao domínio<br />

<strong>de</strong>le, Nabuco. Enquanto ele teria o “sonho” <strong>de</strong> ser o senhor <strong>de</strong> Massangana. A<br />

madrinha morreu e não lhe <strong>de</strong>ixou como herança Massangana, que foi <strong>de</strong>stinada<br />

a um outro sobrinho, sem relação com Nabuco. Deu-lhe outra fazenda, mas<br />

<strong>de</strong> fogo morto, isto é, sem escravos, além <strong>de</strong> uma casa em Recife.<br />

Ao ver <strong>de</strong> Luiz Meyer, a experiência dramática que levou Nabuco a uma<br />

i<strong>de</strong>ntificação tão próxima dos escravos é que ele passou por essa experiência<br />

que guarda alguma similitu<strong>de</strong> com a dos escravos: também ele foi “vendido”.<br />

E teve muita dificulda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> início, para se readaptar, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, à<br />

vida com a mãe natural. Passou, portanto, pela experiência vicária sobre o<br />

que significa ser transposto subitamente <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong> vida à outra. Daí<br />

que toda a sua experiência inicial tivesse sido refeita por essa mais traumática.<br />

Digo-lhes isso, para mostrar-lhes que, apesar <strong>de</strong> todos os livros e <strong>de</strong> tudo que<br />

se falou sobre Nabuco, ainda há quem possa dizer coisas novas sobre nosso<br />

personagem. Talvez nem mesmo os que estão no auditório e são conhecedores<br />

21


Fernando Henrique Cardoso<br />

<strong>de</strong> sua vida e obra soubessem que ainda é possível alcançar uma interpretação<br />

mais profunda do que a do próprio Nabuco em Minha formação, sobre motivações<br />

que expliquem o quanto ele se i<strong>de</strong>ntificou com o que ocorria no Brasil, e<br />

as razões pelas quais lutou com tanta energia para mudar tudo.<br />

E quando Nabuco diz que na verda<strong>de</strong> o sistema escravocrata forma tanto<br />

o escravo como o senhor, e que é preciso libertar <strong>de</strong>le todos, esse “todos”<br />

tem um sentido muito profundo, que é libertar todos <strong>de</strong> uma situação que<br />

abriga a uma injustiça tão profunda. Não posso seguir por mais tempo nesse<br />

tipo <strong>de</strong> análise, mas o indiscutível é que não houve outro personagem<br />

na época que tivesse tido a sensibilida<strong>de</strong>, ao lado da capacida<strong>de</strong> intelectual,<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>svendar tanto a escravidão como Nabuco, provavelmente por causa das<br />

experiências vitais pelas quais passou. Não sou psicanalista, mas toda gente<br />

sabe que a experiência da infância marca, mas não <strong>de</strong>fine. A vida se refaz, se<br />

reconstrói. Não se trata <strong>de</strong> um <strong>de</strong>stino, <strong>de</strong> uma con<strong>de</strong>nação marcada pela<br />

infância. Portanto eu não estou dizendo que Nabuco foi gran<strong>de</strong> como foi, só<br />

porque teve essa vivência. Ele foi gran<strong>de</strong> porque teve outros atributos. Soube<br />

transformar essa vivência em elaboração intelectual e em ação política, em<br />

capacida<strong>de</strong> transformadora. O certo é que, daí por diante, Nabuco se revolta<br />

contra tudo que a escravidão representava. E seu comportamento foi assim a<br />

vida inteira. Mesmo sendo, como se dizia, um dândi (estroina) manteve-se fiel<br />

a suas convicções antiescravagistas. Torrou toda a herança que recebeu numa<br />

viagem à Europa, on<strong>de</strong> passou um ano. Ven<strong>de</strong>u a casa, ven<strong>de</strong>u as terras e foi<br />

para a Europa. Contra a opinião do pai. E tinha razão Nabuco, porque na<br />

Europa se refez, teve contatos etc. Mas mesmo que se diga tudo isso e mais,<br />

que foi um homem entre dois mundos – há um trabalho que eu li muito interessante<br />

do João César <strong>de</strong> Castro Rocha sobre Nabuco, retomando alguns<br />

<strong>de</strong>sses temas – mas nada disso obscurece o que eu estou ressaltando. Nabuco<br />

continuou a <strong>de</strong>dicar sua vida à luta contra a injustiça. Realmente para ele a<br />

política sempre foi a entrega a uma causa. Ao abolicionismo, e, com menos<br />

intensida<strong>de</strong>, à Monarquia. Mais tar<strong>de</strong> aceitou os fatos da vida e se tornou,<br />

não digo republicano, mas enten<strong>de</strong>u a República e foi seu embaixador. Apaixonou-se<br />

pelo pan-americanismo. Ao contrário do que muitos disseram, teve<br />

22


Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />

uma forte vocação política a vida inteira, uma constante presença política,<br />

uma motivação política. Do que ele não gostava era do dia a dia da política.<br />

Não gostava dos conchavos, e ao <strong>de</strong>screvê-los, ao <strong>de</strong>screver as trocas <strong>de</strong> favores<br />

(isso hoje não surpreen<strong>de</strong> ninguém...). Mas ele não gostava <strong>de</strong>sse aspecto da<br />

política. Eu entendo que não gostasse. É terrível mesmo. Dito pelas próprias<br />

palavras <strong>de</strong> Nabuco: “Esse gosto especial do político, na luta dos partidos,<br />

não conheci. Procurei na política o lado moral. Imaginei-a uma espécie <strong>de</strong><br />

cavalaria mo<strong>de</strong>rna, a cavalaria andante dos princípios e das reformas. Tive<br />

nela emoções <strong>de</strong> tribuna, por vezes <strong>de</strong> popularida<strong>de</strong>, mas não passei daí. Não<br />

passei do liminar.” Com bases em suas próprias afirmações muita gente diz<br />

que Nabuco não se interessava por política, que seria mais um esteta, mais um<br />

artista, mas isso não é certo. Ele não se interessou pelo tipo <strong>de</strong> política que<br />

estava criticando. O próprio José Veríssimo, numa edição da Minha formação<br />

publicada pela Topbooks, diz que Nabuco era um diletante na política. Era<br />

comum mostrar o contraste entre o amor que Nabuco tinha pelas artes, o<br />

Nabuco italiano, o Nabuco estético, e o Nabuco como político. Mas, na verda<strong>de</strong>,<br />

como ele mesmo confessa, sua inaptidão era para as rusgas do combate<br />

político cotidiano. Ele não tinha esta aptidão. Mas na verda<strong>de</strong>, o tempo todo<br />

ele é ambíguo nesse ponto. Quando nas memórias registra as experiências na<br />

Europa, ora diz que passou um ano na Europa tão encantado pelo que viu na<br />

literatura e nas artes que isso teria apagado nele por um ano o que chama a<br />

faculda<strong>de</strong> política. Entretanto acrescenta noutra parte das memórias: “Apesar<br />

<strong>de</strong> tudo, eu tinha faculda<strong>de</strong>s políticas inapagáveis.” Numa página diz que<br />

eram apagadas, noutra diz que eram inapagáveis. E po<strong>de</strong>riam, quando muito,<br />

ficar secundárias, subordinadas à atração puramente intelectual. Secundárias,<br />

mas presentes como cinzas num braseiro. Logo que surgisse um i<strong>de</strong>al que o<br />

encantasse, essas cinzas viravam chama outra vez, não estavam extintas. Disse<br />

também, é verda<strong>de</strong>, que nunca sentiu amargor, nem ressentimento da política<br />

porque só se consagrou às gran<strong>de</strong>s causas. Na frase que já foi usada contra ele,<br />

diz que se interessava pelo cenário do mundo e não pelo que ocorria no Brasil.<br />

Mas diz ao mesmo tempo: ah, por que então eu me interessei pela abolição?<br />

Quem sabe porque a Abolição naquele momento fosse parte do cenário do<br />

23


Fernando Henrique Cardoso<br />

mundo? Na verda<strong>de</strong>, ele se interessava pelos dois. Pelo cenário do mundo e<br />

apaixonadamente pelo que estava acontecendo aqui. Há uma certa ambivalência,<br />

uma certa ambiguida<strong>de</strong> em suas reflexões, as quais <strong>de</strong>corre do drama<br />

humano do intelectual que participa da política, se entrega a ela em dados<br />

momentos, mas não per<strong>de</strong> seus valores, nem se <strong>de</strong>ixa engolfar em posições que<br />

possam ser contrárias ao que Nabuco chamava o interesse social maior. Não<br />

se trata <strong>de</strong> uma ambiguida<strong>de</strong> específica, para que se critique Nabuco. Quem<br />

não é ambíguo nessas situações? De certa maneira, quem, sendo intelectual,<br />

não vive momentos sem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> participação política alguma, tal o espanto<br />

do cotidiano? E quem, uma outra vez, não reacen<strong>de</strong> a chama quando vê<br />

uma causa a que vale a pena consagrar-se, em nome do interesse social maior?<br />

Aliás, assim Nabuco <strong>de</strong>finiu a política, ao falar sobre o pai, que para ele era<br />

um mo<strong>de</strong>lo: “A qualida<strong>de</strong> principal do político é adaptar os meios aos fins,<br />

e não <strong>de</strong>ixar periclitar o interesse social maior por causa <strong>de</strong> uma doutrina ou<br />

<strong>de</strong> uma inspiração.”<br />

A permanente busca do interesse social maior, busca <strong>de</strong> uma relação entre<br />

meios e fins na qual os meios sejam subordinados aos fins, caracterizou<br />

Nabuco a vida inteira. E mais, nos Pensamentos soltos, em uma edição bem caprichada,<br />

diz algo muito interessante: “Não é possível exprimir senão lados<br />

do pensamento. O pensamento no seu conjunto retira-se, mal percebe que o<br />

querem pren<strong>de</strong>r.”<br />

Esses lados, ora são visíveis, vê-se um lado, ora outro. Nabuco achava que<br />

era impossível ver o conjunto do pensamento e tinha mais horror ainda a um<br />

pensamento que controlasse o cotidiano, o ser, das pessoas, seu quê fazer. De<br />

alguma maneira, fazia uma crítica antecipada ao que veio acontecer, muito mais<br />

tar<strong>de</strong>, nos regimes totalitários. A visão totalizadora era realmente algo completamente<br />

infenso a Nabuco. Acho que ele sempre viveu envolvido por esses<br />

dilemas e que não eram só psicológcios, mas eram dilemas que <strong>de</strong>pendiam<br />

da posição que ele ocupava, da situação social em que ele estava. Entretanto<br />

essas ambiguida<strong>de</strong>s, normais no <strong>de</strong>correr da vida, nunca o afastaram <strong>de</strong> ter – e<br />

vou afirmar uma coisa que é contestada por alguns – sentimentos <strong>de</strong>mocráticos.<br />

Lendo Nabuco com calma, vê-se que ele tinha profundos sentimentos<br />

24


Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />

<strong>de</strong>mocráticos. A imagem <strong>de</strong> Nabuco, e até mesmo os preconceitos e invejas<br />

diante <strong>de</strong> alguém com tantas qualida<strong>de</strong>s e virtu<strong>de</strong>s, provoca sempre uma certa<br />

reação, <strong>de</strong>ixa a impressão <strong>de</strong> Nabuco como um homem “das elites”. Era, mas<br />

com sentimentos <strong>de</strong>mocráticos. Por isso, achei que valia a pena aprofundar um<br />

pouco mais a relação do pensamento <strong>de</strong> Nabuco com o pensamento <strong>de</strong> outro<br />

gran<strong>de</strong> homem, Alexis Tocqueville, que fez, como todos sabem, análises brilhantes<br />

sobre o Antigo Regime na França e sobre a <strong>de</strong>mocracia na América.<br />

<br />

Tocqueville escreveu na primeira meta<strong>de</strong> dos anos do século XIX e Nabuco<br />

na segunda do século XIX. Não escreveram, portanto no mesmo período.<br />

De qualquer maneira, se nós analisarmos a reação dos dois sobre certos momentos<br />

da história ressalta meu argumento sobre o sentimento <strong>de</strong>mocrático<br />

<strong>de</strong> Nabuco. Ninguém duvida da capacida<strong>de</strong> intelectual <strong>de</strong> Tocqueville, nem<br />

<strong>de</strong> sua condição social, marquês, provindo <strong>de</strong> família secular, e também um<br />

homem que tinha orgulho <strong>de</strong>ssa posição, que se afirmava como um aristocrata.<br />

Pois bem. Tocqueville, em vários momentos, ao discutir o Antigo Regime,<br />

num livro que muitos conhecem (o Weffort, que está aqui presente, publicou<br />

uma seleção interessante <strong>de</strong>sses textos <strong>de</strong> Tocqueville), mostra que o Antigo<br />

Regime caiu não só por causa da Revolução Francesa, mas também porque os<br />

reis da França foram retirando funções da nobreza em benefício <strong>de</strong> sua dinastia.<br />

E essas funções eram <strong>de</strong> vária natureza, inclusive fiscal. O rei foi criando<br />

pouco a pouco um Estado mais centralizado, nomeando fiscais das províncias,<br />

que coletavam os impostos, esvaziando a função da aristocracia. Isso<br />

para Tocqueville foi o que começou a arruinar o antigo regime. Tocqueville<br />

reafirma o tempo todo sua condição <strong>de</strong> homem empenhado na volta... nem<br />

digo da volta, que ele sabia ser impossível, mas empenhado em expressar sua<br />

empatia com o Antigo Regime. Ao olhar para a Inglaterra, diz “Ah, a França<br />

foi <strong>de</strong>struída não só por causa do Jacobinismo, – da Revolução Francesa, o<br />

próprio rei estava começando a minar a aristocracia, a nobreza”. Vendo o e<br />

que estava acontecendo à volta pregava: “Olhemos a Inglaterra.” Apaixonou-se<br />

25


Fernando Henrique Cardoso<br />

pela Inglaterra como Nabuco. Mas se apaixonou pelo quê? Pela aristocracia<br />

inglesa. Então diz ele “A Inglaterra é o único país on<strong>de</strong> a aristocracia continua<br />

exercendo o po<strong>de</strong>r e sendo a classe dominante.”<br />

Nabuco também se apaixonou pela Inglaterra. Não só na sua primeira viagem,<br />

mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> jovem. Já no Recife havia lido Bagehot, sobre a Constituição<br />

Inglesa, e se apaixonou pelas instituições do país. Em seus escritos mostrou,<br />

como sabido, que na Inglaterra existe um regime parlamentar e que o regime<br />

parlamentar não é propriamente fruto <strong>de</strong> Montesquieu, porque o Executivo<br />

e o Legislativo estão casados. Entretanto, diz Nabuco, acontece que, estando<br />

casados, o Executivo e o Legislativo, há uma sensibilida<strong>de</strong> muito gran<strong>de</strong> da<br />

opinião pública na relação com a Câmara. “Quando há uma mudança <strong>de</strong><br />

opinião a Câmara também muda, pois po<strong>de</strong>-se pedir sua dissolução e não<br />

é o rei quem a dissolve”. Neste ponto compara com o que ocorria no Brasil,<br />

on<strong>de</strong> era o imperador que, formalmente na escuta da opinião nacional,<br />

dissolvia a Câmara para reequilibrar o sistema. Mas era o imperador quem<br />

agia. Na Inglaterra não. Nabuco se entusiasma com a Inglaterra em função<br />

dos mecanismos <strong>de</strong>mocráticos vigentes. Para ele o que caracterizava, o que<br />

assegurava realmente à Inglaterra uma posição especial no sistema político é<br />

que a força política equilibradora e efetiva residia no Judiciário, na <strong>de</strong>cisão do<br />

juiz. Há um texto em que Nabuco diz com todas as letras, <strong>de</strong> que modo via<br />

a política na Inglaterra: “Somente na Inglaterra po<strong>de</strong>-se dizer que há juízes.<br />

Só há um país no mundo em que o juiz é mais forte do que os po<strong>de</strong>rosos. O<br />

juiz sobreleva à família, à aristocracia, ao dinheiro e o que mais que tudo, aos<br />

partidos, à imprensa, à opinião. Não tem o primeiro lugar no Estado, mas<br />

tem na socieda<strong>de</strong>.” E dá um exemplo: “O Marquês <strong>de</strong> Salzburg e o Duque <strong>de</strong><br />

Westminster estão certos <strong>de</strong> que diante do juiz são iguais ao mais humil<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

sua criadagem.”<br />

Esse sentimento da igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> direitos, ou da pessoa mesmo na mais<br />

extrema <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fortuna, é a condição, é o fundo da dignida<strong>de</strong> anglo-<br />

-saxã. Vê-se assim a diferença entre um conservador verda<strong>de</strong>iro – Tocqueville<br />

– apesar <strong>de</strong> brilhante e analista capaz, e alguém, como Nabuco, que não tem<br />

essa sensibilida<strong>de</strong> conservadora. O que este último via na Inglaterra não era<br />

26


Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />

apenas a monarquia. Ele justificava a monarquia inglesa dizendo: lá, entretanto,<br />

o po<strong>de</strong>r monárquico é neutro. Ele é simbólico. Entra nesse passo, quem<br />

sabe, o lado estético <strong>de</strong> Nabuco. Ele aprecia a monarquia. Mas seu lado <strong>de</strong><br />

pensador político não está colocando ênfase na aristocracia nem na monarquia.<br />

Está colocando ênfase nos direitos do cidadão, está colocando ênfase na<br />

questão da liberda<strong>de</strong>, na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso à justiça para todos; é uma<br />

visão bastante diferente da visão <strong>de</strong> Tocqueville.<br />

Diga-se <strong>de</strong> passagem que é fascinante ler um outro livro <strong>de</strong> Tocqueville,<br />

Lembranças <strong>de</strong> 1848. Tocqueville, marquês, legitimista (ou seja, favorável aos<br />

<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes em linha direta <strong>de</strong> Luiz XIV, não simpático aos <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes<br />

do irmão <strong>de</strong> Luiz XIV, que foram os Orleans), homem arraigadamente favorável<br />

à tradição, se elegeu <strong>de</strong>putado e foi membro da Assembléia Nacional<br />

na França, durante e <strong>de</strong>pois da Revolução <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1848, a primeira<br />

tentativa <strong>de</strong> revolta popular <strong>de</strong>pois da Monarquia. Uma das edições do livro<br />

contém um prefácio belíssimo <strong>de</strong> Ferdinand Brau<strong>de</strong>l que ressalta que Tocqueville<br />

(como, penso eu, também Nabuco) se interessava pela política, mas<br />

<strong>de</strong>snudava, ao mesmo tempo, a socieda<strong>de</strong> que lhe dava ensejo. Ele <strong>de</strong>screve o<br />

que estava acontecendo no dia a dia <strong>de</strong> Paris. Po<strong>de</strong>-se fazer outra comparação,<br />

que não vou fazer, com o 18 <strong>de</strong> Brumário. São livros gêmeos, tanto Marx, como<br />

Tocqueville estão se referindo aos mesmos acontecimentos. E a percepção <strong>de</strong><br />

um e <strong>de</strong> outro é extraordinária. E curiosamente ambos se juntam num ponto:<br />

no horror à burguesia, horror ao que Tocqueville chama <strong>de</strong> “classe média”.<br />

A classe média na época era a burguesia. Ambos têm horror à burguesia. Um<br />

porque quer ver o proletariado triunfante; outro porque quer ver a aristocracia<br />

atuante.<br />

<br />

Voltemos ao tema, para não me enroscar em Marx e Tocqueville. Quando<br />

se vê a maneira quase <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa como Tocqueville <strong>de</strong>screve tudo que não é<br />

a tradição, e se compara suas predisposições com as atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Nabuco, vê-<br />

-se que neste não há nada equivalente. Nabuco foi um homem com os olhos<br />

27


Fernando Henrique Cardoso<br />

bastante abertos para as mudanças, inclusive as mudanças <strong>de</strong>mocráticas, mesmo<br />

em suas apreciações com relação a França <strong>de</strong> 1870. No que diz respeito<br />

à Inglaterra, é ainda mais fácil notar as diferenças nas avaliações <strong>de</strong> cada um<br />

dos dois autores. No outro gran<strong>de</strong> livro <strong>de</strong> Tocqueville sobre a Democracia<br />

na América, que é uma Bíblia para muitos <strong>de</strong> nós, Tocqueville <strong>de</strong>screve o que<br />

acontecia nos Estados Unidos nos anos 1830. Homem oriundo da tradição<br />

europeia, com tudo hierarquizado, encontra nos Estados Unidos uma socieda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> iguais, <strong>de</strong> pessoas, <strong>de</strong> indivíduos sem amor às hierarquias. Po<strong>de</strong> haver<br />

hierarquias, mas os americanos não têm amor a elas. Diante do que viu, Tocqueville<br />

fez uma crítica dura à igualda<strong>de</strong>. Dura. Ele diz que o sistema que se<br />

estava formando nos Estados Unidos estava levando a uma cultura em que a<br />

classe média – outra vez, a burguesia – transforma o gozo dos bens materiais<br />

em fruição suprema. E impedia que as pessoas vissem o interesse público,<br />

porque cada um forma sua própria associação, posto que há muita liberda<strong>de</strong>.<br />

E como nos Estados Unidos, diz Tocqueville, existe não só o individualismo,<br />

mas também a possibilida<strong>de</strong> da associação sem o cunho da autorida<strong>de</strong>, cada<br />

qual se filia às organizações não governamentais, como diríamos hoje, que<br />

queira. Para nosso autor, o que salva a América das consequências negativas<br />

<strong>de</strong> tanta da igualda<strong>de</strong> é a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa e são essas associações. Mas<br />

quais seriam as consequências negativas da igualda<strong>de</strong>? Seriam que, contraditória<br />

e progressivamente, os americanos iam ter mais governo. Tocqueville<br />

escreveu frases absolutamente claras sobre o que para ele seriam as consequências<br />

negativas da combinação entre espírito igualitário e organização livre da<br />

socieda<strong>de</strong> civil. Elas ensejariam a formação <strong>de</strong> um governo centralizador no<br />

qual os americanos ficariam felizes porque iam eleger seu tutor e cada um<br />

cuidaria <strong>de</strong> sua vida privada sem se preocupar com a coisa pública. Ele achava<br />

que haveria um risco nisso, mas, curiosamente, via um antídoto: “O que salvaguarda<br />

isso tudo?” É que a liberda<strong>de</strong> tem um antídoto contra os seus males:<br />

a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa e a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> associação.Tocqueville reconhece,<br />

portanto, o processo <strong>de</strong>mocrático em marcha na América. Mas não o vê com<br />

empatia. Sabe que ele é inevitável e que a formação <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática<br />

está acontecendo no mundo todo e não só na América. Mas a reação<br />

28


Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />

cautelosa <strong>de</strong> Tocqueville é clara, como se dissesse: “Ah! Eu compreendo, sei<br />

que é assim. Há lados fascinantes em tudo isso. Mas com essas transformações<br />

não me sinto em casa.” Ele não diz propriamente isso. Estou exagerando<br />

para expressar mais abertamente o que aparece nas entrelinhas.<br />

E Nabuco? Nabuco também vai aos Estados Unidos e também se fascina.<br />

Mas ele vê outra coisa lá. E é bastante mo<strong>de</strong>rno na percepção <strong>de</strong> que os<br />

Estados Unidos transformaram-se muito, como ele afirma reiteradamente.<br />

Ressalta como Tocqueville o sentimento <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> que existia nos Estados<br />

Unidos, embora acreditasse que a liberda<strong>de</strong> existente na Inglaterra fosse maior<br />

do que a prevalecente nos Estados Unidos, posto que este país não tinha as<br />

garantias, os direitos dos cidadãos garantidos pelo Judiciário tão plenamente<br />

como na Inglaterra. A igualda<strong>de</strong>, tão valorizada nos Estados Unidos, não<br />

seria para todos, universal. Circunscrever-se-ia ao universo americano. Em um<br />

<strong>de</strong> seus textos diz: “Esta igualda<strong>de</strong>, que leva uma educação para todos, que<br />

é característica dos Estados Unidos, encobre também alguns problemas que<br />

po<strong>de</strong>m mais tar<strong>de</strong> ser complicados. Porque essa igualda<strong>de</strong>, essa educação é<br />

para eles, americanos, e dá a eles o sentimento <strong>de</strong> superiorida<strong>de</strong>”. Diz ele:<br />

“Não há povo no mundo que se sinta melhor do que o americano.” Esse sentimento,<br />

essa excepcionalida<strong>de</strong> americana, como se diria hoje – foi reiterada<br />

por Nabuco para mostrar que os americanos viam nos Estados Unidos uma<br />

situação singular no mundo: “É válido. Essa igualda<strong>de</strong> é válida. Mas olhem<br />

bem o que acontece em volta. Sete milhões <strong>de</strong> negros americanos não têm<br />

acesso a isso. Os sins (chineses) e os negros,” diz ele, “acho mesmo que nem<br />

seriam por eles consi<strong>de</strong>rados da mesma or<strong>de</strong>m que nós, os humanos.” E diz<br />

mais: “E eu quero ver se os americanos acham que são iguais aos seus vizinhos<br />

<strong>de</strong> Cuba ou do México. Não! Eles têm um sentimento <strong>de</strong> orgulho. Essa<br />

igualda<strong>de</strong> se traduz, mais tar<strong>de</strong>, em orgulho, a superiorida<strong>de</strong>, e isso vai lhes<br />

dar” – a expressão é <strong>de</strong>le – “um <strong>de</strong>stino manifesto.” E ele se coloca absolutamente<br />

irmanado com os sins, com os negros, com os migrantes que estão<br />

parados nos portos dos Estados Unidos e são barrados no ingresso ao país,<br />

com os latino-americanos. Novamente Nabuco manifesta seu sentimento genuinamente<br />

forte <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> substantiva. Embora ele pu<strong>de</strong>sse reconhecer<br />

29


Fernando Henrique Cardoso<br />

aqui e ali certos riscos no igualitarismo, não fechava seu espírito aos méritos<br />

<strong>de</strong>sse sentimento.<br />

Quando se compara um conservador à antiga, como é o caso <strong>de</strong> Tocqueville<br />

(e eu me refiro a um homem que admiro profundamente por sua capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> análise, sem nada <strong>de</strong> restrição intelectual a Tocqueville) com Nabuco, dá<br />

para ressaltar o que eu comecei dizendo: Nabuco mantinha um sentimento <strong>de</strong><br />

outra or<strong>de</strong>m, um sentimento <strong>de</strong>mocrático. Ele viu nos Estados Unidos, como<br />

viu na Inglaterra e como quis no Brasil, o contrário daquilo que na aparência<br />

é a percepção <strong>de</strong> um aristocrata, <strong>de</strong> um dândi, <strong>de</strong> um “esteticista”. Ele po<strong>de</strong><br />

ter sido tudo isso, ambiguamente, mas na política, não vou dizer que tivesse<br />

sido um revolucionário, como o tachou Gilberto Freyre dizendo que ele era<br />

um revolucionário conservador. Vamireh Chacon tirou <strong>de</strong> Freyre o título do<br />

seu livro. Não direi sequer que não tivesse sido liberal conservador. Sim, mas<br />

era liberal. Com o tempo, mudou um pouco a sua sensibilida<strong>de</strong>.<br />

No fim da vida suas paixões e suas admirações <strong>de</strong>slocaram-se da Europa<br />

para os Estados Unidos. Em sua fase <strong>de</strong> embaixador, quando voltou aos Estados<br />

Unidos, foi nosso primeiro embaixador nos Estados Unidos <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> haver sido agregado à <strong>de</strong>legação brasileira no Império; mais tar<strong>de</strong>, já na<br />

República foi embaixador. Os monarquistas obviamente criticaram-no por ter<br />

aceito representar a República. Mas Tocqueville também votou pela República<br />

justificando-se: “Eu vou votar pela república porque os grupos que estão<br />

na Assembleia Nacional – os orleanistas que queriam a restauração através<br />

dos Orleans, e os legitimistas, que queriam a sucessão em linha direta, não se<br />

enten<strong>de</strong>m, e os republicanos menos ainda com eles; <strong>de</strong>ssa forma não se faz<br />

maioria; então, é melhor a república. Até porque” – e isso mostra <strong>de</strong> novo o<br />

que é o verda<strong>de</strong>iro conservador – “até porque, quem vai ocupar a república<br />

já tem o po<strong>de</strong>r”. E quem tinha o po<strong>de</strong>r era um homem que ele odiava, Luís<br />

Bonaparte, que foi mais tar<strong>de</strong> Napoleão III. Foi até exilado por ele. Mas era<br />

melhor Napoleão III do que o caos. E como ninguém se entendia na Assembleia,<br />

seria melhor ter alguém mesmo um autoritário como Napoleão III, que<br />

utilizou as consequências da revolução popular-republicana para se transformar<br />

em imperador, do que manter a estagnação e o caos que <strong>de</strong>la po<strong>de</strong>riam<br />

30


Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />

advir. Pois bem. Se Tocqueville encontrou argumentos ad terrorem para justificar<br />

seu apoio à República, Nabuco justificou a modificação em sua ação pela<br />

“causa maior”. A causa maior era o Brasil. A causa maior era enten<strong>de</strong>r o papel<br />

que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>sempenhar no mundo.<br />

Nabuco temia muitas coisas que po<strong>de</strong>riam advir da nova forma <strong>de</strong> governo.<br />

Por isso escreveu Balmaceda, que é um livrinho admirável. Admirável porque<br />

composto por crônicas publicadas em jornais, no Jornal do Commercio, eu creio, e<br />

nelas <strong>de</strong>screvia o que estava acontecendo no Chile no final do século XIX, em<br />

1891, 1892, quando havia no Chile um presi<strong>de</strong>nte que seria, o que hoje se chamaria<br />

nacional-<strong>de</strong>senvolvimentista, Balmaceda. Tratava-se <strong>de</strong> um homem muito<br />

<strong>de</strong>votado à causa da difusão das ciências, queria o crescimento da economia, e<br />

se chocou com o Congresso. E foi um presi<strong>de</strong>nte forte. Talvez o mesmo horror<br />

que Nabuco teve a Floriano, por causa do Jacobinismo, ele sentiu por Balmaceda.<br />

Até hoje os chilenos têm muita dúvida sobre as interpretações <strong>de</strong>sse livro <strong>de</strong><br />

Nabuco, porque a saga <strong>de</strong> Balmaceda tem sido incorporada às vicissitu<strong>de</strong>s atuais<br />

como se ele fosse um ancestral político <strong>de</strong> Allen<strong>de</strong>. Tratam-no como um homem<br />

com conotação muito mais progressista, usando uma expressão mo<strong>de</strong>rna.<br />

Entretanto o argumento crítico <strong>de</strong> Nabuco não é <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m econômico-social. É<br />

político, pois Balmaceda estaria asfixiando os po<strong>de</strong>res do Congresso, e Nabuco<br />

acreditava que só o Brasil e o Chile, na América Latina, tinham regimes relativamente<br />

estáveis que permitiam liberda<strong>de</strong> e um Congresso autêntico. Nesses<br />

países havia algo <strong>de</strong> liberalismo, ainda que canhestro. Com todas as críticas que<br />

se possam fazer ao tipo <strong>de</strong> liberalismo que tivemos, haveria espaço para o liberalismo.<br />

No Chile, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Portales, que foi o gran<strong>de</strong> fundador do estado chileno,<br />

havia um estado bastante forte, mas convivendo com o espírito liberal, embora<br />

mantivesse uma relação oligárquica no po<strong>de</strong>r. Nabuco criticou Balmaceda por<br />

voltar-se contra o equilíbrio liberal-oligárquico dominante. O mais paradoxal é<br />

que quem apoiou a revolta do Congresso contra Balmaceda foi a Marinha. Os<br />

trabalhadores do campo, os camponeses chilenos, e a classe média ficaram contra<br />

o Balmaceda. Nabuco viu nos gestos <strong>de</strong> Balmaceda um exemplo <strong>de</strong> tentativa<br />

<strong>de</strong> quebra da continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática. Como se dissesse: cuidado! Embora<br />

o Chile fosse uma República, forma <strong>de</strong> governo que não era <strong>de</strong> sua predileção,<br />

31


Fernando Henrique Cardoso<br />

era uma república liberal; melhor preservá-la. É a esse aspecto que se refere nas<br />

críticas a Balmaceda. No Brasil tivemos uma monarquia, mas uma monarquia<br />

que dava espaço para as oligarquias serem liberais. São consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> um<br />

Nabuco mais maduro.<br />

O que Nabuco escreve mais tar<strong>de</strong>, quando embaixador nos Estados Unidos,<br />

é algo que <strong>de</strong>ve ser entendido em perspectiva, porque é fácil criticá-lo.<br />

Uma vez embaixador continua a ser brilhante. O fato <strong>de</strong> ter sido recebido<br />

pelas universida<strong>de</strong>s, naquela época, com o fato <strong>de</strong> ter sido recebido por Yale,<br />

pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Wisconsin, e não sei por on<strong>de</strong> mais, <strong>de</strong> fazer discursos<br />

em inglês, <strong>de</strong> escrever bem nessa língua, mostrava que no Brasil existia uma<br />

certa sensibilida<strong>de</strong>, uma certa cultura. Enfim, que nós podíamos ser interlocutores.<br />

Foi um gran<strong>de</strong> embaixador. E isso foi reconhecido pela imprensa em<br />

geral e não só no mundo da universida<strong>de</strong>. Sua presença marcante extrapolou a<br />

universida<strong>de</strong>. Mas o intelectual Nabuco se enamorou pelo pan-americanismo,<br />

pelas doutrinas <strong>de</strong> Monroe, já transformadas na época pela vocação mais intervencionista.<br />

Nabuco manteve relações diretas com Theodore Roosevelt, o<br />

homem do big stick, e com seus ministros. Simultaneamente o Brasil começou<br />

a se <strong>de</strong>slocar do eixo europeu para o americano, respon<strong>de</strong>ndo a uma mudança<br />

das políticas <strong>de</strong> Estado, mais que <strong>de</strong> governo. A economia já havia mudado,<br />

já estava indo nessa direção. Nem todos os países sul-americanos fizeram essa<br />

transformação como o Brasil fez. Des<strong>de</strong> a República o Brasil passou a se <strong>de</strong>slocar<br />

na direção do eixo americano. E Nabuco foi o proponente ativo <strong>de</strong>ssa<br />

política. Po<strong>de</strong> parecer estranho, dadas as críticas tão severas ao que acontecia<br />

nos Estados Unidos que ele fez, como já mencionei. Po<strong>de</strong> parecer estranho,<br />

insisto, que Nabuco olhando o mundo achasse a partir <strong>de</strong> certo momento<br />

que fosse melhor <strong>de</strong>senvolver uma relação mais direta entre o Brasil e os Estados<br />

Unidos. Os críticos, como Oliveira Lima, que foi bastante crítico <strong>de</strong>ssa<br />

posição, diziam que com isso assumíamos uma posição <strong>de</strong> subalternida<strong>de</strong>.<br />

Porque <strong>de</strong> fato há frases <strong>de</strong> Nabuco nas quais ele quase diz que seria bom<br />

para nós tudo o que os americanos fizessem. Por quê? Na verda<strong>de</strong> a intenção<br />

<strong>de</strong>le, talvez ingênua como dito por alguns <strong>de</strong> seus biógrafos, era a <strong>de</strong> que seria<br />

possível um diálogo Brasil-Estados Unidos. Ele valorizava tanto, digamos, a<br />

32


Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />

excepcionalida<strong>de</strong> brasileira e portuguesa (daí as conferências sobre Camões,<br />

para <strong>de</strong>monstrar que nós tínhamos uma cultura <strong>de</strong> alcance universal) que um<br />

diálogo entre o Brasil e os Estados Unidos po<strong>de</strong>ria abrir espaço para o Brasil<br />

<strong>de</strong>sempenhar um papel importante em nossa região, a América Latina.<br />

Não era outra a visão <strong>de</strong> Rio Branco. Com uma diferença: Rio Branco era<br />

mais cauteloso na formulação <strong>de</strong> sua política externa, e na formulação das<br />

relações do Brasil com a Europa. Nabuco ficou <strong>de</strong> tal maneira imbuído da<br />

excepcionalida<strong>de</strong> americana, da pre<strong>de</strong>stinação americana, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u com<br />

palavras muito fortes a necessida<strong>de</strong> do pan-americanismo e por isso foi extremamente<br />

criticado. Não lerei seus textos, mas o que ele disse sobre os Estados<br />

Unidos anteriormente pareceria incompatível com a mudança <strong>de</strong> visão. Nabuco<br />

se explica, embora sua explicação possa não convencer ou não diminuir<br />

a crítica que lhe foi feita por sua a<strong>de</strong>são, digamos assim, pouco cautelosa, aos<br />

Estados Unidos. Mas o fato é que ele explica sua posição pelas mudanças<br />

ocorridas no eixo do mundo. E diz algo que é realmente muito, muito interessante:<br />

“Daqui a pouco, Europa, Ásia e África formarão uma só re<strong>de</strong>.” Re<strong>de</strong><br />

é uma expressão que se usa muito hoje. O mundo opera em re<strong>de</strong>. Nabuco já<br />

usava a expressão: “Formarão uma só re<strong>de</strong>. É o sistema político do Globo,<br />

que começa, em vez do sistema antigo europeu. Po<strong>de</strong>-se dizer que estamos<br />

às vésperas <strong>de</strong> uma nova era.” Não está falando em globalização, mas quase.<br />

É quase uma referência à globalização. E não se esqueçam que Nabuco, com<br />

tudo que foi criticado, por ser mo<strong>de</strong>rno, por ser cosmopolita, anteviu muita<br />

coisa. Ele dizia: “hoje em dia, como nós temos o telégrafo, po<strong>de</strong>mos acompanhar<br />

o mundo.” Pelo telégrafo! Ele antevia a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um outro<br />

papel para o Brasil neste novo mundo. Quem sabe estivesse <strong>de</strong>lineando para<br />

o Brasil – discute-se se a tese é correta – uma relação mais estreita com os<br />

Estados Unidos (que o Presi<strong>de</strong>nte Lula não me ouça, não, não estou falando<br />

do Irã). Talvez pu<strong>de</strong>sse dar espaço para o Brasil se afirmar mais, em sua área<br />

<strong>de</strong> influência direta daquela época, função para a qual Nabuco nos achava<br />

cre<strong>de</strong>nciados, e o somos, <strong>de</strong> exercer um papel <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>ração. Daí o Chile, daí<br />

o livro sobre Balmaceda, daí a prédica <strong>de</strong> uma ação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>ração na América<br />

Latina.<br />

33


Fernando Henrique Cardoso<br />

Em suma, não é preciso reafirmar aqui, até porque o propósito <strong>de</strong>ste Ciclo<br />

foi o <strong>de</strong> prestar uma homenagem, que Nabuco foi um homem fora <strong>de</strong> série,<br />

um homem excepcional. E eu me <strong>de</strong>sculpo, para finalizar, dizendo o seguinte.<br />

Eu não sei ler. Escrevi muitas páginas, mas na hora <strong>de</strong> fazer uma exposição<br />

penso comigo mesmo, melhor não ler porque vai ser muito difícil. Eu não sei<br />

ler com graça e tenho uma inveja imensa <strong>de</strong> quem o sabe. Assisti uma vez a<br />

uma conferência <strong>de</strong> um antropólogo, chamado Edmund Leach, em que ele<br />

<strong>de</strong>screvia a solenida<strong>de</strong> na qual foi tornado cavaleiro, knight, pela rainha. Ele<br />

leu a conferência em um teatro. Eu fiquei fascinado. Foi, em Princeton, que<br />

eu ouvi o Leach, embora fosse professor <strong>de</strong> Cambridge. Tive também um<br />

professor, vocês conhecem, Raymond Aron. Ele lia as aulas, na Sorbonne. Eu<br />

ficava extasiado. Porque eu não sei fazer isso. Eu sei escrever artigo. Quando<br />

terminei <strong>de</strong> escrever esta conferência eu disse: “Meu Deus, eu fiz um artigo!<br />

Não vou po<strong>de</strong>r ler isso!” Então me <strong>de</strong>sculpo, perante vocês, pois eu não podia<br />

<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> vir aqui, mesmo com minhas insuficiências, para me juntar às homenagens<br />

a Nabuco e para ren<strong>de</strong>r meu preito <strong>de</strong> gratidão a todos os amigos que<br />

aqui estão. Muito obrigado.<br />

34


A poesia do Narciso<br />

<strong>de</strong> Apipucos<br />

A<br />

Lêdo Ivo<br />

poesia sempre esteve presente na vida <strong>de</strong> Gilberto Freyre –<br />

quer como fruição intelectual e emocional <strong>de</strong> uma personalida<strong>de</strong><br />

habituada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a adolescência a visitar tantas paragens<br />

da criação humana, quer como <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> encontros e <strong>de</strong>scobertas<br />

<strong>de</strong>cisivas e convívios enriquecedores, e quer como um selo<br />

diferenciador em sua obra. E, finalmente, como uma afirmação<br />

pessoal.<br />

Em sua formação, a leitura e as referências a poetas <strong>de</strong> várias<br />

escolas e nacionalida<strong>de</strong>s são copiosamente registradas. O encontro<br />

com algumas figuras exponenciais da poesia do século xx, como o<br />

irlandês William Butler Yeats ou o indiano Rabindranath Tagore, é<br />

mais <strong>de</strong> uma vez evocado. A esses encontros <strong>de</strong> passagem acrescenta-se,<br />

com uma persistência inconfundível, o comércio do estudante<br />

universitário com uma das personagens mais notórias da renovação<br />

Introdução à 2. a edição <strong>de</strong> Talvez poesia. São Paulo: Ed. Global, 2011.<br />

<strong>Prosa</strong><br />

35<br />

Ocupante da<br />

Ca<strong>de</strong>ira 10<br />

na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>.


Lêdo Ivo<br />

poética do século passado: a excêntrica norte-americana Amy Lowell, fumadora<br />

<strong>de</strong> charutos, criadora e difusora do imagismo – esse imagismo que o<br />

também excêntrico inovador da poesia mo<strong>de</strong>rna Ezra Pound estampilhava<br />

maliciosamente <strong>de</strong> amygismo.<br />

A <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> uma experiência estética radical e característica <strong>de</strong> um<br />

tempo cultural regido pela inquietação criadora, por experimentalismos que<br />

se expandiam em várias ou numerosas direções, o diálogo aceso no casarão <strong>de</strong><br />

Boston, que tanto contrastava com o espírito revolucionário <strong>de</strong> Amy Lowell,<br />

terão <strong>de</strong>ixado traços fundos na personalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gilberto Freyre, naqueles<br />

tempos estudiosos em que sua curiosida<strong>de</strong> intelectual se abria tão <strong>de</strong>sembaraçadamente<br />

e respirava o novo ar do século: um ar <strong>de</strong> que emergiam tantas<br />

figuras tornadas preclaras e exemplares, e os ismos se alastravam em fervilhante<br />

colisão.<br />

Nesse cenário cultural que abrangia os Estados Unidos e a França, a Alemanha<br />

e a Inglaterra, a se<strong>de</strong> e a fome intelectuais do jovem pernambucano hão<br />

<strong>de</strong> ter sido generosamente aplacadas. E nutriam in<strong>de</strong>levelmente a sua longa<br />

trajetória literária e científica: a sua arte e a sua vida tão harmoniosamente<br />

entrelaçadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia em que a publicação <strong>de</strong> Casa-gran<strong>de</strong> & senzala (1933)<br />

abalou o modorrento território cultural do Brasil, causando ora aplauso e espanto,<br />

ora censura e repulsa, até os dias finais, no solar <strong>de</strong> Apipucos, quando<br />

a sua figura se alçava como a <strong>de</strong> um velho Goethe tropical.<br />

O imagismo e o objetivismo <strong>de</strong> Amy Lowell, seguidos religiosamente por<br />

tantos dos seus fervorosos sequazes ou minimizados pela emergência <strong>de</strong> outros<br />

ismos mais prestigiosos, não ocupam, na posterida<strong>de</strong>, um sítio correspon<strong>de</strong>nte<br />

à importância e relevo daqueles dias afortunados em que a alegria<br />

<strong>de</strong> criar e inventar, e <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrubar ídolos, imperava triunfante em incontáveis<br />

ismos ou vanguardas, que reuniam a poesia, o romance, as artes plásticas,<br />

teatro, dança, música, o cinema.<br />

Além do imagismo <strong>de</strong> Amy Lowell, espraiavam-se o vorticismo, o surrealismo,<br />

o expressionismo, o criacionismo, o dadaísmo, o futurismo <strong>de</strong> Marinetti,<br />

o cubismo <strong>de</strong> Picasso e Reverdy e tantos outros movimentos experimentais.<br />

Todavia, a sua lição do imagismo – <strong>de</strong> precisão, economia verbal e<br />

36


A poesia do Narciso <strong>de</strong> Apipucos<br />

objetivida<strong>de</strong> – isto é, <strong>de</strong> renúncia ao eu e ao íntimo em benefício do objeto e<br />

do mundo exterior – terá influído po<strong>de</strong>rosamente em numerosos corações e<br />

mentes, numa ocorrência similar à que foi protagonizada por Gertru<strong>de</strong> Stein,<br />

que, em Paris, em algumas décadas do alvorejar do século xx, converteu o seu<br />

apartamento parisiense da 27, rue Fleurus, num dos mais célebres e fecundos<br />

laboratórios <strong>de</strong> invenção e experimentação literária e estética.<br />

Do comércio com Amy Lowell, Gilberto Freyre – que a relembra <strong>de</strong> forma<br />

tão enternecida em vários passos <strong>de</strong> sua obra – herdou um legado precioso:<br />

o sentimento da imagem, uma arte <strong>de</strong> ver expandida, até a hipertrofia, uma<br />

<strong>de</strong>streza ou sabedoria no registro dos seres e paisagens circundantes. Poesia:<br />

arte <strong>de</strong> ver e <strong>de</strong> saber ver.<br />

Numa personalida<strong>de</strong> artística e cultural tão po<strong>de</strong>rosa como a <strong>de</strong> Gilberto<br />

Freyre, a lição <strong>de</strong> Amy Lowell não seria única ou exclusiva. Em sua vasta obra<br />

– que é ao mesmo tempo uma obra <strong>de</strong> cientista e excepcional ou talvez ou<br />

<strong>de</strong>certo genial artista literário, e na qual se fun<strong>de</strong>m tantos ramos do conhecimento<br />

humano, conferindo-lhe o teor <strong>de</strong> ambiguida<strong>de</strong> e pluralida<strong>de</strong> que é um<br />

<strong>de</strong> seus encantos e seduções – nessa obra tão vária e tão opulenta e ondulante<br />

outras influências e afinida<strong>de</strong>s enriquecedoras po<strong>de</strong>m ser encontradas – as <strong>de</strong><br />

seus mestres no plano sociológico, como Franz Boas; as <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ólogos revolucionariamente<br />

conservadores e intransigentes nesse conservadorismo, como<br />

é o caso <strong>de</strong> Charles Maurras; a dos irmãos Gouncort, que <strong>de</strong>positaram na<br />

mente do jovem e curioso estudante outra lição magistral: a da exploração dos<br />

pequenos fatos e inci<strong>de</strong>ntes, do <strong>de</strong>talhe iluminador e da histoire vraie.<br />

Esse minuciosismo, que aliás muito <strong>de</strong>ve ao memorialismo ficcional <strong>de</strong><br />

Marcel Proust e às explosões estilísticas à maneira <strong>de</strong> Michelet, percorre toda<br />

a obra <strong>de</strong> Gilberto Freyre, mestre na arte <strong>de</strong> exercer uma inteligência esmiuçadora<br />

e interrogar os seres e as coisas, não através da visão das integrida<strong>de</strong>s e<br />

totalida<strong>de</strong>s, e sim pelo caminho das parcialida<strong>de</strong>s e fragmentações, dos indícios<br />

reveladores e das significações curiosas. Esse lado Goncourt <strong>de</strong> Gilberto<br />

Freyre é tanto mais singular se levarmos em conta que ele não trouxe para<br />

a sua obra o style tarabiscoté dos famosos irmãos, tão chegadiços a chinesices,<br />

japonesices e bizantinices. Aliás, o bizarro estilo artístico que os caracteriza<br />

37


Lêdo Ivo<br />

é um dos estilos da época: o <strong>de</strong> Villiers <strong>de</strong> L’Isle Adam, <strong>de</strong>sse J-K Huysmans<br />

que o jovem Gilberto tanto admirou, <strong>de</strong> Léon Bloy, <strong>de</strong> Barbey d’Aurevilly.<br />

Selecionando as lições recebidas, e as adaptando à sua natureza espiritual,<br />

Gilberto Freyre haverá <strong>de</strong> ter sempre um estilo predominantemente coloquial<br />

e familiar, com afortunadas transgressões gramaticais – uma prosa vívida e<br />

musculosa, irrigada pela poesia.<br />

As gorduras eventuais ou ostensivas <strong>de</strong>sse estilo são gorduras bem-vindas,<br />

como as das sinhazinhas do Nor<strong>de</strong>ste que comem muito açúcar e bolo <strong>de</strong><br />

rolo, e se arredondam gostosa e graciosamente para os futuros e secretos apetites<br />

matrimoniais. Aliás, saliente-se que esse estilo, que correspon<strong>de</strong> a um uso<br />

magistral da língua, foi acoimado <strong>de</strong> chulo pelos austeros e severos cultores do<br />

idioma, cativos ao coelhonetismo e às flaubertices da então sisuda e hierática<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

A poesia <strong>de</strong> Gilberto Freyre: posso vangloriar-me <strong>de</strong> ter sido a primeira voz<br />

a incitar o mestre <strong>de</strong> Aventura e rotina a assumir a sua condição <strong>de</strong> poeta num<br />

livro isolado. Desse incitamento nasceu este Talvez poesia.<br />

Decerto o ponto mais alto <strong>de</strong> sua prática é o poema “Bahia”, publicado<br />

pelo autor em 1926.<br />

Nesse poema, que é uma das obras-primas do Mo<strong>de</strong>rnismo brasileiro – não<br />

do Mo<strong>de</strong>rnismo apenas paulista, mas <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>rnismo mais vasto e mais<br />

matizado e que exprimiu no Nor<strong>de</strong>ste o <strong>de</strong>scontentamento estético dos jovens<br />

da década <strong>de</strong> 20 do século passado – aflora e até se escancara o Gilberto Freyre<br />

que, em e com o seu antiestilismo e em seu alegado chulismo, forjou um estilo<br />

soberbo e inconfundível. Ao celebrar a “maternal cida<strong>de</strong> gorda”, suas mulatas<br />

apetitosas e suas igrejas também gordas, ele não hesita em proclamar:<br />

eu <strong>de</strong>testo teus oradores, Bahia <strong>de</strong> todos os santos<br />

teus ruys barbosas teus otávios mangabeiras<br />

mas gosto <strong>de</strong> teus angus e das tuas mulatas.<br />

Nesses versos explosivos não freme apenas o seu <strong>de</strong>sapreço pelos escritores<br />

afervorados em castigar o estilo; também se esgueira nele, na predileção pelas<br />

38


A poesia do Narciso <strong>de</strong> Apipucos<br />

mulatas, o futuro cientista social e sexual, que, em viagem pela África, não<br />

dispensou o morno ou cálido conúbio com algumas negras – transações aliás<br />

consentidas pela ciosa e ciumenta Madalena, sua mulher, a qual se ren<strong>de</strong>u às<br />

razões invocadas pelo seu eminente marido, <strong>de</strong> que se tratava apenas <strong>de</strong> imprescindíveis<br />

imperativos coitos <strong>de</strong> natureza antropológica.<br />

A in<strong>de</strong>pendência ostentada por “Bahia” em relação com as peças produzidas<br />

pelos mo<strong>de</strong>rnistas da Semana <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna aponta, pois, para uma<br />

evidência estética: a da existência <strong>de</strong> um outro mo<strong>de</strong>rnismo – um mo<strong>de</strong>rnismo<br />

regionalista e tradicionalista e não nacionalista, urbano ou cosmopolita, e que<br />

teve como centro <strong>de</strong> irradiação a cida<strong>de</strong> do Recife, e sob a égi<strong>de</strong> do regionalismo<br />

haveria <strong>de</strong> eclodir, com o seu verdor, não apenas na obra do próprio Gilberto<br />

Freyre, mas ainda no romance <strong>de</strong> José Lins do Rego e Jorge Amado, e na poesia<br />

<strong>de</strong> Jorge <strong>de</strong> Lima, Manuel Ban<strong>de</strong>ira, Ascenso Ferreira e Joaquim Cardozo.<br />

Enquanto em Pauliceia <strong>de</strong>svairada, <strong>de</strong> Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, transverba o futurismo<br />

<strong>de</strong> Marinetti, nesse poema <strong>de</strong> Gilberto Freyre vibra o imagismo <strong>de</strong> Amy<br />

Lowell. É um poema visual, <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> minuciosamente representada,<br />

uma peça antecipadora do modo <strong>de</strong> exprimir-se do autor <strong>de</strong> Sobrados e mocambos.<br />

As mangueiras do Recife e a gorda e maternal cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Salvador emergem<br />

do texto, e ainda as igrejas magras <strong>de</strong> Pernambuco.<br />

Merece cabida a observação <strong>de</strong> que o imagismo e visualismo <strong>de</strong>sse poema,<br />

<strong>de</strong> tanta concretitu<strong>de</strong>, como <strong>de</strong> resto toda a produção ou expressão poética <strong>de</strong><br />

Gilberto Freyre, impõe-se como uma vertente nítida em seu trajeto intelectual<br />

e autoral. Nesse Gilberto Freyre tão sedutoramente centrado em si mesmo,<br />

amorosamente autobiográfico até mesmo nos textos mais eminentemente<br />

científicos, nesse escritor tão enamorado <strong>de</strong> si mesmo e <strong>de</strong> sua obra – nesse<br />

Narciso <strong>de</strong> Apipucos, fervorosamente apaixonado pela própria imagem – a<br />

produção poética se distingue não por um subjetivismo latejante ou escancarado,<br />

mas por uma plácida objetivida<strong>de</strong> em que ele proce<strong>de</strong> à contemplação<br />

da realida<strong>de</strong>.<br />

Muitos dos poemas <strong>de</strong>ste livro são <strong>de</strong> autoria comprovada e irrefutável <strong>de</strong><br />

Gilberto Freyre. Mas em sua gran<strong>de</strong> maioria são “poemas autênticos a que<br />

prosa do ensaísta serviu apenas <strong>de</strong> pretexto”. O tempo, que é também um<br />

39


Lêdo Ivo<br />

autor, transmudou a asserção <strong>de</strong> Gilberto Freyre <strong>de</strong> que “o leitor facilmente<br />

i<strong>de</strong>ntificará tais poemas”, e <strong>de</strong>scobrirá a “poesia tirada por Lêdo Ivo da poesia<br />

dispersa na prosa <strong>de</strong> Gilberto”. Presumo que esse trabalho <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação –<br />

ou <strong>de</strong> separação entre a poesia original e a poesia extraída da prosa – é hoje<br />

<strong>de</strong> difícil ou impossível i<strong>de</strong>ntificação e distinção. Cada uma das contribuições<br />

haverá <strong>de</strong> ter obe<strong>de</strong>cido a um critério pessoal, diversificando o processo <strong>de</strong><br />

redução <strong>de</strong> formas e ritmos poemáticos.<br />

No meu caso pessoal, cabe-me assegurar aos leitores que realizei uma operação<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sentranhamento. Na obra <strong>de</strong> Gilberto Freyre – especialmente em<br />

Aventura e rotina, Nor<strong>de</strong>ste e Um brasileiro em terras portuguesas, ao que me lembre –<br />

me limitei a extrair da prosa diante dos meus olhos a poesia que latejava nela,<br />

num latejo às vezes tão indócil que me intimava a libertá-la da ilha ou prisão<br />

prosística e assegurar-lhe o trânsito libertador, a respiração a que aspirava e tinha<br />

direito. Não me recordo <strong>de</strong> ter maquilado, enfeitado ou ajustado nenhum<br />

texto. Extraí os poemas da prosa <strong>de</strong> Gilberto Freyre como um <strong>de</strong>ntista extrai<br />

um <strong>de</strong>nte. Isto significa que <strong>de</strong>i ostensivida<strong>de</strong> e visibilida<strong>de</strong> a poemas que a<br />

prosa escondia, guardava ou semirrevelava, a instantes grávidos <strong>de</strong> liricida<strong>de</strong><br />

plena e <strong>de</strong> autonomia.<br />

Num leitor insaciável como Gilberto Freyre, que lia e relia uma receita<br />

culinária ou um atestado <strong>de</strong> óbito <strong>de</strong> senhor <strong>de</strong> engenho com a mesma atenção<br />

e <strong>de</strong>leite com que percorria as elegias <strong>de</strong> Camões ou os sonetos <strong>de</strong> Shakespeare,<br />

as marcas e transfluências poéticas que marchetam este Talvez poesia não<br />

se reduzem, <strong>de</strong>certo, aos poetas aqui aludidos. O seu versilibrismo reflete uma<br />

das preocupações mais veementes da época <strong>de</strong> sua formação intelectual, a da<br />

suposta libertação da arte e da poesia, <strong>de</strong>spojando-a <strong>de</strong> regras que aparentemente<br />

a manteriam cativa ou manietada, e permitindo-lhe respirar as ares<br />

salubres da liberda<strong>de</strong>. Assim, liberto ou <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhoso das rimas e métricas e<br />

<strong>de</strong> outras imposições <strong>de</strong>ssa arte da versificação, que é o pilar supremo da arte<br />

poética, ele procura exprimir-se <strong>de</strong>sembaraçadamente, em ritmos largos, <strong>de</strong><br />

caráter respiratório.<br />

Outro poema seu, <strong>de</strong> notável amplitu<strong>de</strong> gráfica, “O outro lado do Brasil”,<br />

há <strong>de</strong> comprovar que nem sempre o anseio <strong>de</strong> libertação, a teoria do<br />

40


A poesia do Narciso <strong>de</strong> Apipucos<br />

<strong>de</strong>sembaraço poético produz bons frutos. O seu ímpeto <strong>de</strong> expressão, <strong>de</strong>certo<br />

bebido em Walt Whitman, resvala escandalosamente. Na verda<strong>de</strong> ele papagueia<br />

o hoje esquecido Ronald <strong>de</strong> Carvalho daquele Toda a América, que quis<br />

ver traduzido para o inglês. São versos <strong>de</strong> cosmética exaltação nacionalista e<br />

enumerações insossas e fatigantes. Mais gilbertiano – e não whitmaniano ou<br />

subronaldiano – é o poema “Nor<strong>de</strong>ste da cana-<strong>de</strong>-açúcar”, resultado extremamente<br />

feliz <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sentranhamento. Nele, Gilberto Freyre nada com a<br />

<strong>de</strong>senvoltura <strong>de</strong> quem está tomando banho no Capibaribe:<br />

Nor<strong>de</strong>ste <strong>de</strong> árvores gordas<br />

<strong>de</strong> gente vagarosa<br />

e às vezes arredondada quase em sancho-panças pelo mel <strong>de</strong> engenho<br />

pelo peixe cozido com pirão.<br />

Nesse poema, que presumo tenha sido <strong>de</strong>sentranhado por mim da magnífica<br />

e contagiante prosa poética <strong>de</strong> Nor<strong>de</strong>ste (ou será <strong>de</strong> outro livro do Mestre?)<br />

– nesse poema <strong>de</strong>certo nascido como prosa e arrancado <strong>de</strong> sua condição para<br />

viver viçosamente na forma poética, mexe-se e respira o melhor e mais preclaro<br />

Gilberto Freyre. O comentário sociológico que nele palpita se engasta<br />

numa visualida<strong>de</strong> inarredável. O Gilberto que vê, cheira, fareja, <strong>de</strong>leita-se,<br />

observa e celebra as coisas e os seres, as paisagens e os instantes, espreguiça-se<br />

tropicalmente nesses coloridos ou foscos postais <strong>de</strong> um Nor<strong>de</strong>ste que ele ao<br />

mesmo tempo historiou e inventou com os seus dons <strong>de</strong> cientista contagiado<br />

pela criação poética e pelos po<strong>de</strong>res da ficção. E, em sua poesia escondida ou<br />

ostensiva, soube cantar a tristeza dos mosteiros pernambucanos e as “águas<br />

imundas dos rios do Nor<strong>de</strong>ste / prostituídos pelo açúcar”: os brasileiros<br />

amarelinhos, os mocambos, “os azulejos velhos das sacristias”. Soube, enfim,<br />

naqueles tempos <strong>de</strong> ebulição juncada <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnismos e mo<strong>de</strong>rnices, e até <strong>de</strong><br />

oswaldices, cantar o Nor<strong>de</strong>ste e, por extensão o Brasil. E, viajante guloso <strong>de</strong><br />

paisagens estrangeiras, até a “neve mole” <strong>de</strong> Nova Iorque.<br />

Mesmo nos “poemas europeus”, que registram as andanças pelas outras<br />

terras – especialmente pelas terras portuguesas <strong>de</strong> Portugal e pelas terras<br />

41


Lêdo Ivo<br />

portuguesas <strong>de</strong> além-mar, pelas áfricas e ásias e oceanias percorridas pelo seu<br />

olhar <strong>de</strong> viajante que nem sempre soube ver o que a secular colonização lusitana<br />

exibia ou ocultava – está presente a sua condição <strong>de</strong> brasileiro, nor<strong>de</strong>stino,<br />

pernambucano e recifense. E está presente, <strong>de</strong> modo escandalosamente nítido,<br />

a sua augusta condição <strong>de</strong> Gilberto Freyre gilbertiano. O autor <strong>de</strong> Interpretação<br />

do Brasil jamais se <strong>de</strong>mite ou abre mão <strong>de</strong> si mesmo, <strong>de</strong> sua seminal integralida<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong> sua <strong>de</strong>morada autocontemplação, <strong>de</strong> seu propósito <strong>de</strong> semear a sua<br />

imagem e importância, mesmo quando se encontra nos quartos dos hotéis<br />

estrangeiros e auditórios ilustres.<br />

As perambulações científicas e líricas lhe permitem espalhar sempre, nas<br />

páginas <strong>de</strong> registro <strong>de</strong>sses traslados, fecundas sementes biográficas e autobiográficas.<br />

E o mirar-se e automirar-se, a incansável contemplação num lago<br />

imaginário ou num espelho real, jamais haverá <strong>de</strong> esmorecer o leitor. Este<br />

recebe sempre com agrado, e quase sempre <strong>de</strong>leitado e seduzido, e curioso,<br />

as mais remotas notícias do gran<strong>de</strong> autor e ator. A tão proclamada e às vezes<br />

tão invejada vaida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gilberto Freyre é uma vaida<strong>de</strong> salubre e efervescente.<br />

E até tonificante.<br />

Obra <strong>de</strong> Gilberto Freyre e <strong>de</strong> <strong>de</strong>sentranhadores ou ajeitadores argutos e<br />

<strong>de</strong>votados, aplicados em canalizar riachos incontáveis para um rio principal,<br />

este Talvez poesia é o Decerto poesia, <strong>de</strong>stinado a compendiar a aventura poética<br />

<strong>de</strong> Gilberto Freyre.<br />

As ajudas e <strong>de</strong>scobertas, as reduções e extrações que o <strong>de</strong>svendaram em sua<br />

maior parte foram engolidas pelo tempo. Este livro pertence única e exclusivamente<br />

a Gilberto Freyre. É <strong>de</strong> sua autoria; e as subautorias notórias ou já<br />

esvaecidas somem na bruma ou na escuridão dos instantes. Os figurantes que<br />

colaboraram para a sua existência agiram como esses anônimos aprendizes<br />

que ajudam os gran<strong>de</strong>s pintores a preparar as tintas, pendurar as telas, lavam<br />

os pincéis e até varrem o chão do atelier insigne. E, postumamente, Gilberto<br />

Freyre, o invejável enamorado <strong>de</strong> si mesmo, usuário <strong>de</strong> uma solidão juncada<br />

<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s e admirações – o senhor do solar <strong>de</strong> Apipucos ou, mais precisamente,<br />

o invejável e invejado Narciso <strong>de</strong> Apipucos – se afirma e se impõe em<br />

Talvez poesia como um gran<strong>de</strong> poeta do Nor<strong>de</strong>ste e do Brasil.<br />

42


A poesia do Narciso <strong>de</strong> Apipucos<br />

A poesia pálida <strong>de</strong> hoje, sem cor nem sabor, sem rigor e sem vigor, sem<br />

amor e sem dor, sem folha e sem flor, muito lucraria absorvendo os ensinamentos<br />

<strong>de</strong>ste livro. E os poetas pálidos e taciturnos haveriam <strong>de</strong> ganhar cores<br />

e viço ao receber<br />

A luz do sol <strong>de</strong> Olinda<br />

que dá às lagartixas<br />

a coragem <strong>de</strong> passear<br />

pelos pés dos São Bentos<br />

mais sisudos;<br />

coragem aos passarinhos<br />

<strong>de</strong> pousar<br />

nos São Josés dos altares,<br />

nas próprias coroas<br />

<strong>de</strong> ouro<br />

das Nossas Senhoras?<br />

On<strong>de</strong> estão os poetas <strong>de</strong> hoje, que não falam nem das lagartixas nem dos<br />

passarinhos?<br />

43


Carlos Chagas Filho


Carlos Chagas Filho<br />

Ivo Pitanguy<br />

Eu tinha vinte anos quando encontrei Carlos Chagas Filho<br />

pela primeira vez. Jovem estudante <strong>de</strong> medicina, havia recebido<br />

uma bolsa <strong>de</strong> estudos do Institute of International Education para estudar<br />

nos Estados Unidos. Chagas Filho e alguns educadores eram<br />

a base <strong>de</strong> sustentação <strong>de</strong>ssa instituição.<br />

Do primeiro contato à entrevista, percebi ser Chagas Filho uma<br />

pessoa especial. A bonda<strong>de</strong>, a amiza<strong>de</strong> e o respeito pela formação<br />

do ser humano iluminavam-no. Senti-me protegido – a diferença<br />

<strong>de</strong> ida<strong>de</strong> não se impunha –; seu entusiasmo e vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong>ram-me a impressão <strong>de</strong> que ele era mais jovem do que eu.<br />

Ao escrever sobre ele, po<strong>de</strong>mos dizer sobre as inquietu<strong>de</strong>s das<br />

<strong>de</strong>cisões do medo e das dificulda<strong>de</strong>s surgidas, o mundo se apresentava<br />

como <strong>de</strong>safio saindo <strong>de</strong> árvore tão frondosa à procura <strong>de</strong> sua<br />

própria luz.<br />

Carlos Chagas Filho foi um gran<strong>de</strong> cientista, um gran<strong>de</strong> senhor.<br />

Essa gran<strong>de</strong>za não estava só nas diversas áreas do conhecimento que<br />

abraçou, mas principalmente na profunda compreensão dos seres<br />

humanos.<br />

45<br />

Ocupante da<br />

Ca<strong>de</strong>ira 22<br />

na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>.


Ivo Pitanguy<br />

Sua trajetória como cientista se iniciou precocemente. Na infância transitava<br />

livremente pelos corredores do imponente Instituto Oswaldo Cruz e não po<strong>de</strong>ria<br />

ter melhor guia do que o diretor, seu pai, o ilustre Carlos Chagas – personalida<strong>de</strong><br />

famosa no país e <strong>de</strong> projeção internacional, <strong>de</strong>scobridor do parasita<br />

Tripanossoma cruzi, (em homenagem a Oswaldo Cruz), que circula no sangue e<br />

tecidos provocando lesões teciduais graves, principalmente no coração e aparelho<br />

digestivo. A sua transmissão exige a participação <strong>de</strong> um vetor, no caso,<br />

o inseto conhecido no Brasil como barbeiro (Triatoma infestans), que afligia as<br />

populações vivendo em casebres <strong>de</strong> adobe. Essa patologia foi <strong>de</strong>nominada<br />

Doença <strong>de</strong> Chagas e ocorre no continente americano e em várias partes do<br />

mundo. Essa <strong>de</strong>scoberta foi um acontecimento único na história <strong>de</strong> Medicina,<br />

pois pela primeira vez se <strong>de</strong>screveu o causador, o transmissor e sua localização,<br />

principalmente no feixe <strong>de</strong> Hiss no coração, explicando muitas mortes súbitas<br />

atribuídas ao bócio, que era endêmico em Lassance, Minas Gerais.<br />

Precoce também foi o ingresso <strong>de</strong> Chagas Filho na Faculda<strong>de</strong> Nacional <strong>de</strong><br />

Medicina, aos 16 anos. Ele conseguia conciliar as ca<strong>de</strong>iras da universida<strong>de</strong> com seu<br />

estágio no Instituto Oswaldo Cruz. Ele atribuía gran<strong>de</strong> influência na sua vida<br />

acadêmica às conferências do professor Fauré-Frémiet, sobre cinética do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

embrionário. Ao final do curso <strong>de</strong> graduação, recebeu o prêmio Dona<br />

Antonia Chaves Berchon <strong>de</strong>s Essarts, como um dos alunos melhores da turma.<br />

O relacionamento com Carlos Chagas, como acontece com todo jovem,<br />

passou por várias fases, até o momento <strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixar conduzir pelo pai. Mais<br />

tar<strong>de</strong>, com sua modéstia, Carlos Chagas Filho afirmou em uma <strong>de</strong> suas frases<br />

mais divulgadas que “muito do que fiz <strong>de</strong>vo ao nome que tenho”.<br />

Na realida<strong>de</strong> foi no Instituto Oswaldo Cruz que Carlos Chagas Filho<br />

consolidou sua formação científica. Começou como estagiário assistente <strong>de</strong><br />

diversas ca<strong>de</strong>iras e, ao concluir o Curso <strong>de</strong> Aplicação do Instituto Oswaldo<br />

Cruz, foi convidado a ingressar como membro do corpo docente para lecionar<br />

matemática, física e físico-química.<br />

O concurso para a cátedra <strong>de</strong> Medicina Tropical foi vencido por Chagas<br />

Filho em evento largamente noticiado pela imprensa e prestigiado pelas cátedras<br />

da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina. No seu discurso <strong>de</strong> posse, repetiu as palavras<br />

46


Carlos Chagas Filho<br />

usadas pelo pai, ao tomar posse como catedrático <strong>de</strong> Medicina Tropical, na<br />

mesma universida<strong>de</strong>: “A pesquisa científica não se po<strong>de</strong>ria excluir do ensino,<br />

pois é neste, e principalmente nele, que <strong>de</strong>spontam a cada passo, na complexida<strong>de</strong><br />

dos fenômenos da vida e da doença, fatos novos a interpretar, problemas<br />

obscuros a esclarecer”.<br />

Sentiu a importância <strong>de</strong> guardar seu senso <strong>de</strong> humor, cultuá-lo com a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za<br />

<strong>de</strong> seu espírito exarcebado pela graça <strong>de</strong> suas filhas Maria da Glória,<br />

Sílvia Amélia, Ana Margarida, Cristina Isabel e a presença extraordinária <strong>de</strong><br />

Anna Leopoldina <strong>de</strong> Melo Franco, sua esposa. Para ajudar a se capacitar e cultuar<br />

a felicida<strong>de</strong>, acreditava sempre na procura <strong>de</strong> transformar cada dia num<br />

dia mais feliz e abençoado. Acordava sempre com um sorriso, acreditando que<br />

aquele dia trazia um sentido mágico, um tanto verda<strong>de</strong>iro, procurando enten<strong>de</strong>r<br />

o mundo e receber essa dádiva com um sorriso <strong>de</strong> estarmos aqui presentes<br />

fazendo com que o outro partilhe <strong>de</strong>sse momento <strong>de</strong> alegria.<br />

Um dos mais importantes legados <strong>de</strong> Carlos Chagas Filho foi a criação em<br />

1945 do Instituto <strong>de</strong> Biofísica da Universida<strong>de</strong> do Brasil, atual Instituto <strong>de</strong> Biofísica<br />

Carlos Chagas Filho da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro. O Instituto<br />

tem papel fundamental nas transformações no campo científico-acadêmico<br />

a partir da segunda meta<strong>de</strong> do século XX. Sua trajetória se confun<strong>de</strong> com a<br />

própria história <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> seu criador, refletindo as relações com o Estado, a<br />

socieda<strong>de</strong> e a comunida<strong>de</strong> científica internacional.<br />

Fiel ao seu lema: “A Universida<strong>de</strong> é um local on<strong>de</strong> se ensina porque se<br />

pesquisa”, Carlos Chagas Filho estimulava a pesquisa constante e o aprofundamento<br />

das diferentes áreas a <strong>de</strong>svendar. Muito querido por seus jovens<br />

assistentes do Instituto <strong>de</strong> Biofísica, ele acreditava na transmissão do saber,<br />

jamais negando partilhar a experiência adquirida através dos anos.<br />

Foi convidado do governo francês nas celebrações do cinquentenário da<br />

morte <strong>de</strong> Louis Pasteur e um dos representantes do Brasil na I Conferência<br />

Geral da Unesco. Chagas Filho já percorria, há anos, com <strong>de</strong>senvoltura os espaços<br />

das relações científicas internacionais, quando realizou aperfeiçoamentos<br />

com os professores René Wurmser e Alfred Fessard, em Paris, e Archibald<br />

V. Hill, em Londres.<br />

47


Ivo Pitanguy<br />

Iniciou-se, assim, sua peregrinação em importantes eventos internacionais<br />

como representante do Brasil, levando experiência e contribuição para diferentes<br />

países. Tanto na UNESCO como na ONU, participou <strong>de</strong> Conferências,<br />

Comitês, Delegações e Reuniões Científicas <strong>de</strong> repercussão internacional.<br />

No Brasil participou da criação do Conselho Nacional <strong>de</strong> Pesquisa (hoje,<br />

Conselho Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq),<br />

tendo sido diretor <strong>de</strong> sua Divisão <strong>de</strong> Pesquisa Biológica em quatro gestões.<br />

Presidiu a Comissão <strong>de</strong> Cursos <strong>de</strong> Pós-Graduação da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro, implantando a Pós-Graduação na Universida<strong>de</strong>. No ano<br />

<strong>de</strong> 1964 passa a ocupar a Diretoria da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina da UFRJ, ao<br />

mesmo tempo em que era eleito Presi<strong>de</strong>nte da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> Ciências,<br />

permanecendo em ambas, até 1966, ano em que foi nomeado Embaixador<br />

e Delegado Permanente do Brasil junto à UNESCO.<br />

De volta ao país, após morar por alguns anos em Paris, torna a ocupar a direção<br />

do Instituto <strong>de</strong> Biofísica, que fundara 25 anos antes, permanecendo no<br />

cargo até 1973, quando foi nomeado Decano do Centro <strong>de</strong> Ciências da Saú<strong>de</strong><br />

da UFRJ. Aposentou-se compulsoriamente em 1980, tornando-se Professor<br />

Emérito daquela instituição, mas continuou em ativida<strong>de</strong> participando do<br />

ensino e da pesquisa.<br />

Em 03 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1974, Carlos Chagas foi eleito para a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ocupando a Ca<strong>de</strong>ira 9 na sucessão <strong>de</strong> Marques Rebelo, sendo<br />

recebido em 23 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1974 pelo Acadêmico Francisco <strong>de</strong> Assis Barbosa.<br />

Na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Pontifícia <strong>de</strong> Ciências do Vaticano, Carlos Chagas Filho ocupou<br />

posição singular, ao se tornar o primeiro presi<strong>de</strong>nte leigo da instituição.<br />

Cumpriu quatro mandatos consecutivos, no total <strong>de</strong> 16 anos (1972-1988).<br />

Sua permanência modificou profundamente a estrutura da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, que<br />

passou a receber novos membros <strong>de</strong> ambos os gêneros, <strong>de</strong> várias etnias e <strong>de</strong><br />

uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> crenças religiosas. Implantou novos procedimentos,<br />

como a realização <strong>de</strong> Semanas <strong>de</strong> Estudos sobre temas científicos <strong>de</strong> interesse<br />

da época e ainda a discussão das relações entre religião e ciência.<br />

Ainda no Vaticano, conduziu o processo <strong>de</strong> reabilitação do astrônomo Galileu<br />

– acusado <strong>de</strong> heresia pela Inquisição pelos seus estudos que mudaram as<br />

48


Carlos Chagas Filho<br />

noções sobre o Sistema Solar. Coor<strong>de</strong>nou também, a pedido da Igreja, os estudos<br />

para elucidar a data do Santo Sudário. Depois <strong>de</strong> encaminhar fragmentos<br />

do manto para nove laboratórios espalhados pelo mundo, <strong>de</strong>scobriu-se que o<br />

Sudário não era o lençol que cobria Jesus, e sim um artefato do século VI.<br />

Ao longo da brilhante carreira, Chagas Filho preparou diversos trabalhos sobre<br />

o sistema neuromuscular do peixe-elétrico (Electrophorus eletricus), fornecendo<br />

dados para o estudo <strong>de</strong> doenças neuromusculares, que ocasionam <strong>de</strong>ficiências<br />

relacionadas ao mecanismo <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> corrente elétrica e que po<strong>de</strong>m impedir<br />

os movimentos normais do ser humano. Outro alvo <strong>de</strong> suas pesquisas foi o<br />

curare, veneno vegetal paralisante usado por índios sul-americanos e com muitas<br />

aplicações na Medicina, principalmente em procedimentos anestésicos.<br />

Publicou diversos ensaios, conferências e discursos, <strong>de</strong>stacando-se: Carlos<br />

Chagas; O minuto que vem: reflexões sobre a ciência no mundo mo<strong>de</strong>rno; Contribuição da<br />

ciência e tecnologia à melhoria da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e sua autobiografia Um aprendiz <strong>de</strong><br />

ciência.<br />

Carlos Chagas Filho foi um dos raros membros <strong>de</strong> três das mais renomadas<br />

aca<strong>de</strong>mias brasileiras – as <strong>de</strong> Ciências (1941), Medicina (1959) e <strong>Letras</strong><br />

(1974). Ele recebeu 16 títulos <strong>de</strong> Doutor Honoris Causa em Universida<strong>de</strong>s nacionais<br />

e internacionais. No <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> sua vida acadêmica, recebeu 19 con<strong>de</strong>corações<br />

entre as quais: Comendador – Ordre Nationale <strong>de</strong> la Légion d’Honneur<br />

– França, 1979; é Membro, entre outras aca<strong>de</strong>mias científicas, da Académie <strong>de</strong>s<br />

Sciences <strong>de</strong> l’Institut <strong>de</strong> France.<br />

Médico, professor, cientista, humanista, escritor, católico e ensaísta, Carlos<br />

Chagas Filho teve uma trajetória pontuada pela atuação em áreas tão diversas,<br />

sempre preocupado com um gran<strong>de</strong> mistério a <strong>de</strong>svendar: a origem da vida.<br />

Ele trouxe uma nova visão e mostrou que é possível conciliar campos tão<br />

opostos como religião e ciência, como já pensava o filósofo e jesuíta Teilhard<br />

<strong>de</strong> Chardin:<br />

“Aparentemente, a Terra Mo<strong>de</strong>rna nasceu <strong>de</strong> um movimento antirreligioso.<br />

O Homem bastando-se a si mesmo. A Razão substituindo-se à<br />

Crença. Nossa geração e as duas prece<strong>de</strong>ntes quase só ouviram falar <strong>de</strong><br />

49


Ivo Pitanguy<br />

conflito entre Fé e Ciência. A tal ponto que pô<strong>de</strong> parecer, a certa altura,<br />

que esta era <strong>de</strong>cididamente chamada a tomar o lugar daquela. Ora, à medida<br />

que a tensão se prolonga, é visivelmente sob uma forma muito diferente<br />

<strong>de</strong> equilíbrio – não eliminação, nem dualida<strong>de</strong>, mas síntese, que solveria o<br />

conflito.”<br />

Chagas Filho pensava como Pasteur “Pouca ciência nos afasta <strong>de</strong> Deus.<br />

Muita nos aproxima”.<br />

Seu amor aos valores humanos fez com que Carlos Chagas Filho alcançasse<br />

um espaço no qual seus amigos sentem-se abrigados e protegidos.<br />

50


“O processo do Capitão<br />

Dreyfus”<strong>de</strong> Rui Barbosa<br />

– o texto, seus contextos<br />

e <strong>de</strong>sdobramentos<br />

O<br />

Celso Lafer<br />

texto <strong>de</strong> Rui Barbosa sobre o processo Dreyfus foi redigido<br />

e publicado em 1895, no calor da hora do início do caso na<br />

França. É exemplar na discussão crítica das imperfeições do processo<br />

e na percepção da injustiça <strong>de</strong> que estava sendo vítima o Capitão<br />

Dreyfus. Antes <strong>de</strong> analisar a substância dos argumentos e do posicionamento<br />

<strong>de</strong> Rui, assim como seus <strong>de</strong>sdobramentos, creio que vale a<br />

pena esclarecer facetas dos múltiplos contextos que caracterizam sua<br />

trajetória. Elas explicam <strong>de</strong> que modo o texto <strong>de</strong> Rui, na sua especificida<strong>de</strong><br />

própria, insere-se coerentemente na sua visão <strong>de</strong> mundo.<br />

– I –<br />

<strong>Prosa</strong><br />

A primeira observação é no sentido <strong>de</strong> apontar que Rui é um<br />

paradigma em nosso país, dos advogados que se valeram do Direito<br />

51<br />

Ocupante da<br />

Ca<strong>de</strong>ira 14<br />

na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>.


Celso Lafer<br />

como instrumento <strong>de</strong> ação política, como observou Afonso Arinos (1965,<br />

p. 48). Viveu o Direito em função do agir e o seu excepcional domínio das<br />

doutrinas e das instituições jurídicas esteve a serviço da mudança da realida<strong>de</strong>,<br />

como sublinhou Miguel Reale (1956, p. 245). Rui é, assim, neste campo, um<br />

representante, por excelência, da tradição da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo,<br />

na qual se formou em 1870. Rui foi o paraninfo da turma <strong>de</strong> 1920 e para<br />

esta turma que o homenageou no jubileu <strong>de</strong> ouro da sua formatura escreveu a<br />

sua conhecida Oração aos moços (Soares <strong>de</strong> Melo, 1974; Barbosa, 1949).<br />

A Oração aos moços tem como uma das suas vertentes a <strong>de</strong>fesa do positivo<br />

papel que os advogados exercem na vida pública <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>mocracia. É uma<br />

reflexiva reelaboração pedagógica, <strong>de</strong>stinada aos jovens formandos, do exposto<br />

no seu discurso <strong>de</strong> posse como sócio no Instituto dos Advogados em 18<br />

<strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1911. Neste Rui afirmou que o trato usual do Direito ensina e<br />

predispõe a <strong>de</strong>sprezar a força e apontou que “os governos arbitrários não se<br />

acomodam com a autonomia da toga nem com a in<strong>de</strong>pendência dos juristas”<br />

(Barbosa, 1985a, p. 12, p. 22). Neste sentido, a Oração aos moços po<strong>de</strong> ser qualificada<br />

como um testamento político – um testamento que se converteu, para<br />

falar com Pierre Nora, num dominante lieu <strong>de</strong> mémoire do léxico da tradição<br />

cívica jurídico-política da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo, que Rui encarnou<br />

e da qual é um gran<strong>de</strong> ícone.<br />

A Oração aos moços foi lida pelo prof. Reynaldo Porchat em março <strong>de</strong> 1921<br />

na formatura da turma, porque Rui, adoentado, não pô<strong>de</strong> comparecer. Nela<br />

Rui explicita que se <strong>de</strong>dicou, no seu percurso, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os bancos acadêmicos, à<br />

tarefa <strong>de</strong> “inculcar no povo os costumes da liberda<strong>de</strong> e à República as leis do<br />

bom governo; que prosperam os Estados, moralizam as socieda<strong>de</strong>s e honram<br />

as nações” (1949, p. 6). Recomenda aos moços não apenas o ler mas o refletir<br />

(1949, p. 21). Destaca “o papel da justiça – maior que o da própria legislação”<br />

(1949, p. 25). Observa que a justiça tem dois braços: “a magistratura e<br />

a advocacia” (1949, p. 26). Critica os “togados, que contraíram a doença <strong>de</strong><br />

achar sempre razão ao Estado, ao Governo” (1949, p. 30). Engloba, na missão<br />

do advogado, uma espécie <strong>de</strong> magistratura, a da justiça militante (1949, p.<br />

35). Nisto inclui: “Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear<br />

52


“O processo do Capitão Dreyfus”<strong>de</strong> Rui Barbosa<br />

pela iniquida<strong>de</strong> ou imoralida<strong>de</strong>. Nem se subtrair à <strong>de</strong>fesa das causas impopulares,<br />

nem a das perigosas, quando justas” (1949, p. 35).<br />

Oração aos moços é um texto esclarecedor do papel <strong>de</strong> Rui na vida brasileira.<br />

Este papel, como mostrou com argúcia Bolívar Lamounier, foi o <strong>de</strong> ter se<br />

<strong>de</strong>dicado “à formação da esfera pública e à construção institucional da <strong>de</strong>mocracia<br />

no Brasil” (1999, p. 123).<br />

O Direito representou, para Rui, o caminho do seu empenho político.<br />

Este foi o <strong>de</strong> ser “o mais irreconciliável inimigo do governo do mundo pela<br />

violência”, “o mais fervoroso predicante do governo dos homens pelas leis”<br />

(1985a, p. 13) e um <strong>de</strong>fensor do civilismo:<br />

“(...) o único interesse do civilismo, a única exigência do seu programa, é<br />

que se observe rigorosamente as condições <strong>de</strong> justiça. Civilismo quer dizer<br />

or<strong>de</strong>m civil, or<strong>de</strong>m jurídica, a saber: governo da lei, contraposto ao governo<br />

do arbítrio, ao governo da força, ao governo da espada.” (1985b, p. 44).<br />

As suas duas campanhas à Presidência da República, o seu papel no Senado e<br />

na imprensa têm este significado exemplar do civilismo, assim como a sua ação<br />

diplomática na Segunda Conferência da Paz <strong>de</strong> Haia em 1907. Com efeito,<br />

Rui, em Haia, contestou a igualda<strong>de</strong> baseada na força e sustentou, no âmbito<br />

do Direito Internacional Público, a igualda<strong>de</strong> dos estados. A posição do Brasil,<br />

pela sua voz, representa uma primeira formulação brasileira da tese da <strong>de</strong>mocratização<br />

do sistema internacional e, nesta linha, uma contestação ao exclusivismo,<br />

até então prepon<strong>de</strong>rante, do papel da gestão da vida internacional atribuída às<br />

gran<strong>de</strong>s potências. Assim, da mesma maneira que em nosso país a sua prática <strong>de</strong><br />

homem público esteve voltada para a construção <strong>de</strong> um espaço <strong>de</strong>mocrático e,<br />

neste contexto, o Direito foi o meio para o seu perseverante fazer político-institucional,<br />

assim também em Haia, na sua prática diplomática, voltou-se para os<br />

males das imperfeições do sistema internacional, indicando o papel do Direito<br />

na <strong>de</strong>mocratização do espaço internacional (cf. Lafer, 2004, cap. IV).<br />

Na sua lida <strong>de</strong> “sujeitar à legalida<strong>de</strong> os governos, implantar a responsabilida<strong>de</strong><br />

no serviço da nação”, opor-se “à razão <strong>de</strong> estado”, como “negação<br />

53


Celso Lafer<br />

virtual <strong>de</strong> todas constituições”, insere-se o papel que teve na criação do Supremo<br />

Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, na nossa primeira Constituição Republicana e na<br />

subsequente sustentação do “direito-<strong>de</strong>ver do STF <strong>de</strong> guardar a Constituição<br />

contra os atos usurpatórios do governo e do Congresso” (Barbosa, 1985a, p.<br />

42, p. 51, p. 58). Na mesma linha cabe apontar o seu papel como advogado,<br />

em conjugação com Pedro Lessa, ministro do Supremo Tribunal Fe<strong>de</strong>ral, na<br />

construção da doutrina brasileira <strong>de</strong> extensão do habeas corpus como garantia<br />

constitucional, que inspirou o mo<strong>de</strong>rno instituto do mandado <strong>de</strong> segurança<br />

(cf. Horbach, 2007, pp. 76 e seguintes).<br />

54<br />

– II –<br />

Faço estas indicações mais abrangentes porque são o pano <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong>ntro<br />

do qual se insere, <strong>de</strong> maneira congruente, a análise <strong>de</strong> Rui do caso Dreyfus.<br />

Ele escreveu “O processo do Capitão Dreyfus” no período do seu exílio na<br />

Inglaterra, a que se viu obrigado pelas arbitrarieda<strong>de</strong>s ditatoriais do governo<br />

Floriano Peixoto. O texto data <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1895 – dois dias <strong>de</strong>pois do aviltamento<br />

<strong>de</strong> Dreyfus. Foi publicado no Jornal do Commercio do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

<strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1895 e subsequentemente passou a integrar o volume<br />

Cartas <strong>de</strong> Inglaterra, que reúne os seus escritos <strong>de</strong>ste penoso período do exílio. A<br />

diversida<strong>de</strong> das matérias <strong>de</strong> Cartas <strong>de</strong> Inglaterra, explica Rui no prefácio, tem um<br />

espírito comum: a preocupação absorvente com a lei e a liberda<strong>de</strong>. Traduzem<br />

<strong>de</strong> diversos modos, como aponta Batista Pereira no prefácio à segunda edição,<br />

o seu protesto à ditadura <strong>de</strong> Floriano e a sua reivindicação dos i<strong>de</strong>ais que o<br />

haviam inspirado na elaboração da Constituição Republicana (Barbosa, 1929,<br />

p.7; Batista Pereira, 1929, pp. 121-122).<br />

O texto sobre Dreyfus, realça Batista Pereira, é uma autópsia do militarismo<br />

que colocou em questão a legalida<strong>de</strong> jurídica, que, na França, como<br />

no Brasil <strong>de</strong> Floriano Peixoto, se viu ferida nas garantias processuais (1929,<br />

p. 84). A disciplina jurídica, diz Rui no seu texto sobre Dreyfus, preserva as<br />

instituições “que se não dobram aos impulsos das maiorias e as exigências<br />

das ditaduras” (2004, p. 43). Foi a falta <strong>de</strong>sta disciplina no processo <strong>de</strong>


“O processo do Capitão Dreyfus”<strong>de</strong> Rui Barbosa<br />

Dreyfus que, como disse, remetendo o texto para o Jornal do Commercio, nele<br />

“vibrou profundamente a corda da justiça, ainda não morta, apesar da dura<br />

lição que agora mesmo me está custando”. É o que registra Batista Pereira<br />

(2004, p. 79) e lembra J. Soares <strong>de</strong> Mello (1967, p. 113), um dos estudantes<br />

da turma <strong>de</strong> 1920 que li<strong>de</strong>rou o convite para paraninfar a sua turma.<br />

Foi esta vibração que motivou Rui a cumprir a missão <strong>de</strong> advogado por ele<br />

<strong>de</strong>stacada na Oração aos moços, qual seja a <strong>de</strong> exercer a magistratura da justiça<br />

militante para não colaborar em perseguições, que i<strong>de</strong>ntificou com clareza<br />

no caso Dreyfus.<br />

Exerceu esta magistratura da justiça militante na tribuna do jornal, cabendo,<br />

neste contexto, lembrar, com João Neves da Fontoura, que, Rui, como jornalista,<br />

era “um editorialista, um articulista, um inquilino da primeira coluna<br />

invariavelmente assinada” (1960, p. 9), que, no caso, foi o seu espaço para<br />

promover a majesta<strong>de</strong> da <strong>de</strong>fesa.<br />

– III –<br />

A análise <strong>de</strong> Rui do processo está baseada nas informações sobre o caso<br />

discutido pela imprensa inglesa – o Times, a Pall Mall Gazette, o Daily Graphic, o<br />

Spectator, o Daily News. Cabe <strong>de</strong>stacar o papel positivo da imprensa inglesa na<br />

transmissão <strong>de</strong> informações sobre o caso que o repercutiu nas palavras <strong>de</strong> Rui<br />

com a “retidão própria dos costumes jurídicos <strong>de</strong>ste país” (2004, p. 38). Este<br />

papel contrasta com o que ocorreu na França, on<strong>de</strong> o caso Dreyfus veio a assinalar,<br />

como apontou Alberto Dines, o ingresso do jornalismo no caminho das<br />

cruzadas políticas e da guerra das manchetes e articulou, subsequentemente, a<br />

cisão i<strong>de</strong>ológica naquele país entre “dreyfusards” e antidreyfusards” (1994, pp.<br />

13-33). Sublinha, neste sentido, Jean-Denis Bredin que, pela primeira vez na<br />

França, a imprensa no caso Dreyfus exerceu uma forte influência na vida política<br />

do país, dramatizando ou criando o acontecimento, sustentando ou <strong>de</strong>nunciando,<br />

exercendo pressões e chantagens (2006, p. 515).<br />

55


Celso Lafer<br />

56<br />

– IV –<br />

Rui, em síntese, na sua análise do processo, vai apontar, como advogado no<br />

exercício <strong>de</strong> uma magistratura <strong>de</strong> justiça militante, que Dreyfus foi vítima <strong>de</strong> uma<br />

flagrante <strong>de</strong>negação <strong>de</strong> justiça por total carência <strong>de</strong> um <strong>de</strong>vido processo legal.<br />

Realça a clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> do processo que o inquina <strong>de</strong> suspeita (Barbosa,<br />

2004, p. 50). Indaga, a propósito da acusação <strong>de</strong> traição <strong>de</strong> ter transmitido<br />

informações secretas ao governo alemão:<br />

“On<strong>de</strong> o corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito? On<strong>de</strong> a i<strong>de</strong>ntificação entre o seu autor e<br />

o acusado? Ninguém seria capaz <strong>de</strong> mostrá-lo. Ninguém viu o processo.<br />

Ninguém tem notícia <strong>de</strong> documentos, ou <strong>de</strong>poimentos. Fala-se em um<br />

papel, cuja letra se atribui ao con<strong>de</strong>nado. Mas o que a esse propósito se<br />

conhece, por indiscrições publicadas no Figaro, é que, <strong>de</strong> cinco peritos ouvidos<br />

sobre o caráter da letra nesse escrito anônimo, só três reconheceram<br />

a <strong>de</strong> Dreyfus, dois sustentam o contrário” (2004, p. 39).<br />

Aponta que “a acusação inteira assentava exclusivamente em um documento<br />

contestado” – como afirmou M. Demange, o advogado <strong>de</strong> Dreyfus,<br />

ao abrir a audiência (2004, p. 33). Indica que o General Mercier, o Ministro<br />

da Guerra e, além <strong>de</strong>le, outros no exército francês, formaram juízo “antes do<br />

processo” (2004, p. 49). Pon<strong>de</strong>ra que, para um observador estrangeiro, era<br />

difícil não concluir que Dreyfus “estava con<strong>de</strong>nado pela intuição geral <strong>de</strong><br />

seus compatriotas antes <strong>de</strong> sê-lo pelo tribunal secreto que o julgou” (2004,<br />

p. 48). No trato da opinião pública na França, naquele momento registra “o<br />

espasmo <strong>de</strong> ódio insaciável, que agita contra o acusado todas as classes da<br />

população” (2004, p. 35) e a pressão da “multidão espumante, que cercava,<br />

ameaçadora, a Escola Militar, bramindo insultos, assuadas e vozes <strong>de</strong> morte”<br />

(2004, p. 39).<br />

Ressalvando a sua posição voltada para a construção <strong>de</strong> esfera pública <strong>de</strong>mocrática<br />

afirma: “Pela minha parte, não conheço excessos mais odiosos do<br />

que essas orgias públicas da massa irresponsável. Nada seria menos estimável,


“O processo do Capitão Dreyfus”<strong>de</strong> Rui Barbosa<br />

neste mundo, que a <strong>de</strong>mocracia, se a <strong>de</strong>mocracia fosse isso”, acrescentando, a<br />

propósito: “Se o número não souber dar razão dos seus atos, se as maiorias<br />

não se legitimarem pela inteligência e pela justiça, o governo popular não será<br />

menos aviltante que o dos autocratas”. Conclui seu raciocínio nesta passagem<br />

nos seguintes termos: “Mal honram a pátria as construções <strong>de</strong> um patriotismo<br />

histérico, que vive a se superexcitar com a obsessão <strong>de</strong> traições, que julga<br />

<strong>de</strong> oitiva, fulmina por palpites, e instiga os magistrados a prevaricarem, antepondo<br />

a popularida<strong>de</strong> à justiça” (2004, pp. 39-40).<br />

Rui, que via na missão do jornalista e na da imprensa uma força <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong><br />

(Cardim, 1960, pp. 715-728), não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> comentar que, na Inglaterra,<br />

“on<strong>de</strong> não chega o revérbero ar<strong>de</strong>nte do braseiro francês, ninguém compreen<strong>de</strong><br />

o encarniçamento da imprensa daquele país sobre o cadáver moral <strong>de</strong><br />

Dreyfus” (Barbosa, 2004, cit. p. 40). O seu comentário está em antecipatória<br />

consonância com as avaliações <strong>de</strong> Alberto Dines e Jean-Denis Bredin acima<br />

referidas sobre o papel da imprensa francesa no caso Dreyfus.<br />

Rui realça o <strong>de</strong>spropósito jurídico e a agravada dimensão da injustiça da<br />

lei votada pelo legislativo francês, logo após o julgamento <strong>de</strong> Dreyfus, à qual<br />

foi dado efeito retroativo, <strong>de</strong>slocando o seu <strong>de</strong>gredo da Nova Caledônia para<br />

a Guiana Francesa. Nela i<strong>de</strong>ntifica “uma intenção <strong>de</strong> vindita individual, um<br />

caracter <strong>de</strong> rancor” que representava uma nova pena, com efeito retroativo,<br />

contrário aos princípios essenciais que todas as legislações contemporâneas<br />

estigmatizaram (2004, pp. 40-41).<br />

Rui <strong>de</strong>screve a atroz cerimônia <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação militar a que foi submetido<br />

Dreyfus e a “rebuscada e caprichosa <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong>” do suplício da tortura<br />

moral que lhe foi imposta, que “revolta profundamente o sentimento contemporâneo”<br />

(2004, p. 34).<br />

Destaca a altivez e a surpreen<strong>de</strong>nte faculda<strong>de</strong> sobre-humana que <strong>de</strong>u a<br />

Dreyfus a energia para enfrentar a provação e proclamar a sua inocência. No<br />

comportamento do acusado i<strong>de</strong>ntificou o enraizado sentimento <strong>de</strong> sua honra<strong>de</strong>z<br />

e <strong>de</strong> sua absoluta inocência (2004, pp. 37-38). E, com inequívoca intuição<br />

política, entreviu que a verda<strong>de</strong>ira causa da con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Dreyfus era o antissemitismo,<br />

ao observar que o processo que corria num tribunal militar era “pleito<br />

57


Celso Lafer<br />

<strong>de</strong> antemão sentenciado pela ‘opinião pública’ e tratando-se, por cúmulo, <strong>de</strong> um<br />

acusado em cujas veias circula sangue ju<strong>de</strong>u” (2004, p. 50). Esta observação,<br />

aponta Tavares Guerreiro, Rui extraiu <strong>de</strong> sua própria reflexão acerca da propaganda<br />

antissemita que açulava contra Dreyfus a opinião pública francesa. Ela é<br />

reforçada pela citação do artigo do Times, que Rui qualifica <strong>de</strong> memorável, que<br />

<strong>de</strong>staca como a acesa propaganda antissemita, na França, avivava a hostilida<strong>de</strong><br />

contra Dreyfus (Barbosa, 2004, p. 53; Tavares Guerreiro, 1994, pp. 86-87).<br />

Batista Pereira, que foi <strong>de</strong>dicado colaborador e genro <strong>de</strong> Rui e, como seu<br />

sogro, um filho espiritual da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo (Lacombe,<br />

1975, pp. 5-7), escrevendo sobre Rui e o caso Dreyfus em abrangente reflexão<br />

sobre o antissemitismo, afirmou que “Rui Barbosa execrava o antissemitismo.<br />

Atribuiu-a, na quase totalida<strong>de</strong> dos casos, à inveja e à rivalida<strong>de</strong> e, excepcionalmente,<br />

à paixão”. Narra encontro que tinha tido com Léon Dau<strong>de</strong>t em<br />

1908. Menciona, a propósito da paixão, que este conhecia o livro <strong>de</strong> Joseph<br />

Reinach sobre o processo Dreyfus, que não <strong>de</strong>ixava um ponto obscuro sobre a<br />

absoluta inocência <strong>de</strong> Dreyfus. Ainda assim Dau<strong>de</strong>t não dava o braço a torcer<br />

na questão Dreyfus e conclui: “Não era, portanto, a formidável inteligência e<br />

sim o temperamento que ditava ao mais corrosivo polemista da França o seu<br />

vulcânico antissemitismo”. Registra que, com este relato, Rui teve mais uma<br />

prova da sua tese (Batista Pereira, 1945, p. 15).<br />

O papel <strong>de</strong>sempenhado pelo antissemitismo no processo Dreyfus está, assim,<br />

claramente presente na sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rui. Ela integra sua crítica aos<br />

tribunais <strong>de</strong> exceção, às justiças secretas e à dominação sem freios. Neste contexto,<br />

a análise da fragilida<strong>de</strong> das instituições francesas é também um meio<br />

<strong>de</strong> criticar a ditadura <strong>de</strong> Floriano que, capciosamente, colocou o bem público<br />

acima das leis. Era, como disse, uma lição que o Brasil daqueles dias necessitava<br />

e uma oportunida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>stacar os méritos das instituições inglesas:<br />

“Esse hábito <strong>de</strong> colocar os direitos permanentes <strong>de</strong> justiça em altura inacessível<br />

às conveniências do governo, às crises da política, ao clamor das tormentas<br />

populares é a virtu<strong>de</strong> car<strong>de</strong>al da Inglaterra” (2004, p. 54).<br />

Em síntese, o texto <strong>de</strong> Rui sobre Dreyfus, na clarividência da sua especificida<strong>de</strong><br />

própria, não é um aci<strong>de</strong>nte na sua trajetória. Está em perfeita consonância<br />

58


“O processo do Capitão Dreyfus”<strong>de</strong> Rui Barbosa<br />

com a sua visão das coisas, <strong>de</strong> “irreconciliável inimigo do governo do mundo<br />

pela violência” e <strong>de</strong> “fervoroso predicante do governo dos homens pelas leis”<br />

para valer-me <strong>de</strong> suas palavras no discurso <strong>de</strong> posse no Instituto dos Advogados<br />

mencionado no início <strong>de</strong>ste artigo.<br />

– V –<br />

A questão Dreyfus teve um gran<strong>de</strong> significado histórico-político e é imensa<br />

a bibliografia sobre a matéria. Alberto Dines, na edição brasileira que organizou<br />

e apresentou dos Diários completos do Capitão Dreyfus, aponta, com conhecimento<br />

da bibliografia, vários <strong>de</strong>stes múltiplos significados. Entre eles as<br />

transformações da imprensa, o papel dos intelectuais, a gênese do sionismo,<br />

que foi fruto do impacto que a cobertura jornalística do caso provocou em<br />

Theodor Herzl, o impacto das i<strong>de</strong>ologias nas socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> massa.<br />

Hannah Arendt trata da questão na primeira parte <strong>de</strong> Origens do totalitarismo,<br />

na qual discute as características do que qualifica o antissemitismo mo<strong>de</strong>rno<br />

como uma i<strong>de</strong>ologia laica do mundo mo<strong>de</strong>rno, que resultou das transformações<br />

ocorridas na Europa a partir do fim do século XVIII. I<strong>de</strong>ntifica, no caso<br />

Dreyfus, “no qual as forças subterrâneas do século XIX vêm à plena luz nos<br />

registros da história”, uma “antevisão do século XX” e, citando Bernanos,<br />

aponta, no processo, a presença do tumulto <strong>de</strong> paixões <strong>de</strong>senfreadas e das<br />

chamas do ódio (Arendt, 1989, p. 143, p. 116). Na arquitetura <strong>de</strong> Origens<br />

do totalitarismo, a parte 1. a , sobre o antissemitismo, e a parte 2. a sobre o imperialismo<br />

representam a cristalização <strong>de</strong> elementos que antecipam os modos<br />

<strong>de</strong> atuação da dominação totalitária, da qual o nazismo foi uma das gran<strong>de</strong>s<br />

vertentes. São alguns <strong>de</strong>sses elementos elaborados por Hannah Arendt, na terceira<br />

parte do seu livro, que se encontram presentes na questão Dreyfus, que<br />

vou apontar com o intuito <strong>de</strong> sugerir que <strong>de</strong>les Rui teve clarivi<strong>de</strong>nte intuição<br />

no seu texto <strong>de</strong> 1895.<br />

Um dos elementos da dominação totalitária, para Hannah Arendt, é a<br />

opacida<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r. A crítica <strong>de</strong> Rui, no seu texto, a tribunais secretos e à<br />

59


Celso Lafer<br />

clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> do processo é a crítica <strong>de</strong> um <strong>de</strong>mocrata à opacida<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r,<br />

que, <strong>de</strong> forma inédita, viria a caracterizar o arbítrio do totalitarismo.<br />

Um outro elemento da dominação totalitária, para Hannah Arendt, é o uso<br />

da mentira como instrumento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. No caso do antissemitismo mo<strong>de</strong>rno, o<br />

tema é a mentira <strong>de</strong> uma conspiração judaica voltada para um projeto <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

universal. Foi com esse intuito que, no século XIX, a polícia secreta czarista elaborou<br />

os Protocolos dos sábios do Sião, uma falsificação que serviu amplamente na Europa<br />

para fins <strong>de</strong> propaganda antijudaica, ao inventar acontecimentos para ajustá-los<br />

à i<strong>de</strong>ologia antissemita. Os riscos para a legalida<strong>de</strong> e a preservação das garantias<br />

processuais provenientes <strong>de</strong> falsificação <strong>de</strong> provas nos processos estão claramente<br />

presentes na crítica <strong>de</strong> Rui. É o <strong>de</strong>staque por ele dado à mentira <strong>de</strong> um inexistente<br />

corpo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito que permitiu atribuir a Dreyfus uma falsa traição.<br />

O conceito <strong>de</strong> “inimigo objetivo” é outro elemento <strong>de</strong> dominação totalitária.<br />

O “inimigo objetivo” é aquele grupo que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua<br />

conduta, po<strong>de</strong>, a critério da li<strong>de</strong>rança totalitária, eventualmente discordar da<br />

“verda<strong>de</strong> oficial”. Por isso <strong>de</strong>ve ser discriminado, isolado, punido e eliminado.<br />

No caso Dreyfus foi ele <strong>de</strong> antemão con<strong>de</strong>nado não pelo que fez, vale dizer,<br />

por sua conduta, mas sim pela sua origem judaica, como indicou Rui na análise<br />

do processo. Foi a suspeita generalizada que o cercou, que <strong>de</strong>le fez um<br />

“inimigo objetivo”, con<strong>de</strong>nado a uma pena sem culpa.<br />

Pierre Ansart mostrou na obra <strong>de</strong> Hannah Arendt e na sua análise do antissemitismo<br />

o papel dos ressentimentos que animam a obscurida<strong>de</strong> dos ódios<br />

públicos, que estão presentes na dinâmica dos movimentos totalitários (Ansart,<br />

2004, pp. 17-33). Creio que um dos pontos altos da análise <strong>de</strong> Rui é precisamente<br />

o <strong>de</strong> apontar a corrosiva e malévola presença dos ódios públicos na<br />

questão Dreyfus. Esta crítica está em consonância com a sua visão geral dos<br />

riscos para a justiça das paixões públicas. Em seu O <strong>de</strong>ver do advogado, apontou<br />

que “não faltam na história dos instintos malignos da multidão, no estudo instrutivo<br />

da contribuição <strong>de</strong>les para os erros judiciários, (...) casos <strong>de</strong> lamentável<br />

memória“sobre as iniquida<strong>de</strong>s da justiça”, lembrando que “Circunstâncias há,<br />

(...) ainda entre as nações mais adiantadas e cultas, em que esses movimentos<br />

obe<strong>de</strong>cem a verda<strong>de</strong>iras alucinações coletivas.” (Barbosa, 1985b, p. 46).<br />

60


“O processo do Capitão Dreyfus”<strong>de</strong> Rui Barbosa<br />

Na questão Dreyfus a tese geral <strong>de</strong> Hannah Arendt sobre o antissemitismo<br />

mo<strong>de</strong>rno como instrumento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r tem clara presença. Jean Baubérot,<br />

tratando da história da laicida<strong>de</strong> na França, indica como o antissemitismo,<br />

ou seja, no caso, o repúdio àquilo que Eduard Drumont, com ímpeto panfletário,<br />

chamou no seu livro La France juive (1886), tem vínculos com a oposição<br />

à escola laica e republicana. Esta era criticada pela França tradicional<br />

e conservadora como impregnada <strong>de</strong> protestantismo que “<strong>de</strong>sfrancesava” o<br />

país, levava ao outre manchisme da cumplicida<strong>de</strong> com a Inglaterra e estava sob<br />

impacto perverso da maçonaria. Explica Baubérot que o anticlericalismo foi<br />

o cimento <strong>de</strong> união entre a França operária e socialista e a França burguesa e<br />

liberal. Neste contexto, o antissemitismo politicamente objetivou a dissolução<br />

<strong>de</strong>sta aliança e serviu como meio para buscar uma composição entre a França<br />

católica e clerical e a França operária e socialista, acrescida dos <strong>de</strong>sapontados<br />

com a França burguesa e liberal por meio <strong>de</strong> uma ação conjunta contra o<br />

perigo do mítico po<strong>de</strong>rio da “França judaica”. Este consenso, que induziu<br />

os ódios públicos <strong>de</strong> um patriotismo histérico superexcitado com a obsessão<br />

da traição, apontado por Rui, foi catalisado na questão Dreyfus. Levou, subsequentemente,<br />

à batalha i<strong>de</strong>ológica entre “dreyfusards” e “antidreyfusards”,<br />

que é parte da afirmação do republicanismo e um componente do combate<br />

entre distintas visões da França (Baubérot, 2010, pp. 59-62).<br />

Neste combate e na batalha das i<strong>de</strong>ias engajaram-se os intelectuais, <strong>de</strong>fensores<br />

dos direitos humanos e das “luzes” da Ilustração, que se opuseram aos<br />

conservadores e à tradição anti-intelectualista. A questão Dreyfus, com o J’accuse<br />

<strong>de</strong> Zola, inaugurou a era dos manifestos como forma típica <strong>de</strong> protesto dos<br />

intelectuais na arena política contemporânea (Bobbio, 1997, pp. 57-108).<br />

Os protestos dos intelectuais na França adquiriram abrangência quando<br />

Esterhazy – o verda<strong>de</strong>iro autor do documento que propiciou a con<strong>de</strong>nação<br />

<strong>de</strong> Dreyfus – foi absolvido em 1898 por um conselho <strong>de</strong> guerra e aclamado<br />

herói pelos nacionalistas quando da sua saída do Tribunal. A questão Dreyfus<br />

assinalou, por obra das manifestações, o ingresso dos professores e da Universida<strong>de</strong><br />

no <strong>de</strong>bate político (cf. Julliard e Winock, 1996). Os “dreyfusards”,<br />

na sua ação, exprimiram não apenas uma exigência moral <strong>de</strong> Verda<strong>de</strong> e Justiça,<br />

61


Celso Lafer<br />

mas, como aponta Jean-Denis Bredin, a reivindicação do espírito livre contra<br />

o fanatismo cego, o método científico contra a improvisão passional, o<br />

escrúpulo contra o arbítrio. Foi uma revolta da inteligência em estado puro<br />

(2006, pp. 518-519). O texto <strong>de</strong> Rui sobre Dreyfus foi, neste contexto, uma<br />

premonitória intervenção pública em nome da liberda<strong>de</strong>, voltada, em consonância<br />

com sua visão <strong>de</strong> mundo, para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a Verda<strong>de</strong> e a Justiça por meio<br />

da razão do rigor jurídico.<br />

No seu texto, realçou que Dreyfus pa<strong>de</strong>ceu uma nova pena, com efeito<br />

retroativo, ao arrepio dos princípios da legislação penal, em função da lei<br />

votada pelo legislativo francês após seu julgamento, que <strong>de</strong>slocou o <strong>de</strong>gredo<br />

para a Guiana Francesa. Nela i<strong>de</strong>ntificou o rancor da vindita pessoal apontando<br />

que o novo local foi escolhido “por ser mais áspero, mais inóspito, menos<br />

habitável do que as contempladas na lei sob que se proferiu o julgado” (2004,<br />

p. 41). A tortura do <strong>de</strong>gredo <strong>de</strong> Dreyfus e o rancoroso caráter da vindita <strong>de</strong><br />

que foi vítima está documentado nas instruções do Ministério das Colônias<br />

do governo francês sobre como <strong>de</strong>veriam ser administradas as condições <strong>de</strong><br />

sua vida <strong>de</strong> <strong>de</strong>portado na Ilha do Diabo (cf. Dreyfus, 1994).<br />

Os quatro anos que passou na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa – numa<br />

cela <strong>de</strong> quatro metros quadrados, incomunicável e sob guarda permanente<br />

(cf. Dines, 1995, p. 40) – nos quais, nas suas palavras, ficou “separado do<br />

mundo dos vivos” (Dreyfus, 1994, p. 47), é um prenúncio do isolamento psicológico<br />

imposto nos campos <strong>de</strong> concentração, como um componente básico<br />

da ubiquida<strong>de</strong> da dominação totalitária na análise arendtiana. E não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />

ser mais uma injustiça que se esten<strong>de</strong>u à sua família o fato <strong>de</strong> que a sua neta<br />

preferida Ma<strong>de</strong>leine – assistente social, ligada às organizações <strong>de</strong> salvamento<br />

e amparo aos refugiados e integrante da Resistência – foi presa pela Gestapo<br />

e morreu em Auschwitz (cf. Dines, 1995, p. 97).<br />

Jean Louis Levy, outro dos netos <strong>de</strong> Dreyfus que combateu na Resistência<br />

e chegou ileso ao fim da Segunda guerra Mundial, escreveu um posfácio<br />

aos Cinq annés <strong>de</strong> ma vie do seu avô. Nele explica <strong>de</strong> maneira admirável como<br />

este não foi um herói da questão em que esteve mergulhado – com os gran<strong>de</strong>s<br />

“dreyfusards” Bernard Lazare, Zola, Clemenceau, Jaurès e tantos outros.<br />

62


“O processo do Capitão Dreyfus”<strong>de</strong> Rui Barbosa<br />

Mostra como a História atribuiu a Dreyfus um papel que ele não escolheu.<br />

Assumiu este papel com soberana gran<strong>de</strong>za não como um herói, mas como<br />

testemunha. Jean Louis cita Hannah Arendt a propósito do papel <strong>de</strong> testemunha,<br />

que não é o <strong>de</strong> enunciar princípios <strong>de</strong> ação, mas traçar os limites que os<br />

nossos atos não po<strong>de</strong>m ultrapassar (Levy, 1994, p. 238, p. 248). Esta referência<br />

me permite observar, na linha <strong>de</strong> Hannah Arendt, que Dreyfus prenunciou<br />

aquilo que foi, no século XX, uma experiência compartilhada por tantos que<br />

sofreram a História e aos quais, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong> e <strong>de</strong>liberações,<br />

a Política infligiu um <strong>de</strong>stino. Foram, assim, com suas narrativas,<br />

testemunhas da experiência, do mal sofrido <strong>de</strong> uma pena sem culpa, para falar<br />

com Bobbio na sua reflexão sobre Auschwitz (2002, pp. 182-183).<br />

A legalida<strong>de</strong> às avessas promove a injustiça individual como mostrou Rui<br />

na análise do caso Dreyfus. A radicalização inédita do avesso da legalida<strong>de</strong>,<br />

com a ascensão dos nazistas ao po<strong>de</strong>r, promoveu uma extensão em larga escala<br />

da injustiça. Com efeito, como apontou Hannah Arendt, o que caracterizou o<br />

regime <strong>de</strong> Hitler foi qualificar <strong>de</strong> legais ativida<strong>de</strong>s normalmente consi<strong>de</strong>radas<br />

como criminosas pelos sistemas jurídicos (cf. Arendt, 2004, pp. 101-103).<br />

A antecipatória clareza em relação a esta vertente do totalitarismo no po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong>ve-se, no Brasil, a Batista Pereira, que, em 1933, a formulou em explícito<br />

<strong>de</strong>senvolvimento do legado <strong>de</strong> Rui.<br />

Batista Pereira <strong>de</strong>u, na Casa Rui Barbosa, em 5 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1933,<br />

conferência sobre O Brasil e o anti-semitismo. O seu artigo, “O advogado <strong>de</strong><br />

Dreyfus”, inserido no livro organizado por Homero Senna, Uma voz contra a<br />

injustiça, Rui Barbosa e o caso Dreyfus, é trecho extraído <strong>de</strong>sta Conferência. Nela<br />

diz: “O antissemitismo perante a antropologia é uma irrisão, perante a história<br />

uma blasfêmia, perante a evidência uma mentira, perante os direitos <strong>de</strong><br />

consciência um crime” (1945, p. 16) e registra: “É indubitável que o governo<br />

nazista <strong>de</strong>liberou <strong>de</strong> sangue-frio <strong>de</strong>struir os ju<strong>de</strong>us expulsando-os dos seus<br />

empregos, tornando-lhes a vida impossível e ao mesmo tempo impedindo-os<br />

<strong>de</strong> emigrar” (1945, p. 41).<br />

Na conclusão <strong>de</strong> sua conferência, cujo subtítulo é “A legalização jurídica<br />

do homicídio”, premonitoriamente afirma, em 1933, que o nazismo “não é<br />

63


Celso Lafer<br />

uma febre passageira”. É o fruto <strong>de</strong> “uma atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada e refletida, o<br />

produto <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia que se não escon<strong>de</strong> e que reclama o seu lugar ao<br />

sol.” (1945, p. 64). Os juristas nazistas, continua, vêm “<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo o direito<br />

do homicídio das hordas nazistas”, e o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> tornar “fora da lei” qualquer<br />

membro da comunida<strong>de</strong>, tendo em vista “a completa extirpação do inimigo<br />

interno, (...) necessária para a restauração da honra germânica” (1945, p. 64).<br />

Admoesta que: “É preciso que todas as nações tomem posições no gran<strong>de</strong><br />

prélio que se está ferindo entre o Direito e a Força. Não são os <strong>de</strong>stinos da<br />

Alemanha que ali se jogam. Mas os <strong>de</strong> todos nós. Os <strong>de</strong> toda a Civilização”<br />

(1945, p. 65).<br />

Arremata o seu raciocínio – e friso novamente o momento em que o formulou,<br />

novembro <strong>de</strong> 1933 – asseverando:<br />

“Um terremoto abala-nos <strong>de</strong>baixo dos pés o mundo moral convulsionado.<br />

Sentimo-nos aturdidos. As coisas mais simples mudaram <strong>de</strong> significado.<br />

Roubar não é mais roubar, matar não é mais matar, consciência não é<br />

mais consciência, o crime não é mais crime: é patriotismo” (1945, p. 65).<br />

Sublinha que o empenho hitlerista em implantar o império da força “precisa<br />

proce<strong>de</strong>r ao extermínio da inteligência”, apontando que “é fácil arrancar a<br />

máscara do nazismo e mostrar que ele não é mais que o predomínio da força<br />

sobre o direito (...) Para isso o misticismo da violência. Para isso a prédica do<br />

ódio” (1945, pp. 66-67).<br />

Em síntese, Batista Pereira extrai as consequências do legado <strong>de</strong> Rui com<br />

inequívoca e pressentida compreensão das consequências do antissemitismo<br />

nazista, do qual o caso Dreyfus foi um “ensaio geral” cristalizador dos instrumentos<br />

do totalitarismo.<br />

64


“O processo do Capitão Dreyfus”<strong>de</strong> Rui Barbosa<br />

– VI –<br />

Feita esta avaliação <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m mais geral <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramentos da análise <strong>de</strong><br />

Rui pertinentes para o entendimento do alcance histórico que teve a questão<br />

Dreyfus, creio que cabe concluir com uma menção a dois contextos específicos<br />

da sua vida que se viram marcados pelo artigo <strong>de</strong> 1895.<br />

Rui publicou, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, quatro anos após a inserção <strong>de</strong>ste no Jornal<br />

do Commercio, uma tradução para o francês com o título Le Premier Plaidoyer<br />

pour Dreyfus. Dreyfus recebeu este texto no fim <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1900, a ele faz<br />

referência no capítulo III das suas Recordações (1899-1906). Cita vários trechos<br />

relevantes da análise <strong>de</strong> Rui, por ele qualificado como “o gran<strong>de</strong> estadista<br />

brasileiro”, e conclui o capítulo dizendo que “<strong>de</strong>notava, em seu autor, uma<br />

notável capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avaliação e uma gran<strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> espírito” (Dreyfus,<br />

1994, pp. 280-282).<br />

Esta avaliação contribuiu para o sucesso da atuação <strong>de</strong> Rui na Segunda Conferência<br />

da Paz <strong>de</strong> Haia, na qual chefiou a <strong>de</strong>legação brasileira. É o que relata Batista<br />

Pereira, que foi secretário <strong>de</strong>sta. Nela, teve a incumbência, por instruções escritas<br />

do Barão do Rio Branco, <strong>de</strong> lidar com a imprensa e <strong>de</strong>sfazer a má vonta<strong>de</strong> inicial<br />

que cercava Rui, cujas posições remavam contra a maré dos interesses tradicionais<br />

das gran<strong>de</strong>s potências (Batista Pereira, 2004, Lacombe, 1975, p. 5).<br />

Como se sabe, a Conferência <strong>de</strong> Haia teve como uma <strong>de</strong> suas inovadoras<br />

características a presença da opinião pública nos corredores do po<strong>de</strong>r diplomático.<br />

Entre as figuras relevantes e atuantes nestes corredores, tanto na<br />

Primeira quanto na Segunda Conferência <strong>de</strong> Haia, estava William T. Stead,<br />

jornalista britânico que foi um influente articulador e porta-voz das aspirações<br />

pacifistas da socieda<strong>de</strong> civil (cf. Tuchman, 1990, cap. 5). Stead começou<br />

crítico <strong>de</strong> Rui, mas o trabalho <strong>de</strong> aproximação <strong>de</strong> Batista Pereira foi bem sucedido.<br />

Teve como um dos elementos a informação sobre a pioneira posição<br />

<strong>de</strong> Rui no caso Dreyfus e o reconhecido apreço do próprio Dreyfus sobre esta<br />

posição (cf. Batista Pereira, 2004, pp. 79-88).<br />

Stead, no seu livro O Brasil em Haya, capítulo II, no qual trata do <strong>de</strong>legado<br />

do Brasil e avalia como Rui se impôs e tornou-se um dos gran<strong>de</strong>s protagonistas<br />

diplomáticos da Conferência <strong>de</strong> Haia, diz ter sido Rui<br />

65


Celso Lafer<br />

“(...) entre seus contemporâneos o primeiro a <strong>de</strong>scobrir o erro judiciário<br />

<strong>de</strong> que foi vítima o Capitão Alfred Dreyfus e publicamente con<strong>de</strong>nou a<br />

sentença, antes <strong>de</strong> qualquer outro protesto. Este fato, recentemente atestado<br />

pelo próprio Capitão Dreyfus, <strong>de</strong>u ao Dr. Barbosa um novo cunho <strong>de</strong><br />

distinção.” (Stead, 1925, p. 9).<br />

Como se vê, no contexto <strong>de</strong> Haia, o artigo <strong>de</strong> Rui a ele conferiu, perante a<br />

opinião pública esclarecida, o soft power <strong>de</strong> uma legitimida<strong>de</strong> política adicional.<br />

Distinto foi o outro contexto <strong>de</strong>ntro do qual, na vida <strong>de</strong> Rui, teve um papel<br />

o seu texto sobre Dreyfus. Refiro-me ao episódio das cartas falsas atribuídas<br />

a Artur Bernar<strong>de</strong>s com o objetivo <strong>de</strong> indispô-lo com os militares e atropelar<br />

a sua candidatura presi<strong>de</strong>ncial. O caso <strong>de</strong>stas cartas falsas foi qualificado por<br />

Afonso Arinos como “uma questão Dreyfus sem gran<strong>de</strong>za” (1976, p. 761).<br />

No aceso da questão, no âmbito da qual a divulgação das cartas vinha obtendo<br />

gran<strong>de</strong> ressonância no Congresso e na imprensa, Barbosa Lima apelou<br />

para Rui. Em carta <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1922, reproduzida no livro <strong>de</strong> João<br />

Mangabeira, disse:<br />

“Estou certo <strong>de</strong> que o homem que levantou do exílio o seu protesto, em<br />

nome da justiça, contra o sacrifício <strong>de</strong> Dreyfus ao ódio <strong>de</strong> raça, não <strong>de</strong>ixará<br />

<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r a este apelo, ce<strong>de</strong>ndo ao ímpeto da justiça, que tem sido a<br />

força motora <strong>de</strong> toda a sua gran<strong>de</strong> e nobre vida” (1960, p. 351).<br />

Rui sabia que este apelo ao seu ímpeto <strong>de</strong> justiça carregava no seu bojo<br />

<strong>de</strong>sconforto político e pessoal. Bernar<strong>de</strong>s tinha sido um dos que, em 1919,<br />

organizara o mundo político contra a sua candidatura. As paixões políticas<br />

estavam exacerbadas. Muitos dos jornais que sempre o apoiaram afirmavam<br />

a autenticida<strong>de</strong> das cartas. Ainda assim, enfrentou a matéria e <strong>de</strong>u um laudo<br />

pela falsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas. João Mangabeira consi<strong>de</strong>ra esta tomada <strong>de</strong> posição, do<br />

ponto <strong>de</strong> vista moral, o “ato mais nobre em sua vida”, pois diante do “espetáculo<br />

da injustiça <strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> bem vitimado por uma campanha <strong>de</strong><br />

calúnia” não hesitou em afirmar a verda<strong>de</strong>, apesar <strong>de</strong> saber que a <strong>de</strong>fesa da<br />

66


“O processo do Capitão Dreyfus”<strong>de</strong> Rui Barbosa<br />

verda<strong>de</strong> beneficiaria um adversário político com o qual tinha, pessoalmente,<br />

trato difícil (1975, p. 351).<br />

Em síntese, tanto numa tomada <strong>de</strong> posição mais distante da sua atuação<br />

no Brasil, como foi o caso do texto sobre o processo Dreyfus, quanto numa<br />

tomada <strong>de</strong> posição mais próxima do calor das paixões da vida política brasileira<br />

em que estava envolvido, como foi o caso do laudo sobre a falsida<strong>de</strong> das<br />

cartas atribuídas a Bernar<strong>de</strong>s, Rui foi coerente. Exerceu com coragem política<br />

a magistratura da justiça militante, que, no seu enten<strong>de</strong>r, cabia na missão do<br />

advogado. Esta englobava, para concluir relembrando suas palavras na Oração<br />

aos moços: “Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela<br />

iniquida<strong>de</strong> ou imoralida<strong>de</strong>. Nem se subtrair à <strong>de</strong>fesa das causas impopulares,<br />

nem a das perigosas, quando justas.” (1949, p. 35).<br />

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da USP, 1949 (explicação prévia <strong>de</strong> J. Soares <strong>de</strong> Melo, facsimile do texto<br />

original <strong>de</strong> Rui, com cartas documentos e recortes da imprensa).<br />

_____. Escritos e discursos seletos, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Edit. José Aguilar Ltda., 1960.<br />

67


Celso Lafer<br />

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Filho, Fundação Casa <strong>de</strong> Rui Barbosa, 1985b.<br />

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Batista Pereira. Prefácio a Rui Barbosa, Cartas <strong>de</strong> Inglaterra, 2. a ed., São Paulo, Saraiva<br />

e Cia. Edit., 1929, pp. 7-117.<br />

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_____. Figuras do Império e outros ensaios, prefácio <strong>de</strong> Américo Jacobina Lacombe, 3. a<br />

ed., São Paulo, Cia, Edit. Nacional, 1975.<br />

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Jean-Louis Lévy, Paris, Ed. La Découverte, 1994.<br />

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68


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Tuchman, Barbara W. A torre do orgulho, trad. João Pereira Bastos, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Paz<br />

e Terra, 1990.<br />

69


José Sarney


José Sarney: política<br />

e literatura<br />

Arnaldo Niskier<br />

“José Sarney, ao mesmo tempo que faz política, faz literatura, e<br />

com esta característica: como político, não é literato; como homem<br />

<strong>de</strong> letras, não é político”<br />

Josué Montello<br />

<br />

<strong>Prosa</strong><br />

A chegada à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />

Eleito em 17 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1980 para a Ca<strong>de</strong>ira 38, suce<strong>de</strong>ndo<br />

a José Américo <strong>de</strong> Almeida, José Sarney foi recebido em 6 <strong>de</strong> novembro<br />

<strong>de</strong> 1980 pelo também maranhense Josué Montello. Em seu<br />

inflamado discurso <strong>de</strong> posse, assim <strong>de</strong>finiu a realização do sonho<br />

<strong>de</strong> se tornar acadêmico:<br />

“A <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> era para mim um horizonte longínquo. Leve sedução<br />

transformada na ambição que, sem coragem <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sejo,<br />

era um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejá-la e, <strong>de</strong>sejando <strong>de</strong>sejá-la, tornou-se <strong>de</strong>sejo,<br />

esperança e sonho. Sonho que se realizou e, como diz Jorge<br />

Luis Borges, quem realiza um sonho constrói uma parcela <strong>de</strong> sua<br />

própria eternida<strong>de</strong>.”<br />

71<br />

Ocupante da<br />

Ca<strong>de</strong>ira 18<br />

na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>.


Arnaldo Niskier<br />

Josué Montello, na mesma noite, ao recepcioná-lo, realçou:<br />

“Quando vos candidatastes à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, visastes à sucessão <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong><br />

escritor, que foi também um gran<strong>de</strong> político, mas na verda<strong>de</strong> tínheis<br />

também outra intenção – a <strong>de</strong> fazer voltar às glórias <strong>de</strong> nossa terra a Ca<strong>de</strong>ira<br />

aqui fundada por nosso conterrâneo Graça Aranha e que hoje vos<br />

pertence, com o aplauso e o júbilo <strong>de</strong> todos nós.”<br />

A chegada à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> era mais um capítulo na trajetória<br />

ascen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> José Sarney. Aliás, a Casa que teve entre seus fundadores<br />

escritores <strong>de</strong> renome como Machado <strong>de</strong> Assis e Lúcio <strong>de</strong> Mendonça sempre<br />

flertou com o estado do Maranhão. Basta uma pequena pesquisa para saber<br />

que, quando foi criada, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> abrigou cinco maranhenses entre os seus<br />

40 membros: Raimundo Correia, Coelho Neto, Aluísio Azevedo, Graça Aranha<br />

e Artur Azevedo. Isso correspon<strong>de</strong> a mais <strong>de</strong> 10%, um número expressivo.<br />

Da mesma forma, são cinco os patronos maranhenses, a saber: A<strong>de</strong>lino<br />

Fontoura, Gonçalves Dias, João Francisco Lisboa, Joaquim Serra e Teófilo<br />

Dias <strong>de</strong> Mesquita. Sem esquecer dos também maranhenses Sotero dos Reis e<br />

Odorico Men<strong>de</strong>s, que são patronos dos sócios-correspon<strong>de</strong>ntes.<br />

De 1897 até nossos dias, além dos maranhenses pioneiros, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> abrigou Humberto <strong>de</strong> Campos, Odylo Costa, filho, Viriato<br />

Correia, Josué Montello e, é claro, José Sarney.<br />

Além da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> e da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Maranhense <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>,<br />

José Sarney é membro do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão,<br />

da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Brasiliense <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> e da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> das Ciências <strong>de</strong> Lisboa,<br />

além <strong>de</strong> ser Doutor Honoris Causa da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra (1986).<br />

<br />

Solidarieda<strong>de</strong>, marca registrada<br />

A disposição <strong>de</strong> José Sarney em colaborar com manifestações culturais e<br />

ajudar os amigos vem <strong>de</strong> muitos anos. Po<strong>de</strong>mos confirmá-la num <strong>de</strong>poimento<br />

<strong>de</strong> Josué Montello que registrou em seu livro Diário do entar<strong>de</strong>cer. Por ocasião<br />

72


José Sarney: política e literatura<br />

da elaboração <strong>de</strong> sua obra-prima, Os tambores <strong>de</strong> São Luís, Josué Montello encontrava<br />

muitas dificulda<strong>de</strong>s, que aos poucos foram resolvidas com apoio <strong>de</strong><br />

amigos, <strong>de</strong>ntre eles, José Sarney:<br />

“Quanto ao processo da Baronesa <strong>de</strong> Grajaú, tenho comigo, graças ao<br />

senador José Sarney, os respectivos autos judiciários. Daí a niti<strong>de</strong>z <strong>de</strong> sua<br />

recomposição. Num romance como Os tambores <strong>de</strong> São Luís, a verda<strong>de</strong> histórica<br />

é a própria substância ficcional”.<br />

O mais interessante foi a forma como José Sarney conseguiu os originais.<br />

Ele trabalhava no Tribunal <strong>de</strong> Justiça do Maranhão, e um dia observou<br />

que havia uma fogueira no pátio: estavam queimando processos antigos. Por<br />

curiosida<strong>de</strong>, ele pegou uma parte do material e viu que se tratava <strong>de</strong> documentos<br />

pertinentes ao processo da Baronesa <strong>de</strong> Grajaú. Prontamente, guardou<br />

consigo os papéis em seus arquivos, conservando-os com o maior carinho,<br />

até que, na ocasião <strong>de</strong>vida, os repassou para o amigo. As palavras <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento<br />

<strong>de</strong> Josué Montello são comoventes, como se po<strong>de</strong> ler no livro Diário<br />

do entar<strong>de</strong>cer:<br />

“Emocionado, recebo o gordo maço <strong>de</strong> papéis amarelados, vejo que o<br />

processo está completo, e reconheço mais uma vez que há um santo, lá no<br />

Alto, encarregado por Deus <strong>de</strong> ajudar, neste mundo, os pesquisadores à<br />

procura da verda<strong>de</strong> histórica”.<br />

<br />

O lado humano do autor<br />

José Sarney teve o seu romance O dono do mar, <strong>de</strong> 1995, transposto para as<br />

telas <strong>de</strong> cinema, em 2005, valorizando a cultura maranhense e mostrando as<br />

belezas do litoral. A direção <strong>de</strong> Odoryco Men<strong>de</strong>s foi primorosa. Aliás, trocando<br />

o “y” pelo “i”, o cineasta é um homônimo do político e escritor maranhense<br />

Odorico Men<strong>de</strong>s, patrono da ca<strong>de</strong>ira 17 <strong>de</strong> sócio-correspon<strong>de</strong>nte da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. A história da vida do pescador Antão Cristório<br />

73


Arnaldo Niskier<br />

foi muito bem adaptada para o cinema, com muitos efeitos especiais, valorizando<br />

o trabalho que José Sarney teve para produzir o livro: foram três anos<br />

<strong>de</strong> pesquisas sobre o dia a dia, os modismos, os folclores, os anseios, a linguagem<br />

e a vida dos pescadores. O filme foi realizado entre 2001 e 2004, quando<br />

entrou em circuito nacional.<br />

A participação dos atores também foi fundamental para que o resultado<br />

final fosse o melhor possível: Jackson Costa, Daniela Escobar, Regiane Alves,<br />

Paula Franco, Samara Felippo e Pepita Rodrigues. Esta última, por exemplo,<br />

que no filme interpreta a feiticeira Geminiana, assim se expressou em <strong>de</strong>poimento<br />

à imprensa: “Amei o texto, amei o livro. É um autor maravilhoso. Fiquei<br />

emocionada. Me senti ignorante por não ter lido os outros livros <strong>de</strong>le”.<br />

Ferreira Gullar, outro maranhense ilustre, reconheceu a importância <strong>de</strong><br />

José Sarney para a cultura do seu estado, em recente entrevista:<br />

“Eu sou amigo <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> José Sarney. Fizemos revistas literárias<br />

em São Luís do Maranhão, ele fazia uma e eu outra, com outro amigo.<br />

(...) Tenho que admitir que o Sarney salvou São Luís. Mesmo com o crescimento<br />

da economia em torno, a cida<strong>de</strong>, que é colonial, teve seu casario<br />

preservado”.<br />

Ao prefaciar o livro Tempo <strong>de</strong> Pacotilha, o Acadêmico Alberto da Costa e Silva<br />

nos faz refletir sobre o lado político e literário <strong>de</strong> José Sarney:<br />

“Para ele a política foi sempre a sua segunda vocação. Escritor antes <strong>de</strong><br />

tudo, mantém-se entranhadamente fiel à literatura e às suas admirações, a<br />

maior <strong>de</strong>las pelo Padre Antônio Vieira. Dele não se esquece jamais, como<br />

não se cansa <strong>de</strong> advertir que os países não progri<strong>de</strong>m nem enriquecem<br />

quando <strong>de</strong>scuidam da cultura”.<br />

O escritor José Louzeiro relembra em entrevista o seu início na vida jornalística<br />

no Maranhão, quando foi companheiro na redação <strong>de</strong> O Imparcial <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s profissionais, <strong>de</strong>ntre eles José Sarney, que também estava iniciando<br />

74


José Sarney: política e literatura<br />

sua carreira naquele veículo: “Conheci gran<strong>de</strong>s poetas maranhenses como<br />

Ferreira Gullar, José Sarney, Lauro Machado... Todos no suplemento literário<br />

do O Imparcial”.<br />

<br />

Uma vida política intensa<br />

Em 1956 começou a caminhada política <strong>de</strong> José Sarney, a princípio como<br />

suplente <strong>de</strong> <strong>de</strong>putado fe<strong>de</strong>ral. A reeleição para os mandatos <strong>de</strong> 1958-62 e<br />

1962-66 apenas confirmava a aceitação popular dos i<strong>de</strong>ais do maranhense<br />

que aos poucos galgava os <strong>de</strong>graus que o levariam ao patamar mais alto da<br />

vida parlamentar. Vale registrar que hoje ele é o parlamentar mais antigo em<br />

ativida<strong>de</strong> no Congresso Nacional.<br />

Em 1965, José Sarney foi eleito governador do estado do Maranhão. Data<br />

<strong>de</strong>sse período uma experiência importante e única, que merece nosso registro.<br />

Como era amigo do cineasta Glauber Rocha, teve o seu discurso <strong>de</strong> posse<br />

filmado por ele, que registrou o entusiasmo das palavras do eleito e a emoção<br />

da população que lotou a praça para prestigiar o novo governante. A direção<br />

do documentário, que hoje po<strong>de</strong> ser visto no youtube, foi <strong>de</strong> outro cineasta<br />

famoso: Luiz Carlos Barreto, o Barretão. Vale lembrar que outro acadêmico<br />

teve a honra <strong>de</strong> ser filmado por Glauber Rocha: Carlos Castello Branco, o<br />

saudoso Castellinho, teve uma participação especial no filme “A ida<strong>de</strong> da<br />

terra”, em 1980.<br />

No fim do mandato <strong>de</strong> governador, José Sarney assumiu a ca<strong>de</strong>ira no Senado,<br />

<strong>de</strong> 1970 a 1978, sendo reconduzido para o período 1979-1986. Não<br />

chegou a fim do período por força <strong>de</strong> acontecimentos políticos importantes<br />

que tiveram a sua participação efetiva. Eleito vice-presi<strong>de</strong>nte da República<br />

pelo colégio eleitoral, em janeiro <strong>de</strong> 1985, tendo Tancredo Neves como presi<strong>de</strong>nte,<br />

se viu obrigado a assumir o principal cargo do país com o dramático<br />

falecimento <strong>de</strong>ste.<br />

Depois do período como presi<strong>de</strong>nte da República, <strong>de</strong> 21/4/1985 a<br />

15/3/1990, José Sarney se elegeu senador pelo estado do Amapá, em 1990,<br />

75


Arnaldo Niskier<br />

sendo reeleito em 2006. Ou seja, até 2014, estará entregue às ativida<strong>de</strong>s políticas,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo os interesses do estado do Amapá.<br />

Uma boa forma <strong>de</strong> analisar a trajetória política do Acadêmico José Sarney é<br />

assistir ao documentário “José Sarney – um nome na história”, que teve direção<br />

<strong>de</strong> Fernando Barbosa Lima e roteiro <strong>de</strong> José Augusto Ribeiro. A obra traz todos<br />

os momentos da sua vida política, alguns <strong>de</strong>les <strong>de</strong>cisivos, como a formação da<br />

chapa, com Tancredo Neves, para concorrer à primeira eleição após o fim da<br />

ditadura, e a posse como presi<strong>de</strong>nte, após a morte <strong>de</strong> Tancredo.<br />

<br />

José Sarney (Trechos)<br />

Trechos <strong>de</strong> Saraminda<br />

“Compadre Clément, só <strong>de</strong>pois comecei a montar as coisas e conhecer o<br />

caminho do sofrimento. Eu, Cleto Bonfim, fiquei prisioneiro <strong>de</strong>ssa paixão, uma<br />

ca<strong>de</strong>ia sem limites. O francês trouxe o vestido, mas ela não queria vestir. Ficou<br />

fascinada <strong>de</strong> ver e tocar. Tirava da caixa, olhava, cheirava e suspirava, como se<br />

encontrasse um perfume mágico, e tornava a cheirar e me obrigava a cheirá-lo.<br />

Depois se <strong>de</strong>itava e fazia como fez com o vestido <strong>de</strong> noiva, botava na re<strong>de</strong>, ao<br />

lado <strong>de</strong>la, e o vestido era <strong>de</strong> uma cor rosa que contrastava com sua cor escura,<br />

e achei que tinha um jeito <strong>de</strong> usado, mas era bonito. Depois vi o tamanho e me<br />

pareceu ser maior que Saraminda. Mas ela não via nada, não estava atenta aos<br />

<strong>de</strong>feitos. Para ela era o fascínio <strong>de</strong> um vestido <strong>de</strong> Paris, presente que ela julgava<br />

<strong>de</strong> Kemper e não da Equatoriale, pois ela não atinava o que era a Société. Tudo<br />

isso eu senti quando ela me disse:<br />

– Esse moço <strong>de</strong> olhos azuis veio da França para me trazer esse vestido, sem<br />

me conhecer. Quem disse para ele que eu estava aqui?<br />

– Saraminda, esse homem é o portador da empresa que compra e ven<strong>de</strong><br />

meu ouro e viaja por or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>la. Eles querem me agradar e, para me agradar,<br />

têm que começar por você. Ele trouxe, também, uma caleça que man<strong>de</strong>i buscar<br />

para você.<br />

– Meu Deus, Cleto Bonfim, você me <strong>de</strong>u um carro para andar?<br />

76


José Sarney: política e literatura<br />

– Sim, Saraminda, está <strong>de</strong>sembarcado no porto do Firmino, esperando<br />

transporte para cá. E aqui não tem caminhos para ele, é preciso abri-los.<br />

– Como é caleça, Bonfim?<br />

– É um coche <strong>de</strong> duas rodas, com uma coberta <strong>de</strong> lona, bancos <strong>de</strong> couro,<br />

para ser puxado por dois cavalos...<br />

– Eu vou ter um carro com dois cavalos?<br />

– Vai, Saraminda, com portas bordadas <strong>de</strong> ouro, com as rodas douradas.<br />

– E como vai passar nestes caminhos?<br />

– Vou mandar abrir uma estrada só para você, ninguém nela vai andar, sai<br />

<strong>de</strong> nossa casa até meu barracão. Você vai e volta, <strong>de</strong> sombrinha e vestida com<br />

essa roupa <strong>de</strong> Paris.<br />

– É mentira, Cleto, não chegou caleça. Chegou um cabriolé, coisa já fora<br />

<strong>de</strong> uso que eles remeteram para enganar você.<br />

Eles sabiam que aqui no Laurent não tinha caminho para carros puxados<br />

por cavalos. Mais do que coche, landau eu man<strong>de</strong>i buscar para Caiena, e todo<br />

mundo até hoje ouve seu trote nas ruas, puxado por uma parelha <strong>de</strong> cavalos<br />

brancos, e o povo <strong>de</strong> Caiena ia para a porta vê-lo, batia palmas e dizia: Viva<br />

Clément e o progresso <strong>de</strong> Caiena. Mas eu man<strong>de</strong>i também trazer uma ca<strong>de</strong>ira<br />

<strong>de</strong> trono para ela. Veio com o carro, e o francês não sabia. Man<strong>de</strong>i vir tudo<br />

que uma dama <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> tinha em Paris. Eu queria que ela fosse <strong>de</strong>usa. Eu<br />

gostava muito da chamada liteira <strong>de</strong> Saraminda. Uma casinha com duas janelas,<br />

uma <strong>de</strong> cada lado, com cortinas, e <strong>de</strong>ntro almofadas <strong>de</strong> veludo vermelho e<br />

franjas amarelas. Estava montada em dois caibros dourados com acolchoados<br />

nas pontas, para dar conforto aos dois homens, um na frente e outro atrás,<br />

carregando o palanquim. E eu, Cleto Bonfim, man<strong>de</strong>i buscar um ourives e<br />

man<strong>de</strong>i gravar em ouro, do lado <strong>de</strong> fora, o nome Saraminda dos dois lados.<br />

Eu fiz isso e ela não ficou satisfeita e me pediu para mandar gravar embaixo<br />

Amor <strong>de</strong> Ouro. E eu perguntei: Por que amor <strong>de</strong> ouro? E ela simplesmente,<br />

com aquela voz, me respon<strong>de</strong>u: Sou eu. E me pediu: Me beija, Bonfim. E eu<br />

beijei....”<br />

77


Arnaldo Niskier<br />

“ – Tire a roupa, você é mulher <strong>de</strong> bor<strong>de</strong>l, não tem que pensar, nem romance,<br />

quero ver seus peitos – falou cambaleando.<br />

Saraminda retrucou, resoluta:<br />

– Seu Cleto, me trate com respeito. Não sou coisa suja, sou mulher para<br />

ser tratada com gosto. Aprecio modos. Entrei na vida, mas não sou uma sem-<br />

-vergonha.<br />

– Arrematei você por preço alto e quero receber a mercadoria. Sou assim<br />

e não sei esperar. Pago mulher para ela ser como eu quero. Deixa <strong>de</strong> sestro. Já<br />

estou me chateando (...)<br />

– Não sei – retrucou Saraminda – isso é questão sua. Veja lá, Seu Bonfim<br />

– abriu a blusa e mostrou os seios, apertando os mamilos –, isto não é<br />

mercadoria para ser comprada assim. É coisa minha, rara da natureza, que eu<br />

não jogo fora. Veja o valor <strong>de</strong>les e me trate <strong>de</strong> outro jeito, sem bebida e sem<br />

brutalida<strong>de</strong>.<br />

Cleto abriu bem os olhos e viu nos seios escuros as pepitas incrustadas, <strong>de</strong><br />

um amarelo intenso, <strong>de</strong>rramado, a mesma cor das pequenas flores da ucuuba.<br />

– Que é mesmo que eu estou vendo? – balbuciou Cleto, quase caindo.<br />

– Pois veja, Cleto Bonfim.”<br />

“Eu soube o que era amor. E eu fui implorando para ela se entregar, e ela<br />

era uma cobra sucuri que se enrolava em mim e fugia sem fugir, assim junta<br />

e sussurando. (...) Ali estavam os bicos dos seios que eu apenas tinha entrevisto,<br />

amarelos como ouro bruto, tirado da terra, mas do brilho trabalhado<br />

por mãos <strong>de</strong> ourives, artista do bonito. As pontas eram gran<strong>de</strong>s, altas, duras,<br />

roliças, faiscavam como tição...”<br />

Trecho <strong>de</strong> Marimbondos <strong>de</strong> fogo<br />

“Eu, <strong>de</strong> nome José,<br />

rasguei os olhos da vida<br />

em cinza manhã <strong>de</strong> abril.<br />

Chorei e o campo chovia<br />

78


on<strong>de</strong> a cida<strong>de</strong> pedia<br />

tempos, clemência e amor.<br />

Bendito sejais chão Pinheiro<br />

com o canto dos bois<br />

e os patos selvagens<br />

que <strong>de</strong>ixam as nuvens<br />

e os ventos gigantes<br />

que lhe guiaram as asas<br />

cruzando oceano<br />

e pousaram<br />

à beira dos Defuntos<br />

on<strong>de</strong> saco<strong>de</strong>m a viagem<br />

e fazem ninho<br />

na folha das plantas aquáticas<br />

que flutuam como anjos <strong>de</strong>itados<br />

na mansidão dos lagos.”<br />

As principais obras<br />

José Sarney: política e literatura<br />

A canção inicial (poesia). São Luís: Afluente, 1952.<br />

A pesca do curral (ensaio). São Luís: Editora Revista <strong>de</strong> Geografia e Estatística, 1953.<br />

Norte das águas (contos). São Paulo: Martins Editora,1970.<br />

Marimbondos <strong>de</strong> fogo (poesia). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Artenova Editora, 1978.<br />

Dez contos escolhidos. Brasília: Editora Horizonte, 1985.<br />

Brejal dos guajas e outras histórias. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Alhambra, 1985<br />

O dono do mar (romance). São Paulo: Siciliano, 1995.<br />

Saraminda (romance). São Paulo: Siciliano, 2000.<br />

Sauda<strong>de</strong>s mortas (poesia). São Paulo: Editora ARX, 2002.<br />

Canto <strong>de</strong> página: notas <strong>de</strong> um brasileiro atento (crônicas). São Paulo: Editora ARX, 2002.<br />

Tempo <strong>de</strong> Pacotilha (artigos). Rio <strong>de</strong> Janeiro: <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, 2004 (Coleção<br />

Austregésilo <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>).<br />

A duquesa vale uma missa (romance). São Paulo: Editora ARX, 2007.<br />

79


Arnaldo Niskier<br />

Referências<br />

Anuário 1986-1992, da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

Montello, Josué. Diário do entar<strong>de</strong>cer, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira, 1991.<br />

Niskier, Arnaldo. Uma nova maneira <strong>de</strong> pensar, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Edições Consultor,<br />

1997.<br />

Sarney, José. Os marimbondos <strong>de</strong> fogo, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Artenova Editora, 1978.<br />

Sarney, José. Norte das águas, São Paulo, Livraria Martins Editora, 1969.<br />

Sarney, José. Saraminda, São Paulo, Editora Siciliano, 2000.<br />

Sarney, José. Tempo <strong>de</strong> Pacotilha. Rio <strong>de</strong> Janeiro, ABL, 2004 (Coleção Austregésilo <strong>de</strong><br />

Athay<strong>de</strong>).<br />

Site da revista Veja.<br />

Site do Jornal Copacabana.<br />

80


Desconstrução dos<br />

gêneros literários *<br />

<strong>Prosa</strong><br />

Eduardo Portella<br />

Até a chegada dos tempos mo<strong>de</strong>rnos, a literatura, o fazer<br />

poético, vivia uma vida sem gran<strong>de</strong>s sobressaltos. Algumas<br />

surpresas, não muitos <strong>de</strong>safios. O quadro era razoavelmente estável.<br />

As belas letras, nem sempre tão belas, se enquadravam disciplinadamente<br />

no organograma oficial dos gêneros literários. Quando muito<br />

se compraziam em registrar inflexões líricas, trágicas ou cômicas.<br />

Certas contorções titânicas nunca se fizeram <strong>de</strong> rogadas. O melodrama<br />

jamais <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> se mostrar presente.<br />

Com o advento progressivo das mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>s, bruscas transformações<br />

foram ocupando o espaço público. Verificou-se igualmente<br />

um <strong>de</strong>scentramento do pensar, em meio à voracida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pressões,<br />

impressões e percepções difusas. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong>, que tanto<br />

protegera as gerações anteriores, tornou-se relações paradoxais;<br />

* Conferência inaugural do Ciclo Gêneros Literários: um Olhar Atual, proferida na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, em 15.03.2011.<br />

81<br />

Ocupante da<br />

Ca<strong>de</strong>ira 27<br />

na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>.


Eduardo Portella<br />

papéis intercambiáveis, tonalida<strong>de</strong>s múltiplas, o anúncio, a espera, os sonhos,<br />

a fronteira sinuosa passaram a configurar outras pautas, com índices <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong><br />

e risco insuportáveis.<br />

As colisões do sujeito, <strong>de</strong>spreparado para o arriscado tráfico da cida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna,<br />

apontavam na direção <strong>de</strong> choques <strong>de</strong>salentadores do “eu” no meio da<br />

rua. Aqueles mesmos que Edgar Allan Poe e Charles Bau<strong>de</strong>laire conheceram<br />

por <strong>de</strong>ntro no exato instante do seu <strong>de</strong>slocamento para fora, da saída do espaço<br />

privado para a esfera pública. A era posterior do anonimato, ou da perda<br />

acelerada da singularida<strong>de</strong>, apressou a marcha batida do indivíduo cindido.<br />

Na or<strong>de</strong>m da representação verifica-se o <strong>de</strong>slocamento ou o alargamento<br />

do olhar. E, consequentemente, os gêneros literários estáveis foram <strong>de</strong>ixando<br />

<strong>de</strong> dar conta <strong>de</strong>sse mundo cada vez mais instável.<br />

O vigor do impulso poético rompe a barreira dos gêneros e <strong>de</strong>nega as concepções<br />

clássicas, neoclássicas e classicizantes. Essas espécies individualizadas,<br />

que se imaginavam irreversivelmente saudáveis e opulentas, se viram inesperadamente<br />

submetidas a um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sidratação, ao longo do percurso<br />

que vai da alta mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> ao que venho chamando <strong>de</strong> baixa mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />

no lugar <strong>de</strong> pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />

Quando se verifica a <strong>de</strong>smobilização dos gêneros literários? Creio que a<br />

partir do momento em que começam a ruir as hierarquizações institucionalizadas,<br />

e tomam corpo e alma <strong>de</strong>sestabilizações sintáticas e semânticas pouco<br />

ou nada previsíveis. Verifica-se, portanto, quando a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> entra na sua<br />

contagem regressiva.<br />

Fica fácil enten<strong>de</strong>r por que a teoria dos gêneros literários, codificada pela retórica<br />

hegemônica, assumiu a postura <strong>de</strong> uma prática fascista. Ela preferiu a exclusão<br />

à inclusão, ignorou as diferenças complementares, a força da mescla, da hibridização<br />

e, mais que tudo, supervalorizou a existência <strong>de</strong> gêneros puros e superiores.<br />

À medida que a ânsia legítima da forma foi sendo substituída pela ansieda<strong>de</strong><br />

ilegítima do formato, o empreendimento artístico, que trazia consigo<br />

um passado honroso, foi se <strong>de</strong>gradando. Não falo evi<strong>de</strong>ntemente dos <strong>de</strong>svios<br />

<strong>de</strong> conduta <strong>de</strong> construções pretensamente literárias: telenovelas monotonamente<br />

formatadas, romances <strong>de</strong> autoajuda ou <strong>de</strong> trapaças esotéricas, poesias<br />

82


Desconstrução dos gêneros literários<br />

altissonantes, <strong>de</strong> ambições políticas ou <strong>de</strong> celebrações evangélicas; muito menos<br />

das crônicas opacas <strong>de</strong> eventos pontuais ou das memórias autoinflamáveis,<br />

que recolhem displicentemente essas proliferações do discurso recessivo.<br />

Inclino-me a me ocupar <strong>de</strong> combinações inesperadas, <strong>de</strong> interfaces criativas,<br />

<strong>de</strong>sse vasto elenco <strong>de</strong> imprevisibilida<strong>de</strong>s. Um poeta da altitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> João<br />

Cabral <strong>de</strong> Melo Neto traz consigo, introjetado no poema, uma poética aguda.<br />

A tal ponto que, para interpretá-lo, não necessitamos nada mais do que lê-lo.<br />

Os seus escritos sobre poesia, a sua exegese referencial do pintor catalão Joan<br />

Miró, a sua metalinguagem particularmente nos confiam a chave do tesouro<br />

escondido. Não necessitamos sair <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le para falar <strong>de</strong>le. E ele foi<br />

tão ouvido que promoveu severa e oportuna mudança <strong>de</strong> rumo em nossa<br />

poesia do pós-guerra, que parecia encaminhar-se para o histrionismo e o escândalo<br />

verbais. João Cabral bloqueou a passagem do dilapidador <strong>de</strong> palavras.<br />

Por quê? Porque é o poeta que pensa, portador <strong>de</strong> um “coração inteligente”.<br />

Como José Paulo Moreira da Fonseca, Paulo Men<strong>de</strong>s Campos, Geraldo Holanda<br />

Cavalcanti, César Leal, Mário Chamie, Ivo Barroso, Marco Lucchesi.<br />

A tarefa do poema consiste em não dilapidar, nem lapidar. Antes ser a<br />

palavra como ela é, e como ela não é. A palavra sendo. É assim que leio a poesia<br />

<strong>de</strong> Ferreira Gullar. É assim que os verda<strong>de</strong>iros poetas se distinguem dos<br />

ven<strong>de</strong>dores ambulantes. A compreensão da literatura requer certa emoção e<br />

nenhuma comoção.<br />

Mas a poesia não é, já afirmara anteriormente, proprieda<strong>de</strong> privada do<br />

poema. Ela po<strong>de</strong> estar superiormente situada na narrativa <strong>de</strong> João Guimarães<br />

Rosa ou <strong>de</strong> Clarice Lispector, na crônica, vazada <strong>de</strong> superior ironia, <strong>de</strong> Luís<br />

Fernando Veríssimo ou no sotaque “radical chique” <strong>de</strong> Arnaldo Jabor. Para<br />

não falar no patriarca Rubem Braga, ou no geralmente <strong>de</strong>sconcertante Nelson<br />

Rodrigues. Prefiro <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado o instantaneísmo oco do relato virtual.<br />

Em João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto convivem, harmoniosamente, o inventor do<br />

poema, e o crítico, ou seja, o servidor do texto dotado <strong>de</strong> aguda consciência<br />

crítica. Em Adonias Filho e Clarice Lispector nota-se alternadamente, em<br />

aberto conluio com o poema em prosa, uma <strong>de</strong>sterritorialização da narrativa<br />

empurrada pelo que <strong>de</strong> há muito venho <strong>de</strong>signando <strong>de</strong> realismo imaginário.<br />

83


Eduardo Portella<br />

Já no pós-guerra, contrariando todas as crenças evolucionistas, teve lugar<br />

um retrocesso, com o estancamento da experiência mo<strong>de</strong>rna, em plena<br />

consolidação pelos romancistas do Nor<strong>de</strong>ste e pelos narradores e poetas do<br />

eixo Centro-Sul. A irrupção da contramo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 45 procurou recuperar<br />

as formas fixas, enfaticamente o soneto, mas já era tar<strong>de</strong>. Ela apenas<br />

conseguiu repeti-lo redundantemente: monótono e opaco. Com os prazos<br />

<strong>de</strong> valida<strong>de</strong> vencidos, a carência <strong>de</strong> forças criativas, as ambições excessivas<br />

logo se extraviaram.<br />

O crítico exemplar que foi José Guilherme Merquior, que hoje reverenciamos<br />

20 anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua partida, inesperada e inaceitável, <strong>de</strong>nominou com<br />

agu<strong>de</strong>za “<strong>de</strong>generação <strong>de</strong> 45”. Assim, ela foi a bolha retórica lançada no retrovisor<br />

da história, toda voltada para trás. Temas sublimes, sensações <strong>de</strong>crépitas,<br />

vocabulário obsoleto, conteúdos crepusculares. É a literatura “bolha”, que se<br />

antecipava à “bolha econômica” dos nossos dias. Ela infla <strong>de</strong> repente e vertiginosamente<br />

se esvai. Não tem nada <strong>de</strong> transitiva, porque é tão só transitória<br />

– efêmera, fugaz, volátil.<br />

Um dos romances mais importantes do século XX, que vem a ser O homem<br />

sem qualida<strong>de</strong>s (os espanhóis traduziram como O homem sem atributos), <strong>de</strong><br />

Robert Musil, este romance traz <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le alguns encartes ensaísticos. O<br />

mesmo que ocorre com o nosso Octávio <strong>de</strong> Faria. Dentro <strong>de</strong> inflexível código<br />

disciplinar submisso aos mandamentos das leis ilegítimas da retórica oficial,<br />

eles estariam fora <strong>de</strong> cogitação. Só quem não sabe disso é o norte-americano<br />

Harold Bloom, entrincheirado no seu bunker ortodoxo, on<strong>de</strong> os gêneros e o cânone<br />

alternam papéis, e o francês Régis Debray, ex-heterodoxo e talvez mais<br />

ciclotímico, hoje promotor ar<strong>de</strong>nte do “elogio das fronteiras”. E o que dizer<br />

do teatro <strong>de</strong> Samuel Beckett? Ou da narrativa mais recente <strong>de</strong> Rafael Argullol?<br />

Todos em dissonância com a estrutura lógico-temporal do romance acabado,<br />

redondo, com princípio, meio e fim.<br />

Outra espécie literária que vem tendo no Brasil um <strong>de</strong>sdobramento policêntrico,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, João do Rio, Lima Barreto, Benjamin Costallat,<br />

é a chamada crônica. Caracteriza-se predominantemente pela leveza,<br />

pela aguda percepção instantânea. É um texto espontâneo, sem ser ingênuo.<br />

84


Desconstrução dos gêneros literários<br />

Ao lado <strong>de</strong> cronistas que chamaríamos <strong>de</strong> profissionais, outros gran<strong>de</strong>s escritores<br />

excursionaram por esses domínios. Manuel Ban<strong>de</strong>ira, Carlos Drummond<br />

<strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Rachel <strong>de</strong> Queiroz, José Lins do Rego, Clarice Lispector,<br />

Fernando Sabino, Vinicius <strong>de</strong> Moraes, Paulo Men<strong>de</strong>s Campos. A lista<br />

é interminável. Alguns <strong>de</strong>savisados a consi<strong>de</strong>ram uma manifestação menor.<br />

Não assinaria essa sentença aparentemente irrevogável. O que po<strong>de</strong> existir são<br />

profissionais menores, como acontece em outras latitu<strong>de</strong>s.<br />

Há mesmo o caso <strong>de</strong> um escritor que assegurou a sua presença na literatura<br />

brasileira contemporânea apenas ou sobretudo com a sua obra <strong>de</strong> cronista.<br />

Ele se chama, é fácil <strong>de</strong> se prever, Rubem Braga. A ele, sou tentado a juntar o<br />

exemplo vertical <strong>de</strong> Carlos Heitor Cony, sobre o qual voltarei mais adiante;<br />

a prosa matizada, satírica, e bem-humorada <strong>de</strong> Luís Fernando Veríssimo, e a<br />

eclosão atual, liricamente superlativa, criticamente emancipada do polifacetado<br />

Ferreira Gullar, não <strong>de</strong>vem passar <strong>de</strong>spercebidas hoje.<br />

O cronista <strong>de</strong> veio opiniático, frequentemente pesado e insosso, jamais<br />

consegue alcançar o patamar aprazível do que o mexicano Octavio Paz chama<br />

<strong>de</strong> “jornalismo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias”. Não é o caso do sensato e bem calibrado Marcelo<br />

Coelho. Ele consegue.<br />

Quando isso não acontece, a tribuna improvisada se transforma em tribunal<br />

<strong>de</strong> sentenças <strong>de</strong> última instância, ou em confuso <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> relações<br />

públicas.<br />

Não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> juntar aqui os nomes <strong>de</strong> Antonio Maria, o cantor<br />

da alma do Rio, e do nome muito especial do meu elenco preferido: Sergio<br />

Porto, a reconstituição amorosa do Rio <strong>de</strong> Janeiro pré-urbano, dos almoços<br />

familiarmente coletivos na praia <strong>de</strong> Copacabana e a chegada voraz dos arranha-céus,<br />

em A casa <strong>de</strong>molida, bem como do seu heterônimo Stanislaw Ponte<br />

Preta, a prosa, a crítica e o humor cariocas apontados energicamente contra as<br />

mazelas do golpe militar <strong>de</strong> 1964, reunidos no Febeapá.<br />

O exemplo mais acabado <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconstrução está aqui ao meu lado e aten<strong>de</strong><br />

pelo nome <strong>de</strong> Carlos Heitor Cony. Sinto muito não po<strong>de</strong>r falar <strong>de</strong> Nélida<br />

Piñon e <strong>de</strong> Ana Maria Machado, porque estou falando <strong>de</strong> uma época em que<br />

elas ainda não haviam nascido. Não gostaria <strong>de</strong> me esquecer <strong>de</strong> um sociólogo<br />

85


Eduardo Portella<br />

titular <strong>de</strong> um estilo <strong>de</strong>nsamente literário, Gilberto Freyre, aquele que um dia<br />

enveredou pelas “seminovelas”.<br />

Carlos Heitor Cony sempre foi e é o dissi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> carteirinha. Sou levado a<br />

pensar que há nele, em suas obras mais diversas – Informação ao crucificado, O ato<br />

e o fato, Quase memória, Eu, aos pedaços – uma mesma fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> à dissidência. Não<br />

se trata do dissi<strong>de</strong>nte pelo gosto pueril da divergência. Trata-se do dissi<strong>de</strong>nte<br />

pela insubmissão frente ao estabelecido, à indolência intelectual, às centralida<strong>de</strong>s<br />

petrificadas, a tudo o que possa ser, ou parecer, negação da liberda<strong>de</strong>.<br />

Em O ato e o fato, Cony combate “a força e o arbítrio” sem qualquer concessão<br />

i<strong>de</strong>ológica. Aí é o íntegro dissi<strong>de</strong>nte, longe <strong>de</strong> qualquer i<strong>de</strong>ologia, que está<br />

em ação. O severo e honrado testemunho com que <strong>de</strong>nuncia o golpe <strong>de</strong> 1964<br />

como exemplo <strong>de</strong> subserviência aos interesses norte-americanos.<br />

Não faz muito tempo, Carlos Heitor Cony nos entregou o seu Quase memória,<br />

literatura não só <strong>de</strong> estilo, porém <strong>de</strong> carne e osso. Ou <strong>de</strong> estilo trabalhado discursivamente<br />

com carne e osso, o registro trepidante da tragicomédia humana<br />

pelos vãos e <strong>de</strong>svãos do cotidiano. O “quase” é também a recusa do “absoluto<br />

literário”, que nos impunha mo<strong>de</strong>los sacralizados, plenos e sublimes, e nos seduzia<br />

com as promessas fictícias da estética da apoteose, em geral insensíveis às<br />

infiltrações memorialistas a que não escapa o acontecer existencial. E fazendo<br />

questão <strong>de</strong> ignorar que toda memória que se preza é uma “quase memória”. É<br />

verda<strong>de</strong> que, quando a individualida<strong>de</strong> do memorialista se projeta <strong>de</strong>smesuradamente,<br />

termina se inscrevendo na possível categoria da pós-memória. E o autor<br />

<strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser a pessoa para ser o personagem. É o caso, por exemplo, do memorialista<br />

Gilberto Amado. Aquele que, ao conferir as suas contas no suposto livro<br />

do caixa da vida, se inclui na coluna do haver e jamais do <strong>de</strong>ve.<br />

Recentemente, o memorialista agora assumido publica o livro Eu, aos pedaços.<br />

São memórias, “quase memórias”, pedaços <strong>de</strong> vida, estilhaços, imune às<br />

classificações canônicas. Esses pedaços, essas partículas dispensam a ênfase,<br />

recolhem e revalorizam a dúvida. São pedaços inteiros, sem a menor nostalgia<br />

ou a mínima concessão ao catecismo dominante.<br />

O intelectual autocentrado, autoritário e autista já não sensibiliza ninguém.<br />

Porque <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser a consciência da socieda<strong>de</strong>, ou porque a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixou<br />

86


Desconstrução dos gêneros literários<br />

<strong>de</strong> ter consciência, ou ainda porque a consciência <strong>de</strong>ixou escorrer pelo ralo da<br />

história o que fora um dia a sua verda<strong>de</strong>. Os pedaços, o quase e o que se esquiva<br />

para além do quase passaram a ser metáforas vivas <strong>de</strong> nossa realida<strong>de</strong>.<br />

A crônica <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong>ste livro, “Roteiro”, logo se constitui no manifesto<br />

afirmativo contra todas as manifestações do establishment, em franco dissídio<br />

frente às propostas do saber preguiçosamente hegemônico. E então o dissi<strong>de</strong>nte<br />

imprevisível, talvez mesmo o outsi<strong>de</strong>r insólito, oferece ao nosso espanto<br />

a inesperada coleção <strong>de</strong> pedaços inteiros.<br />

Este é um livro das coisas cravadas no fundo da alma. Não se trata <strong>de</strong> um<br />

ajuste <strong>de</strong> contas com a memória, on<strong>de</strong> os fatos se suce<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m<br />

mais ou menos previsível. Mesmo as passagens antes conhecidas recebem<br />

um outro aggiornamento que lhes dá vida nova. O narrador maduro e jamais<br />

passado intensifica as batidas cardíacas do texto. O que acontece com a <strong>de</strong>vida<br />

altivez, indiferente às objeções <strong>de</strong> tribunais autoproclamados e à estridência<br />

vazia dos aplausos criticamente aleatórios.<br />

Entre os recursos mais viscerais na obra <strong>de</strong> Carlos Heitor Cony, em gran<strong>de</strong><br />

parte consequência da sua aversão congênita pelas ortodoxias, encontra-se o<br />

cultivo apurado das contradições. Jamais a contradição inabalavelmente remetida<br />

para a síntese, para a anulação pura e simples dos polos da contenda, em<br />

nome <strong>de</strong> uma harmonia artificial. A transcendência e a cotidianida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m<br />

coabitar criativamente, sob os auspícios da imaginação. Esses estranhos regimes<br />

<strong>de</strong> convivência não param <strong>de</strong> nos surpreen<strong>de</strong>r. Quando a temperatura<br />

dramática começa a subir, e talvez a divisar o trágico, Cony <strong>de</strong>sconstrói; interrompe<br />

e estanca a cena, introduzindo o corte da navalha afiada do humor. São<br />

artes e artimanhas <strong>de</strong> Carlos Heitor Cony, dissi<strong>de</strong>nte full time.<br />

Convém lembrar enfim dos diários, que, quando resistem às tentações narcisísticas<br />

do sujeito mais do que feliz, nos trazem uma outra memória – a<br />

memória ao vivo.<br />

Ia me esquecendo do ensaio, a forma informal, minha imprecisa praia.<br />

Logo eu que não faço outra coisa senão ensaiar o tempo todo. O laborioso<br />

texto do ensaio confirma que linguagem e pensamento são reciprocamente<br />

constitutivos.<br />

87


Eduardo Portella<br />

O ensaio nunca se distingue pelo peso do compêndio nem pela <strong>de</strong>scontração<br />

da crônica. Por isso, po<strong>de</strong>mos falar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Michel <strong>de</strong> Montaigne, seu<br />

inventor mo<strong>de</strong>rno, a José Ortega y Gasset, encarnação superlativa, <strong>de</strong> Gilberto<br />

Freyre, Eduardo Lourenço, a Roland Barthes, protagonistas do ensaísmo <strong>de</strong><br />

ponta, na sustentável leveza do ensaio.<br />

Por tudo isso, se alguém com uma jovem vocação <strong>de</strong> escritor me perguntasse<br />

sobre o que <strong>de</strong>veria fazer para se transformar em um escritor, respon<strong>de</strong>ria<br />

sem pestanejar: siga adiante ao largo da canonização dos gêneros literários.<br />

88


Constâncio Alves *<br />

A<br />

Alberto Venancio Filho<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> comemora este ano com o brilho <strong>de</strong> sempre o<br />

Ano Joaquim Nabuco, como comemorou nos anos anteriores<br />

o Ano Eucli<strong>de</strong>s da Cunha e o Ano Machado <strong>de</strong> Assis, três gran<strong>de</strong>s<br />

figuras da cultura brasileira que honraram esta Casa.<br />

Mas, dos 207 acadêmicos falecidos, há muitos, porém, para os<br />

quais a imortalida<strong>de</strong> foi ingrata, e hoje se encontram no esquecimento.<br />

Certa vez nesta Casa cheguei a propor a homenagem ao<br />

“acadêmico <strong>de</strong>sconhecido”.<br />

Homenageio um <strong>de</strong>les na data <strong>de</strong> nascimento, ocorrida este mês,<br />

e que <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>sconhecido da gran<strong>de</strong> maioria dos acadêmicos.<br />

Ressalvo o Presi<strong>de</strong>nte Vilaça, ocupante da Ca<strong>de</strong>ira 26, e que <strong>de</strong>le já<br />

se ocupou com a habitual proficiência.<br />

Refiro-me a Constâncio Alves, ocupante da Ca<strong>de</strong>ira 26, nascido<br />

em Salvador em 1865 e falecido em 1933.<br />

Formado em Medicina pela Faculda<strong>de</strong> da Bahia, jamais exerceu a<br />

profissão, mas apresentou tese <strong>de</strong> doutoramento sobre assunto ainda<br />

* Exposição nas Efeméri<strong>de</strong>s da sessão <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2010.<br />

<strong>Prosa</strong><br />

89<br />

Ocupante da<br />

Ca<strong>de</strong>ira 25<br />

na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>.


Alberto Venancio Filho<br />

hoje atual, a “Cremação e inumação perante a Higiene”. Disse ele certa vez<br />

no jubileu <strong>de</strong> Miguel Couto que “apren<strong>de</strong>u os sintomas da peste <strong>de</strong> Atenas<br />

nos sombrios versos <strong>de</strong> Lucrécio e quando precisou <strong>de</strong> informações sobre a<br />

famosa epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Florença consultou o livro imorredouro <strong>de</strong> Boccaccio”.<br />

Iniciou-se no jornalismo no Diário da Bahia, na cida<strong>de</strong> natal, mas se transferiu<br />

cedo para o Rio, trabalhando inicialmente no Jornal do Brasil. Três anos<br />

<strong>de</strong>pois foi convocado para o Jornal do Commercio com uma seção, inicialmente<br />

“Dia a Dia”, assinada C.A., escrevendo semanalmente.<br />

Ingressou no serviço público como funcionário da Biblioteca Nacional e<br />

alcançou a Chefia da Seção <strong>de</strong> Manuscritos. Na coluna <strong>de</strong> jornal e no serviço<br />

público exauriu a ativida<strong>de</strong> intelectual até ingressar na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>.<br />

Humberto <strong>de</strong> Campos retratou-lhe a figura com fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>:<br />

“pequeno, trajando o seu antiquíssimo e invariável fraque preto, um maço<br />

<strong>de</strong> jornais amarrotados <strong>de</strong>baixo do braço, as costas ligeiramente curvas, a<br />

cabeça estendida para diante, como a das tartarugas que espreitam, a marchar<br />

lentamente, a arrastar imperceptivelmente os pés, sem fazer o mais<br />

ligeiro ruído como sombras que se estampam nos muros”.<br />

Rui Barbosa, avesso aos elogios, dirá do intelectual: “tipo <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s<br />

generosas e brilhantes, que uma camada exterior <strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong> e melancolia<br />

oculta aos que lhe não procurarem, sob a crosta da negligência e timi<strong>de</strong>z, as<br />

riquezas escondidas”. Era, para Rui, “o escritor <strong>de</strong> raça, em quem o espírito,<br />

a distinção, o estilo, o bom senso, o tato dos mestres da prosa mo<strong>de</strong>rna se<br />

casam com a paciência, a curiosida<strong>de</strong>, a penetração, o in<strong>de</strong>fesso labor e os<br />

hábitos meditativos <strong>de</strong> um beneditino”.<br />

E Afrânio Peixoto assim o <strong>de</strong>finiu:<br />

“Constâncio Alves – perene conflito <strong>de</strong> sua timi<strong>de</strong>z com o seu talento,<br />

conflito sempre in<strong>de</strong>ciso, se não sempre com elas as aparências do triunfo<br />

e ele obrigado as <strong>de</strong>rivações do humor – é como Machado <strong>de</strong> Assis<br />

humorista, sem infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> ao gênero. <strong>Prosa</strong> ou verso que escreva, sabia<br />

90


Constâncio Alves<br />

lição <strong>de</strong> biblioteconomia ou bibliofilia que lhe dê, ou <strong>de</strong>liciosa, e cordial<br />

palestra que conceda aos seus interesses admiradores, tudo é humorismo e<br />

<strong>de</strong> primeira”.<br />

O prestígio intelectual na época po<strong>de</strong> ser avaliado por dois encargos que<br />

recebeu: o primeiro, o <strong>de</strong> saudar Rui Barbosa em nome da Bahia no jubileu<br />

literário <strong>de</strong> Rui Barbosa comemorado em 1919 na Biblioteca Nacional, e o<br />

segundo, falar em nome da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> em 1922 no sepultamento.<br />

Por ocasião da fundação da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, não aceitaram o convite <strong>de</strong> Lúcio <strong>de</strong><br />

Mendonça para pertencer à Casa Ferreira <strong>de</strong> Araújo Constâncio Alves, Ramiz<br />

Galvão, mais tar<strong>de</strong> acadêmico, e Capistrano <strong>de</strong> Abreu, este alegando que só<br />

pertencia a uma socieda<strong>de</strong>, a socieda<strong>de</strong> humana.<br />

Três anos após a fundação, Nabuco escrevia a Machado <strong>de</strong> Assis, quando<br />

da vaga <strong>de</strong> Taunay:<br />

“Agora queira dizer-me como se vai formando em seu espírito a sucessão<br />

do Taunay na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. O Loreto disse-me anteontem que na Revista, aon<strong>de</strong><br />

não vou há muito, falava-se em Arinos e Assis Brasil. Eu disse-lhe que minha<br />

i<strong>de</strong>ia era o Constâncio Alves. O Taunay era um dos nossos, e se o substituímos<br />

por algum ausente, como qualquer daqueles, teríamos dado um golpe<br />

no pequeno grupo que se reúne e faz <strong>de</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. O elogio do Taunay pelo<br />

Assis Brasil podia ser uma peça forçada; confesso-lhe que não vejo como o<br />

Constâncio; mas se V. não pensa que o Constâncio tem a melodia interior, a<br />

nota rara, que eu lhe <strong>de</strong>scubro, submeto-me ao mestre. Com o voto do Dória,<br />

que me prometeu, e o meu, o Constâncio já tem dois. Se. V. viesse, era o<br />

triângulo, e podíamos até falsificar a eleição. Sério!”.<br />

Nabuco em outra carta dirigiu-se a Constâncio ao ausentar-se do país:<br />

“Meu caro amigo. Deixei-me dizer-lhe a<strong>de</strong>us, acrescentando que <strong>de</strong><br />

nada levo tão agradável impressão da minha presente estada no Rio como<br />

da nossa convivência no Jornal do Brasil. Creia que <strong>de</strong> longe continuarei a<br />

91


Alberto Venancio Filho<br />

acompanhá-lo com a simpatia que me inspira um talento <strong>de</strong> que se po<strong>de</strong><br />

dizer que é a pérola <strong>de</strong> um caráter”.<br />

E ainda uma vez:<br />

“Haverá quem não sinta a música inata <strong>de</strong> Constâncio Alves? Este é<br />

bem da or<strong>de</strong>m dos pássaros, tem o canto, a prosa <strong>de</strong>le gorjeia, sobe, trina<br />

como a voz <strong>de</strong> um rouxinol; no entanto se quisesse reduzir a verso a ironia<br />

melodiosa que tem em si, que restaria <strong>de</strong>la?”.<br />

Humberto <strong>de</strong> Campos comenta a eleição <strong>de</strong> Constâncio para a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>:<br />

“Permanecia o morto-vivo nesse refúgio da morte (‘Dia a Dia’ do Jornal<br />

do Commercio), quando Afrânio Peixoto e Mário <strong>de</strong> Alencar, Lord Carnavour<br />

e William Carter foram <strong>de</strong>senterrar para o museu da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> esse<br />

opulento Tut-Ank-Amen da literatura brasileira.<br />

Aberto o sepulcro na presença da geração nova da imprensa, foi um espanto.<br />

– Como ele era rico!... Exclamaram uns.<br />

E outros:<br />

– E ninguém sabia!<br />

Foi, realmente, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> que revelou Constâncio Alves às letras dos<br />

nossos dias. Infurnado na sua seção da Biblioteca Nacional, e por outro<br />

lado no rodapé do Jornal do Commercio, folha compulsada por uma classe que<br />

não lhe po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a sutileza <strong>de</strong> seu espírito, seu aparecimento foi<br />

quase uma ressurreição”.<br />

Homem <strong>de</strong> excepcional cultura, revelada a todo momento, somente em<br />

1922, às insistências <strong>de</strong> Afrânio Peixoto e Mário <strong>de</strong> Alencar, aceitou ingressar<br />

nesta Casa, na qual foi acadêmico presente, publicando então um livro, reunindo<br />

trabalhos avulsos com o título <strong>de</strong> Figuras.<br />

92


Constâncio Alves<br />

Constâncio Alves seria eleito para a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> em 6 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1922 na<br />

vaga <strong>de</strong> Paulo Barreto. Numa primeira eleição, em 5 <strong>de</strong> janeiro, obtivera nos<br />

quatro escrutínios três, doze, treze e quatorze votos, tendo como concorrentes<br />

Eduardo Ramos, Viriato Corrêa e Gustavo Barroso. Na segunda eleição<br />

foi eleito com vinte votos contra Viriato Corrêa, três votos, e Eduardo Ramos,<br />

dois votos.<br />

Quando da publicação do volume Efeméri<strong>de</strong>s acadêmicas, Constâncio <strong>de</strong>stacou<br />

a importância para a história da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>:<br />

“As efeméri<strong>de</strong>s da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> – organizadas com escrupulosa<br />

probida<strong>de</strong> intelectual e paciência incansável pelo Sr. José Vicente<br />

<strong>de</strong> Azevedo Sobrinho – não constituíram simplesmente uma lista <strong>de</strong> datas<br />

memoráveis daquela instituição.<br />

Os acontecimentos que recordam, não rara ultrapassam o alcance restrito<br />

<strong>de</strong> glórias <strong>de</strong> família. São, muitas vezes, interesse nacional, pertencem à<br />

nossa literatura e à nossa história.<br />

Trazendo-as para as colunas dos jornais por on<strong>de</strong> escorrem para logo<br />

resumir, a vulgarida<strong>de</strong> das coisas do dia, aquele escritor nos dá oportunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> reparar esquecimentos injustos, e aponta à nossa contemplação altas<br />

e nobres figuras”.<br />

Relata-se a aventura <strong>de</strong> um candidato à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, que <strong>de</strong>ixou para a véspera<br />

da eleição as últimas visitas, as que se lhe afiguravam menos importantes.<br />

Tomou um táxi <strong>de</strong>pois do jantar, na certeza <strong>de</strong> que faria a visita, uma e outra,<br />

cinco minutos aqui, <strong>de</strong>z minutos ali e assim por diante. Pareceu-lhe <strong>de</strong> bom<br />

alvitre começar por Constâncio, que não conhecia nem mesmo por ouvir<br />

dizer. Encontrou Constâncio, na tranquilida<strong>de</strong> do gabinete pobre, entre os<br />

velhos livros amados. Pouco a pouco o candidato se entusiasmou com a conversa.<br />

O candidato esqueceu-se <strong>de</strong> tudo, esqueceu-se da própria <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>,<br />

e saiu <strong>de</strong> lá alta noite. Estavam perdidas as outras visitas. Perdida, talvez, a<br />

eleição. Para cúmulo, havia o táxi, com o chofer adormecido: marcava mais <strong>de</strong><br />

cem mil réis.<br />

93


Alberto Venancio Filho<br />

É estranho que um homem com essas características pessoais tenha sido<br />

um bravo polemista, mas tal ocorreu em disputa com Carlos <strong>de</strong> Laet.<br />

Carlos <strong>de</strong> Laet era afeito a polêmicas e se prestava em atingir aqueles que<br />

julgava trânsfugas. Ao receber em 1911 Dantas Barreto, sucessor <strong>de</strong> Joaquim<br />

Nabuco, se aproveitou para atingir o autor <strong>de</strong> Minha formação.<br />

No dia seguinte Constâncio Alves <strong>de</strong>clararia que: “fora, pois, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

quem fuzilara Nabuco com um tiro disparado por Laet”. No dia 14 <strong>de</strong> janeiro<br />

nesse mesmo jornal, José Veríssimo, em nota, <strong>de</strong>clarava não consi<strong>de</strong>rar a<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> absolutamente responsável nem solidária por tais opiniões, já que a<br />

censura se exerce em limites muito restritos.<br />

Carlos <strong>de</strong> Laet já mencionara Constâncio certa vez com ironia: “macio<br />

dizedor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>s ásperas”.<br />

Em polêmica em 1901 com o Dr. Felício dos Santos, Carlos <strong>de</strong> Laet fez<br />

referência <strong>de</strong>sprimorosa a Constâncio Alves. Na sua mansidão, Constâncio<br />

Alves se transformou em leão e reagiu com violência à polêmica, que tomou<br />

caráter pessoal. Constâncio Alves levou a melhor, Carlos <strong>de</strong> Laet não respon<strong>de</strong>ndo<br />

ao último artigo <strong>de</strong>le.<br />

Convém citar algumas das expressões <strong>de</strong> Constâncio na polêmica: “palavras<br />

mansas a um bichano bravio”, “arrolhado por distração”, “meu velhusco<br />

e patusco Laet”, “tigre acocorado”, “grulhão murcho”. Comentando o<br />

refúgio em Minas <strong>de</strong> Laet, quando da revolta da Armada, falaria: “ele foi o<br />

Nelson <strong>de</strong> Mar <strong>de</strong> Espanha”. Conclui Eugênio Gomes a respeito: “A carta<br />

<strong>de</strong> valente que lhe <strong>de</strong>u a polêmica com o bravo Carlos <strong>de</strong> Laet há <strong>de</strong> ter sido<br />

mesmo algo incômodo para Constâncio, que afinal não era homem <strong>de</strong> briga<br />

por temperamento”.<br />

As crônicas do Jornal do Commercio são mo<strong>de</strong>los no gênero, escritas com<br />

finura e sensibilida<strong>de</strong> e erudição sem afetar a linguagem, comentando os<br />

fatos do dia com espírito e muitas vezes com uma dose <strong>de</strong> ironia. A <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> na seção “Guardados <strong>de</strong> Memória” vem publicando<br />

algumas <strong>de</strong>ssas crônicas como “Os livros vão e não voltam o que está <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>les”.<br />

Humberto <strong>de</strong> Campos ressaltou a importância das crônicas:<br />

94


Constâncio Alves<br />

“Coube-lhe, então, estabelecer no jornalismo carioca um gênero que, ou<br />

não existia, ou havia sido olvidado: a análise literária dos acontecimentos<br />

do dia. Eram pequenos trechos <strong>de</strong> atualida<strong>de</strong>, pequenos comentários oportunos,<br />

mas a que Constâncio imprimiu o cunho <strong>de</strong> sua cultura dando-lhe<br />

vida mais longa nas letras. O seu cabedal <strong>de</strong> leitura era enorme, <strong>de</strong> modo<br />

que ele podia tirar diariamente do mealheiro, a moeda precisa, sem que isso<br />

fizesse falta ao milionário”.<br />

Algumas <strong>de</strong>ssas crônicas foram incluídas no livro Figuras, com temas variados<br />

<strong>de</strong> erudição e sensibilida<strong>de</strong> sobre Leconte <strong>de</strong> Lisle, Tenyson, Ruskin,<br />

Bartolomeu Mitre e Zacarias <strong>de</strong> Goes, Machado <strong>de</strong> Assis, André Rebouças,<br />

Raymundo Corrêa. De Joaquim Nabuco traça um belo perfil e conclui:<br />

“Se toda a sua obra não contém a sua alma; se toda a sua vida não se<br />

acha registrada e explicada completamente o que resta, <strong>de</strong> uma e <strong>de</strong> outra,<br />

pela sua elevação e pela sua formosura, garante lhe o direito <strong>de</strong> perdurar, e<br />

consola um pouco aos que o amaram, com a esperança <strong>de</strong> que se realize a<br />

sua ambição <strong>de</strong> guia <strong>de</strong> mocida<strong>de</strong>”.<br />

Além <strong>de</strong> Figuras publicou com Afrânio Peixoto uma antologia <strong>de</strong> Vieria Brasileiro,<br />

<strong>de</strong> Castro Alves e dos dois José Bonifácio. A introdução é <strong>de</strong> Afrânio,<br />

po<strong>de</strong>ndo se supor que Afrânio insistiu pela colaboração <strong>de</strong> Constâncio, como<br />

implícito na introdução. No prefácio, Afrânio registra a colaboração <strong>de</strong> Constâncio<br />

Alves: “sábio humanista, primoroso escritor, crítico e artista, meu mestre<br />

e meu amigo, que assim acostumarei talvez, tudo é possível, a ver o próprio<br />

nome no dorso <strong>de</strong> um livro: não será o menos formoso da antologia”. Em 1943<br />

a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> reuniu textos escritos sobre Santo Antônio, que não era o <strong>de</strong> Pádua,<br />

nem o <strong>de</strong> Lisboa, nem o militar no Brasil que o nosso confra<strong>de</strong> Macedo Soares<br />

tratou em excelente livro, mas o Santo Antônio da Al<strong>de</strong>ia do Carmo, pequena<br />

localida<strong>de</strong> na Bahia.<br />

Em Figuras há um estudo sobre Paul Stapfer, escritor e crítico literário que<br />

ganhou notorieda<strong>de</strong> na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Alfred Dreyfus e que procurava em seus<br />

95


Alberto Venancio Filho<br />

escritos assegurar a imortalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua obra, mas ficou inteiramente esquecido.<br />

A lembrança <strong>de</strong> Constâncio <strong>de</strong>ste autor parece ter sido a premonição <strong>de</strong><br />

seu próprio <strong>de</strong>stino.<br />

No centenário do Jornal do Commercio em 1927, falou das relações entre o<br />

jornal e a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, se referindo aos patronos da Casa:<br />

“Notei que muitos dos colaboradores do jornal passaram-se do Jornal do<br />

Commercio para a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong>, até alguns que saíram da vida antes<br />

da existência <strong>de</strong>ssa instituição.<br />

Para o jornal, isso não faz dúvida, entraram por seu gosto. Mas estarão<br />

contentes com a sua situação <strong>de</strong> padroeiros inamovíveis <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras acadêmicas?<br />

A dúvida é possível, porque houve e há quem não queira pertencer à<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, nem vivo, nem morto, e isso é, a meu ver, razão mais forte para<br />

não se admitir alguém, senão <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter <strong>de</strong>clarado expressamente que<br />

tem muita honra em pertencer àquele grêmio.<br />

Não ocorreu, porém, à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> a lembrança <strong>de</strong> consultar os <strong>de</strong>funtos,<br />

que incluía na lista dos patronos; e graças a Deus, até agora, nenhum reclamou.<br />

Calaram-se, logo consentiram”.<br />

A última crônica publicada três dias antes da morte no Jornal do Commercio<br />

com título sugestivo <strong>de</strong> “Pontapés futuros”, crônica que é um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ironia.<br />

Descreve a reação <strong>de</strong> uma personalida<strong>de</strong> diante dos ataques <strong>de</strong> um livro<br />

<strong>de</strong> memórias. Dizia o ofendido: “se me encontrar com ele no outro mundo,<br />

mesmo em presença do Padre Eterno, hei <strong>de</strong> pregar-lhe dois pontapés no<br />

lugar a<strong>de</strong>quado”.<br />

Constâncio comenta:<br />

“Mas . . . será possível uma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ssas no céu? Permitirá Deus<br />

tamanho <strong>de</strong>srespeito à sua casa e às suas barbas?<br />

Ele que tudo sabe, e portanto prevê tudo, <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> tomar as providências<br />

precisas para evitar semelhante escândalo?<br />

96


Constâncio Alves<br />

Parece que não.<br />

Desconfio, pois, que não se passará no céu o prometido ajuste <strong>de</strong> contas.<br />

E quero crer que ficarão em promessa os pontapés num espírito <strong>de</strong>sencarnado<br />

que talvez não tenha mais on<strong>de</strong> o receba.<br />

O outro mundo é gran<strong>de</strong>, e po<strong>de</strong> ser que lá não se encontrem nunca os<br />

autores <strong>de</strong> ‘Memórias’ <strong>de</strong>sagradáveis e os que preten<strong>de</strong>rem puni-los”.<br />

Poeta bissexto, tem poesias <strong>de</strong> raro valor como o soneto “Mater”, <strong>de</strong>dicado<br />

a Jackson <strong>de</strong> Figueiredo.<br />

Afrânio Peixoto, o gran<strong>de</strong> Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sta Casa, um dos responsáveis pelo<br />

prédio on<strong>de</strong> trabalhamos, tinha o dom <strong>de</strong> fazer amigos, <strong>de</strong>ntro da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>,<br />

como Mário <strong>de</strong> Alencar, Aloísio <strong>de</strong> Castro, Alcântara Machado, Luís Viana<br />

Filho, e fora da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, como Wan<strong>de</strong>rley do Pinho, Demóstenes Madureira<br />

do Pinho, Anísio Teixeira, Francisco Venancio Filho, e <strong>de</strong>screveu a figura do<br />

amigo: “Um dos encantos <strong>de</strong> minha vida foi ser amigo <strong>de</strong> Constâncio Alves<br />

durante trinta anos, sem um dia, uma hora <strong>de</strong> inconstância, <strong>de</strong> reticência. Um<br />

amigo assim é uma obra-prima literária”.<br />

E coube a Manuel Ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>finir o intelectual:<br />

“Bissexto em tudo e não somente na poesia, médico, jamais escreveu<br />

uma receita, jornalista a vida inteira, po<strong>de</strong>ria encher algumas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong><br />

volumes com suas crônicas sempre <strong>de</strong> boa forma literária, repletas <strong>de</strong> sabedoria<br />

e <strong>de</strong> malícia, mas totalmente <strong>de</strong>spreocupado <strong>de</strong> glória, como todo<br />

autêntico bissexto, só <strong>de</strong>ixou o volumezinho Figuras”.<br />

Ribeiro Couto, na sucessão da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, diria que<br />

“seus melhores trabalhos foram os que escreveu fora da imprensa e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

entrar para a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, ce<strong>de</strong>ndo à pressão dos que o admiravam e lhe pediam<br />

largos estudos e largas conferências. Em qualquer <strong>de</strong>les o estilo é <strong>de</strong> uma graça<br />

envolvente, a análise é penetrante, a apropriação do assunto é completa”.<br />

97


Alberto Venancio Filho<br />

E assinalava:<br />

“Se foi pouca, pouquíssima a literatura <strong>de</strong> imaginação que nos legou,<br />

nem por isso <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> apreciar a riqueza <strong>de</strong> sua melodia interior nos estudos<br />

sobre a Sensibilida<strong>de</strong> Romântica, Júlio Verne, Renan, Anatole France,<br />

Gregório <strong>de</strong> Matos, Laurindo Rabelo. O artista aí está, nessas lições mo<strong>de</strong>lares<br />

<strong>de</strong> um letrado perfeito, que mereceria <strong>de</strong> Afrânio Peixoto este juízo<br />

elegante: o mais letrado dos acadêmicos”.<br />

E acrescentava:<br />

“Esse doutor melancólico tinha nos <strong>de</strong>dos um po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>miúrgico. Tema<br />

erudito em que tocasse animava-se <strong>de</strong> uma vida estranha, trate-se <strong>de</strong> Gregório<br />

<strong>de</strong> Matos, da sensibilida<strong>de</strong> romântica ou <strong>de</strong> Júlio Verne, <strong>de</strong> uma doutrina<br />

literária ou <strong>de</strong> uma questão biográfica. Po<strong>de</strong>mos, então, representar o<br />

seu mundo interior como o velho parque da casa aparentemente morta”.<br />

No dia 9 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1933 encontrava-se Constâncio à meia-noite no<br />

gabinete <strong>de</strong> trabalho da residência mo<strong>de</strong>sta nas Laranjeiras, na leitura habitual,<br />

quando os familiares ouviram o baque e verificaram que morrera fulminado.<br />

O seu sepultamento foi mo<strong>de</strong>sto, assim como fora sua vida, apenas presentes<br />

três amigos. O silêncio perdurou no esquecimento <strong>de</strong> sua obra. Cabe à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

retirar da penumbra os membros que se <strong>de</strong>stacaram em sua época e que<br />

honraram a nossa Instituição.<br />

98


Crônica <strong>de</strong> um encontro<br />

entre Rubén Darío e<br />

Machado <strong>de</strong> Assis *<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, agosto<br />

ou setembro <strong>de</strong> 1906<br />

I<br />

Antonio Maura<br />

Em algum lugar do Rio <strong>de</strong> Janeiro, em agosto – ou setembro –,<br />

<strong>de</strong> 1906, reuniram-se o veterano escritor Joaquim Maria Machado<br />

<strong>de</strong> Assis e o maduro poeta Rubén Darío. É uma pena que apenas<br />

nos ficaram poucas referências <strong>de</strong>sse encontro e que não se saiba<br />

on<strong>de</strong> nem como aconteceu, embora se tenha o testemunho do poeta<br />

nicaraguense, que o fez, em um soneto <strong>de</strong> dois quartetos.<br />

Em 1906, Machado não era um homem feliz – Carolina, sua<br />

mulher, morrera havia dois anos –: estava doente e se sentia só.<br />

Acabava <strong>de</strong> publicar Relíquias da casa velha e trabalhava para dar forma<br />

a seu próprio retrato <strong>de</strong> sábio, não isento <strong>de</strong> tristeza, que também<br />

se encontraria em alguns personagens <strong>de</strong> seu romance Memorial<br />

<strong>de</strong> Aires. E, pelo contrário, Félix Rubén García Sarmiento, Rubén<br />

* Tradução <strong>de</strong> Maria Helena Leitão<br />

<strong>Prosa</strong><br />

99<br />

Escritor, jornalista,<br />

crítico e professor<br />

universitário<br />

espanhol, publicou<br />

mais <strong>de</strong> cem artigos<br />

e trabalhos sobre a<br />

literatura e a arte<br />

brasileiras. Entre os<br />

galardões recebidos<br />

se encontram o<br />

Prêmio Machado <strong>de</strong><br />

Assis, em 1993, da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>; o Prêmio<br />

Os Melhores <strong>de</strong><br />

1996, pela melhor<br />

divulgação da cultura<br />

brasileira no exterior,<br />

da Associação <strong>de</strong><br />

Críticos <strong>de</strong> Arte <strong>de</strong><br />

São Paulo; e o Grau<br />

<strong>de</strong> Oficial da Or<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong> Rio Branco, em<br />

1997.


Antonio Maura<br />

Darío, ou simplesmente Rubén, estava exultante: havia chegado à cida<strong>de</strong> do<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro como secretário da <strong>de</strong>legação <strong>de</strong> seu país à II Conferência Pan-<br />

-Americana e ainda era recente a edição <strong>de</strong> seu Cantos <strong>de</strong> vida y esperanza (1905),<br />

uma das obras mais otimistas e célebres <strong>de</strong> sua trajetória poética. Ao Rubén<br />

mestiço, americano e espanhol, índio e europeu, o encontro com aquele socrático<br />

escritor não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> impressionar. Não é em vão que o <strong>de</strong>fine<br />

como mulato aristocrático, proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um país – Índia – comentado<br />

em seus poemas como terra <strong>de</strong> elefantes, palácios e princesas. Mas, além <strong>de</strong><br />

“mulato da Índia”, o escritor carioca é também mandarim e sábio grego. Ao<br />

exótico acrescenta, assim, o mais puro das tradições oci<strong>de</strong>ntal e oriental.<br />

On<strong>de</strong> e sobre o quê conversaram? Nada se sabe. Machado não registra o<br />

encontro. Apesar disso, no poema vislumbra-se uma tar<strong>de</strong> ar<strong>de</strong>nte e se esboça<br />

uma profunda reflexão sobre a gran<strong>de</strong>za humil<strong>de</strong> e a inveja mesquinha e miserável,<br />

vaidosa e fátua. Algo <strong>de</strong>ve ter remexido o coração do poeta para que <strong>de</strong>dicasse<br />

a Machado estas palavras que, possivelmente, faria chegar às suas mãos<br />

e que, mais tar<strong>de</strong>, seriam incluídas em seu livro Del chorro <strong>de</strong> la fuente (1916).<br />

Conhecia Rubén a obra <strong>de</strong> Machado? É possível, já que o jornal La Nación,<br />

<strong>de</strong> Buenos Aires, em que o poeta nicaraguense colaborava habitualmente, publicou<br />

em 1905 uma tradução anônima <strong>de</strong> Esaú e Jacó. Teremos que esperar que<br />

os arquivos <strong>de</strong> Rubén Darío possam dar alguma luz sobre o breve e intenso<br />

encontro do qual tomei a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escrever uma crônica imaginária.<br />

<br />

Crônica imaginária<br />

100<br />

II<br />

Queima o alento da tar<strong>de</strong>. Duas silhuetas caminham lentamente buscando<br />

o frescor da sombra das palmeiras: um ancião <strong>de</strong> uns 70 anos e um jovem que<br />

ainda não terá 40. Até ao Jardim Botânico, on<strong>de</strong> passeiam, chega o vago rumor<br />

da cida<strong>de</strong> e, vindo <strong>de</strong> mais longe, nesse emaranhado <strong>de</strong> sons, o retumbar<br />

surdo do mar. A tar<strong>de</strong> se <strong>de</strong>svanece em vários aromas. O ancião olha o chão


Crônica <strong>de</strong> um encontro entre Rubén Darío e Machado <strong>de</strong> Assis<br />

para não tropeçar; o jovem, para o céu on<strong>de</strong> vagam figuras feitas <strong>de</strong> nuvens.<br />

Enquanto um sente a atração da terra como as plantas que buscam um novo<br />

renascer ao murcharem, o outro sonha com as águias, sentindo-se, ele próprio,<br />

pássaro <strong>de</strong> altos voos. O diálogo pareceria impossível se não fora pela enorme<br />

admiração mútua. O jovem reconhece a aristocracia do pensamento e a nobreza<br />

da arte do venerável ancião e, este, a força vigorosa <strong>de</strong> uma juventu<strong>de</strong><br />

exuberante, o otimismo da nova raça americana à qual os dois pertencem. No<br />

ancião há sangue negro, no jovem, sangue índio, mas, em ambos, a herança<br />

oci<strong>de</strong>ntal brilha no esplendor <strong>de</strong> suas mentes e <strong>de</strong> suas diferentes escrituras:<br />

mansa uma; outra, torrencial. São tão diferentes! O homem que se aproxima<br />

dos 70 usa lentes para seus cansados olhos, barba e cabelos brancos, muito<br />

cuidados. O outro, que pouco lhe falta para seus 40 anos, tem a fronte <strong>de</strong>spejada<br />

e a mirada intensa. O primeiro viveu toda sua vida na cida<strong>de</strong>, conhece<br />

todos e cada um <strong>de</strong> seus rincões e todas aquelas minúsculas histórias <strong>de</strong> seus<br />

habitantes; o segundo chegou há pouco, menos <strong>de</strong> duas semanas, acompanhando<br />

o ministro <strong>de</strong> seu país à Conferência Pan-Americana. E ainda ressoam<br />

em seus ouvidos os rotundos versos que leu, recentemente, na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> que<br />

presi<strong>de</strong> o velho <strong>de</strong> olhos tristes que caminha ao seu lado.<br />

La armonía el cielo inunda,<br />

y la brisa va a llevar<br />

la canción triste y profunda<br />

<strong>de</strong>l mar.<br />

[A harmonia o céu inunda,<br />

e a brisa vai levar<br />

a canção triste e profunda<br />

do mar].<br />

Recorda o silêncio atento e fervoroso que provocaram seus poemas, os<br />

movimentos <strong>de</strong> cabeça dos acadêmicos e <strong>de</strong> suas esplêndidas mulheres vestidas<br />

<strong>de</strong> sedas. A admiração arrebatada em suas miradas quando lhes falava da<br />

101


Antonio Maura<br />

juventu<strong>de</strong> perdida, <strong>de</strong> seus amores apaixonados e ternos, sonhadores e passionais.<br />

E, <strong>de</strong> repente, na sala emu<strong>de</strong>cida e expectante, entoava o canto épico do<br />

poeta e exaltava sua missão:<br />

¡Torres <strong>de</strong> Dios! ¡Poetas!<br />

¡Pararrayos celestes<br />

que resistís las duras tempesta<strong>de</strong>s,<br />

como crestas escuetas,<br />

como picos agrestes,<br />

rompeolas <strong>de</strong> las eternida<strong>de</strong>s!<br />

[Torres <strong>de</strong> Deus! Poetas!<br />

Para-raios celestes<br />

que resistis às duras tempesta<strong>de</strong>s<br />

como cristas secas<br />

como picos agrestes,<br />

quebra-mares das eternida<strong>de</strong>s!]<br />

A sala, toda ela, ficou <strong>de</strong> pé e começou a aplaudir o homem que anunciava<br />

“a mágica esperança” e negava a “canibal cobiça”. Havia muito tempo que<br />

ninguém recitava assim naquela sala, palavras tão rotundas, com voz muito<br />

clara e sonora. O jovem poeta explicou ao seu auditório que havia publicado<br />

aqueles poemas na Espanha, em um livro com título significativo: Cantos <strong>de</strong><br />

vida y esperanza. E não era outra sua missão naquela cida<strong>de</strong> e naquele país que<br />

irradiar a energia <strong>de</strong> seu otimismo: a América ressurgiria <strong>de</strong> suas cinzas, como<br />

uma ave fênix, e recuperaria sua voz mulata, mestiça e cafuza para “cantar<br />

novos hinos” nas “línguas da glória.” O velho que agora caminhava junto a ele<br />

escutava-o entre admirado e surpreendido. Não era que não gostasse <strong>de</strong> seu<br />

otimismo, mas <strong>de</strong>sconfiava daquela alegria: pássaro que voa <strong>de</strong>masiado veloz,<br />

que sulca as vidas e se per<strong>de</strong> a uma distância inalcançável. Que fazer então<br />

com as plumas que ficaram enganchadas na lama? Como silenciar a lembrança<br />

daqueles dias e daquelas horas? O velho procura um lenço no bolso <strong>de</strong> sua<br />

102


Crônica <strong>de</strong> um encontro entre Rubén Darío e Machado <strong>de</strong> Assis<br />

jaqueta e o leva aos olhos, on<strong>de</strong> brota uma inesperada lágrima. Escutava o poeta<br />

e recordava, escutava e <strong>de</strong>sconfiava. Logo, na <strong>de</strong>spedida, <strong>de</strong>pois do jantar <strong>de</strong><br />

homenagem, convidou-o a visitá-lo qualquer tar<strong>de</strong>. Não vivia muito longe, era<br />

uma casa simples, com jardim. O jovem aceitou o convite e prometeu aparecer<br />

por lá. E passaram-se os dias, dois, cinco. No sexto dia, quando se acabava <strong>de</strong><br />

ouvir as quatro da tar<strong>de</strong>, apresentou-se na casa o homérico índio vestido com<br />

um terno <strong>de</strong> linho branco e um lenço vermelho na lapela. O velho recebeu-o<br />

atento e hospitaleiro. Fez que passasse a seu escritório e mostrou-lhe sua<br />

biblioteca. Quase não falou, somente escutou e houve ocasião <strong>de</strong> manifestar<br />

alguma dúvida, alguma vaga incerteza. Faltarão, talvez, anos para que <strong>de</strong>sperte<br />

essa América heroica <strong>de</strong> remota estirpe. As gentes são simples e mesquinhas e<br />

a morte tem sempre uma sombra <strong>de</strong>masiado espessa. E estes objetos? Perguntou,<br />

surpreendido, o poeta. “São <strong>de</strong> Carolina…, minha mulher”, respon<strong>de</strong>u<br />

o ancião. “Morreu há apenas dois anos.” O poeta sentiu um rangido no ar,<br />

como se o espaço invisível, inconsútil se tivesse rasgado. Notou então a opressão<br />

do calor sufocante. E começou a suar copiosamente. O velho ancião adivinhou<br />

tudo o que lhe passava pela cabeça e o lamentou. O silêncio, às vezes,<br />

nega as palavras. A verda<strong>de</strong> simplesmente exposta é mais contun<strong>de</strong>nte que um<br />

punho <strong>de</strong> bronze. No rosto enérgico do olímpico poeta se observava a névoa:<br />

<strong>de</strong>scia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as alturas dos picos on<strong>de</strong> dizem que se aninha a águia. O velho<br />

escutou um suspiro que soava como o bafo vespertino <strong>de</strong> um boi. Fazia calor.<br />

Convidou-o a refrescar-se no Jardim Botânico. Um esplêndido parque que os<br />

monarcas portugueses fundaram na cida<strong>de</strong>. O poeta índio aceitou. E juntos<br />

saíram, pegaram um carro e chegaram a este caminho <strong>de</strong> palmeiras e troncos<br />

retorcidos. Agora, passeiam um ao lado do outro. Não falaram durante todo<br />

o trajeto e continuam calados. O velho sente como reverberam em seu sangue<br />

o orgulho e a vitalida<strong>de</strong> do poeta. Pensa em continuar, que é sua obrigação<br />

transmutar-se naquele velho diplomata que imaginara para seu último romance.<br />

Ele nunca viajou, mas conhece todas as paisagens e as cida<strong>de</strong>s através dos<br />

livros. Seu personagem po<strong>de</strong>rá falar <strong>de</strong> tudo e saberá, a<strong>de</strong>mais, realizar seu<br />

i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> arte: articular os sentimentos humanos como um músico faz com<br />

as notas. Saberá encontrar as distintas melodias vitais e fará que todas elas<br />

103


Antonio Maura<br />

sejam ouvidas harmoniosamente. Como um regente <strong>de</strong> orquestra. Como um<br />

<strong>de</strong>us em uma terra alheia aos <strong>de</strong>uses. Sim, <strong>de</strong>ve continuar, ainda que se ressintam<br />

suas costas curvadas sobre a mesa, ainda que lhe doam seus olhos e o<br />

assustem as doenças e a morte. Dará vida a esse personagem no qual plasmará<br />

seu sonho <strong>de</strong> beleza. O jovem poeta olha o céu e sente o peso das nuvens, a<br />

nobreza do sol agonizante. Quisera parecer-se ao ancião que caminha ao seu<br />

lado, agradável, <strong>de</strong>stilando simplicida<strong>de</strong> e sabedoria. Com quase 40 anos já<br />

sabe que a juventu<strong>de</strong> é uma ave migratória e que, em seu caso, falta pouco para<br />

que empreenda o voo e abandone seu corpo às sombrias clarida<strong>de</strong>s do outono.<br />

Ah, se ele pu<strong>de</strong>sse ser como o velho acadêmico que caminha junto a ele<br />

com titubeante passo, se pu<strong>de</strong>sse vestir-se com a verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu silêncio eloquente!<br />

Continuam calados. Não tardam em chegar à entrada do parque. O<br />

ancião pe<strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas, <strong>de</strong>ve regressar a sua casa: o trabalho o espera. O jovem<br />

também tem obrigações <strong>de</strong> protocolo para esta noite: não por acaso chegou à<br />

cida<strong>de</strong> em uma viagem oficial. Despe<strong>de</strong>m-se com afeto. Em seus olhos brilha<br />

a admiração que se professam. Os dois reconhecem-se aristocratas do sentimento<br />

e da palavra. Separam-se com dificulda<strong>de</strong>, mas aparentam o contrário.<br />

Um dia <strong>de</strong>pois, o ancião recebe um envelope em sua casa. Dentro há um<br />

poema manuscrito. Reconhece a letra afetada e redonda, <strong>de</strong> altos voos, do<br />

poeta que recitou na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> e o acompanhou em seu passeio da tar<strong>de</strong> anterior.<br />

Trêmulo, lê:<br />

Dulce anciano que vi, en su Brasil <strong>de</strong> fuego<br />

y <strong>de</strong> vida y <strong>de</strong> amor, todo mo<strong>de</strong>stia y gracia.<br />

Moreno que <strong>de</strong> la India tuvo su aristocracia;<br />

aspecto mandarino, lengua <strong>de</strong> sabio griego.<br />

Acepta este recuerdo <strong>de</strong> quien oyó una tar<strong>de</strong><br />

en tu divino Río tu palabra salubre,<br />

dando al orgullo todos los harapos en que ar<strong>de</strong>,<br />

y a la envidia ruin lo que apenas la cubre.<br />

104


Crônica <strong>de</strong> um encontro entre Rubén Darío e Machado <strong>de</strong> Assis<br />

[Doce ancião que vi no seu Brasil <strong>de</strong> fogo<br />

e <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> amor, todo modéstia e graça.<br />

Mulato que da Índia traz sua aristocracia;<br />

aspecto <strong>de</strong> mandarim, língua <strong>de</strong> sábio grego.]<br />

[Aceita esta lembrança <strong>de</strong> quem ouviu numa tar<strong>de</strong><br />

em teu divino Rio, tua palavra saudável<br />

dando ao orgulho todos os farrapos em que ar<strong>de</strong>,<br />

e à inveja ruim, o pouco que lhe cobre.]<br />

O ancião sorri, com um movimento <strong>de</strong> cabeça concorda, ruborizado. Depois,<br />

guarda o poema no envelope e continua trabalhando. Não conhecemos<br />

sua resposta nem sequer se chegou a entregá-la, por escrito. Nada mais cabe<br />

supor. É possível, certamente, fazer suposições <strong>de</strong> quase todas as coisas da<br />

vida, já que as certezas, se existir alguma, são mais escassas. O certo é que<br />

os acontecimentos <strong>de</strong>sta história são imaginários, mas os personagens como<br />

também os poemas não o são.<br />

105


Maria Clara Machado


Dez anos sem Maria<br />

Clara Machado<br />

<strong>Prosa</strong><br />

Laura Sandroni<br />

Há vinte anos, no dia 19 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1991, aniversário da<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, o Prêmio Machado <strong>de</strong> Assis,<br />

principal láurea da Instituição, foi concedido a Maria Clara<br />

Machado, dramaturga, atriz e diretora, por sua obra inteiramente<br />

<strong>de</strong>dicada à infância.<br />

Ao recebê-la disse Dom Marcos Barbosa em seu discurso <strong>de</strong> saudação:<br />

“Há mais <strong>de</strong> 10 anos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ingressei nesta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> –<br />

fundada, tenho orgulho em lembrá-lo, por meu tio-avô Lúcio<br />

<strong>de</strong> Mendonça – trazia uma i<strong>de</strong>ia fixa: promover a outorga do<br />

Prêmio Machado <strong>de</strong> Assis por conjunto <strong>de</strong> obra a Maria Clara<br />

Machado, que já então o merecia. Sempre lembrava o seu nome,<br />

que era muito bem recebido, mas outros acabavam passando<br />

à frente, inclusive por questão <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Maria Clara ainda<br />

era bastante jovem para esperar. Mineiramente fui esperando,<br />

até que se <strong>de</strong>u um paradoxo: preparara tão bem o terreno que<br />

107<br />

Bacharel em<br />

Adminstração<br />

Pública (FGV),<br />

mestre em<br />

Literatura<br />

<strong>Brasileira</strong> (UFRJ)<br />

e especialista em<br />

Literatura Infantil e<br />

Juvenil. É autora <strong>de</strong><br />

De Lobato a Bojunga:<br />

as reinações renovadas<br />

e Ao longo do caminho<br />

(seleção <strong>de</strong> resenhas<br />

publicadas em O<br />

Globo <strong>de</strong> 1975 a<br />

2002). Tem ensaios<br />

publicados nas<br />

principais revistas<br />

especializadas no<br />

Brasil e no exterior.<br />

É membro do<br />

Conselho Curador<br />

da Fundação<br />

Nacional do Livro<br />

Infantil e Juvenil,<br />

que dirigiu nos seus<br />

primeiros 16 anos.


Laura Sandroni<br />

Maria Clara foi eleita sem o meu voto, ausente da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> por doença.<br />

Mas o nosso caro Presi<strong>de</strong>nte, * que parece adivinhar os nossos <strong>de</strong>sejos,<br />

<strong>de</strong>signou-me para a saudação <strong>de</strong> hoje, que me permite assim um voto<br />

público, não só <strong>de</strong> admiração como <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>.”<br />

Maria Clara Machado celebraria em 2011 mais duas datas redondas: seus<br />

90 anos e os 60 <strong>de</strong> seu filho querido, o grupo <strong>de</strong> teatro amador O Tablado.<br />

Na sua falta, os que a conheceram e as crianças <strong>de</strong> todas as ida<strong>de</strong>s que tiveram<br />

o privilégio <strong>de</strong> assistir e se emocionar com uma ou várias das 29 peças que<br />

criou, montou e dirigiu receberam valioso presente: o livro Teatro infantil completo,<br />

lançado em fins do ano passado pela Nova Aguilar.<br />

A leitura <strong>de</strong>sses esplêndidos textos da dramaturgia brasileira reavivou-me<br />

a lembrança dos momentos inaugurais em que assisti a eles com prazer e<br />

emoção, na juventu<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois com os meus filhos e agora com a expectativa<br />

<strong>de</strong> voltar a vê-los com os netos. A presente edição se distingue pelo fato <strong>de</strong><br />

que, pela primeira vez, um autor <strong>de</strong> obra <strong>de</strong>stinada a crianças, embora muito<br />

apreciada por adultos, alcança este privilégio: a publicação das 29 peças e<br />

preciosas informações sobre datas das estreias, autoria <strong>de</strong> cenários e figurinos,<br />

direção, nomes <strong>de</strong> atores e músicos, quando era o caso, e as partituras das<br />

canções em único livro <strong>de</strong> esmerada produção gráfica.<br />

Organizado com atenção impecável e afetuosa por Luiz Raul Machado,<br />

o livro reúne em or<strong>de</strong>m cronológica 24 peças originalmente publicadas pela<br />

editora Agir em seis volumes entre 1970 e 1986, acrescenta A coruja Sofia,<br />

publicada separadamente, e mais quatro peças inéditas em livro. Na introdução<br />

Luiz Raul nos conta um pouco da vida <strong>de</strong> Maria Clara, nascida em Belo<br />

Horizonte no dia 3 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1921, filha do escritor Aníbal Machado, que<br />

em 1925 se muda para o Rio <strong>de</strong> Janeiro e logo passa a morar na casa da Rua<br />

Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pirajá, 487, em Ipanema. Mais tar<strong>de</strong> Maria Clara <strong>de</strong>finiu-se:<br />

“Sou mineira até não po<strong>de</strong>r mais, mas vivo aqui <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os quatro anos, gosto<br />

mesmo é do mar <strong>de</strong> Ipanema”.<br />

* À época o presi<strong>de</strong>nte da ABL era Austregésilo <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong><br />

108


Dez anos sem Maria Clara Machado<br />

Aos domingos o autor <strong>de</strong> João Ternura, intelectual respeitado e, para a filha,<br />

“o homem mais sábio que conheci”, recebia poetas, escritores, jornalistas, artistas<br />

para um encontro semanal <strong>de</strong> bate-papo inteligente, que marcou época<br />

na vida literária da cida<strong>de</strong>.<br />

Dom Marcos Barbosa <strong>de</strong>screve esses encontros dominicais:<br />

“Mas antes <strong>de</strong> terminar, quero ainda evocar, na Rua Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pirajá,<br />

já não lembro que número, um simpático chalezinho como tantos outros<br />

<strong>de</strong> então, e que agora, como o quarto <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira, só existe intacto,<br />

suspenso no ar, e não mais neste mundo <strong>de</strong> aparências. Atrás do chalé,<br />

ninguém imaginaria existir uma outra construção, <strong>de</strong> um só andar, uma<br />

sala apenas, com algumas poltronas e quatro pare<strong>de</strong>s cobertas <strong>de</strong> livros.<br />

Os frequentadores da casa sabem da sua existência e se encaminham logo<br />

para lá. Antes que os habitantes do chalé e o dono da biblioteca possam ir<br />

fazer-lhes sala, dizem a uma das meninas: ‘Você, que é a palhaça da casa, vai<br />

lá entreter as visitas’. E Maria Clara não se fazia <strong>de</strong> rogada.”<br />

E quem seriam as visitas? Murilo Men<strong>de</strong>s, sem dúvida; o grupo <strong>de</strong> Otto<br />

Lara Resen<strong>de</strong>, Hélio Pellegrino, Paulo Men<strong>de</strong>s Campos; mas também os do<br />

Norte (“são os do Norte que vêm”), como Jorge <strong>de</strong> Lima ou Rubem Braga;<br />

os do Sul como um Paulo Armando. Todos aqueles que chegam ao Rio e querem<br />

ingressar na vida literária, ali em plena ebulição. Um ambiente semelhante<br />

ao do Tablado, que talvez não tivesse existido sem esta plataforma <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

se lançou ao ar, como a menina ao vento. Assim hoje, com Maria Clara e o<br />

Tablado, po<strong>de</strong>mos dizer que entram para a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, meu velho e saudoso<br />

amigo Aníbal Machado, com seus livros e seus pupilos.<br />

As lembranças da infância, principalmente da fazenda <strong>de</strong> seu avô em Nova<br />

Granja (MG), on<strong>de</strong> passava tempos, é <strong>de</strong>scrita por ela <strong>de</strong> forma poética mostrando<br />

a importância da natureza em sua formação. Ela e as irmãs lá passaram<br />

momentos inesquecíveis.<br />

A morte da mãe é a outra lembrança marcante da infância, mas já no Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro:<br />

109


Laura Sandroni<br />

“Foi em 1930. Eu tinha nove anos. Era estranho ser tão abraçada e beijada<br />

sem saber por quê. Ou melhor, eu sabia, mas tinha que guardar para<br />

mim (...) Precisei <strong>de</strong> vinte anos <strong>de</strong> análise para me livrar do fantasma da<br />

perda. (...) Mais tar<strong>de</strong> consegui exorcizá-la através da arte”.<br />

Maria Clara cursou o colégio São Paulo e em 1938 entrou para o movimento<br />

Ban<strong>de</strong>irante, que teve gran<strong>de</strong> importância em sua formação. “Numa<br />

época especialmente repressiva para as mulheres, ser ban<strong>de</strong>irante favorecia o<br />

exercício da liberda<strong>de</strong>, do companheirismo e da aventura com responsabilida<strong>de</strong>”,<br />

nas palavras do organizador do livro. Diz a própria Clara: “A convivência<br />

com o ban<strong>de</strong>irantismo me <strong>de</strong>u um gran<strong>de</strong> espírito <strong>de</strong> grupo, <strong>de</strong> camaradagem,<br />

<strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> valorização da coragem e espírito <strong>de</strong> aventura.” Foi exatamente<br />

nessa época, entre os anos 40 e 50, que conheci Maria Clara, primeiro<br />

como a organizadora e “diretora” dos fogos <strong>de</strong> conselho, ativida<strong>de</strong> com que<br />

encerrávamos os dias nos acampamentos. Era o momento em que as vocações<br />

artísticas <strong>de</strong>spontavam. Representávamos, cantávamos ao som do violão, algumas<br />

recitavam ou contavam histórias, sob a batuta <strong>de</strong> Clara. Minha chefe<br />

Eddy Rezen<strong>de</strong>, sua gran<strong>de</strong> amiga, chamou-a uma vez para falar-nos numa<br />

reunião do curso <strong>de</strong> chefes. Sua vivacida<strong>de</strong> e inteligência encantaram a todas.<br />

Com a participação do Brasil na guerra, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ser enfermeira atuando<br />

como ban<strong>de</strong>irante no ambulatório do Patronato Operário da Gávea, mas logo<br />

percebe não ser essa a sua vocação. Vai então trabalhar com as crianças no<br />

mesmo Patronato e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> montar um teatro <strong>de</strong> bonecos. Instalou o ateliê<br />

on<strong>de</strong> preparava os cenários e as roupas na garagem <strong>de</strong> sua casa e as titereiras<br />

eram as amigas ban<strong>de</strong>irantes entusiasmadas com a nova ativida<strong>de</strong>. Começaram<br />

então a se apresentar em festas infantis. Lembro-me que minha mãe, também<br />

ban<strong>de</strong>irante, convidou o grupo para uma apresentação em nossa casa, no<br />

Cosme Velho, no aniversário <strong>de</strong> meu irmão Roberto Athay<strong>de</strong>, que mais tar<strong>de</strong><br />

tornou-se teatrólogo. A peça foi a primeira que Maria Clara escreveu: um auto<br />

<strong>de</strong> Natal, O boi e o burro a caminho <strong>de</strong> Belém. Estávamos em fins <strong>de</strong> novembro e o<br />

tema tão a<strong>de</strong>quado fez o maior sucesso entre crianças, jovens e adultos.<br />

110


Dez anos sem Maria Clara Machado<br />

Dom Marcos Barbosa chama a atenção para o fato <strong>de</strong> ser um auto <strong>de</strong> Natal<br />

a primeira peça <strong>de</strong> Maria Clara. Lembra a origem religiosa do teatro:<br />

“O sacerdote é sempre o primeiro ator, representando Deus para os homens<br />

e representando o povo no altar da divinda<strong>de</strong>. O teatro grego nasceu<br />

da celebração dos feitos do <strong>de</strong>us Baco, à medida que os narradores foram<br />

se juntando ao coro. (...) Foi no Natal que o teatro teve origem na Península<br />

Ibérica, representado, não na igreja, mas no palácio, a viagem dos Reis<br />

Magos ao presépio, como a sugerir Nossa Senhora e o Menino, na rainha<br />

que então <strong>de</strong>ra à luz o príncipe. (...) Lembro-me bastante <strong>de</strong> O boi e o burro<br />

a caminho <strong>de</strong> Belém, no qual a autora já introduzia, típica invenção <strong>de</strong> Maria<br />

Clara, as três Rainhas Magas, a caminharem com suas longas agulhas, tricotando<br />

agasalhos para o Menino Jesus.”<br />

Em 1941 Aníbal Machado escreveu para a filha, que se encontrava em um<br />

acampamento internacional <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>irantes nos Estados Unidos: “Se não<br />

me engano, a sua vocação mais acentuada é mesmo para o teatro (...) não é<br />

uma perspectiva que me pareça absurda para o seu futuro, apenas exige muito<br />

trabalho, tenacida<strong>de</strong> e entusiasmo.”<br />

A disciplina ban<strong>de</strong>irante e a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança que ali adquiriu, somadas<br />

ao entusiasmo que a animava, permitiram que Clara realizasse a gran<strong>de</strong><br />

obra que apenas começava a tomar forma.<br />

Em 1949/1950 estava em Paris para seguir o curso criado por Jean Louis<br />

Barrault e aproveitou para assistir diversos espetáculos e trocar experiências<br />

com seus colegas. No ano seguinte voltou a Paris para apren<strong>de</strong>r mímica com<br />

Etiénne Decroux, mestre <strong>de</strong> Marcel Marceau. Ao voltar em 1951 funda junto<br />

com seu pai, Martim Gonçalves, Carmen Sylvia Murgel, Eddy Rezen<strong>de</strong>,<br />

Jorge Leão Teixeira, João Sérgio Marinho Nunes e outros, o teatro amador O<br />

Tablado, no Patronato Operário da Gávea. Trabalha como diretora e atriz, <strong>de</strong><br />

início em peças <strong>de</strong> autores estrangeiros.<br />

O moço bom e obediente, <strong>de</strong> Barr e G. Stevens, Sganarello, <strong>de</strong> Molière, em 1952.<br />

No ano seguinte escreve e dirige, O boi e o burro a caminho <strong>de</strong> Belém, agora com<br />

111


Laura Sandroni<br />

atores. No mesmo ano cria O rapto dos cebolinhas e ganha o prêmio da Prefeitura<br />

do Distrito Fe<strong>de</strong>ral. Dirige A sapateira prodigiosa, <strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>rico Garcia<br />

Lorca, peça em que também trabalha como atriz. Em1954 escreve A bruxinha<br />

que era boa, que recebe o mesmo prêmio no ano seguinte, mas só é montada em<br />

1958. Atua em Nossa cida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> Thornton Wil<strong>de</strong>r, dirigida por João Bethencourt.<br />

Em 1955 produz seu maior sucesso Pluft, o fantasminha traduzido para<br />

vários idiomas. Neste mesmo ano é convidada para substituir Henriette Morineau<br />

em O diálogo das carmelitas, <strong>de</strong> Bernanos, e monta Tio Vânia, <strong>de</strong> Tchecov,<br />

no Tablado. Nas palavras da crítica Bárbara Heliodora:<br />

“Quando Pluft perguntou pela primeira vez ‘mamãe, gente existe?’ No<br />

teatrinho do Patronato da Gávea, não terá tido sua primeira plateia noção<br />

do alcance do mundo que se abria à sua frente naquele momento. Maria<br />

Clara Machado tem como mérito supremo saber conviver com o Universo<br />

da curiosida<strong>de</strong> e da capacida<strong>de</strong> para o encantamento das crianças sem que<br />

jamais aflore em seus textos o mais remoto resquício <strong>de</strong> indulgência ou<br />

superiorida<strong>de</strong>”.<br />

Realmente foi um privilégio assistir a essa estreia: cenário <strong>de</strong> Napoleão<br />

Moniz Freire – tão cedo <strong>de</strong>saparecido –, Kalma Murtinho no papel da mãe<br />

que fazia <strong>de</strong>liciosos pastéis <strong>de</strong> vento e falava sem parar ao telefone, Carmete,<br />

o próprio Pluft e mais Vânia Veloso Borges, Eddy Rezen<strong>de</strong>, João Sérgio Marinho<br />

Nunes, Emílio <strong>de</strong> Mattos e João Augusto, sob a direção <strong>de</strong> sua criadora.<br />

Maria Clara era uma intuitiva, uma vocação rara como po<strong>de</strong>mos observar<br />

em suas própria palavras: “As explicações pseudoprofundas <strong>de</strong> alguns teóricos<br />

<strong>de</strong> teatro sempre me aborreceram. Talvez o faz <strong>de</strong> conta, a brinca<strong>de</strong>ira me<br />

<strong>de</strong>scansem da mediocrida<strong>de</strong> da vida que me ro<strong>de</strong>ia e da serieda<strong>de</strong> como ela<br />

<strong>de</strong>ve ser vivida.” Achava que através da ação <strong>de</strong>senvolvida no palco é que se<br />

passa a emoção à plateia. E completa: “É sentir que nos faz viver. Amor, ódio,<br />

tristeza, frustrações, tudo <strong>de</strong>ve estar contido numa boa peça.”<br />

As discussões sobre profissionalização dos atores do Tablado eram constantes.<br />

Maria Clara insistiu sempre em que o grupo era amador. Com isso<br />

112


Dez anos sem Maria Clara Machado<br />

começa a per<strong>de</strong>r alguns dos diretores como Martim Gonçalves, o primeiro<br />

a <strong>de</strong>ixá-la para fundar o Teatro da Praça. Depois os atores Rubens Correia e<br />

Ivan Albuquerque formam o Teatro Ipanema, Cláudio Corrêa e Castro, Emílio<br />

<strong>de</strong> Mattos e tantos outros. Diz Clara: “Optamos por manter os atores<br />

amadores. Esta opção nos custou muitas lágrimas.”<br />

Assim ela justifica o fato <strong>de</strong> não permitir que outros montem suas peças:<br />

“Tenho pena <strong>de</strong> dar minhas peças a qualquer um, porque gosto <strong>de</strong> primeiro<br />

experimentar em cena, gosto <strong>de</strong> inventar ainda.... Escrevo no palco<br />

quase sempre. Muito em função do ator que eu tenho, do espaço que eu<br />

tenho. É um laboratório mesmo.”<br />

As peças se suce<strong>de</strong>m sempre com sucesso. Em 1960 monta O cavalinho azul,<br />

imediatamente aclamada pela crítica. No Correio da Manhã, on<strong>de</strong> Van Jafa escreve:<br />

“Tomo a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> também recomendar aos adultos esse poema sem<br />

ida<strong>de</strong> que é a peça infantil O cavalinho azul, <strong>de</strong> Maria Clara Machado. (...) E<br />

quem não <strong>de</strong>scobrir o seu cavalinho azul não <strong>de</strong>scobriu o sentido da vida,<br />

nem a beleza do mundo, nem o milagre do viver cotidiano daqueles que<br />

ganharam porque acreditaram. Assisti a O cavalinho azul emocionado por<br />

tanta beleza gratuita.”<br />

E Yan Michalski no Jornal do Brasil: “Constitui um dos pontos mais altos e<br />

inspirados dos que tenhamos encontrado, até hoje, em qualquer espetáculo<br />

para crianças”.<br />

Do hoje acadêmico e também amigo e ator do Tablado Ivan Junqueira,<br />

Maria Clara recebeu este belo soneto que vale transcrever:<br />

E assim <strong>de</strong> azul vestiram tua imagem,<br />

Outrora esboço lento e fatigado,<br />

Andrajo submerso na paisagem<br />

Do tempo, como um gesto abandonado.<br />

113


Laura Sandroni<br />

Recordo tuas crinas, teu selvagem<br />

Perfil rasgando o espaço calcinado,<br />

Teus flancos <strong>de</strong> aleluia, tua linguagem<br />

Onírica – monólogo cifrado...<br />

Depois não vi mais nada. Em meio à bruma<br />

Teu vulto fez-se treva e solidão...<br />

Às vezes, todavia, quando o grito<br />

De minha infância acorda a escuridão,<br />

Ainda ouço teu tropel pelo infinito,<br />

Catarse azul, visão, corcel <strong>de</strong> espuma!<br />

A fortuna crítica apresentada no livro recém-publicado nos dá i<strong>de</strong>ia do prestígio<br />

da autora. Alguns comentários entusiásticos <strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

nos anos 70, <strong>de</strong> Maria Julieta, filha do poeta (também tradutora para o<br />

espanhol <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> Maria Clara) em O Globo, em 1984. Do crítico paulista<br />

Décio <strong>de</strong> Almeida Prado em O Estado <strong>de</strong> S. Paulo, da cronista Eneida, em O Globo, <strong>de</strong><br />

Austregésilo <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong> no Jornal do Commercio e dos críticos Van Jafa, Yan Michalski<br />

e Bárbara Heliodora. Há ainda textos <strong>de</strong> Luiz Paulo Horta, Maria Antonieta<br />

Cunha, Flora Süssekind, Miguel Falabela. O capítulo se encerra com um belo<br />

texto inédito <strong>de</strong> Ana Maria Machado, escrito logo após a morte da autora.<br />

Em 1956 Maria Clara criou a revista Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> teatro, na qual colaborava com<br />

frequência e continua a ser publicado pelos seus amigos e colaboradores:<br />

“Nosso primeiro pensamento foi para os grupos novos que se iam formando<br />

pelo interior do Brasil, sem conhecerem nada das técnicas teatrais.<br />

(...) Queríamos ensinar o beabá da técnica. Como fabricar um refletor,<br />

uma resistência, noções <strong>de</strong> direção e interpretação, a carpintaria do palco, a<br />

construção dos cenários. Pequenas peças traduzidas ou adaptadas.<br />

Milagrosamente os Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> teatro ainda estão vivendo até hoje, um<br />

pouco mais sofisticados com o tempo. (...) Virgínia Valli, inesquecível<br />

114


Dez anos sem Maria Clara Machado<br />

companheira <strong>de</strong> muitos anos, gran<strong>de</strong> titeriteira e atriz, lutou durante anos<br />

pela sobrevivência da publicação”.<br />

A integração da música com o teatro era preocupação permanente <strong>de</strong> Maria<br />

Clara, que sempre contou com a colaboração <strong>de</strong> talentos, a exemplo <strong>de</strong> Carlos Lyra,<br />

John Neschling e, com mais frequência, Ubirajara Cabral. Em 1974, sua peça Maroquinhas<br />

Fru-Fru virou ópera com música composta por Ernst Mahler, alemão naturalizado<br />

brasileiro, e só <strong>de</strong>zenove anos <strong>de</strong>pois, em 1995, teve uma única apresentação<br />

como prova <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> curso das escolas <strong>de</strong> Música, Belas Artes e Comunicação da<br />

UFRJ, no salão Leopoldo Miguez da Escola Nacional <strong>de</strong> Música.<br />

Apenas uma récita para uma plateia <strong>de</strong> familiares dos cantores e <strong>de</strong>mais participantes<br />

que a receberam com entusiasmo. Lembro-me que Villa-Lobos musicou<br />

A menina das nuvens, da pioneira Lúcia Bene<strong>de</strong>tti, que jamais foi montada.<br />

Ernst Mahler, compositor premiado, internacionalmente conhecido, foi o<br />

i<strong>de</strong>alizador do concurso Jovens Instrumentistas e recebeu em 95 o Prêmio da<br />

Associação Paulista <strong>de</strong> Críticos <strong>de</strong> Artes (APCA).<br />

Outra peça transformada em ópera apresentada no palco do Tablado foi O<br />

cavalinho azul com música <strong>de</strong> Tim Rescala cantada e tocada pelo próprio elenco<br />

da peça.<br />

Aos poucos o Tablado transformou-se em verda<strong>de</strong>ira escola <strong>de</strong> teatro, com<br />

cursos livres <strong>de</strong> improvisação e <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> novos talentos. “Não há melhor<br />

escola que o palco”, garantia Maria Clara.<br />

Professores que eram atores do grupo montavam um espetáculo ao fim dos<br />

seus cursos e <strong>de</strong>les surgiu o Festival <strong>de</strong> Verão. Diz Clara: “Tenho visto coisas<br />

ótimas, coisas boas, coisas medíocres, mas pu<strong>de</strong> constatar com enorme prazer<br />

a força do teatro na juventu<strong>de</strong>”.<br />

Fora do Tablado a vida trouxe a Maria Clara outras experiências. Em 1961<br />

é convidada para ser diretora do Serviço <strong>de</strong> Teatro e Diversões do Estado da<br />

Guanabara e secretária-geral do Teatro Municipal. Ganha o Prêmio Personalida<strong>de</strong><br />

do Ano, da Fundação <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> Teatro.<br />

Apesar da <strong>de</strong>dicação aos cargos que exercia, Maria Clara não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong><br />

ampliar sua obra escrevendo e montando entre outros sucessos Maroquinhas<br />

115


Laura Sandroni<br />

Fru-Fru (1961), A menina e o vento (1962), Maria Minhoca (1967), Tribobó-City<br />

(1971) e tantas mais.<br />

Em 1981 volta a atuar em espetáculo <strong>de</strong>stinado ao público adulto substituindo<br />

Henriette Morineau no papel <strong>de</strong> Mau<strong>de</strong> da peça Ensina-me a viver. Diz<br />

ela: “Tive o prazer das gran<strong>de</strong>s plateias lotadas e a vaida<strong>de</strong> satisfeita por ainda<br />

ser capaz <strong>de</strong> comover o público.”<br />

Pouco <strong>de</strong>pois em 1985, sob a direção do amigo Geraldo Queiroz, apresenta-se<br />

em Esse mundo é um hospício (Arsênico e Alfazema). E <strong>de</strong>clara: “Foi uma<br />

tentativa agradável <strong>de</strong> voltar ao passado. E pronto. Agora chega <strong>de</strong> ser atriz”.<br />

Continuou dirigindo no Tablado, mas dando oportunida<strong>de</strong> a seus assistentes<br />

para se firmarem. Cria ainda um curso para a terceira ida<strong>de</strong>: “Verifiquei na<br />

pele que o começo da velhice (70 anos em 1991) não <strong>de</strong>ve ser obrigatoriamente<br />

o abandono da criativida<strong>de</strong>”.<br />

Maria Clara Machado recebeu todos os prêmios existentes. Entre eles o<br />

Golfinho <strong>de</strong> Ouro, do Museu <strong>de</strong> Imagem e do Som e o Prêmio Molière, da<br />

Air France, ambos em 1968 para o melhor autor teatral. Em 1981 recebe outra<br />

vez o Prêmio Molière, pelos trinta anos do Tablado e o Mambembe. Em<br />

1991 o Prêmio Machado <strong>de</strong> Assis, da ABL, pelo conjunto <strong>de</strong> sua obra.<br />

Antes <strong>de</strong>la haviam recebido esta láurea as escritoras Dinah Silveira <strong>de</strong><br />

Queiroz (1954), Raquel <strong>de</strong> Queiroz (1958) – ambas <strong>de</strong>pois eleitas para a<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> e ainda Cecília Meireles (1965), Carolina Nabuco (1978), Gilka<br />

Machado (1979) e Henriqueta Lisboa (1984). No entanto Maria Clara foi<br />

a primeira a ser homenageada por sua obra inteiramente <strong>de</strong>dicada à infância.<br />

Em 2001 Ana Maria Machado, cuja obra dirige-se em gran<strong>de</strong> parte a esse<br />

público, também fez jus ao Prêmio Machado <strong>de</strong> Assis, sendo pouco <strong>de</strong>pois<br />

eleita acadêmica.<br />

Um trecho especialmente interessante do discurso <strong>de</strong> Dom Marcos Barbosa<br />

ao receber Maria Clara diz o seguinte:<br />

“O Tablado é pois uma <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. Mas os seus imortais, que prece<strong>de</strong>ram<br />

aqui a Maria Clara, são talvez mais <strong>de</strong> 40 e mais longevos que nós. Pois<br />

quando já estiverem os imortais <strong>de</strong> hoje mortinhos da silva, no imponente<br />

116


Dez anos sem Maria Clara Machado<br />

Mausoléu da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> (eu vou ficar no claustro do Mosteiro, que é mais<br />

alegre e on<strong>de</strong> os monges fazem recreio <strong>de</strong>pois do almoço), quando já estiverem<br />

todos no Mausoléu, os imortais <strong>de</strong> Maria Clara, verda<strong>de</strong>iros imortais,<br />

estarão ainda circulando pelos nossos palcos. O fantasminha Pluft que tem<br />

medo <strong>de</strong> gente e se surpreen<strong>de</strong> ao ver que gente tem medo <strong>de</strong> fantasma, e que<br />

ao ver a menina Maribel chorar, <strong>de</strong>rramando o mar pelos olhos, reclama da<br />

mãe Dona Bolha, fabricante <strong>de</strong> pastéis <strong>de</strong> vento: ‘Eu também quero!’ ‘Fantasma<br />

não chora, Pluft, senão <strong>de</strong>rrete.’ E também não morrerá o Cavalinho<br />

Azul, que o menino Vicente (<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> atravessar pelo circo e pela cida<strong>de</strong>,<br />

on<strong>de</strong> todos caminham ao estribilho: ‘Não temos tempo a per<strong>de</strong>r!’) vê voltar,<br />

afinal, azul como nunca, das Capitanias Hereditárias.”<br />

As duas peças <strong>de</strong> Maria Clara Machado mais conhecidas e louvadas pela<br />

crítica permanecem não apenas na memória <strong>de</strong> quem teve o privilégio <strong>de</strong> assisti-las<br />

no palco (ou ainda as assistirá pois são frequentemente remontadas),<br />

mas também transformadas em narrativas pela própria autora e editadas com<br />

o <strong>de</strong>vido cuidado. São elas: O cavalinho azul e Pluft, o fantasminha.<br />

A primeira (como já vimos escrita algum tempo <strong>de</strong>pois da segunda) foi<br />

lançada pela Editorial Bruguera, que não mais existe, em 1969. A notar-se<br />

as belas ilustrações em cores <strong>de</strong> Maria Louise Nery reproduzindo o cenário<br />

original da peça <strong>de</strong> sua autoria. Ela e seu marido Dirceu Nery trabalharam<br />

várias vezes com Clara na confecção <strong>de</strong> cenários e a<strong>de</strong>reços.<br />

O livro foi reeditado em 2001 pela Companhia das Letrinhas e agora encontra-se<br />

na Nova Fronteira com <strong>de</strong>senhos da premiada ilustradora Graça Lima.<br />

A história do menino imaginário que via o pobre pangaré puxador <strong>de</strong> carroça<br />

<strong>de</strong> seu pai lavrador, como um lindo corcel azul com enorme rabo branco,<br />

voando tal Pégaso, é contada <strong>de</strong> forma poética, engraçada e comovente. A<br />

presença dos músicos bandidos, <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> roubar tal maravilha que Vicente,<br />

o pequeno herói, procura por toda a parte, até nas capitanias hereditárias,<br />

mantém o suspense e o interesse do leitor do início ao fim.<br />

Pluft, o fantasminha, pela mesma Bruguera, em 1970, traz <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> Anna<br />

Letycia, conhecida por suas gravuras, reproduzindo o cenário <strong>de</strong> sua criação<br />

117


Laura Sandroni<br />

para uma das montagens da peça no Tablado. Inteiramente no espírito da<br />

história as ilustrações são engraçadas, em cores fortes dando corpo à família<br />

<strong>de</strong> Pluft, o fantasminha que tinha medo <strong>de</strong> gente, à menina Maribel, que se<br />

torna amiga <strong>de</strong> Pluft e ao terrível pirata Perna-<strong>de</strong>-pau, que anda em busca <strong>de</strong><br />

um tesouro escondido na casa perdida na praia.<br />

No livro, tal como na peça, Maria Clara Machado mostra todo seu talento<br />

narrando uma história on<strong>de</strong> a graça e a ironia estão sempre presentes. O livro<br />

foi reeditado pela Companhia das <strong>Letras</strong> em 2001 e também está hoje na<br />

Nova Fronteira com <strong>de</strong>senhos <strong>de</strong> Graça Lima. Ao terminar sua saudação à<br />

Maria Clara Machado diz Dom Marcos Barbosa:<br />

“No seu livrinho Criança tem cada uma Pedro Bloch registra a frase <strong>de</strong> uma<br />

menina que entra no escritório do pai ao anoitecer e lhe diz: ‘Papai, o dia<br />

está murchando!’.<br />

Mas a menina que disse esta frase não murcha. Ela tem sempre um ar<br />

<strong>de</strong> menina espalhando em volta a clarida<strong>de</strong> que traz no nome, — um dos<br />

mais belos que possa haver: Maria Clara.<br />

Você recebe hoje, Maria Clara, o mais que merecido Prêmio Machado<br />

<strong>de</strong> Assis. E creio que se o bruxo das Laranjeiras estivesse aqui esta tar<strong>de</strong>,<br />

faria questão <strong>de</strong> entregar-lhe pessoalmente o prêmio que em sua honra é<br />

concedido. E sem dúvida, aproveitando uma distração <strong>de</strong> Dona Carolina,<br />

ocupada em ajeitar o chapéu ou calçar as luvas, te daria um beijo na testa.”<br />

Em seu discurso <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento Clara chamou a atenção para o fato <strong>de</strong><br />

ser uma autora <strong>de</strong> peças para crianças e a importância, nem sempre reconhecida,<br />

<strong>de</strong>sse gênero literário:<br />

“Receber um prêmio da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> é uma honra<br />

para qualquer escritor, principalmente quando leva o nome <strong>de</strong> um monstro<br />

sagrado como Machado <strong>de</strong> Assis, patrono <strong>de</strong>sta Casa. Mas receber<br />

um prêmio por uma obra <strong>de</strong> teatro infantil é uma homenagem também<br />

à criança.<br />

118


Dez anos sem Maria Clara Machado<br />

Muitos consi<strong>de</strong>ram escrever para criança uma subliteratura. Aqueles que<br />

não conseguem chegar como poetas ou romancistas aos adultos se conformariam<br />

em escrever para a infância. No entanto, aí estão Grimm, Perrault,<br />

Lewis Carroll e o nosso Monteiro Lobato para provarem que isto não é<br />

verda<strong>de</strong> e que aqueles que na literatura universal nos presentearam com livros<br />

infantis são eternos, porque captaram como ninguém o verda<strong>de</strong>iro espírito<br />

da infância.<br />

É na infância que acontecem os episódios <strong>de</strong>cisivos para a formação do<br />

homem. É na infância que o símbolo entra na vida do adulto e lhe forma o<br />

caráter. O herói, a mãe, o pai, os amigos, os mistérios da natureza, tudo toma<br />

um sentido eterno para a criança e irá acompanhá-la por toda a vida.<br />

Meus queridos escritores: se vocês viram nos meus heróis infantis, nos<br />

meus Plufts e Cavalinhos Azuis algo <strong>de</strong> eterno, é porque vocês também<br />

guardaram consigo o símbolo e compreen<strong>de</strong>ram sua importância na formação<br />

do homem.”<br />

E no carnaval <strong>de</strong>ste ano tivemos a prova do quanto Maria Clara era querida<br />

e conhecida dos cariocas: a escola <strong>de</strong> samba Porto da Pedra, <strong>de</strong> São Gonçalo,<br />

escolheu-a para ser seu enredo no <strong>de</strong>sfile na Passarela do Samba. Lá o fantasminha<br />

Pluft po<strong>de</strong> voar livremente pela Sapucaí. Presa a um balão e segura<br />

por cordas, a bailarina italiana Valentina Ribaldo fez piruetas aéreas sobre a<br />

bateria a <strong>de</strong>z metros acima do solo. Uma homenagem <strong>de</strong> que Clara certamente<br />

gostaria muitíssimo.<br />

Lembrando o fato <strong>de</strong> que há 20 anos Maria Clara Machado recebeu o<br />

Prêmio Machado <strong>de</strong> Assis, da ABL, o mais importante do país, revivi parte<br />

da minha própria vida como ban<strong>de</strong>irante e fã <strong>de</strong> sua obra. Assim tive o privilégio<br />

<strong>de</strong> acompanhar o belo caminho que ela percorreu e constatar a enorme<br />

influência que exerceu sobre os rumos do teatro brasileiro.<br />

119


Laura Sandroni<br />

Bibliografia<br />

Maria Clara Machado: teatro infantil completo. Organização <strong>de</strong> Luiz Raul Machado. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Nova Aguilar, 2010. (1344p.)<br />

Machado, Maria Clara. O cavalinho azul. Il. Maria Louise Nery. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editorial<br />

Bruguera, 1969.<br />

Machado, Maria Clara. Pluft, o fantasminha. Il. Anna Letycia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editorial<br />

Bruguera, 1970.<br />

Entrega do Prêmio Machado <strong>de</strong> Assis – 1991, saudação por Dom Marcos Barbosa.<br />

Revista da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Anais <strong>de</strong> 1991 – julho a <strong>de</strong>zembro. Vol. 162.<br />

120


Fonte da juventu<strong>de</strong><br />

<strong>Prosa</strong><br />

Jorge Sá Earp<br />

Caminhava sem olhar o mar. A canga enrolada na cintura, o<br />

sutiã do maiô-<strong>de</strong>-duas-peças à mostra, os cabelos encaracolados,<br />

o andar apressado tentando a velocida<strong>de</strong> adolescente. Pois com<br />

admiração e ciúme assistia ao <strong>de</strong>sfile dos corpos e rostos ainda cheios<br />

<strong>de</strong> vigor. Lembrou da aca<strong>de</strong>mia (não evi<strong>de</strong>ntemente a <strong>de</strong> Platão, muito<br />

menos aquela dos velhinhos fardados da cida<strong>de</strong>) e se exigiu mais<br />

empenho: não podia se <strong>de</strong>ixar esmorecer. Ainda tinha resistência suficiente.<br />

Tinha que ir até o fim, até o último número berrado pelo professor,<br />

aliás um mulato bem apanhado. Tinha <strong>de</strong> dobrar alternadamente<br />

os joelhos e ir movendo os braços abertos até a barra no fim da<br />

sala, mesmo suando em bicas, mesmo bufando e sentindo o coração<br />

em fortes compassadas. Helena e Dalita não conseguiam, <strong>de</strong>sistiam<br />

antes. Preguiçosas e mais velhas que ela. No entanto era evi<strong>de</strong>nte a<br />

compensação positiva do seu esforço: no espelho da sala era nítida a<br />

diferença <strong>de</strong> sua silhueta com a da cunhada e da amiga. No final das<br />

aulas Sílvia revelava sem modéstia sua proeza:<br />

– Fiz 100 vezes hoje. Também olha só como estou. – E apontava<br />

a malha escurecida pelo suor.<br />

121<br />

Carioca. Estudou<br />

<strong>Letras</strong> na<br />

PUC/RJ e Teatro<br />

na FEFIERJ.<br />

É diplomata.<br />

Encontra-se<br />

atualmente na<br />

Costa Rica.<br />

Recebeu o<br />

Prêmio Nestlé<br />

<strong>de</strong> Literatura<br />

em 1985 pelo<br />

romance Ponto<br />

<strong>de</strong> fuga. É autor<br />

<strong>de</strong> Feixe lenha<br />

(1980, poesia),<br />

No caminho do vento<br />

(1983, contos),<br />

O olmo e a palmeira<br />

(2006, romance),<br />

<strong>de</strong>ntre muitos<br />

outros títulos.


Jorge Sá Earp<br />

Antes da ducha fria cumprimentava o professor. Pedia conselhos sobre os<br />

exercícios e até sobre dieta. E bebia seu corpo apolíneo. A Laura tinha se separado<br />

do marido por causa <strong>de</strong> seu treinador garotão. Corajosa tinha sido. O Cláudio<br />

bem que fora um rapaz bonito, lembrava <strong>de</strong>le logo que se casaram e ainda<br />

continuava bem apessoado até hoje, charmoso, <strong>de</strong> bigo<strong>de</strong>s, grisalho. Mas criou<br />

barriga, refestelou-se na vida. Laura teve razão ao <strong>de</strong>ixar marido e filhos pelo<br />

garotão, que Sílvia nunca tinha visto, mas que <strong>de</strong>via ser lindo, atleta que era.<br />

O sol ia ficando forte, Sílvia não ia se <strong>de</strong>itar na areia mesmo que protegesse<br />

sua pele com óleo <strong>de</strong> bronzear. Sabia que aquela hora era perigosa para o<br />

advento das temidas rugas. Iria para casa, almoçaria com a família e quem sabe<br />

visitasse a mãe: D. Alda sempre tinha um presente em espécie para lhe dar.<br />

A empregada <strong>de</strong>ixara a comida pronta. Os filhos se viravam – era essa sua <strong>de</strong>terminação<br />

expressa. Nunca foi muito afeita a paparicações, a pequenos cuidados<br />

maternais. Era melhor para eles – concluía sob a orientação <strong>de</strong> sua intuitiva psicologia.<br />

À mesa presenciou briga entre os mais velhos: cena habitual, tentou apaziguar,<br />

o marido antes severo parecia cada vez mais manso e alheio às <strong>de</strong>savenças<br />

filiais. As meninas não se mostravam tão belicosas. Às vezes um ensaio <strong>de</strong> discussão<br />

dava a partida como um badalo breve <strong>de</strong> sino, se <strong>de</strong>senvolvia num persistente<br />

<strong>de</strong>sarranjo instrumental, mas logo diminuía como a fuga <strong>de</strong> sons <strong>de</strong> um carro com<br />

o rádio ligado. A atuação dos meninos, no entanto, era rugida, esbravejante, e <strong>de</strong><br />

pigmeus se agigantavam em colossos na borda da mesa com ameaças <strong>de</strong> golpes.<br />

Cabia a Sílvia – antes ao pai com a mão espalmada batendo com força sobre a<br />

toalha – reagir com um grito estrídulo <strong>de</strong> pássaro. As cenas em volta da mesa, em<br />

seu apartamento na Gávea, se <strong>de</strong>senrolavam quase sempre em conflagrações entre<br />

os comensais: havia um <strong>de</strong>sequilíbrio qualquer naquele ambiente ainda misterioso<br />

ou <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> para ela. Para Sílvia importava o silêncio ou a conversa<br />

banal durante as refeições. Assim po<strong>de</strong>ria pensar na sua noite com calma.<br />

Calmas eram as noites com Louri<strong>de</strong>s. O biribinha em casa da gorda Louri<strong>de</strong>s<br />

e seu riso expansivo que exibia a <strong>de</strong>ntadura ampla. As parceiras variavam,<br />

às vezes Dalita, mais raramente Helena, cujo marido, irmão <strong>de</strong> Sílvia, não<br />

tolerava o jogo, mesmo que pacificamente doméstico. Gualberto, o <strong>de</strong> Louri<strong>de</strong>s,<br />

também não amigo das cartas, via televisão na saleta e às vezes rondava<br />

122


Fonte da juventu<strong>de</strong><br />

a sala em direção à cozinha. Era um homem corpulento, não propriamente<br />

gordo, engenheiro, que tinha como hobby a pesca nas areias do Leblon nos finais<br />

<strong>de</strong> tar<strong>de</strong>, juntamente com o marido <strong>de</strong> Helena. Ali, além dos apetrechos<br />

necessários, se provia <strong>de</strong> vários tipos <strong>de</strong> petiscos e cerveja, o que naturalmente<br />

contribuía para o enrobustecimento <strong>de</strong> sua anatomia.<br />

Quando não era noite <strong>de</strong> jogo, Silvinha ia dançar. Des<strong>de</strong> adolescente gostava<br />

<strong>de</strong> dançar. Nos primeiros anos <strong>de</strong> casada – e não só nos primeiros anos,<br />

mas até bem <strong>de</strong>pois do nascimento da última filha – o marido Jonas a controlava.<br />

Nor<strong>de</strong>stino, recebera o sangue incendiado <strong>de</strong> ciúmes. O tempo, porém,<br />

fora temperando esse traço e agora lhe restava uma mansidão conformada,<br />

essa que nem interferia na contenda dos filhos. Severo tinha sido, ultimamente<br />

o cansaço e a <strong>de</strong>corrente placi<strong>de</strong>z se albergaram em seu espírito.<br />

Sílvia, que como jovem <strong>de</strong> temperamento romântico, sonhara em frequentar<br />

acampamentos ciganos, com danças frenéticas em frente à fogueira, animadas<br />

por vinho e violinos, tomara gosto pelas casas <strong>de</strong> gafieira. Lá não só se<br />

dançava samba mas também tango, bolero e milonga. Tendo ido aos cabarés<br />

da Lapa pela primeira vez com Dalita, o marido Jordi e o seu acabou por se<br />

prometer que ali seria o seu espaço <strong>de</strong> entretenimento. Passou então a combinar<br />

com outras amigas a voltarem à Lapa. Até a gorda Louri<strong>de</strong>s chegou a<br />

ir algumas vezes e se mostrou ágil no arrasta-pé. Acontece que sua geração<br />

rapidamente se cansou daquela moda; foram se acomodando em seus lares<br />

com novela, futebol e biriba. Entretanto Silvinha se manteve firmemente fiel à<br />

gafieira e para isso construiu novas amiza<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gerações mais recentes ou da<br />

sua, mais animadas, porém, que as antigas amigas.<br />

As noites corriam embaladas nas diversas gafieiras do Rio até que conheceu<br />

Djalma, um mulato baixote com bigodinho discreto e olhos chamejantes.<br />

Era o seu par preferido.<br />

– Eu mal entendo o que ele fala... – Dalita confessou um dia a Sílvia.<br />

– Eu também no começo tinha as minhas dificulda<strong>de</strong>s... Mas agora sabe<br />

que não?<br />

Dalita também arranjou um parceiro fixo <strong>de</strong> dança: pintor, mas <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s,<br />

a quem, durante a semana, quando ele tinha uma horinha, o afalbetizava.<br />

123


Jorge Sá Earp<br />

Sílvia se socorria com a cunhada com vestidos. Como a vida social <strong>de</strong><br />

Helena não fosse mais como antigamente, ela os presenteava a Sílvia, que do<br />

apartamento da cunhada saía regalada, assim como saía da casa da mãe sempre<br />

com uma ajuda pecuniária significativa ao seu orçamento familiar parco<br />

por causa do minguados vencimentos <strong>de</strong> Jonas, corretor <strong>de</strong> imóveis. Rapaz<br />

esforçado, subira na vida, já que o conhecera no cinema Alvorada <strong>de</strong> Ipanema,<br />

on<strong>de</strong> trabalhava como lanterninha. O pai <strong>de</strong> Sílvia contra o casamento, o<br />

conflito tendo-se ajeitado graças à intercessão da mãe, a quem as outras filhas<br />

acusavam <strong>de</strong> tê-la sempre protegido.<br />

Apesar <strong>de</strong> aventuras escaldantes, o coração <strong>de</strong> Sílvia foi alvo da dolorosa<br />

flechada mesmo quando <strong>de</strong> uma festa <strong>de</strong> réveillon na casa da Louri<strong>de</strong>s. Depois<br />

do ponto alto dos brin<strong>de</strong>s <strong>de</strong> meia-noite, dos goles <strong>de</strong> champanhe, dos<br />

beijos e abraços verda<strong>de</strong>iros e falsos, dos beliscos em salgadinhos e canapés<br />

e dos rodopios <strong>de</strong> dança em que tanto se <strong>de</strong>leitava, num dado momento, foi<br />

parar na cozinha não sabia bem por quê. Naquele cômodo, num momento<br />

em que o volume da música diminuíra na sala, e os casais apenas conversavam<br />

e riam esparramados pelos sofás e poltronas, eis que naquele cômodo coberto<br />

<strong>de</strong> ladrilhos Sílvia encontra Gualberto nem bêbado nem alto mas num estado<br />

mediano entre esses – se é que po<strong>de</strong> existir um. Ele a encarou com arregalados<br />

olhos vidrados, se aproximou da mesinha, on<strong>de</strong> jaziam ban<strong>de</strong>jas com restos <strong>de</strong><br />

pastas e migalhas <strong>de</strong> pão e junto à qual ela como que se protegia, agasalhada<br />

numa fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> menina. Subitamente a abraçou e beijou-a na boca; um<br />

prolongado e suculento beijo.<br />

Depois que as bocas lentamente se <strong>de</strong>scolaram rápido, o anfitrião <strong>de</strong>sapareceu<br />

para o interior do apartamento <strong>de</strong>ixando Sílvia estarrecida e trêmula.<br />

Nunca sentira nada por aquele homem, pelo marido <strong>de</strong> Louri<strong>de</strong>s, mas ali na<br />

madrugada do primeiro dia do ano com os raios <strong>de</strong> sol ameaçando penetrar<br />

pelas frinchas das persianas o ato impulsionou seu coração; reverberava <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>la como um sino incan<strong>de</strong>scente.<br />

Permaneceu ainda uns instantes na cozinha sob um silêncio pesado, partido<br />

apenas por murmúrios e risinhos, vindos da sala. Atordoada, com o<br />

coração batendo, regressou ao convívio dos outros.<br />

124


Fonte da juventu<strong>de</strong><br />

Na tar<strong>de</strong> do dia 1. o levantou com a esperada ressaca, apesar dos engovs<br />

tomados antes e <strong>de</strong>pois da celebração. Jonas já tinha se levantado (ele não<br />

bebia) e cuidava das várias gaiolas <strong>de</strong> passarinhos penduradas na área <strong>de</strong> serviço:<br />

curiós, pintassilgos, periquitos, canários e bicos-<strong>de</strong>-lacre, que gorjeavam<br />

ignorantes das datas convencionais.<br />

Sílvia, antes <strong>de</strong> se arrumar e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> <strong>de</strong>volver ao rosto a frescura do dia<br />

anterior, apressou os filhos para o almoço em casa dos pais. O filho mais<br />

velho, esportista como Jonas, ainda assistia a uma reprise <strong>de</strong> futebol na televisão,<br />

o mais moço, ator, relatava seu réveillon a colegas <strong>de</strong> classe ao telefone,<br />

enquanto as meninas cacarejavam no quarto. Os filhos são assim – refletiu<br />

num jato –: uns puxam ao pai, outros à mãe; Tarcísio herdara a sensibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>la. Talvez também sonhasse em fugir com um bando <strong>de</strong> ciganos.<br />

Durante o almoço volta e meia vinha alfinetar-lhe a cena da madrugada<br />

<strong>de</strong> Ano Novo: Gualberto a beijando com fogo, com hálito <strong>de</strong> uísque. Nunca<br />

pensou que aquele homem sentira qualquer atração por ela. Gualberto se<br />

comportava sempre – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos adolescentes no Leblon – como um<br />

rapaz sério, bem comportado e como homem maduro muito mais. Até bastante<br />

sisudo. Raramente <strong>de</strong>ixava escapar uma gargalhada, só se a piada fosse<br />

muito boa. Admirava as mulheres classudas – uma vez tinha dito. Ou teria<br />

sido naquela mesma noite <strong>de</strong> réveillon quando sua filha do meio confessou<br />

que queria se comportar como uma mulher elegante, hirta, <strong>de</strong> gestos lentos e<br />

voz pausada como algumas personagens <strong>de</strong> colunas sociais? Sílvia não po<strong>de</strong>ria<br />

ser esse mo<strong>de</strong>lo. Gualberto conhecia o seu amor pela dança, pelo samba, pela<br />

gafieira. Entre seus amigos e os <strong>de</strong> Jonas, entre a família ninguém comentava<br />

seu hábito belle <strong>de</strong> soir <strong>de</strong> frequentar os cabarés da Lapa. Deviam sorrir maliciosamente<br />

ao ouvirem o marido dizer conformado:<br />

– Silvinha gosta <strong>de</strong> dançar...<br />

Portanto ela não era o tipo <strong>de</strong> Gualberto, não era mulher para Gualberto.<br />

Se perguntou a intervalos durante todo o almoço <strong>de</strong> 1. o <strong>de</strong> janeiro e por meses<br />

e meses por que ele a beijara na cozinha na noite <strong>de</strong> réveillon. E Louri<strong>de</strong>s?<br />

Caso suspeitasse, caso levantasse a menor <strong>de</strong>sconfiança a respeito do sucedido<br />

em sua casa no final da festa que ela oferecera aos amigos mais íntimos ficaria<br />

125


Jorge Sá Earp<br />

furiosa com Sílvia, levantaria toda sua obesida<strong>de</strong> com a ligeireza permitida<br />

pelo ciúme da mesa <strong>de</strong> jogo e a esbofetearia ruidosamente e sem se importar<br />

com as parceiras em volta. Com o rosto ar<strong>de</strong>ndo as lágrimas saltariam dos<br />

olhos, e Sílvia correria dali para se escon<strong>de</strong>r não sabia on<strong>de</strong>, pois nem na<br />

própria casa po<strong>de</strong>ria contar o acontecido. Talvez na casa da mãe. Mas e seu<br />

pai? Não <strong>de</strong>sconfiaria?<br />

Por outro lado estava traindo a amiga. Que mulher tinha sido ela nos últimos<br />

anos! E nos meses que se seguiram ao Ano Novo ela só pensava no beijo,<br />

no beijo <strong>de</strong> Gualberto dado em sua boca, no abraço estonteante com que<br />

Gualberto a agarrara, a sufocara.<br />

Não podia contar às suas filhas. Há muito tempo não conversava com elas.<br />

A mais velha engravidara e fora morar com o namorado em Recife – isso lá<br />

pelo meio do ano – e a mais moça namorava um homem casado, segundo lhe<br />

contara. No entanto Sílvia não po<strong>de</strong>ria se abrir com a caçula sobre sua mais<br />

recente paixão pelo marido <strong>de</strong> sua amiga. A mais moça jamais po<strong>de</strong>ria saber<br />

que a mulher do seu homem casado era “tia Louri<strong>de</strong>s”.<br />

– Você não vai dançar mais? Gostava tanto... – comentou uma sexta-feira à<br />

noitinha Jonas acomodado no sofá em frente à televisão com ar abatido.<br />

– Perdi a vonta<strong>de</strong>. Estou ficando velha.<br />

O marido sorriu como se pela primeira vez a visse admitir sua condição.<br />

Lá pelas <strong>de</strong>z Sílvia se recolheu ao seu quarto. A cabeça no travesseiro<br />

pulsava o mesmo pensamento <strong>de</strong> meses: o beijo <strong>de</strong> Gualberto tinha sido o<br />

melhor beijo que recebera em toda sua vida: quente, úmido, lento, a língua<br />

dando voltas em sua boca, pelos seus <strong>de</strong>ntes. O corpo todo se inflava com<br />

uma onda <strong>de</strong> calor ao relembrar aquele momento. Mas por que ela agora<br />

se comportava como se nada tivesse acontecido? Com sua fleuma habitual<br />

Gualberto camuflava seu real sentimento por ela. Tratava-se <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro<br />

ator. E tudo para Louri<strong>de</strong>s não perceber. Coitada da Louri<strong>de</strong>s... Mal<br />

sabia ela... que seu marido a amava, ela, Sílvia... Só ela... e por que não a<br />

abraçara <strong>de</strong> novo? Quantas noites não fora jogar o seu habitual biriba e<br />

mesmo com mais frequência que antes, e ele esquivara o seu olhar e evitara<br />

um encontro a sós com ela?<br />

126


Fonte da juventu<strong>de</strong><br />

Desferiu um soco na cama à altura do rosto. Jonas veio e se atirou ao seu<br />

lado. Pesado, roncão, morno. Sílvia se virou e contemplou com nojo aquela<br />

montanha arfante. Foi para a sala, acen<strong>de</strong>u um cigarro e olhou a rua, os carros<br />

apressados e buzinantes na noite <strong>de</strong> sexta-feira. Iria para a gafieira. Sim, iria.<br />

Lá com Djalma ela espaireceria, espantaria os seus tormentos, a imagem obsedante<br />

do beijo <strong>de</strong> Gualberto.<br />

Apanhou um uísque no bar e o virou <strong>de</strong> um gole só. Se vestiu <strong>de</strong> mansinho,<br />

<strong>de</strong>sceu, acenou prum táxi na praça do Jóquei e se mandou pra Lapa. Entrou<br />

no seu costumeiro Pavão Dourado. Lotadérrimo. Se acotovelou por entre dançarinos<br />

e <strong>de</strong>sviou <strong>de</strong> mesas e garçons. Os ouvidos a princípio feridos pelos<br />

toques da orquestra logo foram se acostumando e se adaptando ao ritmo<br />

da música como um vestido <strong>de</strong> manequim inferior que custa a se ajustar no<br />

corpo. Reconheceu então a mesa com os companheiros <strong>de</strong> fins <strong>de</strong> semana:<br />

Djalma estava lá, se assanhando para tirar uma cabrocha para dançar.<br />

Sílvia <strong>de</strong>u-lhe um tapinha nas costas, o sambista se virou e a agarrou nos<br />

braços. Saíram gingando no rodopio da música. Sílvia sentiu recobrar seu<br />

ânimo <strong>de</strong> antes.<br />

A música e o corpo do parceiro colado no <strong>de</strong>la a moviam, faziam vibrar<br />

seus músculos, seus nervos, aceleravam as batidas <strong>de</strong> seu coração. O cheiro<br />

<strong>de</strong> suor e o calor das mãos <strong>de</strong> Djalma. Vieram o samba, o tango, o bolero e a<br />

milonga puladinha. De repente, por cima do ombro do companheiro, divisou<br />

Dalita e seu pintor. Deu um a<strong>de</strong>uzinho pra ela e continuou a seguir o ritmo<br />

da orquestra alucinada.<br />

Outro repente: ao longe, por entre a fumaça e os diversos corpos se<br />

mexendo na semiobscurida<strong>de</strong>, eis que <strong>de</strong>scobriu Gualberto. Dançando animado<br />

com uma jambete. Se <strong>de</strong>svencilhou rápida dos braços <strong>de</strong> Djalma e<br />

tentou saltar todos os obstáculos que a impediam <strong>de</strong> o alcançar. Gualberto,<br />

Gualberto ali na sua toca, no seu salão no Pavão Dourado! Silvinha se atropelou<br />

por entre os foliões, escutou reclamações, levou empurrões e conseguiu<br />

ouvir xingamentos, mas chegou até o seu alvo: cutucou então as costas <strong>de</strong><br />

seu corpanzil; – o homem virou o rosto: não era Gualberto, mas um cara<br />

igualzinho a ele.<br />

127


Jorge Sá Earp<br />

– Desculpe, <strong>de</strong>sculpe... – Sílvia sorriu o sorriso da menina educada em<br />

colégio <strong>de</strong> freiras. E per<strong>de</strong>u a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> continuar dançando. Desabou na ca<strong>de</strong>ira<br />

em frente à mesa e virou goela a<strong>de</strong>ntro um copo gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> caipirinha.<br />

– Má o que que é isso, mulhé!<br />

Nem se dignou a encarar Djalma. Seu olhar se fixava nas cascas e bagaços<br />

<strong>de</strong> limão no fundo do copo. Ele insistiu que voltassem a dançar, <strong>de</strong>sistiu e se<br />

sentou ao lado <strong>de</strong>la abraçando-a. Sílvia o encarou e soltou uma irreprimível<br />

gargalhada.<br />

– Que que cê tem?<br />

– Vamos embora daqui.<br />

– Má vamu pra on<strong>de</strong>, porra?<br />

Sílvia tomou-o pela mão e a custo chegaram do lado <strong>de</strong> fora. Uma chuvarada<br />

<strong>de</strong>spencara na Lapa. Fios grossos caíam do telhado do sobrado antigo,<br />

on<strong>de</strong> estava o cabaré. Sílvia se escorou na pare<strong>de</strong> e Djalma fez o mesmo.<br />

– Qué enfrentá o toró ou voltá pra lá?<br />

Sílvia curtia o barulho da chuva pregada na pare<strong>de</strong> e com a mão presa à <strong>de</strong><br />

Djalma.<br />

Súbito outra gargalhada explodiu, mais incontrolada que a primeira, quase<br />

como as <strong>de</strong> Gualberto quando a piada era muito boa. E não a conteve por<br />

muitos minutos, uma gargalhada ecoante, vibrante por todos os sobrados da<br />

velha Lapa. Quando o aguaceiro cessou, o ruído das gotas na calçada tornava<br />

mais inquietante o silêncio das ruas <strong>de</strong>sertas.<br />

128<br />

Bucareste, 18/11/2008.


O nervo do conflito<br />

A<br />

Fenecimento e vitalida<strong>de</strong><br />

na poesia <strong>de</strong> Ivan Junqueira<br />

Ricardo Vieira Lima<br />

mas quem te contemplasse saberia<br />

que eras enfim o nervo do conflito:<br />

Ivan Junqueira, soneto XIII <strong>de</strong> A rainha arcaica<br />

<strong>Prosa</strong><br />

morte, enquanto símbolo, representa, em regra, o perecimento<br />

e a <strong>de</strong>struição da existência. Ela <strong>de</strong>signa o fim absoluto<br />

<strong>de</strong> todas as coisas. Mas é também a introdutora ao mundo<br />

<strong>de</strong>sconhecido do Inferno ou do Paraíso. Nesse sentido, ela é revelação<br />

e introdução. Filha da noite e irmã do sono, a morte <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre<br />

tem sido objeto das reflexões dos homens nos campos científico,<br />

religioso, filosófico ou artístico.<br />

Sob outro aspecto, em todo ser humano, durante todos os seus<br />

níveis <strong>de</strong> existência, simultaneamente coexistem a morte e a vida,<br />

configurando uma tensão entre duas forças contrárias. É a partir<br />

<strong>de</strong>ssa tensão que a morte adquire um sentido iniciático <strong>de</strong> renovação<br />

e renascimento. Mors janua vitae (a morte, porta da vida).<br />

129<br />

Jornalista, crítico<br />

literário e poeta.<br />

É diretor do<br />

Sindicato dos<br />

Jornalistas do<br />

Município do<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

e colaborador<br />

das revistas Poesia<br />

Sempre, Metamorfoses<br />

e Revista <strong>Brasileira</strong>,<br />

publicada pela<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>. Organizou<br />

e prefaciou a<br />

antologia Anos 80,<br />

da coleção Roteiro<br />

da Poesia <strong>Brasileira</strong><br />

(Editora Global,<br />

2010). Seu livro<br />

inédito, Aríete,<br />

ganhou o Prêmio<br />

Jorge Fernan<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> Poesia, da<br />

União <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

Escritores – RJ.


Ricardo Vieira Lima<br />

E é <strong>de</strong>ssa tensão, <strong>de</strong>sse “nervo do conflito”, enfim, que se abastece e se funda<br />

a singular obra poética <strong>de</strong> Ivan Junqueira.<br />

Conquanto os quatro temas básicos <strong>de</strong>ssa poesia sejam a tensão morte/<br />

vida; o fluir do tempo; o amor (relacionado sempre a um sentimento <strong>de</strong><br />

perda) e a arte (com <strong>de</strong>staque para a metapoesia), é sobre o primeiro tema<br />

que o poeta mais tem se <strong>de</strong>bruçado, ao longo <strong>de</strong> uma carreira <strong>de</strong> mais <strong>de</strong><br />

40 anos e <strong>de</strong> 11 livros <strong>de</strong> poemas publicados (incluindo-se, nesta contagem,<br />

duas reuniões <strong>de</strong> obra e duas antologias). Não por acaso, seu livro <strong>de</strong> estreia<br />

chama-se Os mortos, e sua obra mais recente, O outro lado. Com efeito, a maior<br />

parte <strong>de</strong> seus poemas trata <strong>de</strong>sse tema, direta ou indiretamente, o que tem<br />

levado a crítica, <strong>de</strong> uma forma geral, a consi<strong>de</strong>rar Junqueira como “o poeta da<br />

morte”. Acrescente-se o fato <strong>de</strong> Ivan fazer uso frequente <strong>de</strong> um vocabulário<br />

arcaico e erudito, opção esta que, aliada à aparente morbi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> seus versos,<br />

aproxima-o, inevitavelmente, <strong>de</strong> um poeta como Augusto dos Anjos. Tal aproximação,<br />

contudo, não <strong>de</strong>ve ser feita sem restrições. Enquanto ‘o poeta do Eu’<br />

canta a putrefação da carne, Ivan Junqueira, mais contido e mais metafísico,<br />

lamenta com frequência a existência da morte, fazendo <strong>de</strong> sua própria poesia<br />

um autêntico hino à vida.<br />

Por essa razão, não compactuamos com aqueles que consi<strong>de</strong>ram o autor <strong>de</strong><br />

O grifo “o poeta da morte”. Ao contrário, fazemos coro com o poeta e ensaísta<br />

Ruy Espinheira Filho, que, analisando a poética junqueiriana, saudou a “arte<br />

<strong>de</strong> um poeta maduro que fala do que <strong>de</strong>ve falar a arte: da vida. Porque é <strong>de</strong>la<br />

que falamos quando o tema é a morte.” 1<br />

Não obstante Junqueira seja um poeta abrasado, obcecado e torturado<br />

pela unida<strong>de</strong> 2 , <strong>de</strong> acordo com a certeira observação do poeta e crítico Marco<br />

Lucchesi, sua percepção da tensão morte/vida sofreu mudanças significativas<br />

com o passar dos anos. Assim, constatamos que a poesia <strong>de</strong> Ivan Junqueira<br />

1 Espinheira Filho, Ruy. “Animal efêmero”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa,<br />

2005, p. 293.<br />

2 Cf. Lucchesi, Marco. “A poesia é maior que a morte”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida,<br />

p. 313.<br />

130


O nervo do conflito<br />

divi<strong>de</strong>-se em quatro fases 3 . Na primeira, a que chamamos “O poeta é maior<br />

que a morte”, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> fenecimento, para o jovem Ivan, é algo que não o atinge<br />

diretamente, já que na sua poesia inicial, como seria <strong>de</strong> se esperar, a morte<br />

é sempre a alheia. Uma década mais tar<strong>de</strong>, sobrevém a fase “A morte é maior<br />

que o poeta”, na qual Junqueira adquire a consciência da efemerida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua<br />

própria vida, o que geraria o famoso tom <strong>de</strong> lamento, que, a partir <strong>de</strong>ssa<br />

época, passaria a ser uma das marcas mais evi<strong>de</strong>ntes do seu ofício poético. Na<br />

terceira fase, iniciada com o advento <strong>de</strong> A sagração dos ossos, Ivan afirma que “A<br />

vida é maior que a morte”, uma vez que a arte é maior que a morte e, se arte<br />

é vida e é produzida pelo homem e <strong>de</strong>stinada a eternizá-lo, então o homem,<br />

repleto <strong>de</strong> vida (ou <strong>de</strong> arte), suplanta a morte. Em sua quarta e atual fase, o<br />

poeta <strong>de</strong>scobre, enfim, que morte e vida se equivalem, pois são apenas faces<br />

<strong>de</strong> uma mesma moeda.<br />

A seguir, analisaremos, <strong>de</strong>talhadamente, cada uma das fases acima citadas,<br />

as quais configuram, em conjunto, a tensão vida/morte, “nervo do conflito”<br />

da poesia junqueiriana.<br />

1. a fase: O poeta é maior que a morte<br />

“Os mortos”, primeiro poema do primeiro livro – homônimo, aliás – <strong>de</strong><br />

Ivan Junqueira, é prova <strong>de</strong> que, na época, a morte, para o poeta, era sempre<br />

a alheia. Inspirado no poema “A mesa”, <strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

(autor que exerceu gran<strong>de</strong> influência na poesia junqueiriana), o eu lírico, no<br />

texto <strong>de</strong> Ivan, dirige-se a <strong>de</strong>terminados mortos (no caso <strong>de</strong> Drummond,<br />

todavia, o único <strong>de</strong>stinatário é o pai do narrador). No poema do autor <strong>de</strong><br />

Sentimento do mundo, o que <strong>de</strong>veria ser um sobrenatural banquete, torna-se um<br />

acontecimento afetivo e coloquial. Já no texto <strong>de</strong> Ivan Junqueira prevalece<br />

3 Recusamos, aqui, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> faces para esta classificação, em oposição à análise empreendida pelo romancista<br />

e ensaísta Per Johns, no tocante à poesia junqueiriana (“Da magia <strong>de</strong> um pequeno unicórnio<br />

na treva a todos os rios do mundo”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida, p. 336), uma vez que acreditamos<br />

que a poesia <strong>de</strong> Ivan Junqueira possui, <strong>de</strong> fato, aspectos diferentes e sucessivos.<br />

131


Ricardo Vieira Lima<br />

um certo tom <strong>de</strong> mistério metafísico, que, logo <strong>de</strong> início, confere ares <strong>de</strong><br />

gravida<strong>de</strong> ao poema:<br />

Os mortos sentam-se à mesa,<br />

mas sem tocar na comida;<br />

ora fartos, já não comem<br />

senão cô<strong>de</strong>as <strong>de</strong> infinito.<br />

Quedam-se esquivos, longínquos,<br />

como a escutar o estribilho<br />

do silêncio que <strong>de</strong>sliza<br />

sobre a medula do frio. (p. 16) 4<br />

Um dado curioso, já revelado em entrevistas pelo poeta, é o <strong>de</strong> que “os<br />

mortos” em questão foram, sobretudo, pessoas com as quais Ivan ligou-se<br />

literária e espiritualmente, no início <strong>de</strong> sua trajetória: os escritores Aníbal<br />

Machado (à memória <strong>de</strong> quem o livro é <strong>de</strong>dicado), Hélcio Martins, Odylo<br />

Costa, filho, Otto Maria Carpeaux e Willy Levin. O poeta não os nomeia em<br />

seu texto, mas roga<br />

Que se revelem, <strong>de</strong>finam<br />

os motivos <strong>de</strong> sua vinda.<br />

Ou então que me <strong>de</strong>cifrem<br />

seu <strong>de</strong>sígnio: pergaminho. (p. 17)<br />

De todo modo, como já dissemos, a morte, nessa primeira fase, é menor<br />

que o poeta, o qual parece não acreditar, <strong>de</strong> fato, no fim da existência humana<br />

do artista:<br />

4 O número entre parênteses ao lado das citações ou transcrições dos versos ou estrofes correspon<strong>de</strong> ao<br />

número da página, conf. Junqueira, Ivan. Poesia reunida.<br />

132


Quem serão estes assíduos<br />

mortos que não se extinguem?<br />

De on<strong>de</strong> vêm? Por que retinem<br />

sob o pó <strong>de</strong> meu olvido? (p. 17)<br />

O nervo do conflito<br />

Essa convicção se mantém ao longo <strong>de</strong> todo o livro, como no caso do<br />

poema “Sonho”. Nesse texto <strong>de</strong> alta carga metafórica, Ivan inaugura seu bestiário<br />

com a figura do pássaro, que na lírica junqueiriana representa a vida, a<br />

liberda<strong>de</strong>. Ou a poesia. Mas o pássaro do poema é feito <strong>de</strong> cinza, e logo sua<br />

carne agoniza e é dissolvida por um golpe <strong>de</strong> vento. O poeta, porém, não se<br />

conforma e resolve agir:<br />

Rápido, semeio tua lembrança na concha <strong>de</strong> uma onda,<br />

on<strong>de</strong> a contemplo sob as águas em colóquio<br />

e on<strong>de</strong>, liberto <strong>de</strong> fórmulas e palavras,<br />

fecundo a solidão com o pólen <strong>de</strong> meu júbilo. (p. 23)<br />

O último verso, isolado do restante do poema, ressalta a atitu<strong>de</strong> do eu lírico<br />

perante o fenecimento do pássaro: ao fecundar a solidão com o pólen <strong>de</strong><br />

sua alegria, o poeta busca recriar a vida que se per<strong>de</strong>u.<br />

Em outros poemas <strong>de</strong> Os mortos (1964), a exemplo <strong>de</strong> “Crônica”, “Ritual”<br />

ou “Baladilha”, a morte, quando inevitável, é sempre a alheia – ora tragando<br />

uma criança inocente, ora a amada do poeta. Não obstante, no antológico<br />

poema que encerra a obra, intitulado “Signo & esfinge”, Ivan olha para si<br />

mesmo e, ao autoanalisar-se, compõe esta que é uma das mais belas estrofes<br />

da língua portuguesa:<br />

Toda esfinge exibe um signo<br />

visível <strong>de</strong> seu enigma,<br />

embora quem o pressinta<br />

jamais lhe <strong>de</strong>cifre a escrita. (p. 55)<br />

133


Ricardo Vieira Lima<br />

para no final reafirmar sua vitória sobre a morte, e concluir:<br />

Frente à esfinge, a sós contigo,<br />

a tudo então renuncias.<br />

Agora, sim: tábula prima,<br />

abre-se o enigma. És infinito. (p. 57)<br />

No livro seguinte, Três meditações na corda lírica, escrito em 1968, mas publicado<br />

somente quase <strong>de</strong>z anos <strong>de</strong>pois, em 1977, Junqueira, confessadamente<br />

influenciado pelo T.S. Eliot dos Four Quartets (traduzido por ele em 1967), a<br />

partir da própria epígrafe escolhida, pinçada <strong>de</strong> Burnt Norton, reflete sobre o<br />

fluir do tempo. Contudo, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lembrar que<br />

O que passou (...)<br />

mais vivo está que toda essa harmonia<br />

<strong>de</strong> claves e colcheias retorcidas (p. 60)<br />

on<strong>de</strong> o poeta, ainda “maior que a morte”, percorre o<br />

caminho que retorna ao limo, à fina<br />

limalha do que é findo e ainda respira<br />

para <strong>de</strong>pois, o mesmo, erguer-se a ti,<br />

ao que serás, porque estás vivo aqui,<br />

agora e sempre, antes e após <strong>de</strong> tudo. (p. 61)<br />

E, se “Tudo se move e muda nesta esfera, / on<strong>de</strong> amor aglutina e ódio<br />

esfacela (p.61) / (...) a condição do ser é não ser término” (p. 64; o grifo é nosso),<br />

mensagem predominante da primeira fase da poesia <strong>de</strong> Ivan Junqueira.<br />

134


O nervo do conflito<br />

2. a fase: A morte é maior que o poeta<br />

Escritos entre 1969 e 1975, mas divulgados apenas no volume A rainha<br />

arcaica (1980), os oito poemas que formam o conjunto <strong>de</strong> textos intitulado<br />

Opus <strong>de</strong>scontínuo, se por um lado nos dão a impressão, a partir do próprio título<br />

do bloco, <strong>de</strong> que carecem <strong>de</strong> “sistematização e <strong>de</strong> coerência interna” 5 , para<br />

o leitor mais atento, todavia, o que avulta é justamente o oposto: com efeito,<br />

há uma notável unida<strong>de</strong> que permeia praticamente todos os poemas da série.<br />

Logo, acreditamos que a <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> em questão refere-se, em verda<strong>de</strong>, à<br />

mudança (consciente ou não) da weltanschauung do poeta, em comparação com<br />

a fase anterior <strong>de</strong> sua própria obra.<br />

Em Opus <strong>de</strong>scontínuo, a epígrafe que antece<strong>de</strong> os poemas já <strong>de</strong>monstra isso.<br />

Retirada do livro bíblico <strong>de</strong> Ezequiel (VII, 25), sua mensagem é <strong>de</strong>soladora:<br />

“Vem a <strong>de</strong>struição; eles buscarão paz, mas não há nenhuma.”<br />

O poema que abre essa pequena série, “Carpe diem”, inspirado na famosa<br />

máxima latina, incita o leitor, portanto, a “aproveitar o momento”, já que<br />

toda a esperança<br />

ó ave implume<br />

cega e torta<br />

é sempre espera<br />

sem resposta<br />

E o tempo cruza lento a noite morta (p. 69)<br />

A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> finitu<strong>de</strong> das coisas prossegue nos poemas “O cofre”, “Canção<br />

estatuária” e “Alta, a rainha”. Esses textos, notadamente o segundo, antecipam<br />

o admirável ciclo <strong>de</strong> 14 sonetos que constituirá A rainha arcaica, conforme veremos<br />

adiante. E atestam que o poeta já possui uma nova consciência: sabe que<br />

não é maior que a morte. Senão, vejamos. No primoroso soneto <strong>de</strong>cassilábico<br />

5 Cf. Jardim, Paulo <strong>de</strong> Tarso. “Poesia passada e poesia presente”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida,<br />

p. 260.<br />

135


Ricardo Vieira Lima<br />

“Quase uma sonata”, o eu lírico dirige-se à amada: “É música o rigor com que<br />

te moves / à fluída superfície do mistério” (p. 71), como a prepará-la para a<br />

morte (“o mistério”):<br />

Espaço e tempo são teu solo. E colhem,<br />

não tanto a luz que entornas, mas o pólen<br />

com que ela cinge e arroja as coisas mortas<br />

além da espessa morte que as enrola. (p. 71)<br />

Em sua fantasia erótica, por fim o poeta imagina a amada nua, imersa no<br />

mar, símbolo da vida e da morte. Compara-a, então, ao próprio mar, mas,<br />

neste símile, a mulher, envolta em música, transcen<strong>de</strong> o símbolo:<br />

É música o silêncio que te cobre<br />

quando lampeja à noite tua nu<strong>de</strong>z,<br />

em franjas <strong>de</strong>rramada sobre o leito<br />

das águas, on<strong>de</strong> as algas te incen<strong>de</strong>iam<br />

porque semelhas, mais que o mar profundo<br />

o intemporal princípio e fim <strong>de</strong> tudo. (p. 71)<br />

Embora não transcenda a morte, esse sentimento <strong>de</strong> perda, que agora domina<br />

o poeta, continua em “Epitáfio”:<br />

De tua história, nada;<br />

ou tudo, se quiseres:<br />

entre uma e outra data,<br />

a fábula <strong>de</strong> seres<br />

(...)<br />

o amor, vale dizer:<br />

sua forma álgida e rara,<br />

avessa à coisa amada<br />

– e, súbito, colher<br />

136


a morte, flor cediça,<br />

<strong>de</strong>ntro da vida. (p. 75)<br />

O nervo do conflito<br />

e <strong>de</strong>ságua num dos mais niilistas poemas da obra junqueiriana:<br />

À beira do claustro<br />

o monge se inclina<br />

e na pedra apren<strong>de</strong><br />

o que a pedra ensina:<br />

que a vida é nada<br />

com a morte por cima,<br />

que o tempo apenas<br />

este fim lhe adia (p. 76)<br />

(“Lição”)<br />

O aparecimento do ciclo <strong>de</strong> sonetos A rainha arcaica, bem como a publicação<br />

<strong>de</strong> Cinco movimentos (1982), comprovam o nascimento <strong>de</strong> um novo poeta: disposto<br />

a <strong>de</strong>frontar-se com o “códice da língua” 6 , Ivan Junqueira faz seu périplo<br />

rumo à gran<strong>de</strong>za do idioma, isto é, resolve enfrentar o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>r<br />

uma ousada releitura da obra <strong>de</strong> Camões a partir do mito <strong>de</strong> Inês, a bela<br />

infanta “que <strong>de</strong>spois <strong>de</strong> ser morta foy Rainha.” (p. 86) Nessa aventura mítica<br />

e metalinguística, o poeta tece uma intrincada re<strong>de</strong> intertextual, que abarca<br />

o clássico episódio do Canto III <strong>de</strong> Os Lusíadas; a prosa <strong>de</strong> Fernão Lopes e<br />

alguns versos <strong>de</strong> Garcia <strong>de</strong> Resen<strong>de</strong>, Fernando Pessoa e Jorge <strong>de</strong> Lima. Não<br />

há espaço, aqui, para analisar a importância <strong>de</strong>sses 14 sonetos e, <strong>de</strong> resto, se<br />

o fizéssemos, sairíamos do tema <strong>de</strong>ste ensaio, mas é preciso dizer, ao menos,<br />

que boa parte <strong>de</strong>sses textos estão entre os melhores da língua, a exemplo dos<br />

sonetos I, II, V, VII, IX, XIII e XIV. Com relação a Cinco movimentos, o Camões<br />

inspirador é o da Lírica. Cada movimento é representado por um soneto.<br />

No todo, o conjunto, imbuído <strong>de</strong> um invulgar lirismo amoroso <strong>de</strong> cunho<br />

6 Cf. Junqueira, Ivan. Poesia reunida, p. 86.<br />

137


Ricardo Vieira Lima<br />

levemente erótico – embora em Ivan o amor seja sempre sinônimo <strong>de</strong> perda e<br />

sofrimento, como já dissemos –, presta uma belíssima homenagem ao talento<br />

do maior poeta da língua portuguesa <strong>de</strong> todos os tempos.<br />

Para não sairmos <strong>de</strong> vez do assunto <strong>de</strong>ste estudo, citaremos, abaixo, alguns<br />

versos dos referidos poemas que corroboram a tese da morte maior que o<br />

poeta:<br />

Foram dois, sim, que <strong>de</strong>les guardo a injúria,<br />

sepulta neste pélago do mundo,<br />

on<strong>de</strong> mais nada me apetece ou pulsa<br />

e em vão meus lábios rezam a pedras mudas. (p. 84)<br />

(soneto IX <strong>de</strong> A rainha arcaica)<br />

E te amo além porque te sei perdida,<br />

e mais te amara fosse eterna a vida. (p. 89)<br />

(soneto IV <strong>de</strong> Cinco movimentos)<br />

Segundo a simbologia cristã, o grifo é a imagem do <strong>de</strong>mônio. No bestiário<br />

medieval, o grifo é uma ave fabulosa com bico e asas <strong>de</strong> águia, e corpo <strong>de</strong> leão.<br />

Ele é a força cruel.<br />

Na obra poética <strong>de</strong> Ivan Junqueira, esse animal fantástico representa a<br />

morte e, no plano estritamente literário, a ameaça <strong>de</strong> perecimento da poesia<br />

do autor. Assim, no poema que abre o volume O grifo (1987) eis que surge o<br />

próprio, esse monstro da <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za:<br />

Um grifo hediondo aos poucos se aproxima<br />

e pousa a sua garra sobre o livro;<br />

remexe nas imagens e nos signos,<br />

e apaga-lhes a música e o sentido. (p. 92)<br />

(...)<br />

E assim a besta odiosa as garras finca<br />

nas insondáveis páginas do livro,<br />

138


quebrando aqui as vértebras do ritmo,<br />

ali, o timbre oculto <strong>de</strong> uma rima. (p. 93)<br />

(“A garra do grifo”)<br />

O nervo do conflito<br />

Esse terrível poema dá o tom do restante da obra. Em O grifo, o poeta chega<br />

ao auge <strong>de</strong> seu pessimismo. Nada vivifica. Nada germina ou dá frutos. No<br />

poema “Áspera cantata”, por exemplo, <strong>de</strong>stacam-se os antológicos versos: “É<br />

sobre ossos e remorsos / que trabalho.” (p. 94)<br />

A crítica, em geral, não tem compreendido o verda<strong>de</strong>iro alcance <strong>de</strong>ssas<br />

palavras. Em regra, tem usado esses versos para justificar um pretenso culto à<br />

morte, por parte do poeta. Enganam-se aqueles que pensam assim. Mais adiante,<br />

explicaremos melhor essa questão.<br />

Por ora, importa dizer que concordamos com Antonio Carlos Secchin, o qual<br />

lucidamente afirmou, a respeito da poesia junqueiriana, que “a preservação <strong>de</strong><br />

uma inegável ‘pureza’ lexical em Ivan convive com a exploração dos meandros mais<br />

sombrios e inconfessáveis do ser humano, e o mergulho <strong>de</strong>sse discurso requintado<br />

na matéria da miséria e da contingência gera uma zona <strong>de</strong> atrito responsável por<br />

alguns dos mais fecundos resultados <strong>de</strong> sua poesia” 7 . De fato, é com admiração e<br />

espanto que o leitor se dá conta <strong>de</strong> que, quanto mais o poeta mergulha na miséria<br />

da condição humana, mais aumenta a beleza <strong>de</strong> seus versos.<br />

Desse modo, tanto em O grifo, quanto no livro seguinte, A sagração dos ossos,<br />

o que vemos é um poeta absolutamente senhor <strong>de</strong> seus meios, no domínio<br />

pleno <strong>de</strong> sua expressão. Conquanto a poesia junqueiriana corteje o mistério e<br />

seus eflúvios, não há mistérios para Ivan, no que tange ao exercício dos vários<br />

tipos <strong>de</strong> poesia e ao manejo das formas fixas. Réquiens, baladas, madrigais,<br />

toadas, canções, elegias, sonetos, terzinas, dísticos, oitavas, tudo lhe serve,<br />

tudo é propício ao poeta que domina a arte do verso. Virtuosi ou master (na<br />

concepção poundiana), Ivan Junqueira não teme <strong>de</strong>cassílabos, redondilhas<br />

(menores e maiores), tetrassílabos, hexassílabos, octossílabos e alexandrinos.<br />

Sua varieda<strong>de</strong> rítmica e métrica, assim como o notável uso que faz da rima<br />

7 Secchin, Antonio Carlos. “O exato exaspero”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida, p. 277.<br />

139


Ricardo Vieira Lima<br />

toante (herança <strong>de</strong> João Cabral, por supuesto), o transformam num caso único<br />

no panorama da poesia brasileira contemporânea.<br />

Isso explica por que o leitor consegue apreciar, em O grifo, a dolorosa beleza<br />

<strong>de</strong> poemas como “Corpus meum”, “Meu pai”, “Penélope: cinco fragmentos”,<br />

“A morte”, “Eles se vão” ou “Morrer”, poema paradigmático da segunda fase<br />

da lírica junqueiriana:<br />

Pois morrer é apenas isto:<br />

cerrar os olhos vazios<br />

e esquecer o que foi visto;<br />

é não supor-se infinito,<br />

mas antes fáustico e ambíguo,<br />

jogral entre a história e o mito;<br />

(...)<br />

é nada <strong>de</strong>ixar aqui:<br />

memória, pecúlio, estirpe,<br />

sequer um traço <strong>de</strong> si;<br />

é findar-se como um círio<br />

em cuja luz tudo expira<br />

sem êxtase nem martírio. (p. 99)<br />

3. a fase: A vida é maior que a morte<br />

Com a publicação <strong>de</strong> A sagração dos ossos (1994), aos 30 anos <strong>de</strong> carreira,<br />

Ivan obtém o reconhecimento quase unânime <strong>de</strong> seus pares e da crítica especializada.<br />

O livro arrebata dois relevantes prêmios nacionais: o Jabuti <strong>de</strong><br />

Poesia e o Luísa Cláudio <strong>de</strong> Sousa, do Pen Club do Brasil.<br />

O êxito obtido pelo poeta é plenamente justificável. A sagração dos ossos sintetiza,<br />

admiravelmente, os principais temas e processos formais da poesia<br />

140


O nervo do conflito<br />

junqueiriana e inaugura uma nova fase, em que o pessimismo do poeta diante<br />

da interrupção da vida é relativizado pela <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> que a morte, afinal,<br />

não representa o fim <strong>de</strong> tudo.<br />

A obra se inicia com o poema “On<strong>de</strong> estão?”, que retoma a clássica tópica<br />

medieval do “Ubi sunt?”. Nesse sentido, o texto é um <strong>de</strong>sdobramento natural <strong>de</strong><br />

“Eles se vão”, do livro anterior. No poema inaugural do volume, sob o efeito,<br />

ainda, da perda <strong>de</strong> parte <strong>de</strong> sua família – pai, mãe e irmãs –, Ivan indaga:<br />

On<strong>de</strong> estão os que partiram<br />

<strong>de</strong>sta vida, <strong>de</strong>svalidos?<br />

On<strong>de</strong> estão, se não ouvimos<br />

<strong>de</strong>les sequer uma sílaba?<br />

On<strong>de</strong> o pai, a mãe, a ríspida<br />

irmã que se contorcia<br />

sob a névoa dos soníferos<br />

e a gosma da nicotina? (p. 138)<br />

No texto seguinte, “O enterro dos mortos”, o poeta lamenta o fato <strong>de</strong> não<br />

haver podido assistir seus familiares no momento da fatal <strong>de</strong>spedida:<br />

Não pu<strong>de</strong> enterrar meus mortos:<br />

baixaram todos à cova<br />

em lentos esquifes sórdidos,<br />

sem alças <strong>de</strong> prata ou cobre.<br />

Nenhum bálsamo ou corola<br />

em seus esquálidos corpos:<br />

somente uma névoa inglória<br />

lhes vestia os duros ossos. (p. 140)<br />

Até aqui, <strong>de</strong>solação. De repente, tudo muda: Ivan, por intermédio da palavra,<br />

confere a dignida<strong>de</strong> tardia aos seus mortos:<br />

141


Ricardo Vieira Lima<br />

Quero esquecê-los. Não posso:<br />

andam sempre à minha roda,<br />

sussurram, gemem, imploram<br />

e erguem-se às bordas da aurora (p. 140)<br />

em busca <strong>de</strong> quem os chore<br />

ou <strong>de</strong> algo que lhes transforme<br />

o lodo com que se cobrem<br />

em ravina luminosa. (p. 141)<br />

Opera-se a transfiguração: ao rememorar seus familiares, o poeta transforma<br />

o lodo (esquecimento) que cobria os mortos em ravina luminosa (acolhida,<br />

reconhecimento), sendo que a ravina <strong>de</strong> que fala Junqueira é, em verda<strong>de</strong>,<br />

seu próprio texto poético.<br />

O poeta começa a driblar a morte. É uma mudança <strong>de</strong> perspectiva, que se<br />

completa quando Ivan resolve refletir sobre a arte. Segundo Christina Ramalho,<br />

autora do estudo, até o momento, mais abrangente sobre a poética<br />

junqueiriana,<br />

“A sabedoria (...) residirá na aceitação tácita do ciclo da vida, no qual o<br />

valor da matéria se extingue e somente o po<strong>de</strong>r da memória poética po<strong>de</strong> se<br />

fazer oração, ladainha, canto <strong>de</strong> sagração e perpetuação lírica dos mortos.<br />

(...) Como sagrar os ossos é sagrar a própria vida neles contida por meio do<br />

recurso lírico e da memória residual faz-se mister a revisão metalinguística<br />

da própria poesia e da missão do poeta.” 8<br />

Essa revisão tem início a partir <strong>de</strong> “Poética”, texto em que Ivan Junqueira<br />

repensa a arte:<br />

8 Ramalho, Christina. Fênix e harpia: faces míticas da poesia e da poética <strong>de</strong> Ivan Junqueira. Rio <strong>de</strong> Janeiro: <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, 2005, pp. 71-72.<br />

142


A arte é pura matemática<br />

como <strong>de</strong> Bach uma tocata<br />

ou <strong>de</strong> Cézanne a pincelada<br />

exasperada, mas exata. (p. 145)<br />

O nervo do conflito<br />

Após uma primeira tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição, o poeta, que preten<strong>de</strong> que a arte<br />

seja concebida com o que chama <strong>de</strong> ostinato rigore, ou seja, “a curva austera das<br />

arcadas / ou o rigor <strong>de</strong> uma pilastra” (p. 145), prossegue:<br />

enfim, nada que lembre as dádivas<br />

da natureza, mas a pátina<br />

em que, domada, a vida alastra<br />

a luz e a cor da eternida<strong>de</strong>. (p. 145)<br />

Observe-se que, para Junqueira, importa construir uma arte banhada <strong>de</strong><br />

vida, com “a luz e a cor da eternida<strong>de</strong>”. Essa i<strong>de</strong>ia é ratificada na estrofe final<br />

do poema:<br />

Despencam, secas, as grinaldas<br />

que o tempo pendurou na escarpa.<br />

Mas dura e esplen<strong>de</strong> a catedral<br />

que se ergue muito além das árvores. (p. 145)<br />

As grinaldas, com o passar do tempo, secam e morrem. Mas a catedral, metáfora<br />

da arte e do homem, dura, esplen<strong>de</strong> e se ergue “muito além das árvores”.<br />

Essa permanência do homem, por meio da arte que ele produz ou consome<br />

– arte esta que se <strong>de</strong>stina a eternizá-lo –, é retomada no melhor poema<br />

da obra, “Terzinas para Dante Milano”. Numa comovida e comovente homenagem<br />

ao amigo morto, Ivan agra<strong>de</strong>ce a Milano pelo que este lhe <strong>de</strong>u: um<br />

“íntimo segredo / que me fez teu her<strong>de</strong>iro e teu irmão.” (p. 155) Mas qual<br />

seria esse segredo? A resposta está contida na mais bela estrofe da o<strong>de</strong>:<br />

143


Ricardo Vieira Lima<br />

E foi lá, entre esfíngico e campestre,<br />

que me ensinaste a ver como o homem po<strong>de</strong><br />

tornar-se eterno sendo o que é, terrestre. (p. 154)<br />

Por outro lado, a eternida<strong>de</strong> em vida passa, é claro, pela continuação da espécie.<br />

Em “Octavus”, o poeta celebra o filho pequeno, cheio <strong>de</strong> vida e alegria.<br />

E conclui: “Dos que já fiz, é o quarto, / mas só o chamam <strong>de</strong> oitavo.” (p. 165)<br />

Como se sabe, o símbolo matemático do infinito é o número oito <strong>de</strong>itado.<br />

“A sagração dos ossos”, poema que encerra o livro, resume exemplarmente<br />

a terceira fase da poesia junqueiriana: o poeta sagra os ossos para louvar a<br />

vida. Pois bem. Prometemos explicar o verda<strong>de</strong>iro significado dos versos “É<br />

sobre ossos e remorsos / que trabalho.” (p. 94) O osso é o símbolo da firmeza,<br />

da permanência. É o que fica, o que resta, é o caroço da imortalida<strong>de</strong>. Como a parte<br />

menos perecível do corpo é formada pelos ossos, estes exprimem, <strong>de</strong> fato, a<br />

materialização da vida. Portanto, ao sagrar os ossos, o poeta louva a vida.<br />

4. a fase: A morte equivale à vida<br />

Treze anos após a publicação <strong>de</strong> A sagração dos ossos, Ivan Junqueira lança O<br />

outro lado 9 , volume composto <strong>de</strong> 35 poemas escritos no período <strong>de</strong> 1998 a<br />

2006. Se em textos como “Prólogo”, “Estruge a voz do vento” e “A árvore”<br />

permanece a visão niilista do poeta, em contrapartida poemas como “Não<br />

vês, meu pai?”, e sobretudo o inesquecível “O rio”, metáfora do tempo e<br />

da vida, <strong>de</strong>monstram cabalmente que a morte não po<strong>de</strong> e não <strong>de</strong>ve ser vista<br />

como o “ponto final” da existência humana. Afinal, a exemplo <strong>de</strong> Leonardo<br />

da Vinci, Ivan sabe que “o homem é a medida <strong>de</strong> todas as coisas”, e que, <strong>de</strong><br />

acordo com a letra <strong>de</strong> “God”, a simbólica canção <strong>de</strong> John Lennon, “Deus é um<br />

conceito através do qual medimos a nossa dor”.<br />

De fato, parece ser essa uma das funções do Deus “déspota, <strong>de</strong>posto”,<br />

“ambíguo e pretérito”, na poesia junqueiriana. Em O outro lado, o nome <strong>de</strong><br />

9 Junqueira, Ivan. O outro lado. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2007.<br />

144


O nervo do conflito<br />

Deus é citado não menos do que sete vezes, quantitativo bastante expressivo,<br />

se consi<strong>de</strong>rarmos que, até o presente volume, Deus aparecera apenas outras<br />

sete vezes, ao longo da obra do poeta.<br />

Todavia, essa nova e acentuada “presença divina” não permite concluir que<br />

estejamos diante <strong>de</strong> um poeta religioso ou <strong>de</strong> alguém que tenha sido objeto<br />

<strong>de</strong> uma recente conversão. O Deus <strong>de</strong> Ivan Junqueira, por vezes próximo ao<br />

“<strong>de</strong>us canhoto” drummondiano, não é uma presença religiosa, nem representa<br />

as qualida<strong>de</strong>s do homem i<strong>de</strong>alizadas. Ao contrário, é a medida da dor<br />

humana. Ivan não <strong>de</strong>seja, jamais <strong>de</strong>sejou, “restaurar a poesia em Cristo”. Para<br />

ele, Deus é o impon<strong>de</strong>rável, o mistério, aquilo que o homem não consegue<br />

controlar e chama <strong>de</strong> “fatalida<strong>de</strong>” ou “<strong>de</strong>stino”.<br />

Nesse sentido, a epígrafe que abre o livro é sintomática. Ivan Junqueira<br />

retirou-a da obra <strong>de</strong> Fernando Pessoa: “Há um poeta em mim que Deus me<br />

disse”. Esse verso retrata, com precisão, o patamar alcançado pelo autor. Até a<br />

publicação <strong>de</strong> A sagração dos ossos, Junqueira era mais conhecido – e reconhecido<br />

– como crítico literário, ensaísta e tradutor. A sagração arrebatou os mais significativos<br />

prêmios literários do país e alçou Ivan à condição <strong>de</strong> um dos maiores<br />

poetas brasileiros vivos. A partir <strong>de</strong>sse feito, ele foi, aos poucos, abandonando<br />

os <strong>de</strong>mais afazeres, para po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>dicar-se, quase que com exclusivida<strong>de</strong>, à<br />

sua própria poesia. Daí o trecho inicial <strong>de</strong> “Prólogo”, esse admirável poema-<br />

-abertura <strong>de</strong> O outro lado: “Eu sou apenas um poeta / a quem Deus <strong>de</strong>u voz e<br />

verso.” (p. 11) 10<br />

Não obstante, Junqueira, ainda que lentamente, começa a <strong>de</strong>spedir-se das<br />

coisas, dos amores, da vida. Primeiro, refletindo sobre seu ofício:<br />

A mão que escreve é aquela<br />

que compôs alguns versos,<br />

o<strong>de</strong>s, canções <strong>de</strong> gesta<br />

e elegias sem metro,<br />

10 O número entre parênteses ao lado das citações ou transcrições dos versos ou estrofes correspon<strong>de</strong><br />

ao número da página, conf. Junqueira, Ivan. O outro lado.<br />

145


Ricardo Vieira Lima<br />

às quais ninguém <strong>de</strong>u crédito<br />

nem ouvidos. Aquela<br />

que ergueu um brin<strong>de</strong> aos féretros<br />

<strong>de</strong> uma insepulta Grécia. (p. 20)<br />

(“A mão que escreve”)<br />

Em “São duas ou três coisas”, primoroso soneto composto com a paixão<br />

e o rigor formal que lhe são peculiares, Ivan produz um texto ambíguo, on<strong>de</strong><br />

não fica claro se está falando <strong>de</strong> um amor platônico, fantasioso, irrealizado,<br />

ou ainda uma vez mais, da finitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua obra poética:<br />

São duas ou três coisas que eu sei <strong>de</strong>la,<br />

e nada mais além <strong>de</strong> seu perfume.<br />

Sei que nas noites ermas ela assume<br />

esse ar <strong>de</strong> quem flutua na janela,<br />

(...)<br />

Sei que ela vive no halo <strong>de</strong> uma vela<br />

e queima, sem consolo, em minha cela. (p. 23)<br />

O poeta das <strong>de</strong>spedidas precoces, aquele que “finge partir para permanecer<br />

mais” 11 – <strong>de</strong> acordo com a arguta observação <strong>de</strong> Eduardo Portella –, prossegue,<br />

agora, em “Vai tudo em mim”:<br />

Vai tudo em mim, enfim, se <strong>de</strong>spedindo<br />

neste pomar sem ramos ou maçãs,<br />

sem sol, sem hera ou relva, sem manhãs<br />

que me recor<strong>de</strong>m o que foi e é findo. (p. 31)<br />

Ainda sob o mesmo tom elegíaco, <strong>de</strong>stacam-se peças como “Indagações”,<br />

“Eis que envelheces”, “Carta régia”, “A tênue luz” e, principalmente, os irretocáveis<br />

“Testamento” e “O testemunho”, poemas que, ao lado do antológico<br />

e caudaloso “O rio”, estão entre os melhores do livro.<br />

11 Cf. Portella, Eduardo. “O legado do poeta”. In: Junqueira, Ivan. O outro lado (orelhas).<br />

146


O nervo do conflito<br />

Quanto ao aspecto formal da obra, avultam as elegias e os sonetos, com<br />

<strong>de</strong>staque, ainda, para o notável uso da terça rima dantesca, recurso que Ivan<br />

soube, como poucos na língua, tornar seu. O mesmo se po<strong>de</strong> dizer com relação<br />

à presença da aliteração no verso junqueiriano, conferindo-lhe rara musicalida<strong>de</strong>,<br />

a exemplo <strong>de</strong>: “os ratos roem os restos” (p. 17); “traçam a trêmula<br />

trama” (p. 33) ou “a fria fauna do que é findo aflora” (p. 15).<br />

A par do comprovado domínio das formas poéticas tradicionais, Junqueira<br />

realizou, <strong>de</strong>sta vez, um saudável retorno ao início <strong>de</strong> sua carreira, investindo<br />

novamente em poemas <strong>de</strong> fatura mais prosaica, on<strong>de</strong> o verso é branco e sem<br />

metro, como nos casos <strong>de</strong> “A árvore”, “Una voce poco fà” ou “Baía Formosa”,<br />

o qual surpreen<strong>de</strong> por apresentar duas belas estrofes que funcionam como<br />

haicais in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes do resto do poema:<br />

o pássaro na relva<br />

dia (grama)<br />

entre o solene e o banal<br />

(...)<br />

arbustos retorcidos<br />

o gemido esguio das casuarinas<br />

fazia frio na baía (p.67)<br />

Poeta <strong>de</strong> temas e dicção classicizantes, era <strong>de</strong> se esperar que, como exímio<br />

cultor dos princípios da chamada ars antiqua, Ivan se <strong>de</strong>bruçasse sobre a tópica<br />

existencial do “Para aon<strong>de</strong> vamos?”, indagação fundamental do poema “O<br />

outro lado”, que intitula o livro:<br />

Diz-me: o que haverá do outro lado,<br />

quando do corpo a tua alma<br />

se <strong>de</strong>sgarrar e, arrebatada,<br />

romper o mármore das lápi<strong>de</strong>s<br />

147


Ricardo Vieira Lima<br />

e a pompa vã dos epitáfios,<br />

que não são mais do que palavras<br />

ou frases fátuas sob as pálpebras<br />

da úmida noite em que jazes? (p. 91)<br />

(...)<br />

A eternida<strong>de</strong>? Deus? O Ha<strong>de</strong>s?<br />

Uma luz cega e intolerável?<br />

A salvação? Ou não há nada? (p. 93),<br />

– conclui o poeta, eivado <strong>de</strong> dúvidas, num tom pessimista semelhante ao do<br />

Raimundo Correia <strong>de</strong> “Fetichismo”.<br />

Mas Ivan Junqueira sabe que não há partida possível para quem apostou tudo<br />

“no infinito e na beleza” (p. 43). O poeta que acreditava que a vida era maior que<br />

a morte <strong>de</strong>scobre, enfim, que morte e vida são apenas faces <strong>de</strong> uma mesma moeda,<br />

já que somos “o princípio / e o fim, na mesma medida” (p. 53); “a um só tempo<br />

o êxtase e a agonia” (p. 79); temos “a nossa vida, sempre diante / da morte” (p.<br />

85), ou estamos “na extrema fronteira entre a vida e a morte.” (p. 43)<br />

Essa dicotomia morte/vida se apresenta <strong>de</strong> forma indissociável nos versos<br />

<strong>de</strong> “O mesmo: o terceiro”:<br />

Mas afinal somos um mesmo,<br />

tal como o fogo e a labareda<br />

ou um do outro o igual mo<strong>de</strong>lo,<br />

rebentos <strong>de</strong> uma única cepa (p. 101)<br />

e refulge, soberana, nas estrofes finais do referido “Não vês, meu pai?”:<br />

Não vês que, morto, estou vivendo<br />

em meio às névoas do teu sonho,<br />

on<strong>de</strong> sem dor me recomponho<br />

e com teu sangue afim me entendo?<br />

148


Não vês, meu pai, que a vida é sonho<br />

e que só nele foi se erguendo<br />

da morte quem a teve, ar<strong>de</strong>ndo,<br />

e enfim triunfou sobre o medonho? (p. 29)<br />

O nervo do conflito<br />

Assim, a lírica junqueiriana, como um todo, po<strong>de</strong> ser lida também como<br />

uma elegia única – a elegia <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>spedida sem partida, formada por um<br />

sublime e coeso conjunto <strong>de</strong> textos, incorporados que estão ao cânone da<br />

poesia brasileira.<br />

Referências<br />

Almeida Fischer. “Apuro artesanal”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São Paulo: A<br />

Girafa, 2005, pp. 261-262.<br />

Amâncio, Moacir. “Versos clássicos, emoção nova”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida.<br />

São Paulo: A Girafa, 2005, pp. 285-286.<br />

Andra<strong>de</strong>, Carlos Drummond <strong>de</strong>. Reunião: 10 livros <strong>de</strong> poesia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José<br />

Olympio, 1976, 7. a edição.<br />

Barbosa Filho, Hil<strong>de</strong>berto. “A sagração dos ossos”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida.<br />

São Paulo: A Girafa, 2005, pp. 305-307.<br />

Bernardini, Aurora F. “Inês <strong>de</strong> Castro além da redoma do mito”. In: Junqueira,<br />

Ivan. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa, 2005, pp. 252-253.<br />

Brandão, Junito. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. 2 v. Petrópolis: Vozes,<br />

1991.<br />

Brunel, Pierre (org.). Dicionário <strong>de</strong> mitos literários. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio, 1998,<br />

2.ª edição.<br />

Chevalier, Jean; Gheerbrant, Alain. Dicionário <strong>de</strong> símbolos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: José Olympio,<br />

1999, 13. a edição.<br />

Eliot, T.S. Poesia. Tradução, introdução e notas <strong>de</strong> Ivan Junqueira. São Paulo: Arx,<br />

2004.<br />

Espinheira Filho, Ruy. “Animal efêmero”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São<br />

Paulo: A Girafa, 2005, pp. 293-294.<br />

_____. “Forma e essência”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa,<br />

2005, pp. 339-340.<br />

149


Ricardo Vieira Lima<br />

Jardim, Paulo <strong>de</strong> Tarso. “Poesia passada e poesia presente”. In: Junqueira, Ivan. Poesia<br />

reunida. São Paulo: A Girafa, 2005, pp. 259-260.<br />

Johns, Per. “Dédalo <strong>de</strong> arcaicas escrituras”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São<br />

Paulo: A Girafa, 2005, pp. 263-274.<br />

_____. “Da magia <strong>de</strong> um pequeno unicórnio na treva a todos os rios do mundo”. In:<br />

Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa, 2005, pp. 336-338.<br />

Junqueira, Ivan. Os mortos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Atelier <strong>de</strong> Arte, 1964.<br />

_____. Poemas reunidos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 1999.<br />

_____. Melhores poemas. Seleção e introdução <strong>de</strong> Ricardo Thomé. São Paulo: Global,<br />

2003.<br />

_____. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa, 2005.<br />

_____. O outro lado. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 2007.<br />

Lemos, Tite <strong>de</strong>. “Os mortos”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa,<br />

2005, pp. 225-227.<br />

_____. “O<strong>de</strong> à poesia”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa,<br />

2005, pp. 247-249.<br />

Lima, Ricardo Vieira. “Revelações do poeta da morte” (entrevista). In: Tribuna Bis,<br />

Tribuna da Imprensa, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 13.12.1994.<br />

_____. “Versos para exorcizar a morte” (entrevista). In: Cultural, A Tar<strong>de</strong>, Salvador,<br />

10.07.1999.<br />

_____. “Despedida sem partida” (resenha). In: <strong>Prosa</strong> & Verso, O Globo, Rio <strong>de</strong> Janeiro,<br />

22.12.2007.<br />

Lucchesi, Marco. “A poesia é maior que a morte”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida.<br />

São Paulo: A Girafa, 2005, pp. 313-314.<br />

Portella, Eduardo. “O legado do poeta”. In: Junqueira, Ivan. O outro lado (orelhas).<br />

Py, Fernando. “Os mortos: boa estreia”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São Paulo:<br />

A Girafa, 2005, pp. 228-229.<br />

_____. “A sagração dos ossos”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa,<br />

2005, pp. 297-299.<br />

Ramalho, Christina. Fênix e harpia: faces míticas da poesia e da poética <strong>de</strong> Ivan Junqueira. Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro: <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, 2005.<br />

Secchin, Antonio Carlos. “O exato exaspero”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São<br />

Paulo: A Girafa, 2005, pp. 277-281.<br />

150


O nervo do conflito<br />

Seffrin, André. “Exatidão transbordante”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São<br />

Paulo: A Girafa, 2005, pp. 315-316.<br />

Teles, Gilberto Mendonça. “As duas vozes do poeta”. In: Junqueira, Ivan. Poesia<br />

reunida. São Paulo: A Girafa, 2005, pp. 233-246.<br />

Thomé, Ricardo. “Ivan Junqueira: a poesia do palimpsesto” (introdução). In: Junqueira,<br />

Ivan. Melhores poemas. Seleção e introdução <strong>de</strong> Ricardo Thomé. São Paulo:<br />

Global, 2003.<br />

Veiga, Elisabeth. “O grifo: agônico e iluminado”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida.<br />

São Paulo: A Girafa, 2005, pp. 275-276.<br />

_____. “Ruptura na tradição”. In: Junqueira, Ivan. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa,<br />

2005, pp. 295-296.<br />

151


Jorge Amado


Releituras<br />

<strong>Prosa</strong><br />

Marcos Santarrita<br />

Toda geração, dizia Thomas Mann, <strong>de</strong>ve retraduzir os clássicos.<br />

Explica-se a recomendação não apenas pela necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> atualização da linguagem – que não ocorre no original, e portanto<br />

é dispensável – mas porque cada uma, com problemas e visões do<br />

mundo próprias, leria uma nova obra. Se isso se aplica às gerações,<br />

em geral calculadas como a intervalos <strong>de</strong> mais ou menos cinco anos,<br />

muito mais ainda se aplicaria aos indivíduos, que no curso da vida<br />

passam por várias gerações pessoais. Como afirmava o filósofo grego,<br />

o rio não passa duas vezes no mesmo lugar.<br />

Já se disse, e é verda<strong>de</strong>, que há um livro, ou tipo <strong>de</strong> livro, para<br />

cada ida<strong>de</strong>. Aquele que se leu aos vinte anos não é o mesmo que se<br />

lerá aos trinta, quarenta, cinquenta. Algumas vezes até a própria trama<br />

muda, vemos episódios que não vimos, personagens que não notamos,<br />

porque não nos i<strong>de</strong>ntificávamos com o que representavam; e<br />

outros, se não ficaram na memória, passam <strong>de</strong>spercebidos. No meu<br />

caso particular, até se criam cenas inexistentes, não secundárias, mas<br />

daquelas que passam a representar, em nosso imaginário, a obra<br />

toda – e às vezes até a con<strong>de</strong>ná-la sem apelação.<br />

153<br />

Jornalista,<br />

escreveu 14<br />

obras <strong>de</strong> ficção<br />

e mais <strong>de</strong> 100<br />

traduções, entre<br />

elas alguns dos<br />

maiores clássicos<br />

da literatura<br />

mundial, como<br />

Stendhal,<br />

Joseph Conrad,<br />

Piran<strong>de</strong>llo,<br />

Alexandre<br />

Dumas,<br />

Charlotte Brönte,<br />

John dos Passos<br />

e Thomas<br />

Pynchon. Duas<br />

vezes premiado<br />

pela <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>, pelo<br />

melhor romance<br />

<strong>de</strong> 2001, Mares<br />

do sul, e tradutor<br />

(conjunto <strong>de</strong><br />

obra) em 2003.


Marcos Santarrita<br />

Aos <strong>de</strong>zenove ou vinte anos <strong>de</strong>scobri, entre estarrecido e <strong>de</strong>snecessariamente<br />

envergonhado, o tamanho da minha ignorância literária. Até então,<br />

toda a minha vasta cultura literária se resumia às obras <strong>de</strong> William Somerset<br />

Maugham e Jorge Amado, e uma ou outra obra juvenil esporádica. O primeiro<br />

livro que me mostrou como se podia criar beleza com simples palavras do dia<br />

a dia, A Ilha <strong>de</strong> Coral, <strong>de</strong> Robert Ballantyne, me apareceu <strong>de</strong> repente durante<br />

toda a infância e adolescência – no quarto <strong>de</strong> um amigo não dado a leituras,<br />

numa casa gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazenda <strong>de</strong> cacau no fundo <strong>de</strong> uma floresta tropical, no<br />

baú <strong>de</strong> um colega <strong>de</strong> internato no sertão da Bahia. Mesmo <strong>de</strong>pois da morna<br />

<strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> tornar-me escritor, ao ler Gabriela Cravo e Canela, <strong>de</strong> Jorge Amado<br />

– segunda e maior epifania literária – eu não era, <strong>de</strong> jeito nenhum, o que se<br />

po<strong>de</strong>ria chamar <strong>de</strong> um rapaz lido. As pessoas do ramo que sabiam <strong>de</strong>ssa veleida<strong>de</strong><br />

me diziam:<br />

– Quer ser escritor? Então precisa conhecer a obra <strong>de</strong> Machado, Alencar,<br />

Cervantes, Shakespeare, os gregos...<br />

E por aí seguiam, <strong>de</strong>ixando-me tonto não apenas com tantos nomes dos<br />

quais jamais ouvira falar, mas imaginando (vendo) as montanhas <strong>de</strong> livros à<br />

minha frente. Passado o período inevitável em que dizia a eles e a mim mesmo:<br />

mas eu vou escrever a partir do que tenho na cabeça; não preciso saber<br />

o que eles escreveram – <strong>de</strong>sculpa esfarrapada para evitar o ordálio – resolvi<br />

enfrentar o <strong>de</strong>safio, e até hoje não parei <strong>de</strong> ler. Fui singularmente favorecido<br />

nisso pelo fato <strong>de</strong> estar fazendo o CPOR em Salvador. Com exceção dos períodos<br />

<strong>de</strong> férias, em que tínhamos <strong>de</strong> passar o dia no Forte <strong>de</strong> São Joaquim,<br />

na Cida<strong>de</strong> Baixa, todo o resto do ano ficávamos em casa, pois já acabáramos<br />

o secundário; só nos sábados nos apresentávamos, e mesmo assim <strong>de</strong> meio-<br />

-dia às seis da tar<strong>de</strong>. Resultado: eu passava o dia e varava a noite <strong>de</strong>itado numa<br />

cama patente em meu quarto <strong>de</strong> pensão, com um abajur por trás da cabeça,<br />

lendo, lendo, lendo.<br />

Primeiro foram as literaturas brasileira e portuguesa, cujas obras, esgotadas,<br />

eu comprava por uma ninharia no sebo do Loureiro, numa transversal da la<strong>de</strong>ira<br />

que <strong>de</strong>scia da praça do Palácio para a Cida<strong>de</strong> Baixa. Esse mesmo livreiro,<br />

um benemérito da cultura baiana que forneceu obras-primas a preços mínimos<br />

154


Releituras<br />

a gerações <strong>de</strong> escritores baianos, me proporcionou um inesperado aprendizado<br />

<strong>de</strong> inglês: ven<strong>de</strong>u-me por <strong>de</strong>zesseis cruzeiros um dicionário que nas livrarias<br />

custava cento e sessenta – o mesmo dicionário que, após várias enca<strong>de</strong>rnações<br />

e reenca<strong>de</strong>rnações, se mantém fiel a meu lado em toda uma vida <strong>de</strong> tradutor.<br />

Também no Loureiro comprei meus primeiros pocket books, em geral romances<br />

policiais menores em cuja leitura eu nada per<strong>de</strong>ria se não enten<strong>de</strong>sse alguma<br />

coisa. Daí para O emblema rubro da coragem, <strong>de</strong> Stephen Crane, e Contraponto,<br />

<strong>de</strong> Aldous Huxley, foi um passo, no segundo socorrido por uma excelente<br />

tradução <strong>de</strong> Érico Veríssimo. Como eu trabalhava na Biblioteca Pública, na<br />

mesma praça do Palácio, tinha acesso a uma parte do prédio on<strong>de</strong> se amontoavam<br />

livros americanos, <strong>de</strong> bolso e <strong>de</strong> capa dura, mandados pelo governo<br />

daquele país, ao que parece, a todas as bibliotecas do mundo – sempre os<br />

últimos lançamentos ou reedições <strong>de</strong> obras clássicas. E aquilo tudo era só<br />

para mim, vejam vocês. Foi uma festa. Li antes <strong>de</strong> todo mundo Os comediantes,<br />

<strong>de</strong> Graham Greene, A última batalha, <strong>de</strong> Cornelius Ryan, um livro <strong>de</strong>sconhecido<br />

intitulado Tome a primavera nas mãos, <strong>de</strong> uma americana também <strong>de</strong>sconhecida, e<br />

muitos, muitos outros. Hoje creio po<strong>de</strong>r dizer que já li mais em inglês do que<br />

em qualquer outra língua que conheço, incluindo a minha.<br />

Mas, claro, essa <strong>de</strong>sembestada carreira aos livros não foi metódica, do mais<br />

simples para o mais complexo, e sim ao contrário. Assim, logo <strong>de</strong> cara fui pegando<br />

escritores complexos como Proust, Mann, Faulkner, Guimarães Rosa, e<br />

o que então se anunciavam como best-sellers, sinônimo <strong>de</strong> coisa simples, simplória<br />

até: Dr. Jivago, <strong>de</strong> Boris Pasternak, Lolita, <strong>de</strong> Vladimir Nabokov, Um dia na vida <strong>de</strong><br />

Ivan Denisovitch, <strong>de</strong> Alieksandr Soljenitsin, entre outros. O primeiro é um dos<br />

livros mais mal escritos que já vi, não na linguagem, mas na trama: excesso <strong>de</strong><br />

personagens, e sobretudo <strong>de</strong> coincidências, que irritava mesmo um plumitivo<br />

como eu. O segundo, apresentado pela publicida<strong>de</strong> internacional como um romance<br />

semipornô, me irritou pelo exato lado oposto: belissimamente escrito,<br />

belissimamente concebido e narrado, eu não estava à altura <strong>de</strong> entendê-lo, queria<br />

apenas a inexistente libidinagem, e acabei por <strong>de</strong>ixá-lo <strong>de</strong> lado.<br />

Guimarães Rosa, o dodói da época, indicado pelo crítico paulista Leo Gilson<br />

Ribeiro, em visita à Bahia, tampouco teve melhor sorte: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> cinco páginas<br />

155


Marcos Santarrita<br />

sem enten<strong>de</strong>r patavina – ainda acho que o Gran<strong>de</strong> sertão ficaria bem melhor traduzido<br />

para o português – man<strong>de</strong>i-o juntar-se aos dois primeiros. O mesmo<br />

<strong>de</strong>stino teve O som e a fúria, <strong>de</strong> Faulkner, escrito a partir do verso <strong>de</strong> Shakespeare<br />

segundo o qual o mundo é uma história cheia <strong>de</strong> barulho e fúria, contada por<br />

um idiota, exatamente como a narrada no livro: Benjy, nome ao mesmo tempo<br />

<strong>de</strong> um tio idiota e uma sobrinha pequena, narra o que lhe passa pela cabeça,<br />

misturando tempos, pessoas, diálogos. A única frase legível é a final sobre a<br />

negra Dilsey: ela aguentava. Graciliano Ramos, que me parecia – e ainda parece<br />

– seco e pobre <strong>de</strong>mais na imaginação, foi fácil. Na verda<strong>de</strong>, embora dissesse<br />

<strong>de</strong>testar Machado <strong>de</strong> Assis, ele era um fiel discípulo, quase imitador, do bruxo<br />

do Cosme Velho. Também a Machado, com toda a fina ironia e olho psicológico<br />

para dissecar personagens complexas, faltavam os gran<strong>de</strong>s voos <strong>de</strong> imaginação<br />

e drama, <strong>de</strong> forma que os romances não passavam <strong>de</strong> contos esticados – e os<br />

contos, bem, os contos são outra história, consumadas obras-primas, romances,<br />

estes, sim, con<strong>de</strong>nsados. O mesmo se po<strong>de</strong> dizer, a propósito, <strong>de</strong> Clarice Lispector,<br />

autora revolucionária na forma e no conteúdo – o contrário dos dois.<br />

Aprovado em Graciliano e reprovado em Faulkner, enfrentei A montanha mágica,<br />

<strong>de</strong> Thomas Mann, o que foi um erro; <strong>de</strong>via começar pelos Os Bu<strong>de</strong>nbrook,<br />

que sempre me agradou. A essa altura, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler autores europeus aparentemente<br />

mais fáceis – Jean-Paul Sartre e Alberto Morávia, por exemplo – eu<br />

<strong>de</strong>senvolvera a tese, que ainda mantenho, <strong>de</strong> que eles não escreviam romances,<br />

e sim ensaios: criavam três, quatro ou mais personagens, cada uma representando<br />

uma corrente filosófica, política, religiosa, e as punham para discutir;<br />

nos breves intervalos, as tênues tramas.<br />

O melhor exemplo disso é Tolstoi em Guerra em paz; na verda<strong>de</strong>, trata-se <strong>de</strong><br />

dois livros intercalados: a história das famílias Bejukov, Rostov e Bolkonski<br />

(a grafia varia segundo a transliteração, em geral feita para o inglês), envolvidas<br />

na guerra, e um longo ensaio, sem qualquer ficção – o <strong>de</strong>bate sobre se<br />

é o homem (no caso, Napoleão) quem faz a história, ou a história que faz o<br />

homem. Tolstoi, aliás, era uma exceção na rica literatura russa. Se houve autor<br />

que escreveu ficção pura, e sublime, apesar da linguagem pobre, foi Dostoiévski,<br />

para mim o maior dos romancistas – romancistas, não escritores ou<br />

156


Releituras<br />

redatores – <strong>de</strong> todos os tempos. Sem falar em toda uma época, que viu Gogol,<br />

Liermontov, Turguêniev, Checov, Górki, Andreiev, Goncharov, e que nem a<br />

censura soviética matou, como Ehrenburg e Cholocov.<br />

Reconheço que essas distinções são um pouco sutis <strong>de</strong>mais, e só posso<br />

tentar explicá-las com exemplos. O escritor é o, digamos, redator, o amanuense<br />

que apenas põe no papel as palavras ditadas pelo romancista, segundo as<br />

regras da sintaxe e da gramática, não muito importantes no caso. O narrador<br />

é o que estrutura a história, arma as situações, <strong>de</strong>senha as personagens. E o<br />

romancista, bem, o romancista é o que concebe a coisa toda.<br />

Assim, Balzac foi um gran<strong>de</strong> romancista, mas um péssimo escritor e pior<br />

redator e narrador, a não ser nos dois últimos romances, A prima Bete e O primo<br />

Pons, para os quais se inspirou nas cenas teatrais e estáticas dos folhetinistas<br />

franceses, que estão na origem do romance contemporâneo. Dostoiévski, talvez<br />

<strong>de</strong>vido à pressa com que escrevia (como Balzac), foi um péssimo redator,<br />

um narrador sofrível, a não ser em Crime e castigo e no primeiro romance epistolar,<br />

Pobre gente, que publicou aos vinte e quatro anos, e, como eu já disse, o<br />

maior dos romancistas. O equilíbrio perfeito, quem o alcançou foi o russo<br />

naturalizado inglês Joseph Conrad (nascido numa província da Polônia então<br />

sob domínio russo, e por isso também consi<strong>de</strong>rado polonês); porém com essa<br />

perfeição mesma pecou, por assim dizer; faltava-lhe exatamente o toque <strong>de</strong><br />

imperfeição que caracteriza as produções humanas – que as torna humanas. E<br />

não chegou à esterilida<strong>de</strong> do perfeito O velho e mar.<br />

Voltando a Mann, ele não me pareceu diferente da minha <strong>de</strong>finição dos<br />

europeus, mas pelo menos consegui chegar ao fim da Montanha, em suaves<br />

prestações <strong>de</strong> leitura: lia cem, cento e cinquenta páginas, largava, pegava outros<br />

livros, voltava, e assim por diante, durante meses. Ufa!<br />

Mas aí aconteceu outra coisa: fiquei com uma imagem absolutamente negativa<br />

do romance – e do autor. Sempre que alguém pedia minha opinião<br />

sobre a Montanha mágica, eu respondia:<br />

– Olhe, um escritor que escreve vinte páginas <strong>de</strong> botânica, da estrutura das<br />

folhas contra o sol, sem qualquer relação direta com o livro, só para explicar a<br />

transparência da aba do nariz da heroína Cláudia Chauchat, não é escritor.<br />

157


Marcos Santarrita<br />

Era, mas eu não sabia então, ao usar o mesmo argumento <strong>de</strong> André Gi<strong>de</strong><br />

quando, após o imenso sucesso <strong>de</strong> Proust, lhe perguntavam por que, como<br />

editor, recusara o primeiro volume <strong>de</strong> Em busca do tempo perdido: “Um escritor<br />

que leva vinte páginas para <strong>de</strong>screver como uma mulher se vira <strong>de</strong> um lado<br />

para outro na cama não é escritor.” E no caso <strong>de</strong> Proust havia ainda outra<br />

explicação: na juventu<strong>de</strong>, quando era cronista social, publicara um romance<br />

bem fraco e o haviam confundido, pela semelhança dos sobrenomes, com o<br />

Aba<strong>de</strong> Prévost, autor <strong>de</strong> Manon Lescaut, história romântica da qual, apesar da<br />

gran<strong>de</strong> popularida<strong>de</strong>, ninguém gostava. Ou seja, para Gi<strong>de</strong> ele já vinha com<br />

fama <strong>de</strong> escritor medíocre.<br />

Uns quinze anos <strong>de</strong>pois, já redator do Jornal do Brasil, no Rio, Mário Pontes,<br />

editor do ca<strong>de</strong>rno Livros – hoje I<strong>de</strong>ias – me pediu para escrever uma resenha<br />

sobre a Montanha mágica, que acabava <strong>de</strong> ser relançado, traduzida por Herbert<br />

Caro, mas sem a tradução em pé <strong>de</strong> página da cena mais bela do romance,<br />

páginas e páginas em francês <strong>de</strong>screvendo a <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> amor <strong>de</strong> Hans Castorp<br />

a Cláudia Chauchat, que vinha na edição da Globo <strong>de</strong> Porto Alegre.<br />

Mário tinha pressa e me disse que, como eu já lera o livro, só precisava fazer<br />

uma leitura por cima, para avivar a memória.<br />

Foi o que fiz, ou pensei fazer. Logo <strong>de</strong> saída, apesar <strong>de</strong> estar tudo lá, me pareceu<br />

outra obra, nada a ver com aquele colóquio intelectual pedante a que eu<br />

a reduzira – embora isso também esteja presente, mas sem intrusão, redondo,<br />

como se diz hoje. Li umas vinte páginas e escrevi a resenha – e continuei a ler,<br />

cada vez mais fascinado, não apenas com a narrativa, e sim comigo mesmo,<br />

com a minha falta <strong>de</strong> perspectiva na época da primeira leitura. Restava apenas<br />

conferir uma coisa: as vinte páginas <strong>de</strong> botânica do nariz <strong>de</strong> Cláudia Chauchat.<br />

Não apareciam. Não seriam tantas assim, apenas poucas, ou só uma<br />

ligeira referência? O diabo da cena não apareceu, primeiro on<strong>de</strong> eu a julgava<br />

ter lido, <strong>de</strong>pois na obra inteira.<br />

Imaginem a minha perplexida<strong>de</strong>. Ao me encontrar com o editor, Pedro<br />

Paulo Sena Madureira, num lançamento, perguntei-lhe se a tinham cortado e<br />

ele me garantiu que não, e como lera a edição da Globo e a sua, esta fazia pouco<br />

tempo, cotejando as duas, ficou mais intrigado ainda. A cena simplesmente<br />

158


Releituras<br />

não existia, nunca existira. É, ao que parece eu <strong>de</strong>lirara, ou, como se diz hoje,<br />

viajara na maionese: minha imaginação, out of nowhere, criara a cena inteirinha.<br />

Quanto ao corte da tradução em pé <strong>de</strong> página, sem a qual eu não po<strong>de</strong>ria ter<br />

lido o romance na primeira vez, pois não falava língua alguma senão – mal – a<br />

minha, ele explicou que fora uma exigência da viúva <strong>de</strong> Mann. Segundo ela,<br />

quando o livro fora lançado na Alemanha, os alemães sabiam tanto francês<br />

quanto os brasileiros da época e <strong>de</strong> então.<br />

Foi então que eu, pouco afeito a releituras, comecei tudo <strong>de</strong> novo. Os únicos<br />

livros que relia com regularida<strong>de</strong> eram Os sertões, <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s da Cunha,<br />

Mar Morto, <strong>de</strong> Jorge Amado, e Um drama na Malásia, título brasileiro <strong>de</strong> The narrow<br />

corner, <strong>de</strong> Somerset Maugham, que nas vezes seguintes li no original. Para<br />

mim, Maugham era um mistério sedutor. Eu o consi<strong>de</strong>rava, e ainda consi<strong>de</strong>ro,<br />

o melhor narrador na história da literatura mundial, e nisso sou apoiado<br />

por ninguém menos que Gabriel García Márquez. Durante uma conversa que<br />

tivemos no restaurante Barril, no Arpoador, o escritor inglês Graham Swift<br />

me disse ter lido numa entrevista <strong>de</strong> García Márquez que Maugham fora seu<br />

gran<strong>de</strong> mestre. E no entanto todos o tinham, e ainda têm, como um escritor<br />

menor. Para mim, não batia.<br />

Aos poucos, porém, nessa releitura, fui enten<strong>de</strong>ndo. Por trás <strong>de</strong> um cinismo<br />

e <strong>de</strong> um humor que extraíam graça <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes sutis da socieda<strong>de</strong> inglesa<br />

da época, Maugham era na verda<strong>de</strong> revolucionário nos costumes, digamos<br />

assim, e no fundo um reacionário político, na forma e no conteúdo.<br />

Depois, ao ler Bertrand Russell, vi que ele classificava toda a socieda<strong>de</strong>,<br />

em todas as épocas, segundo essa contradição dialética. As classes altas, a elite,<br />

sempre foram revolucionárias nos costumes e reacionárias na política; e a<br />

classe baixa, ao contrário, reacionaríssima nos costumes e revolucionaríssima<br />

na política. Basta pensar nos mores sexuais que predominaram até meados do<br />

século XX no mundo oci<strong>de</strong>ntal, revelados logo nos anos 1920 pelos estudos<br />

pioneiros <strong>de</strong> Kinsey.<br />

Nos tempos mo<strong>de</strong>rnos (que, ao contrário do que muitos pensam, não<br />

começaram agora ou no passado recente, mas na era dos <strong>de</strong>scobrimentos),<br />

por exemplo, prevaleceu sempre o tabu da virginda<strong>de</strong>; no Brasil, isso levava<br />

159


Marcos Santarrita<br />

– ainda na época <strong>de</strong> minha juventu<strong>de</strong> – os pais mais amantes a mandarem as<br />

filhas “perdidas”, <strong>de</strong>sonradas, povoarem os bordéis, para gran<strong>de</strong> gáudio dos<br />

maganões, às vezes aqueles mesmos que as haviam <strong>de</strong>florado. O adultério, por<br />

sua vez, crime previsto em lei e não aceito (pelos maridos e pela socieda<strong>de</strong>),<br />

grassava como incêndio na caatinga. Já as práticas na cama das casadas (damas<br />

no salão e prostitutas no leito, nupcial ou não) fariam rebentar <strong>de</strong> rubor o coitado<br />

do hindu Vatsyayana. Não era preciso porém o famoso Relatório Kinsey.<br />

No auge da Inglaterra vitoriana, revistas literárias pornográficas bem escritas,<br />

como The pearl, publicavam clan<strong>de</strong>stinamente, nos termos e ilustrações mais<br />

explícitos possíveis, as sacanagens dos britânicos – da classe alta, claro; os<br />

pobres, embora mais liberais que nós então, só faltavam manter as mulheres<br />

aprisionadas em cintos <strong>de</strong> castida<strong>de</strong>, e muitos pais também mandavam as<br />

filhas para os bordéis.<br />

O brochante nessa literatura erótica dos ingleses era o estranho prazer que<br />

eles sentiam e sentem em ser açoitados nas ná<strong>de</strong>gas – só a dor os faz ter orgasmos.<br />

Depois <strong>de</strong> um ou dois capítulos <strong>de</strong> libidinagens “normais”, digamos<br />

assim, e altamente prurientes, lá vinham os açoites, as dominadoras, os velhos<br />

marmanjos fingindo-se <strong>de</strong> criancinhas travessas e pedindo <strong>de</strong> joelhos perdão<br />

às “mamães”, metidas em sumárias roupas <strong>de</strong> pelica preta e equipadas com<br />

chibatas, torqueses, sutiãs e pulseiras eriçadas <strong>de</strong> pregos afiados – já se imagina<br />

o quadro, mais atual que nunca; é só procurar na Internet.<br />

Somerset Maugham não chegava a tanto, embora, homossexual, fosse também<br />

nesse aspecto um revolucionário, sobretudo numa Inglaterra on<strong>de</strong> isso<br />

era crime sério, constava do Código Penal. Só não era besta <strong>de</strong> sair saracoteando<br />

cheio <strong>de</strong> a<strong>de</strong>manes pelos salões, navios e ilhas que frequentava. Tampouco<br />

se i<strong>de</strong>ntificaram em seus livros, como na Albertine <strong>de</strong> Proust, heróis travestidos<br />

<strong>de</strong> heroínas. Viveu até a morte, publicamente, com um “secretário”, que<br />

ficou com a rica herança.<br />

É, a barra era pesada, meu senhor. Que o digam o pobre Oscar Wil<strong>de</strong><br />

no século XIX, e o criador do computador, Alan Turing, já em 1954. Gênio<br />

da matemática, Turing era pouco menos que um idiota na vida: levou<br />

um marginal explorador <strong>de</strong> gays para casa, e o malandro, claro, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

160


Releituras<br />

uma semana <strong>de</strong> sexo mercenário se mandou com tudo em que pô<strong>de</strong> pôr as<br />

mãos. Pois bem, o brilhante inventor da Máquina Turing, cujas tendências<br />

e práticas sexuais todos conheciam, mas, com a famosa hipocrisia britânica,<br />

fingiam ignorar – a polícia só investigava os <strong>de</strong>nunciados – fez isso mesmo:<br />

<strong>de</strong>nunciou o ladrão. O preso porém foi ele, que, processado, não resistiu à<br />

vergonha e matou-se. Mais ou menos o que fizera Wil<strong>de</strong> no século anterior,<br />

sem o epílogo do suicídio.<br />

<br />

O tempora, o mores<br />

A essa altura, eu já dominava o inglês, o espanhol e o italiano – apenas lidos,<br />

não falados – e começara a traduzir artigos literários, <strong>de</strong> graça, claro, para<br />

jornais <strong>de</strong> Salvador. Não fora bem uma iniciativa pessoal. Com meu comunismo<br />

antiamericanista, eu <strong>de</strong>testava tudo que fosse ianque, y compris Coca-Cola<br />

e uísque. Mas adorava o cinema <strong>de</strong> Hollywood e começava a enfronhar-me<br />

nos sedutores mistérios do jazz, que <strong>de</strong>pois vim a i<strong>de</strong>ntificar como a gran<strong>de</strong><br />

música clássica do século XX; os compositores clássicos, com experimentalismos<br />

estéreis, haviam entregado <strong>de</strong> ban<strong>de</strong>ja a batuta aos negros do Harlem e<br />

das fazendas <strong>de</strong> algodão do sul norte-americano. Uma contradição dialética a<br />

mais ou a menos não ia fazer gran<strong>de</strong> diferença, ia?<br />

Logo no início <strong>de</strong> minha trajetória literária, porém, tive como mentor um<br />

gran<strong>de</strong> amigo, o jovem (para mim, então, velho) crítico literário Carlos Falk,<br />

que se matou por amor (ah, o romantismo da Bahia naqueles anos <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong>),<br />

e um <strong>de</strong> seus primeiros conselhos foi: se eu queria ser escritor, tinha <strong>de</strong><br />

saber pelo menos uma língua estrangeira que não fosse o espanhol; bem ou<br />

mal, a gente conseguia ler textos nesse idioma, em particular os que vinham<br />

numa revista da Cuba <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l dirigida ao Brasil. Anos <strong>de</strong>pois, nos anos 1970,<br />

conversando com o argentino Ernesto Sábato em São Paulo, conversamos sobre<br />

isso. Qualquer brasileiro <strong>de</strong> certa cultura podia ler os livros <strong>de</strong>le, e ele só a<br />

custo e mal conseguia ler os meus. É assim com os dois povos.<br />

A cronista Eneida contava que, num congresso <strong>de</strong> escritores comunistas na<br />

Espanha, alguém lhe <strong>de</strong>finiu a língua portuguesa como castelhano indigente,<br />

161


Marcos Santarrita<br />

e ela respon<strong>de</strong>u que o castelhano é que era português pedante. Ninguém nos<br />

levava a sério, e muita gente não leva até hoje: Marion Zimmerman, autora <strong>de</strong><br />

Brumas <strong>de</strong> Avalon, ficou surpreendidíssima na década <strong>de</strong> 1970 ou 80 ao saber<br />

que nós tínhamos uma literatura própria. No século XIX, o aventureiro e escritor<br />

britânico Richard Burton ainda precisava afirmar que nossa língua era<br />

um idioma, e não um dialeto, como dizia quase todo mundo. Um dos mais<br />

brilhantes intelectuais da época, ele apren<strong>de</strong>ra português em pouco mais <strong>de</strong><br />

três meses no Brasil (também apren<strong>de</strong>ra o farsi, o hindu e o árabe, e traduzira<br />

clássicos como o Jardim perfumado, As mil e uma noites e os Kama sutra). Como se<br />

não bastasse, quando cônsul da Inglaterra em São Paulo, discutia tupi-guarani<br />

com os colegas brasileiros, ex catedra.<br />

A maior surpresa <strong>de</strong> minhas releituras, porém, foi a <strong>de</strong> À la recherche du temps<br />

perdu. Como eu já disse, lera os sete volumes, nas traduções <strong>de</strong> Mário Quintana,<br />

Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, Cecília Meireles e Lúcia Miguel Pereira,<br />

em várias etapas – e <strong>de</strong>testara. Com o preconceito típico <strong>de</strong> <strong>de</strong>stino, classificava<br />

as longas frases <strong>de</strong>le (algumas com mais <strong>de</strong> mil e quinhentas palavras),<br />

como coisa <strong>de</strong> mulher ren<strong>de</strong>ira, efeminado – veado, numa palavra. Foi só<br />

chegar porém à <strong>de</strong>scrição que ele faz da mãe, ainda no primeiro volume, A caminho<br />

<strong>de</strong> Swan, que não mais aguentei: caí em pranto convulso. Jamais vira coisa<br />

tão bonita, tão comovente, e essa opinião, esse julgamento, só se alterou ao ler<br />

O amor no tempo do cólera, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cien años <strong>de</strong> soledad, <strong>de</strong> Márquez – sem dúvida<br />

a mais bela prosa já escrita, e, ao contrário <strong>de</strong> Proust, sem frases quilométricas.<br />

Claro, Gabo tivera como mentor outro mestre <strong>de</strong> todos: o americano<br />

Ernest Hemingway. Quem ler El coronel no tiene quien le escriba, como os extensos<br />

diálogos curtos, po<strong>de</strong>rá comprovar isso.<br />

Com exceção daquelas releituras <strong>de</strong> antes, acrescentadas <strong>de</strong> mais umas poucas,<br />

continuo sempre atrás <strong>de</strong> coisas novas. Fiz um cálculo e cheguei à conclusão<br />

<strong>de</strong> que, se vivesse três vidas, não conseguiria ler o que preciso, para não<br />

falar do que gostaria. E olhe que já li à beça. Eu soube que quando perguntam<br />

a um amigo meu, o filósofo Carlos Nelson Coutinho, se já leu um <strong>de</strong>terminado<br />

livro, ele não hesita: “Eu, não, mas o Marcos Santarrita certamente sim.”<br />

Se non è vero...<br />

162


Releituras<br />

Agora então, com a Internet, é covardia. Livros que eu jamais sonharia<br />

encontrar aqui, como a História, <strong>de</strong> Heródoto, Vidas, <strong>de</strong> Plutarco, obras <strong>de</strong><br />

Jane Austen, Dickens, Conrad, Balzac, Guy <strong>de</strong> Maupassant, Anatole France,<br />

Proust, Piran<strong>de</strong>llo, Manzini, encontram-se pelas letras correspon<strong>de</strong>ntes,<br />

<strong>de</strong> autores ou obras, no site Projeto Gutenberg e na Biblioteca Bodleian, da<br />

Universida<strong>de</strong> Oxford. Também Machado, Eça, Camillo, Júlio Diniz lá estão.<br />

Quem quiser beirar um pouco o limite da lei encontra até bobagens pseudoliterárias<br />

e pseudo-históricas como O código da Vinci, e os mais recentes best-sellers<br />

<strong>de</strong> John Grisham e Robert Ludlum. Até Paulo Coelho pôs toda a sua obra<br />

digitalizada num CD vendido junto com uma revista.<br />

É, tem <strong>de</strong> tudo para todos, todos os gostos. E eu lá. Armado com um<br />

Palmtop, que me permite total liberda<strong>de</strong> em relação à luz, tempo e lugar,<br />

<strong>de</strong>voro essas obras antigas e mo<strong>de</strong>rnas – e, <strong>de</strong> quebra, ainda escrevo algumas.<br />

Além das leituras – Heródoto, Plutarco, Plínio, Gibbons, Eucli<strong>de</strong>s – voltei às<br />

releituras: Cervantes, Shakespeare, Lope <strong>de</strong> Vega, Alemán, o pícaro e anônimo<br />

Lazarillo <strong>de</strong> Tormes, Jane Austen, Dickens, Balzac, Maupassant, Eça, Camillo,<br />

Diniz, Alencar, Afrânio Peixoto, Inglês <strong>de</strong> Sousa, Adolfo Caminha, Manuel<br />

<strong>de</strong> Oliveira Paiva, Júlia Lopes Ribeiro, Simões Lopes Neto, romances sobre a<br />

Guerra do Paraguai, <strong>de</strong> autores paraguaios contemporâneos e mais recentes.<br />

É só dizer.<br />

163


<strong>Prosa</strong><br />

O olho <strong>de</strong> Bluteau, o <strong>de</strong><br />

Cândido Lusitano e outras<br />

viagens lexicográficas<br />

Mauro <strong>de</strong> Salles Villar<br />

Rafael Bluteau, um dos pais dos dicionaristas <strong>de</strong> língua portuguesa,<br />

nasceu na Inglaterra, filho <strong>de</strong> franceses. Apesar disso,<br />

foi ele, um estrangeiro, quem primeiro elaborou um gran<strong>de</strong> dicionário<br />

da nossa língua, que se compunha <strong>de</strong> oito alentados volumes<br />

e mais dois a<strong>de</strong>ndos, e foi publicado entre 1712 e 1728. Nesse seu<br />

Vocabulário portuguez e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico,<br />

brasilico, comico, critico, dogmático, dialético, <strong>de</strong>ndrologico, Ecclesiastico, etc., criou<br />

muitos adoráveis relatos <strong>de</strong> seres e coisas em suas <strong>de</strong>finições.<br />

Cultuo muitas <strong>de</strong>las. Por exemplo, aquela em que ele <strong>de</strong>fine com<br />

elegância ave como um ‘ser volátil’. Ou aquela outra, da água, em<br />

que inclui, poeticamente, no conceito <strong>de</strong>sse elemento, a sua faculda<strong>de</strong><br />

especular, precisando tratar-se <strong>de</strong> um ‘corpo úmido líquido, fluido,<br />

claro, transparente, & que recebe na sua superfície todas as coisas’.<br />

Lembro também, por exemplo, as diversas e <strong>de</strong>liciosas asserções <strong>de</strong><br />

que ele lança mão para <strong>de</strong>screver o que é um giratacachem, animal<br />

que nunca viu e <strong>de</strong> que fala, citando relatos <strong>de</strong> outros autores:<br />

165<br />

É coautor<br />

do Dicionário<br />

Houaiss, diretor<br />

do Instituto<br />

Houaiss <strong>de</strong><br />

Lexicografia<br />

e membro<br />

da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

Filologia.


Mauro <strong>de</strong> Salles Villar<br />

“(...) diz o P. Telles, que he o mayor animal da terra, que se saiba, porque<br />

exce<strong>de</strong> muito a gran<strong>de</strong>za dos Elephantes, posto que não he tão envolto<br />

em carnes; facilmente passaõ os homens por baixo <strong>de</strong>lle em cima <strong>de</strong> bons<br />

cavallos, as mãos tem altura <strong>de</strong> doze palmos, os pés menos alguma cousa,<br />

& o pescosso com proporção, & comprimento, que possa <strong>de</strong>scer, & pascer<br />

a erva do campo, da qual se sustenta.”<br />

Percebe-se que a <strong>de</strong>scrição é <strong>de</strong> uma girafa, verbete aliás que também é entrada<br />

do seu Vocabulário e para o qual este remete com a sugestão <strong>de</strong> conferir.<br />

Numerosos outros exemplos assim po<strong>de</strong>ria eu dar, mas, para introduzir o<br />

tema que pretendo expor, vou ater-me neste momento a um dos mais copiosos<br />

verbetes <strong>de</strong> Bluteau: o olho. As minhas razões para isso ficarão, eu diria,<br />

visíveis, em seguida.<br />

Publicado no volume <strong>de</strong> 1720, o olho <strong>de</strong> Bluteau esten<strong>de</strong>-se por <strong>de</strong>zessete<br />

colunas e meia <strong>de</strong> texto, nas quais ele analisa extensamente tal palavra sob o<br />

ponto <strong>de</strong> vista linguístico, médico e anatômico, <strong>de</strong>screvendo suas estruturas<br />

e partes integrantes com a erudição da ciência <strong>de</strong> fins do século xvii e princípios<br />

do xviii. Inicia com brilho usando as seguintes frases (aqui, na sua<br />

ortografia <strong>de</strong> época):<br />

“Preciosa, & mimosa parte do corpo humano, instrumento da vista, espelho<br />

dos affectos d’alma. Sol do microcosmo, & admiravel orgaõ da natureza, composto<br />

<strong>de</strong> dous nervos, seis membranas, ou tunicas, tres humores, seis músculos,<br />

& muytas veas, & arterias. Os dous nervos a que chamão opticos, visorios, ou<br />

visuais, porque communicaõ ao cerebro as especies visuais, nascem da parte<br />

superior dos miolos, & sahindo divididos, se ajuntão pelo meyo antes <strong>de</strong> chegar<br />

aos olhos, formando uma figura quasi semelhante à letra X, o que a industriosa<br />

natureza or<strong>de</strong>nou assim, porque vendo os olhos huma cousa, não pareção duas,<br />

o que acontecèra se estes nervos foraõ apartados, & como tomão do mesmo<br />

principio commum o seu nascimento, tem entre si tanta sympathia, que estando<br />

hum dos dous doente, ou mal affecto, (particularmente por causa interior)<br />

pa<strong>de</strong>ce o outro com amigavel, & maravilhoso consenso.”<br />

166


O olho <strong>de</strong> Bluteau, o <strong>de</strong> Cândido Lusitano...<br />

Prolonga-se o verbete por muito mais, analisando músculos, revestimentos,<br />

humores, expressões do rosto marcadas pela abertura dos olhos, doenças que<br />

os afetam, animais e seres mitológicos que têm muitos olhos e por aí vai. Em<br />

<strong>de</strong>terminado passo, observa:<br />

“Sobre o temperamento dos olhos saõ differentes as opinioens: os que seguem<br />

a opinião <strong>de</strong> Aristóteles dizem, que os olhos saõ <strong>de</strong> temperamento humido:<br />

& os sequazes <strong>de</strong> Platão dizem, que os olhos saõ <strong>de</strong> temperamento igneo.<br />

Mas facilmente se po<strong>de</strong>m conciliar estas duas opinioens, dizendose que em<br />

razão do muito humor os olhos saõ humidos, & juntamente igneos, por causa<br />

dos espiritos visuaes, a que Galeno chama fulgidos, & luminosos”.<br />

Pouco a seguir, analisa o étimo da palavra e nele viaja, dizendo, com licença<br />

isidoresca: “No que toca à etymologia, olho se <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> Oculus, & Oculus<br />

vem <strong>de</strong> Occultus, ou porque o olho com o véo das pestanas se occulta, ou por<br />

antiphrasi, porque à luz dos olhos nada fica occulto”.<br />

Ao fim do verbete, arrola muitas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> locuções, coocorrências <strong>de</strong><br />

alta frequência na língua, além <strong>de</strong> outros tipos <strong>de</strong> sintagmas, idiomatismos,<br />

fraseologias, adágios portugueses, até citações <strong>de</strong> poesia em espanhol (Ïñes,<br />

dame tus ojos por una noche,/ Porque quiero con ellos matar a un hombre”).<br />

Os sentidos especiais da palavra olho aparecem em meio a tudo isso.<br />

“Olho. Ás vezes he o mesmo que o meyo <strong>de</strong> alguma coisa. Vir o vento<br />

pelo olho da barra, he vir pelo meyo <strong>de</strong>la. Pôr um homem no olho da rua,<br />

he lançallo fóra da casa don<strong>de</strong> está, & <strong>de</strong>ixallo no meyo da rua.<br />

Olho, nas plantas, he o remate tenro dos ramos nas arvores, & dos talos<br />

nas hervas; o qual remate se se tirar, não cresce tanto a arvore, nem a herva.<br />

Das borbulhas nascem os ramos, & assim olho he differente <strong>de</strong> borbulha,<br />

porque esta se fórma nos lados do ramo novo da arvore fructifera, & aquele<br />

sahe na extremida<strong>de</strong> do proprio ramo da dita planta”.<br />

Os verbetes <strong>de</strong> Bluteau são mais enciclopédicos do que o que hoje chamamos<br />

<strong>de</strong> linguísticos e esten<strong>de</strong>m-se em consi<strong>de</strong>rações, extensões e opiniões<br />

167


Mauro <strong>de</strong> Salles Villar<br />

muitas vezes <strong>de</strong>liciosas <strong>de</strong> seguir. Têm também o caráter intermédio das obras<br />

que serviriam <strong>de</strong> ponte para a lexicografia monolíngue mo<strong>de</strong>rna, porque,<br />

como os dicionários renascentistas, ainda vertem para o latim as palavras e<br />

expressões que registram da língua vernácula.<br />

Por outro lado, estava-se a anos <strong>de</strong> distância da prática <strong>de</strong> organizar e dividir<br />

a polissemia léxica em compartimentos estanques numerados nos dicionários.<br />

O primeiro volume do Vocabulário <strong>de</strong> Bluteau veio a lume em 1712, enquanto o<br />

primeiro dicionário a lançar mão <strong>de</strong>sse recurso só apareceria na Inglaterra 37<br />

anos mais tar<strong>de</strong> (1749). Um parêntese: curiosamente, a invenção do uso da<br />

numeração separatória não é creditada ao autor <strong>de</strong>ssa obra, Benjamin Martin,<br />

mas sim a Samuel Johnson, o poeta, ensaísta, crítico, jornalista, lexicógrafo e<br />

mitológico proseador inglês, cujo dicionário sairia <strong>de</strong>pois do <strong>de</strong> Martin, mas<br />

que publicara o Plano da sua obra com tal i<strong>de</strong>ia em 1747, dois anos antes,<br />

portanto, <strong>de</strong> aparecer no comércio o dicionário <strong>de</strong> Martin: crê-se, por isso,<br />

que este se tenha inspirado no texto <strong>de</strong> Johnson para fazê-lo.<br />

Separar e numerar as acepções facilitou consi<strong>de</strong>ravelmente a leitura dos<br />

verbetes, como se po<strong>de</strong> imaginar, mas foi também um dos elementos que concorreram<br />

para que as pessoas passassem a acreditar que cada compartimentação<br />

daquelas era um sentido específico, e que os bons dicionários <strong>de</strong>veriam<br />

esmiuçar nos textos-fonte tantas acepções quanto fosse possível perceber, para<br />

mais apropriadamente retratarem a língua. Foi também uma das razões por<br />

que as pessoas foram levadas a pensar que os sentidos averbados nos dicionários<br />

semasiológicos eram fixos, constantes e partilhados por todos os falantes<br />

da língua.<br />

Só que a coisa não é bem assim.<br />

Os dicionários, maiores e menores, passaram a refestelar-se na minúcia e<br />

na varieda<strong>de</strong> bem-intencionada da busca <strong>de</strong> acepções, criando registros semanticamente<br />

<strong>de</strong>limitados, mas que, com frequência, não eram mais que contextualizações<br />

<strong>de</strong> um número nem sempre muito gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentidos básicos<br />

que a língua apresenta para as palavras e expressões. Pelo método tradicional<br />

empregado, especialmente nos gran<strong>de</strong>s dicionários, as entradas acabavam com<br />

tantas acepções quantas era capaz <strong>de</strong> distinguir a sensibilida<strong>de</strong> do dicionarista<br />

168


O olho <strong>de</strong> Bluteau, o <strong>de</strong> Cândido Lusitano...<br />

ou a diversida<strong>de</strong> do material com que trabalhava. Mas, uma vez que cada nova<br />

tonalida<strong>de</strong>, cada nova nuança <strong>de</strong> utilização acabava registrada como sentido<br />

ou emprego diferente, tal prática conduzia a um impasse lexicográfico, porque,<br />

sendo os contextos teoricamente infinitos, a prática <strong>de</strong> tais registros não<br />

tinha fim.<br />

Vou dar um exemplo, para que o tema <strong>de</strong> que falo fique mais visível ao<br />

leitor. Vejamos o verbete olho do Gran<strong>de</strong> e novíssimo dicionário da Língua Portuguesa,<br />

organizado por Lau<strong>de</strong>lino Freire e publicado <strong>de</strong> 1939 a 1944 – o primeiro<br />

gran<strong>de</strong> dicionário elaborado no Brasil e que teve por objetivo, a riqueza <strong>de</strong><br />

registros vocabular e <strong>de</strong> acepções. Uso aqui essa fonte, mas po<strong>de</strong>ria exemplificar<br />

com qualquer dos nossos dicionários, inclusive o meu, pois também não<br />

nos livramos inteiramente, no Gran<strong>de</strong> Houaiss, <strong>de</strong>sse exagero em alguns casos.<br />

Usei uma retícula para realçar as acepções que ilustram o que disse sobre um<br />

mesmo sentido – no caso ‘vazio’, ‘buraco’ – registrado como se <strong>de</strong> diversas<br />

acepções autônomas se tratasse:<br />

“ÔLHO, s. m. Lat. oculus. Anat. órgão da visão, situado em órbita própria,<br />

<strong>de</strong> forma, mais ou menos globular, ordinariàmente em número <strong>de</strong> dois, colocados<br />

na parte anterior da cabeça do homem e <strong>de</strong> quase todos os animais.<br />

|| 2. Órgão da vista consi<strong>de</strong>rado como indício das qualida<strong>de</strong>s ou<br />

<strong>de</strong>feitos do espírito, do caráter, das paixões, dos sentimentos. || 3. Olhar,<br />

vista, percepção operada pelo sentido da vista. || 4. Agente que distingue,<br />

que per cebe, que enten<strong>de</strong>; agente que esclarece; luz, clarão, ilustração.|| 5.<br />

Atenção, esfôrço da alma aplicado a um objeto. || 6. Vigilância, cuidado,<br />

|| 7. Ocelo. || 8. Gota <strong>de</strong> líquido gor duroso que flutua sôbre outro líquido<br />

mais <strong>de</strong>nso, || 9. Buraco ou furo em certos objetos por on<strong>de</strong> se enfiam<br />

linhas ou fios, || 10. Aro das ferramentas por on<strong>de</strong> se enfia o cabo. ||<br />

11. Pleb. O orifício do anus. || 12. Gír. Tostão. || 13. Vão nos tímpanos<br />

dos arcos da ponte para dar maior vazão à água. || 14. Abertura por on<strong>de</strong><br />

entra a água que faz mover a roda dos moinhos. || 15. Tip. A espessura <strong>de</strong><br />

um caráter <strong>de</strong> imprimir, || 16. Tip. A abertura no e que distingue esta letra<br />

do c. || 17. Poro ou buraco que apresentam certas massas e especialmente<br />

169


Mauro <strong>de</strong> Salles Villar<br />

os queijos. || 18. Arquit. Abertura circular ou elíptica feita nos tetos ou<br />

pare<strong>de</strong>s dos edifícios para lhes dar clarida<strong>de</strong> || 19. Metal. O buraco da<br />

fieira por on<strong>de</strong> passa o metal que se quer a<strong>de</strong>lgaçar. || 20. Lus. Porção <strong>de</strong><br />

qualquer casca, que serviu num tanque <strong>de</strong> curtimenta. || 21. Batoque ou<br />

orifício na parte superior e anterior dos tonéis e que serve para lhes introduzir<br />

o líquido e tirá-lo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> fermentado, || 22. O buraco da pe dra<br />

superior ou girante (falando das mós dos moinhos) por on<strong>de</strong> cai o trigo e<br />

outros ce reais para serem reduzidos a farinha. || 23. O botão que se vai<br />

<strong>de</strong>senvolvendo na planta ou o rebento das árvores, || 24. Peixe plagióstomo,<br />

pardo por cima e branco por baixo. || 25. O arrofo ou capelo da<br />

tarrafa. || 26. Bot. Bo tão foliáceo; borbulha”.<br />

O que se vê aqui, portanto, é que o lexicógrafo registrou como acepções<br />

diferentes um mesmo sentido geral que estava, na verda<strong>de</strong>, diferentemente<br />

ativado por contextos diversos.<br />

Neste ponto, vou precisar falar <strong>de</strong> superor<strong>de</strong>nados ou hiperônimos, razão<br />

por que explico logo do que se trata. Dentro dos grupos <strong>de</strong> palavras associadas<br />

quanto à sua significação, há algumas que pertencem a um grupo mais genérico<br />

do que outras. São os chamados superor<strong>de</strong>nados ou hiperônimos, e seu<br />

significado inclui, mais que sinonimiza, outras palavras afins. Por exemplo,<br />

comboio e composição po<strong>de</strong>m ser usados, em português, como sinônimos <strong>de</strong> trem,<br />

mas a palavra transporte tem sentido mais abrangente do que essas, contendo<br />

em si outras palavras além <strong>de</strong> trem: por exemplo, barca, avião, caminhão, ônibus etc.<br />

são também transportes. Por que estou falando nisso? Por consi<strong>de</strong>ram-se sentidos<br />

diferentes, em semântica, apenas as acepções que requerem superor<strong>de</strong>nados<br />

distintos para serem <strong>de</strong>finidas, o que não é o caso mostrado acima: ali,<br />

todas aquelas compartimentações numeradas para as quais chamei a atenção<br />

usam como hiperônimo ‘buraco, furo, aro, orifício, vão, abertura, arrofo’, vale<br />

dizer, conceitos muito afins.<br />

Mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quando os especialistas se aperceberam <strong>de</strong> que isso era um equívoco?<br />

Faz bastante tempo, há décadas; e isso ficou especialmente claro com a<br />

lexicografia dita contextualista. Iniciada na Inglaterra na década <strong>de</strong> 1960, ela<br />

170


O olho <strong>de</strong> Bluteau, o <strong>de</strong> Cândido Lusitano...<br />

inaugurou, em suas análises, a utilização <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> abonações<br />

da língua natural, lançando mão <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> computação cada vez mais<br />

aprimorados e <strong>de</strong> imensos bancos <strong>de</strong> dados, públicos e privados. Com isso, foi<br />

possível <strong>de</strong>scobrir uma série <strong>de</strong> características das línguas que não haviam sido<br />

percebidas pela lexicografia até então. A reunião <strong>de</strong> lexicógrafos, semanticistas<br />

e gramáticos com técnicos em informática gerou um consi<strong>de</strong>rável avanço na<br />

filosofia e no fazer dos dicionários que vem moldando os hábitos <strong>de</strong> trabalho<br />

<strong>de</strong> quem milita nessa especialida<strong>de</strong> em qualquer parte do mundo.<br />

A importância da investigação sobre certos sintagmas que pululam na língua,<br />

o levantamento das coocorrências mais ou menos fixas que não são mais<br />

que sequências memorizadas que funcionam em padrões combinatórios repetidos,<br />

os estudos da pragmática fraseológica, o enfoque sobre a sintaxe posta<br />

à frente da pura análise semântica <strong>de</strong> cada palavra que se vinha fazendo, tudo<br />

isso apontou novos caminhos e metas para a lexicografia.<br />

O processo ainda se vem <strong>de</strong>senvolvendo, mas muitas iluminações já ocorreram,<br />

com os trabalhos <strong>de</strong> Sue Atkins, Patrick Hanks, Charles Filmore, John<br />

Sinclair, Mike Run<strong>de</strong>ll, Thierry Fontenelle, Adam Kilgarriff, Juri Apresjan,<br />

Gregory Greffenstette, Krista Varantola, para citar alguns nomes <strong>de</strong> relevo.<br />

A impressão <strong>de</strong> que os sentidos numerados que aparecem nos dicionários<br />

são discretos e exclusivos não é, realmente, sustentada pelas evidências linguísticas.<br />

Eles são, na verda<strong>de</strong>, contínuos, graduais e superpõem-se muitas<br />

vezes, sendo difícil a sua captação <strong>de</strong>finitória pelos lexicógrafos. Além do<br />

mais, é possível afirmar “justificadamente que uma unida<strong>de</strong> léxica tem um<br />

sentido diferente em cada contexto distinto em que ocorre.” (Cruse,1986). O<br />

velho Dr. Johnson (1755) já observara: “as nuanças <strong>de</strong> sentido (...) passam<br />

imperceptivelmente <strong>de</strong> uma para outra; <strong>de</strong> tal modo que é (....) impossível<br />

<strong>de</strong>terminar o ponto <strong>de</strong> contato.’’<br />

As acepções dos vocábulos têm utilização bastante fluida. Seus sentidos<br />

expan<strong>de</strong>m-se, quer horizontal, quer verticalmente, por meio <strong>de</strong> analogias, metáforas,<br />

metonímias, extensões <strong>de</strong> sentido e outras formas <strong>de</strong> contaminação<br />

semântica. Diante da flexibilida<strong>de</strong> da língua, o entendimento entre os falantes<br />

só se dá por sermos dotados do dom da interpretação. Praticamente qualquer<br />

171


Mauro <strong>de</strong> Salles Villar<br />

palavra da língua apresenta dinâmica aberta, sempre po<strong>de</strong>ndo ser empregada<br />

e colorida <strong>de</strong> novo modo pelos seus usuários. (Sinclair, 2004)<br />

Então as palavras não têm sentidos fixos? Sim, eles existem, mas seria<br />

mais exato dizer que as palavras têm sentidos potenciais, não puramente<br />

“sentidos”, uma vez que fora dos contextos não há como saber o que significam.<br />

Se eu lhe perguntar se conhece o significado da palavra barra, você<br />

me dirá que sim, mas a resposta mais apropriada <strong>de</strong>veria ser ‘<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>’, uma<br />

vez que não po<strong>de</strong> saber, fora <strong>de</strong> um contexto, se se trata da entrada <strong>de</strong> um<br />

porto, da foz <strong>de</strong> um rio, da borda inferior <strong>de</strong> uma vestimenta, <strong>de</strong> uma faixa<br />

<strong>de</strong> cor pintada numa pare<strong>de</strong>, da meia gra<strong>de</strong> das salas <strong>de</strong> tribunal ou <strong>de</strong> uma<br />

série <strong>de</strong> outras coisas. São os contextos que ativam os sentidos potenciais<br />

das palavras, e esses sentidos não são, na verda<strong>de</strong>, ambíguos, embora sejam,<br />

certamente, vagos, pelo fato <strong>de</strong> serem continuamente extensíveis e mutáveis.<br />

Para complicar, como bem o sabemos, seus significados vagos não <strong>de</strong>ixam<br />

<strong>de</strong> ser precisos, uma vez que nos enten<strong>de</strong>mos muito bem com as palavras<br />

em nossa intercomunicação. É isso que faz da língua um consi<strong>de</strong>rável mistério,<br />

mas a familiarida<strong>de</strong> que temos com ela pela vida inteira torna difícil<br />

percebê-lo.<br />

Anota Hanks (2008) que<br />

“O sentido potencial <strong>de</strong> cada palavra compõe-se <strong>de</strong> diversos elementos,<br />

que po<strong>de</strong>m ser ativados cognitivamente por outras palavras do contexto<br />

<strong>de</strong>ntro do qual ela é empregada. Esses componentes cognitivos estão ligados<br />

numa re<strong>de</strong> que provê toda a base semântica da linguagem, com enorme<br />

potencial dinâmico para dizer novas coisas e relacionar o <strong>de</strong>sconhecido<br />

com o conhecido.”<br />

E a seguir observa que diferentes componentes coexistem num único uso,<br />

e que usos diferentes ativam um calidoscópio <strong>de</strong> diferentes combinações <strong>de</strong><br />

componentes. Assim, mais que colocar questões sobre <strong>de</strong>sambiguização (“Que<br />

acepção neste contexto tem esta palavra?”), mais exato seria perguntar “Que<br />

contribuição particular traz esta palavra ao sentido <strong>de</strong>ste texto?”(Id.):<br />

172


O olho <strong>de</strong> Bluteau, o <strong>de</strong> Cândido Lusitano...<br />

“Consi<strong>de</strong>re por exemplo o comportamento do que chamamos <strong>de</strong> ‘jogos’.<br />

Vale dizer, jogos <strong>de</strong> tabuleiro, jogos <strong>de</strong> cartas, jogos <strong>de</strong> bola, jogos Olímpicos<br />

e assim por diante. Não diga ‘Eles <strong>de</strong>vem ter algo em comum ou não<br />

seriam chamados <strong>de</strong> ‘jogos’ ’ – antes, olhe e veja se realmente existe algo em<br />

comum entre eles. Porque, se você atentar para eles, não verá absolutamente<br />

algo em comum, mas sim similarida<strong>de</strong>s, relações e quanto a isso, uma série<br />

<strong>de</strong>las. Repetindo: não pense, mas atente! Atente, por exemplo, para os jogos<br />

<strong>de</strong> tabuleiro, com suas variadas características. Passe agora para os jogos <strong>de</strong><br />

cartas; aqui po<strong>de</strong>rá encontrar diversas correspondências com o primeiro grupo,<br />

mas muitas características em comum <strong>de</strong>saparecem e outras surgem. Ao<br />

passar para os jogos <strong>de</strong> bola, muito do que é comum mantém-se, mas diversas<br />

outras coisas se per<strong>de</strong>m. Serão todos eles ‘divertimentos’? Compare o xadrez<br />

com o jogo da velha. Haverá sempre ganhadores e per<strong>de</strong>dores ou competição<br />

entre eles? Pense no jogo da paciência. Nos jogos <strong>de</strong> bola há ganhadores e<br />

per<strong>de</strong>dores, mas quando uma criança joga a sua bola contra a pare<strong>de</strong> e a apanha<br />

<strong>de</strong> novo, essa característica inexiste. Atente para os elementos supervenientes<br />

<strong>de</strong> habilida<strong>de</strong> e sorte, e para a diferença que há entre a habilida<strong>de</strong> no<br />

xadrez e a habilida<strong>de</strong> no tênis. Pense agora nos jogos do tipo daqueles em que<br />

as crianças brincam <strong>de</strong> roda cantando e a um dado sinal se agacham. Aqui<br />

está presente o divertimento, mas quantas outras características específicas<br />

<strong>de</strong>sapareceram! E po<strong>de</strong>r-se-ia ir bem além com isso, falando <strong>de</strong> muitos outros<br />

grupos <strong>de</strong> jogos do mesmo modo, percebendo como as similarida<strong>de</strong>s entre<br />

eles surgem e <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> existir. E o resultado disso é: vê-se uma complicada<br />

re<strong>de</strong> <strong>de</strong> similarida<strong>de</strong>s que se superpõem e entrecruzam: por vezes, similarida<strong>de</strong>s<br />

absolutas; outras vezes, similarida<strong>de</strong>s em <strong>de</strong>talhes.”<br />

Esse texto escreveu Wittgenstein nas suas Philosophical Investigations (1953: n. o<br />

66), pon<strong>de</strong>rando sobre a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se fixarem os sentidos das palavras e<br />

expressões – ou seja, o próprio resvaladio material com que nós, os lexicógrafos,<br />

trabalhamos.<br />

Bem, até aqui seriei alguns dos problemas que enfrentam os dicionários<br />

linguísticos. Mas o que tem sido feito para contornar tais dificulda<strong>de</strong>s? O<br />

173


Mauro <strong>de</strong> Salles Villar<br />

que já resultou da revolução contextualista? Como, por exemplo, os lexicógrafos<br />

têm evitado registrar como acepções numeradas o que não passa <strong>de</strong><br />

ativações <strong>de</strong> um mesmo sentido em contextos diversos? Vejamos, a esse propósito,<br />

como Patrick Hanks sistematizou a redação do verbete eye no New<br />

Oxford Dictionary of English (1998) – que é um exemplo da simples solução<br />

que ele sugere.<br />

Não vou mostrar aqui o verbete por inteiro, mas sim uma parte <strong>de</strong>le que<br />

nos interessa, aquela em que o lexicógrafo transita da primeira acepção, anatômica<br />

(que não copio), para a segunda, abrindo esta com uma <strong>de</strong>finição genérica,<br />

totalmente abrangente, numerada como II em algarismos romanos, que<br />

diz “Um objeto: semelhante ao olho na aparência, forma, função ou posição<br />

relativa”. Passa a seguir a indicar ativações <strong>de</strong>sse sentido lato nos contextos <strong>de</strong><br />

mais alta frequência da língua, iniciando por “6 a O pequeno orifício numa<br />

agulha por on<strong>de</strong> passa o fio <strong>de</strong> linha”; b Pequeno espaço oco <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />

pão e (hoje comumente) queijo”. Etc. Veja o verbete original:<br />

“eye /aj/ noun. (….)<br />

II An object: resembling the eye in appearance, shape, function, or relative<br />

position.<br />

6 a The small hole in a needle for taking the thread. oe.<br />

b A small hole in bread or (now usu.) cheese. lme. C A hole ma<strong>de</strong> in<br />

a tool for the insertion of a handle or some other object. mi6. d An<br />

opening or passage in a mill- stone, kiln, etc., for the introduction or withdrawal<br />

of substances; the entrance or exit of a fox’s earth, a mine shaft,<br />

etc. M16.<br />

7 A mark or spot resembling an eye occurring on eggs, insect wings, etc.;<br />

esp. any of the marks near the end of the tail feathers of a peacock; each of<br />

the three spots on one end of a coconut. LME. b GEOLOGY. A lens-shaped<br />

inclusion with a different texture from the surrounding rock. li9.<br />

8 An object resembling an eye on a plant; esp. (a) an axillary bud or leaf<br />

bud; (b) the centre of a flower; (c) the remains of the calyx on a fruit. lme.<br />

9 In pl. Spectacles. Now rare. E16.<br />

174


O olho <strong>de</strong> Bluteau, o <strong>de</strong> Cândido Lusitano...<br />

10 A loop, a ring; esp. a loop of thread in a hook and eye (see HOOK<br />

noun1c); NAUTICAL A loop at the end of a rope, esp. one at the top end of a<br />

shroud or stay.L16.<br />

11 fig. A place regar<strong>de</strong>d as a centre of learning, culture, or the like. L16.<br />

12a ARCHITECTURE. The centre of any part, esp. of a volute.E18 . b The<br />

centre of a vortex or eddy; esp. the call centre of a hurricane or storm. M19. <br />

c The <strong>de</strong>nse centre of a shoal of fish. M19. d The brightest spot or centre<br />

of light; esp. the part of a furnace observed through the sight-hole. L19. <br />

e The main mass of lean meat in a rasher of bacon, cutlet, etc. M20.<br />

A prominent natural object, such as a hill or island.<br />

Only in place-names.M19.<br />

The opening through which the water of a fountain or spring<br />

wells up.m19.<br />

A mass of ore left in a mine to be worked when other ore is becoming scarce<br />

or inaccessible; fig. (Austral. &NZ) the choicest portion, esp. of land.M19.<br />

NAUTICAL. In pl. (in full eyes of her; eyes of the ship).The extreme forward part<br />

of a ship.M19”.<br />

Essa solução é simples, fácil e, portanto, plenamente factível: partir do<br />

vago abrangente para chegar aos itens específicos, ativados por contextos reais<br />

<strong>de</strong>ntro do mesmo núcleo semântico.<br />

Problemas mais complexos, que envolvam as áreas pragmáticas, atitudinais,<br />

conotativas, darão um pouco mais trabalho às novas gerações <strong>de</strong> lexicógrafos.<br />

É, portanto, preciso estar-se atento às necessida<strong>de</strong>s da nova lexicografia. Convenhamos<br />

com Gil Vicente no Auto das regateiras que “Quem não olha adiante,<br />

do mal que vir não se espante” (985).<br />

Só não quero encerrar este texto sem referir o <strong>de</strong>sconforto <strong>de</strong> alguns autores<br />

do século XVIII com a polissemia já então marota da palavra olho. Quem<br />

o registra é Cândido Lusitano, um fra<strong>de</strong> cujo nome não arcádico era Francisco<br />

José Freire, num livro <strong>de</strong> 1773 intitulado Reflexões sobre a língua portugueza, a que<br />

tive acesso através do trabalho <strong>de</strong> Dieter Messner no seu formidável Dicionário<br />

dos dicionários portugueses. Nessa sua meditação, pon<strong>de</strong>ra o sacerdote:<br />

175


Mauro <strong>de</strong> Salles Villar<br />

“Olho. Em varias cousas reflecte neste vocabulo a critica <strong>de</strong>masiadamente<br />

escrupulosa. Quer que em assumpto grave raras vezes se use no<br />

singular; a fim <strong>de</strong> se evitar alguma baixeza: v.g. não admitte que se diga<br />

olho papudo, olho sumido, olho encovado, mas, olhos. Não quer tambem<br />

que se diga olho cego, mas um dos olhos cego; fechar o olho, por morrer;<br />

ir com o olho atraz, por ir acautelado &c. Em fim não sofre que se use <strong>de</strong><br />

olho simplemente (sic), sem <strong>de</strong>terminar qual <strong>de</strong>lles é, em or<strong>de</strong>m a que não<br />

haja alguma equivocação <strong>de</strong> sentido menos <strong>de</strong>cente”.<br />

Cândido Lusitano, a bem da verda<strong>de</strong>, não afinava com tais pruridos, tachando-os<br />

<strong>de</strong> pueris e extravagantes. Mas que fazer? A malícia sempre fez parte do<br />

mundo; por que não existiria na mente dos críticos da lexicografia? “Lava o teu<br />

coração da malícia, ó Jerusalém” vociferou Jeremias na Bíblia (4:14)<br />

Referências<br />

Cruse, D.A. (1986). Lexical Semantics. Cambridge. Cambridge University Press<br />

Dicionário Houaiss: sinônimos e antônimos. Instituto Antônio Houaiss; diretor <strong>de</strong> projeto<br />

Mauro <strong>de</strong> Salles Villar. 2.ª ed. São Paulo: Publifolha, 2008<br />

Freire, Francisco José (Cândido Lusitano) (1773). Reflexões sobre a língua portugueza escriptas<br />

por Fr. José Freire publicadas pela Socieda<strong>de</strong> propagadora dos conhecimentos<br />

uteis, Parte segunda, Lisboa: Tipographia da Socieda<strong>de</strong> 1842, apud Messner,<br />

Dieter e Jutz, Sylvia, Dicionário dos dicionários portugueses, vol. xxxviii, 2002 Institut<br />

für Romanistik <strong>de</strong>r Universität Salzburg, p. xxiii<br />

Johnson, S. (1755) Preface to the Dictionary of the English Language. (Coord. Jack<br />

Katzaros, V. [2004] )<br />

Hanks, P. (2008) “Do word meanings exist?” in Practical Lexicography, coord. Thierry<br />

Fontenelle, Oxford University Press, Grã-Bretanha.<br />

176


<strong>Prosa</strong><br />

Carlos Nejar: meditações<br />

sobre o homem<br />

António Carlos Cortez<br />

A obra poética <strong>de</strong> Carlos Nejar tem tido alguma fortuna em Portugal.<br />

Em 2003, com organização <strong>de</strong> Antonio Osório, a sua<br />

última antologia teve chancela da Pergaminho. Obra múltipla e imensa,<br />

Nejar tem escrito também ficção e inclusivamente “teatro em verso”,<br />

perfazendo esta parte da sua obra sete livros em cuja prosa está sempre<br />

presente o tom poético da sua respiração. Nejar é também ensaísta e, na<br />

sua vastíssima obra literária, as incursões pelo híbrido textual são uma<br />

das marcas da sua poética, a qual, dir-se-ia, não se apega nunca a um<br />

só a uma só configuração. Existindo pela palavra, fazendo da vida um<br />

a existência <strong>de</strong> poesia, Carlos Nejar é, sem sombra <strong>de</strong> dúvida, uma das<br />

mais <strong>de</strong>stacadas vozes do panorama poético brasileiro.<br />

Nessa medida, a edição, pelas edições Quasi, <strong>de</strong> mais um livro <strong>de</strong><br />

Nejar é motivo <strong>de</strong> regozijo. Desta feita, a antologia tem o inspirado<br />

título Pequena enciclopédia da noite, com nota introdutória <strong>de</strong> António<br />

Osório, amigo e intérprete do autor <strong>de</strong> Sélesis. Com a pertinácia que lhe<br />

é habitual, Osório pon<strong>de</strong>ra: “Pergunto-me com a maior perplexida<strong>de</strong>:<br />

177<br />

Poeta e crítico<br />

português,<br />

um dos mais<br />

importantes da<br />

Nova Geração.<br />

Colabora no<br />

Jornal <strong>de</strong> <strong>Letras</strong><br />

e na Revista<br />

Colóquio/<strong>Letras</strong>,<br />

<strong>de</strong> Lisboa.


António Carlos Cortez<br />

<strong>de</strong> Camilo Pessanha são conhecidos apenas 56 poemas. Mas como ousou Carlos<br />

Nejar, senhor <strong>de</strong> uma obra imensa, reduzi-la a... 50 poemas? E os ‘melhores’,<br />

porquê os melhores? Os outros, as inúmeras centenas, não contam? Serão eles<br />

menores?” (p.11). Na verda<strong>de</strong>, se toda e qualquer antologia é, na sua substância,<br />

a exclusão e não a inclusão <strong>de</strong> textos, torna-se quase inescapável saber as motivações<br />

que levam a que um autor exclua uns textos, privilegiando outros. Talvez<br />

Nejar seja guiado por essa se<strong>de</strong> <strong>de</strong> absoluto, que, em poetas como Horácio ou<br />

Dante, se traduz na perseguição <strong>de</strong> um dizer monumental, na construção dum<br />

edifício mais eterno que o tempo, feito <strong>de</strong>sse mármore incorruptível da palavra<br />

poética, a partir <strong>de</strong> cujas irradiações o poeta lê o homem na sua condição <strong>de</strong><br />

miserável sonhador. Por isso a antologia só po<strong>de</strong> ser a antologia do mínimo e<br />

não do máximo. A transcendência do poético está aí, nessa sutil medida dos<br />

poemas; eles não pe<strong>de</strong>m outra monumentalida<strong>de</strong> que não a do seu próprio dizer<br />

e, nesse sentido, seria talvez mais fácil (e ao mesmo tempo menos fiel) fazer uma<br />

antologia que contemplasse 100, 200, 300 poemas. E a arte do mínimo para se<br />

falar da condição do homem.<br />

A obra <strong>de</strong> Carlos Nejar po<strong>de</strong>, assim, ser lida <strong>de</strong> uma forma radicalmente diferente:<br />

estes poemas, esta enciclopédia (termo absolutamente <strong>de</strong>finidor da ética que<br />

rege a poética <strong>de</strong>ste autor, na senda dum certo iluminismo ou gosto pela sageza<br />

dos fundadores da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> Montaigne a Höl<strong>de</strong>rlin) da noite é, bem vistas<br />

as coisas, o magma do seu percurso <strong>de</strong> poeta. Aqui a epopeia dantesca <strong>de</strong> Nejar<br />

– que escolhe justamente o autor da Divina comédia para seu guia – faz-se do amor à<br />

mulher medianeira (seja ela Elza ou outra figuração platonizante em outro nome),<br />

do amor ao Homem como ser em peregrinação permanente e <strong>de</strong> que o poeta é o<br />

principal representante, se quisermos, o peregrino por excelência. Jacinto do Prado<br />

Coelho, na leitura mais correta e reveladora que se fez da poesia <strong>de</strong> Nejar, falou<br />

justamente <strong>de</strong> uma obra consagrada à reflexão sobre a condição humana, mas essa<br />

reflexão tem como força motriz a certeza <strong>de</strong> uma tragédia íntima posta no coração<br />

do homem peregrino, e Nejar, como um Dante do seu tempo, também se dirige<br />

aos seus contemporâneos, com ecos <strong>de</strong> Camões, para dizer <strong>de</strong>ssa condição e dos<br />

infernos mais recônditos a que só os poetas po<strong>de</strong>m chegar. Um dos poemas que<br />

concentram a poesia <strong>de</strong> Nejar em torno da condição do Homem é esse soneto<br />

178


Carlos Nejar: meditações sobre o homem<br />

“Sem estrela” em que o poeta invectiva a morte que está em todo o ser humano.<br />

Através da alegoria, processo muito caro a Nejar, a morte exige uma consciência<br />

do perecível, mas o poeta, rindo da própria morte, resiste, pois sabe que “está em<br />

mim quem vai vencê-la”. Ora, temperada <strong>de</strong> sábia lição estoica, <strong>de</strong> que vitória<br />

se trata se se morre sempre? Da vitória da dignida<strong>de</strong> humana, daquilo que no<br />

Homem é talvez eterno: as ações que permanecem na memória dos vindouros. O<br />

discurso poético serve, neste contexto, o <strong>de</strong>sígnio do poeta – dar uma lição <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong><br />

à <strong>de</strong>sumanizada criação: “A história do mundo / é casa <strong>de</strong> andares, com<br />

/ um só vivente, o vento / (...)” e se o vento é símbolo <strong>de</strong> Deus, e o homem é feito<br />

à imagem e semelhança do Deus, então, o poeta vem dizer que o Homem é Deus,<br />

isto é, o homem po<strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>r-se como esse vento eterno, que é combustão e<br />

história. Todavia, para ser Homem, para cantar a dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejada, Nejar ataca<br />

não raras vezes o absurdo e a cruelda<strong>de</strong> dos seus semelhantes. No poema “Aos<br />

senhores da ocasião e da Guerra” o tom é epopeico porque é grave o assunto a<br />

tratar, e o sujeito acusa, sem contemplações, a sanguínea existência dos falcões da<br />

guerra: “A vós, que me <strong>de</strong>spejastes / nesta loucura sem telhas / é neste chão <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sastres / acaso <strong>de</strong>vo ajoelhar-me / e bendizer as ca<strong>de</strong>ias? // E ser aquele que<br />

acata / as or<strong>de</strong>ns e ser aquele / apaziguado e cordado / preso às aranhas e às teias?<br />

// Levando o sim em uma das mãos / e não noutras, rastejante / aos senhores da<br />

ocasião / e da guerra. Ser no chão / o inseto e sua caverna? // Corrente serei / no<br />

recuo das águas. / Resina aos frutos do exílio. / Espúrio entre as bodas. / Resíduo.<br />

/ Até po<strong>de</strong>r elevar-me / com a força <strong>de</strong> outras asas, / para os meus próprios<br />

lugares. // A vós que me <strong>de</strong>spejastes / nesta loucura sem telhas / e neste chão <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sastres / com a residência das penas / aceitarei o combate.”<br />

Como se vê, Carlos Nejar é, no plano da expressão, um poeta extremamente<br />

atento à poesia como música, isto é, nele a palavra não só conta, como canta.<br />

As lições <strong>de</strong> Ban<strong>de</strong>ira, mas também <strong>de</strong> Drummond, <strong>de</strong> João Cabral repercutem-se<br />

em poemas arquitetados, edificados em imponentes órgãos vivos. Da<br />

<strong>de</strong>vastação ao amor, do tempo à compreensão do Cosmos, das circunstâncias<br />

mais banais à <strong>de</strong>sejável apreensão da “Genealogia da palavra” é como enciclopédia<br />

que <strong>de</strong>vemos perscrutar o ensinamento do poeta, aqui ainda símbolo do<br />

“coração resoluto”, cantando a esperança “até que a mó se <strong>de</strong>sgaste”.<br />

179


Retirado do livro Conto <strong>de</strong> escola e outras<br />

histórias curtas <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis.


Pais e filhos na<br />

or<strong>de</strong>m escravocrata:<br />

o conto machadiano<br />

“Pai contra mãe”<br />

<strong>Prosa</strong><br />

João Roberto Maia<br />

Entre os textos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis que lidam com a escravidão,<br />

“Pai contra mãe” (1905), conto <strong>de</strong> Relíquias <strong>de</strong> casa velha,<br />

é certamente um dos mais contun<strong>de</strong>ntes. Além disso, o trabalho<br />

sem merecimento, <strong>de</strong>slegitimado pela vizinhança do cativeiro, na<br />

perspectiva do homem livre e pobre, é outra questão <strong>de</strong> peso na<br />

narrativa. Assim como “O caso da vara”, a publicação do conto se<br />

<strong>de</strong>u em período posterior à Abolição, mas o fim da escravidão era<br />

recentíssimo, e Machado sentiu a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acertar contas com<br />

ela, até em função <strong>de</strong> seu ceticismo quanto aos resultados efetivos<br />

da superação do regime servil, aquém das reformas necessárias para<br />

garantir a cidadania dos ex-escravos.<br />

“Pai contra mãe” é um texto cheio <strong>de</strong> nuances e ambiguida<strong>de</strong>s.<br />

A começar pela ironia do título, o qual talvez faça pensar num <strong>de</strong>sentendimento<br />

familiar, um conflito doméstico, <strong>de</strong> consequências<br />

limitadas, entre marido e mulher. O confronto <strong>de</strong> que se trata é <strong>de</strong><br />

outro calibre, cuja dureza e ferocida<strong>de</strong> o título não faz prever.<br />

181<br />

Doutor em <strong>Letras</strong> pela<br />

UFRJ. Atualmente é<br />

professor-pesquisador<br />

da Escola Politécnica<br />

<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Joaquim<br />

Venâncio da Fiocruz e<br />

professor colaborador<br />

na Pós-Graduação em<br />

Ciência da Literatura<br />

da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong> da UFRJ. Tem<br />

experiência na área <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>, com ênfase em<br />

Literatura <strong>Brasileira</strong>,<br />

atuando nos seguintes<br />

temas: crítica literária<br />

brasileira, literatura<br />

brasileira, Eça <strong>de</strong><br />

Queirós, trabalho e<br />

mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.


João Roberto Maia<br />

Antes <strong>de</strong> começar a narrar os acontecimentos a que se liga esse conflito<br />

anunciado pelo título do conto, o narrador explana sobre “ofícios e aparelhos”<br />

que existiam nos tempos <strong>de</strong> vigência da escravidão. O procedimento <strong>de</strong><br />

que se vale, metodizado por sua recorrência nos cinco primeiros parágrafos<br />

que servem <strong>de</strong> preâmbulo ao entrecho, torna ostensivo o <strong>de</strong>sajustamento entre<br />

a serenida<strong>de</strong> dos comentários, expressos friamente, sem ênfase, marcados por<br />

certo distanciamento calculado, e a gravida<strong>de</strong> dos assuntos postos em pauta:<br />

tortura como recurso <strong>de</strong> manutenção da or<strong>de</strong>m social, cuidados que a proprieda<strong>de</strong><br />

bárbara <strong>de</strong> seres humanos exige, fuga <strong>de</strong> escravos e o ofício <strong>de</strong> restituí-los<br />

a seus senhores. A sublinhar que a frieza, a qual beira algumas vezes a<br />

impassibilida<strong>de</strong>, é mais estranha por estar combinada com o tom firmemente<br />

judicativo <strong>de</strong> certas postulações daquele que narra em <strong>de</strong>fesa da brutalida<strong>de</strong><br />

instituída. O teor generalizante dos comentários, uma das marcas <strong>de</strong>ssa postura<br />

judicativa, po<strong>de</strong> significar tanto uma espécie <strong>de</strong> voz geral, representativa<br />

da anuência coletiva, legitimada pelo abono social (tácito ou mais ou menos<br />

manifesto) a práticas escravistas tais como as <strong>de</strong>scritas, quanto o modo <strong>de</strong><br />

dar vigência à voz senhorial que se preten<strong>de</strong> incontrastável ao i<strong>de</strong>ntificar seus<br />

interesses próprios <strong>de</strong> classe com a <strong>de</strong>fesa do bem comum. Mesmo a tendência<br />

saudosista <strong>de</strong>sse “saudoso narrador-memorialista”, como o caracterizou<br />

Ivone Daré Rabello (Rabello, s/d, p. 46), que parece lamentar-se do fim<br />

da escravidão com todo o aparato <strong>de</strong> tortura e punição que lhe era próprio,<br />

dá-se nessa perspectiva algo distanciada e amiga <strong>de</strong> generalizações. Por outro<br />

ângulo, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar a dose <strong>de</strong> malícia que é constitutiva <strong>de</strong>sses<br />

comentários, a infiltração da ironia na retórica pró-escravidão, que a torna<br />

dúbia, incerta, bifronte, permitindo ler em contraposição ao nível semântico<br />

ostensivo e a contrapelo das prescrições à socieda<strong>de</strong> ditadas por consensos<br />

sustentados pelo alto. Vejamos mais <strong>de</strong> perto.<br />

O narrador lembra ofícios e aparelhos que a escravidão “levou consigo”.<br />

Esclarece que a citação <strong>de</strong> alguns aparelhos não é gratuita, já que estes se ligam<br />

a “certo ofício”, a saber, o <strong>de</strong> pegador <strong>de</strong> escravos fugitivos, <strong>de</strong> que tomará<br />

conhecimento o leitor após alguns parágrafos. A seguir <strong>de</strong>screve uma <strong>de</strong>ssas<br />

182


Pais e filhos na or<strong>de</strong>m escravocrata<br />

peças <strong>de</strong> punição, a máscara <strong>de</strong> folha <strong>de</strong> flandres, não sem antes assinalar a<br />

finalida<strong>de</strong> morigerante da máscara: extinguir “o vício da embriaguez aos escravos,<br />

por lhes tapar a boca.” A <strong>de</strong>scrição sumária está <strong>de</strong> acordo com a simplicida<strong>de</strong><br />

bárbara do utensílio, no qual há apenas três buracos, “dois para ver,<br />

um para respirar”. O narrador sentencioso aumenta o alcance dos propósitos<br />

edificantes que tornavam legítimo o uso <strong>de</strong> tal peça: ao impedir o vício <strong>de</strong><br />

beber, a máscara <strong>de</strong>sestimulava a tentação <strong>de</strong> furtar o dinheiro do senhor para<br />

comprar bebida, garantindo assim a sobrieda<strong>de</strong> e a honestida<strong>de</strong>. O ápice da<br />

racionalização aberrante está na postulação seguinte, que não nega o grotesco<br />

do tal aparelho, mas sentencia, como verda<strong>de</strong> última, a salvaguarda da “or<strong>de</strong>m<br />

social e humana”, a qual nem sempre po<strong>de</strong> prescindir do grotesco e do cruel.<br />

A qualificação <strong>de</strong> que se vale para caracterizar os meios empregados, precisa<br />

diga-se, contamina o fim almejado, cuja <strong>de</strong>fesa impõe o custo da aceitação <strong>de</strong><br />

práticas <strong>de</strong>sumanas. Contrariamente a sua razão <strong>de</strong> ser ostensiva, trata-se <strong>de</strong><br />

uma <strong>de</strong>fesa que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> dar lastro ao questionamento incisivo daquela<br />

“or<strong>de</strong>m social e humana”, na medida em que esta não po<strong>de</strong> ser sustentada<br />

sem a vigência reiterada do grotesco e do cruel. A última referência que faz o<br />

narrador às máscaras <strong>de</strong> folha <strong>de</strong> flandres aponta a existência normalizada do<br />

utensílio no dia a dia, sua acessibilida<strong>de</strong> a viabilizar a reprodução da violência<br />

cotidiana contra os escravos, na forma <strong>de</strong> mercadorias bem à vista <strong>de</strong> todos:<br />

“Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas” (Assis,<br />

1997, p. 3).<br />

Do mesmo procedimento <strong>de</strong>scritivo e avaliativo vale-se o narrador a respeito<br />

<strong>de</strong> outro instrumento, o ferro ao pescoço aplicado aos escravos que<br />

escapavam. Ele não nega que o aparelho pesava, “mas era menos castigo que<br />

sinal”, pois não <strong>de</strong>ixava dúvida quanto à reincidência na ação <strong>de</strong> fugir, o que<br />

facilitava a recaptura. O tema da fuga <strong>de</strong> cativos, central no conto, introduz-se,<br />

no terceiro parágrafo, por um discurso marcado por uma ironia mais<br />

patente, fronteiriça ao intento escarninho ao constatar a fuga frequente <strong>de</strong><br />

escravos, pois “nem todos gostavam da escravidão”; a mesma prática irônica<br />

está presente quando o narrador lembra que eram “ocasionalmente” punidos<br />

183


João Roberto Maia<br />

com pancada por fugirem, admitindo que “nem todos gostavam <strong>de</strong> apanhar<br />

pancada”. O uso do advérbio “ocasionalmente” e a sugestão, que fica subtendida,<br />

<strong>de</strong> que havia os que talvez gostassem da violência física ou, ao menos,<br />

não se importassem muito com ela, são modos <strong>de</strong> abrandamento irônico do<br />

sofrimento imposto à condição <strong>de</strong> cativo. Para convencer o leitor <strong>de</strong> que a<br />

regra não era a punição cruel, lhe é dada a informação <strong>de</strong> que gran<strong>de</strong> parte<br />

dos fugitivos era apenas repreendida, assim como recorre-se ao argumento da<br />

mo<strong>de</strong>ração calculada da ação punitiva ditada pelo “sentimento da proprieda<strong>de</strong>”<br />

(I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, pp. 3-4). Em suma, trata-se <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> argumentos<br />

apenas atenuadores a respeito <strong>de</strong> aparelhos e práticas do escravismo, se lidos<br />

<strong>de</strong> modo alheio às ambiguida<strong>de</strong>s que lhe são constitutivas, mas que, ainda<br />

assim, não ficam in<strong>de</strong>nes no fim das contas, pois têm como sua contraprova a<br />

brutalida<strong>de</strong> das ações que encerram o conto.<br />

Os dois parágrafos seguintes tratam dos meios à mão para a recuperação<br />

dos fugitivos: anúncios nos jornais e um ofício do tempo, o <strong>de</strong> pegar escravos<br />

e restituí-los a seus donos. Ao referir-se a este o narrador diz que “(n)ão<br />

seria nobre, mas por ser um instrumento da força com que se mantém a lei e<br />

a proprieda<strong>de</strong>, trazia esta outra nobreza implícita das ações reivindicadoras”<br />

(I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 4). Parece-me claro que estão presentes aqui os mesmos recursos<br />

retóricos que foram comentados antes: por um lado, ressalvas que não se<br />

po<strong>de</strong>m omitir em face do que há <strong>de</strong> grotesco em tal lida; por outro, racionalizações<br />

que, por generalizantes, omitem especificida<strong>de</strong>s cuja consi<strong>de</strong>ração dá<br />

vigência virtual a objeções àquelas mesmas justificativas da or<strong>de</strong>m, as quais se<br />

convertem em um modo insidioso <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa que efetivamente acentua o caráter<br />

insustentável, em última instância, da estrutura social aparentemente legitimada<br />

pelo narrador. Quanto ao procedimento, há proximida<strong>de</strong> com aquele<br />

que foi i<strong>de</strong>ntificado por Roberto Schwarz no capítulo em que Brás Cubas se<br />

ocupa mais <strong>de</strong>tidamente <strong>de</strong> seu cunhado Cotrim e o faz pelo uso do elogio<br />

convertido em acusação ou, nos termos do crítico, o <strong>de</strong>funto-autor “trabalha<br />

com elogios que incriminam e justificações que con<strong>de</strong>nam” (Schwarz, 1990,<br />

pp. 109-122).<br />

184


Pais e filhos na or<strong>de</strong>m escravocrata<br />

A amenização do castigo físico, que serve à <strong>de</strong>fesa da manutenção da or<strong>de</strong>m,<br />

e o reconhecimento da nobreza implícita do ofício <strong>de</strong> capturar escravos<br />

fugidos, por ser um instrumento <strong>de</strong> sustentação da lei e da proprieda<strong>de</strong>,<br />

estritamente consi<strong>de</strong>rados como exemplos <strong>de</strong> justificação do status quo, como<br />

modos <strong>de</strong> reproduzir opiniões vigentes à época, à margem da ironia que contamina<br />

o discurso do narrador, colocam em pauta questões que cevam ainda<br />

hoje o <strong>de</strong>bate sobre as pesadas heranças do nosso passado. Em intervenção<br />

no <strong>de</strong>bate sobre as cotas para estimular a entrada <strong>de</strong> negros na universida<strong>de</strong><br />

pública, Luiz Felipe <strong>de</strong> Alencastro fez vir à tona <strong>de</strong>formações históricas<br />

brasileiras, que têm na sobrevivência da escravidão no século XIX sua razão<br />

<strong>de</strong>cisiva, para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r uma política <strong>de</strong> ação afirmativa. Lembra Alencastro<br />

que segundo a lei <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1831, a qual proibiu o tráfico negreiro<br />

no Brasil, os africanos introduzidos aqui após a proibição eram livres e os que<br />

os escravizavam eram sequestradores, incorrendo nas sanções estabelecidas no<br />

Código Criminal <strong>de</strong> 1830. Na prática, porém, os senhores sequestradores e<br />

correlatamente culpados <strong>de</strong> escravização <strong>de</strong> pessoas livres foram beneficiados<br />

pela anistia do governo imperial. Por conseguinte, nas palavras do historiador,<br />

“(m)oralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda – primeiro e<br />

sobretudo – ilegal.” Para Alencastro a harmonia entre o governo e os proprietários<br />

<strong>de</strong> escravos criminosos “constitui o pecado original da socieda<strong>de</strong> e da<br />

or<strong>de</strong>m jurídica brasileira”, nas quais se consolida “o princípio da impunida<strong>de</strong><br />

e do casuísmo da lei.” (Alencastro, 2010, pp. 4-5) Assim, se muitos escravos<br />

eram legalmente livres na época em que se situa o enredo <strong>de</strong> “Pai contra mãe”,<br />

meados do século XIX, a justificativa <strong>de</strong> que o ofício <strong>de</strong> capturador <strong>de</strong> escravos<br />

fugitivos era um recurso para a garantia da lei e da proprieda<strong>de</strong> faz figura<br />

acabada <strong>de</strong> contrassenso, sem prejuízo <strong>de</strong> estar fundada na prática brasileira,<br />

no capítulo <strong>de</strong> suas aberrações históricas. O próprio narrador, aliás, se refere a<br />

“escravo <strong>de</strong> contrabando” – o contrabando <strong>de</strong> escravos foi prática recorrente<br />

após a lei <strong>de</strong> 1831.<br />

Em face da escravidão ilegal, nem é preciso dizer que o arbítrio senhorial<br />

<strong>de</strong> estabelecer os castigos e a intensida<strong>de</strong> das pancadas, como o conto dá<br />

185


João Roberto Maia<br />

notícia, na contramão do ânimo or<strong>de</strong>iro e legalista daquele que narra, além <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sumano, constituía um <strong>de</strong>srespeito acintoso à or<strong>de</strong>m jurídica, assim como é<br />

algo dispensável lembrar as sequelas que tais práticas <strong>de</strong>ixaram num país que<br />

tem como uma <strong>de</strong> suas chagas abertas a prática cotidiana da tortura principalmente<br />

nas ca<strong>de</strong>ias, infligida a pobres e negros.<br />

A partir do sexto parágrafo a narração dá lugar à história <strong>de</strong> um homem<br />

com nome, sobrenome – Cândido Neves, o Candinho – e sua família. O<br />

quadro doméstico com suas agruras, com os dramas, alegrias, projetos <strong>de</strong><br />

vida, movimentos cotidianos, oscilações dos indivíduos que o compõem, contrasta<br />

com as enunciações genéricas e impessoais <strong>de</strong> afirmações, observações,<br />

<strong>de</strong>scrições anteriores, às quais entretanto se liga e as ilustra efetivamente, na<br />

medida em que o personagem mais <strong>de</strong>stacado em “Pai contra mãe” <strong>de</strong>dica-se<br />

principalmente à ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pegar escravos.<br />

O foco exclusivo na situação <strong>de</strong> Candinho, ao longo do parágrafo em que<br />

o personagem é apresentado ao leitor, explicita a vida precária: pobreza e um<br />

rol <strong>de</strong> ocupações mo<strong>de</strong>stas exercidas e logo abandonadas, o que lhe caracteriza<br />

a instabilida<strong>de</strong>. Reveladora não apenas da dificulda<strong>de</strong> do personagem <strong>de</strong><br />

manter-se nos diferentes ofícios que lhe cabem, mas da condição mesma do<br />

homem livre e pobre na socieda<strong>de</strong> escravista é a seguinte passagem: “A obrigação,<br />

porém, <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r e servir a todos feria-o na corda do orgulho (...)”<br />

(Assis, 1997, pp. 4-5). Estampa-se aqui o problema do universo do trabalho<br />

sem legitimida<strong>de</strong> social, o qual constitui um dos elementos da matéria social<br />

formalizada no conto (Rabello, s/d, p. 45).<br />

Juridicamente livre, mas <strong>de</strong> vida reduzida a condições mínimas o coloca em<br />

situação apenas um pouco acima da do escravo, Candinho sente seu orgulho<br />

ferido ao submeter-se a ofício cuja obrigação <strong>de</strong> “aten<strong>de</strong>r e servir” lhe impunha,<br />

dia após dia, a consciência <strong>de</strong> seu lugar social. Esse sentimento do personagem,<br />

que certamente está entre as principais razões <strong>de</strong> sua não aceitação<br />

<strong>de</strong> outras tantas ocupações, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> constituir uma forma <strong>de</strong> resistência<br />

ao <strong>de</strong>stino ditado pela estrutura social, na medida em que a “socieda<strong>de</strong> escravista<br />

tornava o homem livre um pária em sentido amplo, incluindo nisso suas<br />

186


Pais e filhos na or<strong>de</strong>m escravocrata<br />

expectativas quanto ao padrão <strong>de</strong> vida.” Assim, “o horizonte da vida <strong>de</strong> cada<br />

um era o horizonte da vida <strong>de</strong> todos, por sua vez <strong>de</strong>limitado pelo trabalho<br />

escravo.” (Cardoso, 2008, p. 87). Na mesma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rações, em<br />

livro clássico Joaquim Nabuco apontou que o “artífice, (...) para não ficar <strong>de</strong>baixo<br />

do estigma social que a escravidão imprime aos trabalhadores, procura<br />

assinalar o intervalo que o separa do escravo” (Nabuco, 1977, p. 160). Em<br />

suma, fere a suscetibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Candinho o exercício <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s nas quais<br />

o imperativo <strong>de</strong> servir torna nítida a lembrança <strong>de</strong> sua pequena distância da<br />

condição propriamente servil.<br />

Estará no centro da discussão familiar o problema da falta <strong>de</strong> trabalho<br />

constante, regular, a partir do momento em que Cândido Neves casa com a<br />

órfã Clara. A família constituída, <strong>de</strong> que faz parte uma tia da moça, é muito<br />

pobre: aos ganhos incertos do homem soma-se apenas a renda mo<strong>de</strong>sta das<br />

duas mulheres, cuja ativida<strong>de</strong> é a <strong>de</strong> coser. O projeto <strong>de</strong> ter filhos tem como<br />

pré-condição imperiosa a obtenção <strong>de</strong> um emprego certo pelo esposo recente,<br />

como afirma reiteradas vezes, com percepção da realida<strong>de</strong>, a tia Mônica.<br />

Firme no papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>smancha-prazeres, as intervenções <strong>de</strong>sta contrastam vivamente<br />

com as assertivas pouco consequentes dos cônjuges quando passam a<br />

ter certeza <strong>de</strong> que um filho está a caminho. Ao <strong>de</strong>smontar o provi<strong>de</strong>ncialismo<br />

da futura mãe – “Deus nos há <strong>de</strong> ajudar, titia” – e por estar na contramão do<br />

otimismo também provi<strong>de</strong>ncialista lavrado em clichês linguísticos dos votos<br />

<strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que se vale o narrador – “(...) era o fruto abençoado que viria<br />

trazer ao casal a suspirada ventura” –, a dureza realista das falas da tia é própria<br />

<strong>de</strong> quem não se contenta com ilusões e tem sempre presente o peso das<br />

urgências materiais da vida – “Vocês, se tiverem um filho, morrem <strong>de</strong> fome”;<br />

“Vocês verão a triste vida” (Assis, 1997, p. 6).<br />

Tia Mônica é alegre e muito amiga. Sua fala dura parece ser motivada exclusivamente<br />

por preocupações reais com a vida da sobrinha e <strong>de</strong> seu marido.<br />

No entanto essa boa senhora não critica o ofício <strong>de</strong> pegar escravos baseada<br />

em algum tipo <strong>de</strong> interdição moral ou razão humanitária, mas simplesmente<br />

porque era ativida<strong>de</strong> inconstante, não proporcionava proventos regulares. Em<br />

187


João Roberto Maia<br />

nenhuma das vezes que tenta convencer Candinho a abandonar aquela ocupação,<br />

ela se mostra chocada com ou ao menos incomodada pelo fato <strong>de</strong> o rapaz<br />

restituir homens e mulheres ao domínio senhorial.<br />

Por sua vez Cândido Neves também parece ser boa pessoa, que quer apenas<br />

manter sua família e viver alegremente. Entretanto especializou-se num ofício<br />

bárbaro, que exerce com gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>streza. Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> sentir orgulho disso,<br />

até mesmo <strong>de</strong> se glorificar: “(...) preto fugido sabe que comigo não brinca;<br />

quase nenhum resiste, muitos logo se entregam”; “Pegar escravos trouxe-lhe um<br />

encanto novo” (I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p 7). A dignificação pelo trabalho, cara à i<strong>de</strong>ologia<br />

burguesa, traduz-se aqui ferinamente na versão do caçador <strong>de</strong> escravos brasileiros<br />

a se comprazer com sua proficiência. O ofício o nobilita na medida em<br />

que permite distingui-lo dos cativos, os quais o temem e sobre os quais exerce,<br />

como homem branco e livre, seu po<strong>de</strong>r. Uma espécie <strong>de</strong> agente da or<strong>de</strong>m (com<br />

todas as implicações contextuais que a <strong>de</strong>slegitimam, como vimos), a serviço<br />

dos proprietários, que vai “atrás do vicioso” (I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 8). Essa percepção<br />

<strong>de</strong> si próprio em sua lida, motivo <strong>de</strong> orgulho, <strong>de</strong> que não <strong>de</strong>ixam dúvida os<br />

regozijos íntimos <strong>de</strong> força, as projeções imaginárias <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e importância, é<br />

o outro lado da moeda relativamente àquela já referida ausência <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong><br />

no exercício <strong>de</strong> outros trabalhos, que é a razão pela qual, em clave oposta,<br />

o orgulho do personagem se fere. Não obstante a ocupação <strong>de</strong> pegar cativos<br />

constituir meio <strong>de</strong> afirmar seu lugar entre os livres, o regozijo <strong>de</strong> Cândido não<br />

passa efetivamente <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> compensação imaginária <strong>de</strong> força e po<strong>de</strong>r,<br />

porque só se objetiva como um modo <strong>de</strong> subordinação aos proprietários.<br />

A certa altura tais habilida<strong>de</strong>s para pegar escravos não são mais suficientes<br />

para sequer manter a vida mo<strong>de</strong>sta, porque aumenta a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados<br />

no ofício: “No próprio bairro havia mais <strong>de</strong> um competidor” (I<strong>de</strong>m,<br />

ibi<strong>de</strong>m, p.8). Homens sem posses em concorrência feroz por seu ganha-pão,<br />

armam-se <strong>de</strong> uma corda e vão “à caçada” – esta a palavra usada, cuja primeira<br />

acepção, perseguir para aprisionar e matar animais, ajusta-se bem à <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> uma alternativa <strong>de</strong> trabalho pela qual proletários competem em<br />

ambiência escravista.<br />

188


Pais e filhos na or<strong>de</strong>m escravocrata<br />

Os apuros da necessida<strong>de</strong> levam Candinho a tomar por fugitivo “escravo<br />

fiel que ia a serviço <strong>de</strong> seu senhor” e até mesmo “certa vez capturou um<br />

preto livre”. O engano do personagem, visto em contexto histórico, não é<br />

caso isolado, fortuito, mas uma manifestação do que Luiz Felipe <strong>de</strong> Alencastro<br />

chamou <strong>de</strong> “terror escravagista”, que ameaçava qualquer indivíduo<br />

negro – escravo a serviço ou livre a exercer seu direito <strong>de</strong> circular pelas<br />

ruas do Rio <strong>de</strong> Janeiro e na região circunvizinha – <strong>de</strong> ser confundido com<br />

os cativos fugidos. Assim, como se explicita nas vicissitu<strong>de</strong>s da labuta do<br />

proletário machadiano, “[s]eu trabalho propaga o terror entre os negros e<br />

constitui uma lembrança permanente da presença da instituição [da escravidão]”<br />

(Alencastro, 2005).<br />

A situação <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong>s materiais crescentes, na qual se dão a gestação do<br />

menino e seu nascimento, acentua o drama familiar. Vemos Candinho contra<br />

o cerco da penúria, acossado pelas dívidas, pela escassez <strong>de</strong> mantimentos, pela<br />

ameaça <strong>de</strong> <strong>de</strong>spejo. É comovente sua luta para salvar seu rebento do <strong>de</strong>stino <strong>de</strong><br />

ser entregue à Roda dos enjeitados, segundo conselho da sempre pragmática<br />

Tia Mônica. A experiência <strong>de</strong> sentimentos contraditórios vivida por ele, ao<br />

nascer o filho e em face <strong>de</strong> sua aspiração mais que legítima <strong>de</strong> criá-lo, dá a<br />

medida da iniquida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> que é vítima e contra a qual luta: “(...) nasceu<br />

a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também” (Assis, 1997, p.<br />

11). Todavia suas esperanças <strong>de</strong> superação <strong>de</strong> tais adversida<strong>de</strong>s são nutridas<br />

pela perspectiva <strong>de</strong> fazer, uma vez mais, o trabalho que o torna parte funcional<br />

do sistema escravista em prol dos proprietários, contra o cativo, aquele<br />

que está no último <strong>de</strong>grau da socieda<strong>de</strong>. Nos antípodas <strong>de</strong> sua condição proletária,<br />

quando se encontra no encalço <strong>de</strong> uma <strong>de</strong> suas mais <strong>de</strong>sejadas vítimas<br />

em potencial, a experiência vicária que o faz apropriar-se imaginariamente <strong>de</strong><br />

e mimetizar certos códigos <strong>de</strong> conduta da classe proprietária, com a qual se<br />

i<strong>de</strong>ntifica então, é a expressão máxima daquele orgulho que sente ao exercer o<br />

ofício pelo qual submete o escravo a seu po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong>le se distingue: “Cândido<br />

Neves parecia falar como dono da escrava, e agra<strong>de</strong>ceu cortesmente a notícia”<br />

(I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 11).<br />

189


João Roberto Maia<br />

As cenas seguintes seguem nesse regime <strong>de</strong> contrastes, agora entre o sofrimento<br />

do pai amoroso, no momento muito duro <strong>de</strong> entrega do recém-<br />

-nascido à Roda, e a <strong>de</strong>terminação inflexível, <strong>de</strong>sapiedada do caçador <strong>de</strong><br />

escravos quando domina implacavelmente sua vítima. Ele passa da indisfarçável<br />

“dor do espetáculo”, ao ver o menino pronto para ser levado, à<br />

comoção “enorme” <strong>de</strong> alegria e esperança, ao avistar a mulata Arminda, a<br />

escrava fugida por cuja captura a recompensa é tentadora. Na verda<strong>de</strong>, ao<br />

mesmo tempo <strong>de</strong>corrência e índice da força da or<strong>de</strong>m escravocrata, trata-<br />

-se <strong>de</strong> incompatibilida<strong>de</strong> completa entre um proletário e uma escrava: as<br />

alegrias, dores, aspirações, projetos <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> ambos são inconciliáveis,<br />

vigoram ou têm virtualida<strong>de</strong> apenas em chave antagônica. Mais concretamente,<br />

o enfrentamento <strong>de</strong> Candinho e da grávida Arminda, que esclarece<br />

o título do conto, significa a possibilida<strong>de</strong> aberrante da negação recíproca<br />

<strong>de</strong> direitos elementares entre um <strong>de</strong>svalido e alguém que não possui sequer a<br />

condição jurídica <strong>de</strong> livre: criar o filho com recursos próprios, como <strong>de</strong>seja<br />

o pai Candinho, e dar ao filho o direito à vida, do ângulo da mãe Arminda.<br />

Nesse sentido, com incidência da ironia machadiana em registro trágico no<br />

fim das contas, o antagonismo violento revoga enfaticamente a comunhão<br />

(vital, humana, natural, <strong>de</strong> afetos) da condição <strong>de</strong> ambos como progenitores,<br />

para a qual apela em vão a escrava em <strong>de</strong>sespero: “Estou grávida, meu<br />

senhor! Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor <strong>de</strong>le que me<br />

solte (...)” (I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 13).<br />

A <strong>de</strong>terminação inabalável do pai, como caçador <strong>de</strong> escravos, contra a luta<br />

aterrorizada da mãe por sua libertação explicita a violência que se dá à luz do<br />

dia, por diferentes ruas e logradouros da cida<strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, cujos nomes<br />

o narrador registra como a indicar vínculos entre a barbárie e um espaço<br />

urbano que apresentava a maior concentração <strong>de</strong> escravos das Américas, submetidos<br />

a severo controle: toque <strong>de</strong> recolher, prisões e toda sorte <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong><br />

policial (Alencastro, 2.005). Por ser assim, Arminda sabe da inutilida<strong>de</strong> do<br />

grito para ela, mulata, nas vias <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> aparelhada contra sua condição:<br />

“A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que <strong>de</strong><br />

190


Pais e filhos na or<strong>de</strong>m escravocrata<br />

costume, mas enten<strong>de</strong>u logo que ninguém viria libertá--la, ao contrário”. E a<br />

reprodução da brutalida<strong>de</strong>, naturalizada quase como parte constituinte dos<br />

costumes urbanos, expõe-se inteira na atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem presencia a captura:<br />

“Quem passava ou estava à porta <strong>de</strong> uma loja, compreendia o que era e naturalmente<br />

não acudia” (Assis, 1997, p. 13, grifo meu).<br />

À mãe <strong>de</strong>rrotada, o cativeiro e o aborto; ao pai vitorioso, a recompensa e o<br />

filho recuperado. A óbvia paráfrase que faço da famosa passagem do romance<br />

Quincas Borba, enunciada pelo personagem-título – “Ao vencido, ódio ou compaixão;<br />

ao vencedor, as batatas” (I<strong>de</strong>m, 1997 b, p. 9) –, não é gratuita, porque<br />

a fala <strong>de</strong> Candinho, que encerra o conto, tem certa afinida<strong>de</strong> com as palavras<br />

do filósofo maluco: constitui, em face do confronto cruel, uma espécie <strong>de</strong> versão<br />

proletária do predomínio dos mais fortes convertido em i<strong>de</strong>ologia: “Nem<br />

todas as crianças vingam” (I<strong>de</strong>m, 1997, p. 14).<br />

Em primeiro plano, dado o embate do entrecho, o mais forte é o proletário<br />

contra a escrava. Entretanto, em instância última, o vencedor evi<strong>de</strong>nte é o<br />

dono <strong>de</strong> escravos, pois se trata da “contribuição do homem pobre e livre na<br />

perpetuação da mentalida<strong>de</strong> escravagista”, como anotou Cilaine Alves Cunha<br />

(Cunha, 2006, p. 33). Logo na sequência da citação acima a ensaísta faz uma<br />

observação sobre o conto “Pai contra mãe” que chamou minha atenção para<br />

o paralelo possível com a palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Quincas Borba, “Ao vencedor,<br />

as batatas”: “Em ‘Pai contra mãe’, [Machado <strong>de</strong> Assis] flagra a contraditória<br />

absorção, por essa camada social [a dos pobres e livres], da violência gerada<br />

pela escravidão, assim da i<strong>de</strong>ologia positivista segundo a qual apenas os fortes<br />

sobrevivem”.<br />

Como vimos, o ofício <strong>de</strong> caçador <strong>de</strong> escravos tinha certa “nobreza”, segundo<br />

o narrador, por contribuir para manter a lei e a proprieda<strong>de</strong>, assim como<br />

o marido <strong>de</strong> Clara vê-se como aquele que vai “atrás do vicioso”. Diga-se<br />

ainda que todo o proce<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Candinho, como caçador <strong>de</strong> escravos, contra<br />

Arminda investe-se <strong>de</strong> coerência inquebrantável com tais pressupostos e<br />

autoatribuições. Além da insensibilida<strong>de</strong> aos rogos da cativa, ele é capaz <strong>de</strong><br />

dizer coisas como: “– Você é que tem culpa. Quem manda fazer filhos e fugir<br />

191


João Roberto Maia<br />

<strong>de</strong>pois?” (Assis, 1997, p. 13). A boa tia Mônica também não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> dizer<br />

“algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga”<br />

(I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 14). Mas é a última fala <strong>de</strong> Candinho, já citada, que encerra<br />

o conto (“Nem todas as crianças vingam”), aquela que mais impressiona por<br />

sua inspiração senhorial – uma frase que po<strong>de</strong>ria ter saído da boca do mais<br />

cínico proprietário em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seus interesses escravagistas.<br />

Como já foi apontado por vários críticos, o Humanitismo é uma sátira<br />

<strong>de</strong> Machado ao florescimento oitocentista <strong>de</strong> ismos, cujo objeto mais explícito<br />

é o positivismo comtiano. Há também outras alusões, entre as quais<br />

o darwinismo social, este satirizado nas teses da luta <strong>de</strong> todos contra todos,<br />

que ecoam a struggle for life spenceriana. Quanto à apropriação das i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong><br />

Spencer (“Ao vencedor as batatas” é provavelmente a versão machadiana da<br />

survival of the fittest do filósofo inglês), Roberto Schwarz sugere que a principal<br />

voltagem cômica do intento satírico “talvez esteja nas relações entre a<br />

doutrina e o ambiente social que ela encontrava no país” (Schwarz, 1990,<br />

pp. 155-156.). A filosofia spenceriana, aquele “produto do industrialismo<br />

inglês”, segundo Richard Hofsstadter (apud Schwarz, i<strong>de</strong>m, p. 155), aclimatada<br />

pelo Humanitismo, mudava <strong>de</strong> significado nas condições brasileiras,<br />

nas quais vigorava a escravidão, e indivíduos como Quincas Borba e Brás<br />

Cubas não tinham <strong>de</strong> se submeter à competição universal preconizada pela<br />

doutrina prestigiosa. Não obstante, as i<strong>de</strong>ias humanitistas “atestavam a tintura<br />

mo<strong>de</strong>rna – filosófica e científica – <strong>de</strong> dois figurões; davam justificativa<br />

ilustrada à indiferença dos ricos pelo <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> seus <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes” (I<strong>de</strong>m,<br />

ibi<strong>de</strong>m). Um modo <strong>de</strong> afirmar superiorida<strong>de</strong> e legitimar privilégios.<br />

Ainda mais perturbador é o parentesco entre a palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

Quincas Borba e frase <strong>de</strong> um proletário que sintetizaria os significados,<br />

numa espécie <strong>de</strong> moral da história, <strong>de</strong> seu embate com uma escrava em “Pai<br />

contra mãe”. “Nem todas as crianças vingam” é uma frase cruel, que toma<br />

a violência como dado natural, afirma a indiferença pelas crianças que não<br />

vingam, proclama vitória – registre-se que um dos sentidos figurados do<br />

verbo “vingar” é o <strong>de</strong> sair vencedor. Com efeito, por trás <strong>de</strong>ssa constatação<br />

192


Pais e filhos na or<strong>de</strong>m escravocrata<br />

que falseia a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> ao naturalizá-la, está a <strong>de</strong>fesa da or<strong>de</strong>m social<br />

por uma <strong>de</strong> suas vítimas, mas que também, sintomaticamente, exerce seu<br />

papel no terror escravagista, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma peça na engrenagem da<br />

escravidão. Se há <strong>de</strong>scompasso entre a celebração da vitória e a manutenção<br />

da situação precária, provisória (nada garante que não tenha logo <strong>de</strong> levar o<br />

filho <strong>de</strong> volta à Roda), isso não impe<strong>de</strong> Candinho <strong>de</strong> gozar o triunfo momentâneo<br />

e não per<strong>de</strong>r a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, mais uma vez, mostrar-se acima<br />

do escravo sem direitos <strong>de</strong> constituir família estável, objetivo pelo qual ele<br />

po<strong>de</strong> ao menos continuar lutando.<br />

A anotar ainda que sua responsabilida<strong>de</strong> direta no aborto se <strong>de</strong>smancha<br />

como problema, na medida em que se vale <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> máxima que<br />

revelaria um conhecimento mais ou menos cristalizado da experiência, pautado<br />

pelas contingências, pela não consi<strong>de</strong>ração das circunstâncias concretas<br />

da captura (que são também social e historicamente fundadas), pela naturalização<br />

da brutalida<strong>de</strong>, pela i<strong>de</strong>ia geral que subsume o caso específico.<br />

Toda a insensibilida<strong>de</strong> cínica das asserções do narrador nos primeiros parágrafos<br />

traduz-se e sintetiza-se, <strong>de</strong> certo modo, nessa fala que encerra o conto,<br />

a qual expõe a insensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alguém que, não obstante contar entre os<br />

dominados, se compraz com o resultado trágico <strong>de</strong> sua própria ação contra<br />

uma escrava e seu rebento, uma vez que tal <strong>de</strong>sfecho o favoreceu. Cabe a ressalva<br />

<strong>de</strong> que agora não há as ambiguida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>tectadas nos comentários do<br />

narrador. Difícil imaginar fala mais dura para finalizar um dos contos mais<br />

acerbos <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis.<br />

Referências Bibliográficas<br />

Alencastro, Luiz Felipe. “Racismo e cotas”. Folha <strong>de</strong> S. Paulo, Mais!, 07 03 2010, pp.<br />

4-5.<br />

_____. “‘Pai contra mãe’: o terror escravagista em um conto <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis”.<br />

2005. Disponível em http: //www.freud-lacan.com/articles/article.php?url _<br />

article=lp<strong>de</strong>alencastro141105. Acesso em 03 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2011.<br />

193


João Roberto Maia<br />

Assis, Machado <strong>de</strong>. “Pai contra mãe”. In: Relíquias <strong>de</strong> casa velha. São Paulo: Editora<br />

Globo, 1997 [1906], pp. 3-14.<br />

_____. Quincas Borba. São Paulo: Editora Globo, 1997 b [1891].<br />

Cardoso, Adalberto. “Escravidão e sociabilida<strong>de</strong> capitalista: um ensaio sobre inércia<br />

social”. Novos estudos – CEBRAP n. 80. São Paulo, março <strong>de</strong> 2008, pp. 71-88.<br />

Cunha, Cilaine Alves. “Tristezas <strong>de</strong> uma geração que termina”. Revista Teresa 6-7.<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação da Área <strong>de</strong> Literatura <strong>Brasileira</strong> da USP. São Paulo:<br />

Ed. 34; Imprensa Oficial, 2006, pp. 32-55.<br />

Nabuco, Joaquim. O abolicionismo. 4.ª ed. Petrópolis: Vozes, 1977.<br />

Rabello, Ivone Daré. “Máximo, múltiplo, incomum”. Revista Entrelivros – n. 10,<br />

edição especial sobre Machado <strong>de</strong> Assis. São Paulo: Duetto Editorial, s/d, pp.<br />

42-47.<br />

Schwarz, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado <strong>de</strong> Assis. 2.ª ed. São Paulo:<br />

Duas Cida<strong>de</strong>s, 1990.<br />

194


<strong>Prosa</strong><br />

Visita dos Acadêmicos<br />

Olavo Bilac e Coelho Neto<br />

O dia em que o interior do estado <strong>de</strong><br />

São Paulo recebeu os dois imortais<br />

Rodrigo Rossi Falconi<br />

Foi uma verda<strong>de</strong>ira apoteose a recepção que tiveram em São João<br />

da Boa Vista, no interior do Estado <strong>de</strong> São Paulo, em 1901, o<br />

poeta Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac e o escritor Henrique<br />

Maximiano Coelho Neto, brilhantes literatos, já naquele momento<br />

consi<strong>de</strong>rados verda<strong>de</strong>iras glórias do Brasil e que se haviam tornado,<br />

quatro anos antes, fundadores da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>.<br />

A convite do Presi<strong>de</strong>nte do Centro Recreativo Sanjoanense, Coronel<br />

João Osório <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Oliveira, e a instâncias do médico<br />

Dr. Pedro Sanches <strong>de</strong> Lemos, <strong>de</strong> Poços <strong>de</strong> Caldas, acompanhados<br />

do referido facultativo, do Comandante Arthur Affonso <strong>de</strong> Barros<br />

Cobra, <strong>de</strong> Henrique Leite Ribeiro e <strong>de</strong> João Corrêa Pacheco, os<br />

ilustres literatos chegaram a São João da Boa Vista no dia 7 <strong>de</strong> abril<br />

<strong>de</strong> 1901, às 11 horas da manhã, partindo pouco <strong>de</strong>pois das 9 horas<br />

<strong>de</strong> Poços <strong>de</strong> Caldas, cida<strong>de</strong> mineira on<strong>de</strong> estiveram em tratamento<br />

médico.<br />

195<br />

Médico formado<br />

pela Universida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> São Paulo,<br />

membro-fundador<br />

da Socieda<strong>de</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

História da<br />

Medicina e<br />

membro da<br />

Associação<br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

Pesquisadores<br />

<strong>de</strong> História e<br />

Genealogia, da<br />

Associação Médica<br />

Ítalo-<strong>Brasileira</strong>,<br />

da Socieda<strong>de</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

Médicos Escritores<br />

e da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong> <strong>de</strong> São João<br />

da Boa Vista


Rodrigo Rossi Falconi<br />

Na Estação Ferroviária <strong>de</strong> São João da Boa Vista, da Companhia Mogiana<br />

<strong>de</strong> Estradas <strong>de</strong> Ferro, inaugurada em 1886, pelo Imperador Dom Pedro II,<br />

que estava repleta <strong>de</strong> admiradores, Olavo Bilac e Coelho Neto foram aclamados<br />

à proporção que o trem chegava, impulsionado pelo movimento uniformemente<br />

retardado.<br />

Assim que <strong>de</strong>sembarcaram, foram abraçados e felicitados por um gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> amigos que os esperavam, entre os quais estavam o Coronel José<br />

Procópio <strong>de</strong> Azevedo Sobrinho, Coronel João Osório <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Oliveira,<br />

Coronel Domingos Theodoro <strong>de</strong> Azevedo Sobrinho, Major José Affonso <strong>de</strong><br />

Barros Cobra, Tenente-Coronel Laurentino Proença, José <strong>de</strong> Quadros Pacheco,<br />

Joaquim Teixeira da Silva Monteiro, entre outros, bem como gran<strong>de</strong> parte<br />

da generosa e adiantada mocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João da Boa Vista.<br />

Da estação seguiram os visitantes pela Rua São João, acompanhados por<br />

gran<strong>de</strong> massa popular, em direção ao Centro Recreativo Sanjoanense, fundado<br />

em 1898, passando em frente ao imponente prédio do Fórum e Ca<strong>de</strong>ia,<br />

construído em 1887. Ao entrar no recinto do majestoso edifício do clube que<br />

fazia honra ao estado <strong>de</strong> São Paulo, a recepção que lhes fizeram e as aclamações<br />

<strong>de</strong> que foram alvo correspon<strong>de</strong>ram aos <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> todos os envolvidos<br />

com o momento histórico para a cida<strong>de</strong> e região.<br />

Ao subirem a escada do elegante alpendre que dava ingresso ao Centro Recreativo<br />

Sanjoanense, ao mesmo passo em que eram aplaudidos, Olavo Bilac<br />

e Coelho Neto foram cobertos <strong>de</strong> flores oferecidas pelas senhoras, que soem<br />

abrilhantar a ilustrada socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João da Boa Vista, tocando, nesse<br />

momento, escolhida peça musical, a filarmônica da instituição.<br />

Após alguns instantes, e passada a emoção do primeiro momento, fez uso<br />

da palavra o advogado Dr. Theophilo Ribeiro <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, que, em nome do<br />

clube, felicitou os ilustres hóspe<strong>de</strong>s e parabenizou a casa que tinha a subida<br />

honra <strong>de</strong> abrigar em seu seio, naquele dia para sempre memorável nos seus<br />

anais, tão brilhantes visitantes, tendo sido o discurso do respeitável causídico<br />

recebido em meio da mais <strong>de</strong>lirante aclamação.<br />

Em seguida, falou o poeta Olavo Bilac, tomando para assunto <strong>de</strong> sua brilhante<br />

oração a viagem <strong>de</strong> Poços <strong>de</strong> Caldas a São João da Boa Vista, ocasião<br />

196


Visita dos Acadêmicos Olavo Bilac e Coelho Neto<br />

em que pô<strong>de</strong> observar, logo que o trem entrou no território paulista, em terras<br />

sanjoanenses, o que podia a atuação humana sobre uma terra fértil, palpitante<br />

<strong>de</strong> vida e riqueza. Na cida<strong>de</strong>, simbolizada no Centro Recreativo Sanjoanense,<br />

o imortal, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> “Príncipe dos Poetas”, admirou a civilização,<br />

em toda pujança da sua força, manifestando-se sob todos os aspectos das<br />

ativida<strong>de</strong>s do espírito humano.<br />

Seguiu-se o escritor Coelho Neto, abundando nas i<strong>de</strong>ias do seu notável e<br />

querido irmão espiritual, sendo ambos os discursos, que foram verda<strong>de</strong>iros<br />

primores <strong>de</strong> eloquência, <strong>de</strong> forma e do mais acrisolado patriotismo, aplaudidos<br />

entusiasticamente pelas senhoras e por todos os cavalheiros presentes.<br />

A esposa <strong>de</strong> Joaquim Teixeira da Silva Monteiro afirmou: “Não é possível<br />

falar melhor. Isto encanta”. Já o senhor João Ribeiro Machado disse: “Quando<br />

se ouve falar Olavo Bilac, sente-se a alegria <strong>de</strong> viver”.<br />

Após aquele primeiro momento, partiram para o Hotel Central, na esquina<br />

das Ruas Saldanha Marinho e Viscon<strong>de</strong> do Rio Branco, próximo à Igreja Matriz,<br />

on<strong>de</strong> foi servido o almoço, às 12 horas e 30 minutos, que se prolongou<br />

até as 14 horas, tendo sido, na opinião dos presentes, “um banquete pantagruélico,<br />

luculino e homérico”.<br />

Muitos foram os discursos proferidos, sendo a palavra concedida pelo Comandante<br />

Arthur Affonso <strong>de</strong> Barros Cobra, que foi o clou da festa. O Dr.<br />

Theophilo <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e o solicitador Thiers Galvão <strong>de</strong> França referiram-se à<br />

obra dos visitantes em palavras repassadas da mais pura eloquência e do mais<br />

alevantado patriotismo, tendo o último, que alguns anos <strong>de</strong>pois tornou-se pai<br />

<strong>de</strong> Patrícia Reh<strong>de</strong>r Galvão, a famosa Pagu, pedido a Coelho Neto e Olavo<br />

Bilac, em nome das senhoras presentes, que permanecessem na cida<strong>de</strong> durante<br />

o restante daquele dia, dando assim ocasião <strong>de</strong> serem elogiados e vistos pela<br />

socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João da Boa Vista como merecia, o que, para sorte dos sanjoanenes,<br />

foi prontamente aceito.<br />

Em seguida, falou o Dr. Pedro Sanches <strong>de</strong> Lemos, saudando o Coronel<br />

João Osório <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Oliveira, Presi<strong>de</strong>nte da Diretoria do Centro Recreativo<br />

Sanjoanense, alma sempre aberta a todos os nobres cometimentos<br />

e a todas as generosas i<strong>de</strong>ias, que tinham por alvo o engran<strong>de</strong>cimento da<br />

197


Rodrigo Rossi Falconi<br />

Comarca <strong>de</strong> São João da Boa Vista, em cuja obra meritória e benéfica era<br />

sempre auxiliado por sua esposa, Dona Maria Azevedo <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Oliveira.<br />

Falaram também Olavo Bilac, Coelho Neto, o engenheiro Dr. Luiz Gambetta<br />

Sarmento, o Major Antonio Sarmento e outros senhores, sendo todos freneticamente<br />

aplaudidos.<br />

Nesta ocasião, Olavo Bilac <strong>de</strong>sdobrou o programa do socialismo coletivista,<br />

ao saudar os fazen<strong>de</strong>iros Coronéis João Osório <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Oliveira e José<br />

Procópio <strong>de</strong> Azevedo Sobrinho:<br />

“A estes notáveis cidadãos, que só davam à Comarca <strong>de</strong> São João da<br />

Boa Vista ótimos exemplos, ensinando ao povo que ninguém subia senão à<br />

custa do próprio esforço e da própria iniciativa, dando sempre a mão aos<br />

que eram capazes <strong>de</strong> trabalho e prosperida<strong>de</strong>, ao invés <strong>de</strong> outros que limitavam<br />

sua ação piedosa à esmola, coisa repulsiva e abjeta, que já passara em<br />

julgado, em nome da Ciência e em nome da Civilização”.<br />

O maranhense Coelho Neto concluiu fazendo um brin<strong>de</strong> às senhoras presentes,<br />

produzindo naquele momento uma das mais belas páginas literárias <strong>de</strong><br />

sua nobre vida. Embora na ocasião não houvesse um taquígrafo que pu<strong>de</strong>sse<br />

apanhar a bela oração do ilustre literato, alguns dos aspectos do discurso pu<strong>de</strong>ram<br />

ser registrados, tendo o escritor feito a apologia da arte, mostrando que<br />

calvário tinha que subir o artista em terras do Brasil, ele que não pertencia a<br />

este mundo, como todos os artistas, encarregado pela Providência <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar<br />

da monotonia da vida <strong>de</strong> todos os dias os pedaços <strong>de</strong> i<strong>de</strong>al, que lhe mesclavam<br />

o andamento, para levá-lo ao céu, trazendo-o consagrado por Deus. Afirmou<br />

ainda que, felizmente, em meio <strong>de</strong> todas as dificulda<strong>de</strong>s da vida e das impurezas<br />

da realida<strong>de</strong>, que cercavam o artista no Brasil, ele tinha para confortá-lo<br />

e animá-lo as senhoras brasileiras, que, a exemplo do que fizeram as mulheres<br />

dos que outrora combatiam contra os emboabas, somente davam hospedagem<br />

em suas casas aos vencedores dos inimigos da sua pátria. O efeito produzido<br />

pelas palavras do notável romancista provocou uma ruidosa manifestação <strong>de</strong><br />

entusiasmo que impressionou a todos os presentes.<br />

198


Visita dos Acadêmicos Olavo Bilac e Coelho Neto<br />

Depois <strong>de</strong> um curto período <strong>de</strong> repouso, os ilustres visitantes dirigiram-se<br />

à residência do Coronel João Osório <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Oliveira, na avenida Dona<br />

Gertru<strong>de</strong>s (hoje se<strong>de</strong> social do Palmeiras Futebol Clube), on<strong>de</strong> foi servida<br />

uma lauta mesa <strong>de</strong> doces, com champanha e cerveja à profusão.<br />

Nesta ocasião, Olavo Bilac, a pedido das senhoras presentes, recitou um<br />

belo soneto, e João dos Santos fez um esplêndido discurso em honra aos visitantes,<br />

o qual agradou extraordinariamente, tendo Coelho Neto afirmado, a<br />

propósito da magnífica peça oratória <strong>de</strong> João dos Santos: “Este homem falou<br />

tão bem que foi para mim uma verda<strong>de</strong>ira revelação”.<br />

Em seguida, o médico Dr. Pedro Sanches <strong>de</strong> Lemos saudou o fazen<strong>de</strong>iro e<br />

lí<strong>de</strong>r republicano local Coronel Joaquim José <strong>de</strong> Oliveira, como o “Patriarca<br />

<strong>de</strong> São João da Boa Vista” e o “Homem mais repassado <strong>de</strong> espírito cristão que<br />

ele conhecia”, sendo seu discurso muito aplaudido por todos.<br />

Finalizando a visita com um breve mas enfático discurso, o anfitrião Coronel<br />

João Osório, dirigindo a saudação <strong>de</strong> honra a Coelho Neto e Olavo Bilac:<br />

“Fostes recebidos aqui com todas as honras e em meio das nossas melhores<br />

e maiores galas, porque sois aristocratas do pensamento, e é essa a única aristocracia<br />

que respeito e admiro”.<br />

Estas belas palavras foram cobertas <strong>de</strong> bravos, tendo alguém afirmado que:<br />

“O Rio Gran<strong>de</strong> do Sul não caminha na vanguarda <strong>de</strong> todos os Estados<br />

da República senão porque é governado discricionariamente por um aristocrata<br />

do pensamento, o Senhor Júlio <strong>de</strong> Castilhos”.<br />

Após visitarem a residência do Presi<strong>de</strong>nte do Centro Recreativo Sanjoanense,<br />

foram aos palacetes do Coronel Gabriel José Ferreira (hoje ocupado<br />

pelo prédio do Banco Itaú), na esquina da Praça da Igreja Matriz com a Rua<br />

São João (hoje Rua Getúlio Vargas), do Coronel Christiano Osório <strong>de</strong> Oliveira,<br />

(hoje se<strong>de</strong> da Diocese <strong>de</strong> São João da Boa Vista), na esquina das Ruas General<br />

Osório e São João, e, finalmente, do Coronel Joaquim José <strong>de</strong> Oliveira<br />

199


Rodrigo Rossi Falconi<br />

(hoje Museu Histórico Municipal), na esquina da Praça da Matriz com a<br />

Rua Quintino Bocaiuva (hoje Rua Benedito Araújo). Em todas as residências,<br />

foram os visitantes sempre carinhosamente recebidos, tendo na residência <strong>de</strong><br />

Gabriel Ferreira falado Olavo Bilac, que recitou um belo soneto, e o Dr. Pedro<br />

Sanches, que saudou o dono da casa como um dos mais adiantados fazen<strong>de</strong>iros<br />

<strong>de</strong> São João da Boa Vista. Após <strong>de</strong>ixarem a residência <strong>de</strong> Joaquim José,<br />

on<strong>de</strong> foi feito o mais cordial e rasgado acolhimento, os escritores retornaram<br />

ao Hotel Central, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>scansaram e jantaram.<br />

O Dr. Theophilo Ribeiro <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, em eloquente discurso, convidou os<br />

cidadãos presentes a se dirigirem ao Centro Recreativo Sanjoanense, cuja Diretoria<br />

oferecia um baile a Coelho Neto e Olavo Bilac. Logo que os circunstantes,<br />

em crescido número, aparelharam-se para partir, o Major José Affonso<br />

<strong>de</strong> Barros Cobra <strong>de</strong>u um viva à Nação <strong>Brasileira</strong>, rompendo o Hino Nacional,<br />

executado pela banda <strong>de</strong> música local.<br />

Os visitantes dirigiram-se para o clube, acompanhados <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> massa<br />

popular e ao som da música, sendo recebidos no radiante edifício por vivas<br />

e repetidas aclamações. Logo que chegaram, o Dr. Reichert, promotor público<br />

da Comarca <strong>de</strong> São João da Boa Vista, fez, em eloquente discurso, uma<br />

apologia aos ilustres literatos, sendo muito apreciado. Olavo Bilac saudou o<br />

Maestro Aquilino <strong>de</strong> Mello, em quem <strong>de</strong>scobriu ares <strong>de</strong> Carlos Gomes, tal<br />

era a nota artística que <strong>de</strong> sua fisionomia se <strong>de</strong>sprendia, nota artística que,<br />

segundo ele, o brasileiro punha em tudo, indício da superiorida<strong>de</strong> do povo<br />

sobre os portenhos, on<strong>de</strong> não havia resquício <strong>de</strong> arte. Em seguida, Coelho<br />

Neto, também saudando o Maestro Aquilino <strong>de</strong> Mello, fez uma bela página<br />

literária a respeito da música, sendo <strong>de</strong>lirantemente aplaudido.<br />

O baile foi <strong>de</strong>veras concorrido, nele estando presente a mais distinta e seleta<br />

socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João da Boa Vista, ostentando as senhoras e senhoritas<br />

presentes ricas toaletes, sendo todos prodígios <strong>de</strong> atenções e gentilezas para<br />

com os ilustres hóspe<strong>de</strong>s. Bilac recitou as magníficas poesias “O corvo”, <strong>de</strong><br />

Edgard Alan Poe, e “Dueto da noite”, <strong>de</strong> sua lavra, que muito agradou a<br />

todos. As danças prolongaram-se até tar<strong>de</strong> da noite, sendo servida elegante<br />

e rica mesa <strong>de</strong> chás e doces, retirando-se todos contentes e certos <strong>de</strong> que, na<br />

200


Visita dos Acadêmicos Olavo Bilac e Coelho Neto<br />

esteira <strong>de</strong> seus passos, ficaria um rastro <strong>de</strong> luz, a cuja sombra se abrigariam,<br />

para todo o sempre, aqueles que um dia fossem alvos dos carinhos, das gentilezas<br />

e da extraordinária cortesia do povo <strong>de</strong> São João da Boa Vista.<br />

No outro dia, 8 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1901, antes da partida, pela manhã, visitaram<br />

o jornalista Silviano Barbosa, proprietário do hebdomadário Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João, o<br />

único então existente em São João da Boa Vista, fundado em 1891, o médico Dr.<br />

Francisco Carneiro Ribeiro Santiago, que foi saudado por Olavo Bilac, e a Câmara<br />

Municipal, on<strong>de</strong> seu Presi<strong>de</strong>nte, Dr. Theophilo <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, saudou os convidados,<br />

tendo respondido Olavo Bilac, que fez a apologia do Município, célula da<br />

Fe<strong>de</strong>ração, que, por sua vez, era a garantia da liberda<strong>de</strong> e da or<strong>de</strong>m, simbolizadas<br />

na Constituição da República do Brasil, padrão <strong>de</strong> tolerância e pieda<strong>de</strong>, tanto que<br />

em frente dos retratos dos presi<strong>de</strong>ntes que haviam governado o país estava o do<br />

Imperador Dom Pedro II, o que indicava, da parte do povo <strong>de</strong> São João da Boa<br />

Vista, o exemplo da compreensão dos altos <strong>de</strong>stinos dos povos cultos.<br />

Saindo da Rua Benjamin Constant, on<strong>de</strong> residia o Dr. Francisco Santiago,<br />

<strong>de</strong>sceram pela Rua São João em direção à Estação Ferroviária, on<strong>de</strong> os aguardava<br />

agradável surpresa, pois, ao lado dos cavalheiros da socieda<strong>de</strong> sanjoanense,<br />

foram <strong>de</strong>spedir-se as distintas senhoras e senhoritas da aprazível e civilizada<br />

cida<strong>de</strong>. Olavo Bilac e Coelho Neto não pu<strong>de</strong>ram conter-se, saudando as<br />

mulheres presentes, na sala <strong>de</strong> espera da Estação, com palavras comoventes e<br />

repassadas da mais fina cortesia, sentindo <strong>de</strong>ntro da alma todas as dores do<br />

terrível momento da hora da partida.<br />

Dentro do trem, <strong>de</strong>bruçados nas janelas, enquanto aguardavam o silvo da locomotiva<br />

que os levaria <strong>de</strong> volta à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Poços <strong>de</strong> Caldas, no estado <strong>de</strong> Minas<br />

Gerais, Henrique Leite Ribeiro, fazendo <strong>de</strong> pregoeiro, colocou à venda uma garrafa<br />

<strong>de</strong> cerveja Antártica, em benefício do hospital da Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia<br />

<strong>de</strong> São João da Boa Vista, que ren<strong>de</strong>u 60$000, sendo rematada pelo Comandante<br />

Arthur Cobra. Ato contínuo, Henrique Ribeiro pôs em leilão um copo, que ele<br />

mesmo rematou pro 50$000. Os 110$000 foram entregues ao Coronel Domingos<br />

Theodoro <strong>de</strong> Azevedo Sobrinho para dar-lhes o conveniente <strong>de</strong>stino.<br />

Na Estação Ferroviária esteve também o Coronel José Jacintho do Amaral<br />

Pinto, a quem pretendiam visitar em sua residência, na esquina ao lado do<br />

201


Rodrigo Rossi Falconi<br />

palacete do Coronel Gabriel Ferreira, mas que não houvera tempo <strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>r<br />

à visita.<br />

A locomotiva silvou, <strong>de</strong>pois do sinal da partida dado pelo condutor, levando<br />

Olavo Bilac e Coelho Neto em direção ao território mineiro, em meio <strong>de</strong><br />

estrepitosos vivas, com a alma combalida e o coração <strong>de</strong>spedaçado <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s,<br />

certos <strong>de</strong> que o povo <strong>de</strong> São João da Boa Visa sabia ser fidalgo e receber<br />

condignamente os visitantes.<br />

No livro <strong>de</strong> presença do Centro Recreativo Sanjoanense, que <strong>de</strong>pois seria<br />

<strong>de</strong>struído por um incêndio na década <strong>de</strong> 1950, o poeta Olavo Bilac <strong>de</strong>ixou<br />

assinalado:<br />

“O que mais encanta nesta casa não é a sua elegância nem a sua beleza,<br />

porque tudo quanto é paulista tem este mesmo cunho <strong>de</strong> progresso e <strong>de</strong> arte:<br />

o que mais cativa aqui é o carinho com que são tratados os visitantes. Também,<br />

quem po<strong>de</strong>rá jamais esquecer as horas que passou no Centro Recreativo? Não<br />

as esqueceremos nós, porque levamos daqui o coração cheio <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>...”.<br />

Já o escritor Coelho Neto escreveu:<br />

“Aqui cheguei enfermo e daqui saio saudoso. Melhor fora não ter vindo,<br />

porque se a minha moléstia tem cura, a sauda<strong>de</strong> é incurável”.<br />

Como bem <strong>de</strong>stacou alguns anos <strong>de</strong>pois o advogado Dr. José Osório <strong>de</strong><br />

Oliveira Azevedo, filho do Coronel Domingos Theodoro <strong>de</strong> Azevedo Sobrinho,<br />

o Centro Recreativo Sanjoanense muito se esmerou em bem receber os<br />

ilustres hóspe<strong>de</strong>s e para se avaliar o que foram as festas e homenagens a eles<br />

prestadas, ficou o registro das impressões do médico Dr. Pedro Sanches <strong>de</strong><br />

Lemos, também consignadas no citado livro <strong>de</strong> atas do clube:<br />

“Por iniciativa minha, trouxe a esta esplêndida casa os meus ilustres amigos<br />

e eminentes brasileiros, Olavo Bilac e Coelho Neto, correspon<strong>de</strong>ndo ao<br />

apelo que à minha pessoa dirigiu o ilustre presi<strong>de</strong>nte da Diretoria do Centro<br />

Recreativo, o amável Senhor João Osório <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Oliveira. Volto para<br />

202


Visita dos Acadêmicos Olavo Bilac e Coelho Neto<br />

Poços <strong>de</strong> Caldas <strong>de</strong>slumbrado com a extraordinária recepção que aqui fizeram<br />

aos meus ilustres amigos e ela dá a exata medida do alevantado espírito e<br />

das excelências do coração da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João da Boa Vista”.<br />

Os dois imortais da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, Olavo Bilac e Coelho<br />

Neto, muito empolgaram a todos os moradores <strong>de</strong> São João da Boa Vista, que<br />

tiveram a sorte <strong>de</strong> ouvi-los, com seus discursos e <strong>de</strong>clamações, sempre arrebatando<br />

o seleto auditório com a arte em que eram mestres.<br />

Alguns dias <strong>de</strong>pois da visita, o hebdomadário Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João prestou uma<br />

homenagem aos dois notáveis vultos da literatura brasileira com um número<br />

especial, em 17 <strong>de</strong> abril, que se tornou a principal fonte <strong>de</strong> informações sobre<br />

aquele momento histórico, através do artigo “A apoteose”, assinado por P. S.,<br />

e que contou com diversos colaboradores, como João Antonio <strong>de</strong> Oliveira,<br />

que publicou o texto “Coelho Neto e Olavo Bilac”:<br />

“Contemplar a esses dois astros no firmamento da literatura nacional é<br />

adorar o sol dominando o infinito azulado do céu.<br />

E, se o sol <strong>de</strong>slumbra essa essência <strong>de</strong> seus fogos, qual é a vida da Natureza,<br />

Neto e Bilac rebrilham na majesta<strong>de</strong> da eloquência, palpitando na<br />

escrita ou na voz, como a protoforça da ativida<strong>de</strong> cerebral.<br />

Eles personalizam a eloquência.<br />

Deus infundiu na natureza do homem três aptidões: a pintura, a música e a<br />

eloquência, ten<strong>de</strong>ntes ao gozo da imaginação e do coração; mas a eloquência é<br />

a síntese <strong>de</strong> suas irmãs; porque se o painel fere a retina e arrebata a imaginação;<br />

se a lira penetra como um fluido, no conduto auditivo e comove e plenifica o<br />

coração; o verbo abrasa e espiritualiza, acabando por dominar a razão.<br />

A eloquência <strong>de</strong>screve, como o pincel, a erva que é o verda<strong>de</strong>iro tapete<br />

das campinas e o roble, que é o titão da natureza vegetativa, cobrindo com<br />

o dossel da sua fron<strong>de</strong> a crista da montanha em cujo sopé ele encravou suas<br />

raízes; a flor do prado embalsamando o ambiente, rediviva na pérola do<br />

orvalho engastada na corola e o colibri que a beija e adora; o musgo que se<br />

<strong>de</strong>pendura das pare<strong>de</strong>s como a vida brotando da morte.<br />

203


Rodrigo Rossi Falconi<br />

Como a lira, tem revoadas <strong>de</strong> alegria que expan<strong>de</strong>m a alma em acor<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> amor; fala ao coração ternuras e segredos que encantam e <strong>de</strong>rrama em<br />

nossas feridas o bálsamo que tonifica.<br />

A eloquência é a orquestra misteriosa da humanida<strong>de</strong>.<br />

Neto e Bilac têm na palavra o pincel e a lira.”<br />

Com o título <strong>de</strong> “Olavo Bilac e Coelho Neto”, o Dr. Octaviano Carlos <strong>de</strong><br />

Azevedo, promotor <strong>de</strong> justiça, que <strong>de</strong>pois se tornaria inten<strong>de</strong>nte municipal<br />

em São João da Boa Vista, escreveu:<br />

“A literatura é a mais elevada expressão do sentimento e do pensamento<br />

<strong>de</strong> um povo, e a observação tem <strong>de</strong>monstrado que o renascimento das literaturas<br />

prece<strong>de</strong> o renascimento das nacionalida<strong>de</strong>s.<br />

A Ilíada e a Odisseia são as mais belas pinturas da civilização helênica; a alma<br />

espanhola vibra toda nas páginas admiráveis do Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha; o<br />

gênio italiano reflete-se em Petrarca e Dante; o Brasil vive nos versos <strong>de</strong> Varela,<br />

<strong>de</strong> Álvares <strong>de</strong> Azevedo, <strong>de</strong> Castro Alves e <strong>de</strong> Gonçalves Dias.<br />

Eis a razão por que não po<strong>de</strong> haver quem ame verda<strong>de</strong>iramente a literatura<br />

<strong>de</strong>sta terra, que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ren<strong>de</strong>r um preito <strong>de</strong> admiração a Olavo Bilac<br />

e a Coelho Neto, dois talentos másculos, duas organizações superiores, que<br />

honram o Brasil mental.<br />

Bem poucos, como eles, manejam com tanta correção essa língua <strong>de</strong><br />

ouro e cristal, que o gênio <strong>de</strong> Luís <strong>de</strong> Camões imortalizou.<br />

Olavo, continuador das gloriosas tradições daqueles extraordinários bardos,<br />

que se chamaram Fagun<strong>de</strong>s Varela, Álvares <strong>de</strong> Azevedo e Gonçalves<br />

Dias, é o poeta por excelência, cuja fantasia muitas vezes o leva à ambição<br />

<strong>de</strong> ser a concha nacarada, que dorme no fundo dos mares, e outras a alçar<br />

a fronte para as estrelas e ouvir-lhes as divinas harmonias.<br />

É mais o cronista adorável, cuja pena, qual dourada borboleta, a<strong>de</strong>ja por<br />

sobre os fatos e as coisas, apanhando nos mínimos <strong>de</strong>talhes da vida a nota<br />

séria ou humorística.<br />

204


Visita dos Acadêmicos Olavo Bilac e Coelho Neto<br />

Coelho Neto forma com Alencar e Taunay uma trinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> geniais pintores<br />

<strong>de</strong> nossa esplêndida natureza em seu conjunto <strong>de</strong> cores, <strong>de</strong> tons e <strong>de</strong><br />

luz; no romance, o seu talento <strong>de</strong> fino psicologista se revela <strong>de</strong> um modo<br />

assombroso, superior a Catulle Men<strong>de</strong>s; os seus contos <strong>de</strong>terminam sensações<br />

tão intensas como se ouvíssemos essas i<strong>de</strong>ais e divinas serenatas on<strong>de</strong><br />

Schubert e Gounod vazaram todas as suas inspirações; no drama nos <strong>de</strong>u<br />

<strong>de</strong>ntre outras essa obra-prima Ao luar, que o coloca ao lado <strong>de</strong> Ibsen e <strong>de</strong><br />

Shakespeare.<br />

Não é, pois, sem razão, que Sílvio Romero o consi<strong>de</strong>ra o mais fecundo<br />

dos escritores brasileiros e como um dos melhores manejadores da língua<br />

portuguesa.<br />

Olavo Bilac e Coelho Neto são, pois, duas po<strong>de</strong>rosas organizações cerebrais.<br />

Ambos revestem a frase <strong>de</strong> uma forma tão correta, que resiste à mais po<strong>de</strong>rosa<br />

das críticas: parece que <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>m no torneio da palavra a mesma<br />

soma <strong>de</strong> tenacida<strong>de</strong> dos artistas japoneses na confecção <strong>de</strong> seus vasos.<br />

Apesar <strong>de</strong> unidos solidariamente pelo mesmo amor cultural ao belo,<br />

não <strong>de</strong>ixa, entretanto, <strong>de</strong> existir entre esses dois temperamentos notáveis<br />

diferenciações.<br />

Em Olavo Bilac, vibra uma alma cheia <strong>de</strong> sonhos e <strong>de</strong> esperanças, como<br />

a <strong>de</strong> Alfred <strong>de</strong> Musset, o poeta da juventu<strong>de</strong> apaixonada e sonhadora; em<br />

Coelho Neto, vibra também uma gran<strong>de</strong> alma, mas uma alma que pa<strong>de</strong>ce.<br />

O primeiro, do Parnaso, volve a fronte para a Via Láctea, on<strong>de</strong> se engastam<br />

camândulas <strong>de</strong> estrelas; o segundo vai também até os astros, mas ama<br />

embrenhar-se pelos sertões adustos da Pátria, on<strong>de</strong> o sol que <strong>de</strong>rrama<br />

poeiradas <strong>de</strong> ouro não o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> contemplar a tristeza das taperas, <strong>de</strong><br />

ouvir a voz do vaqueiro e <strong>de</strong>rramar uma lágrima pelas agonias dos que<br />

morrem aos olhos <strong>de</strong> Deus e ao clarão das estrelas vitimadas pela peste.<br />

Na insacieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> luz, ambos passam pelo nosso meio literário<br />

a caminho da imortalida<strong>de</strong>, não como rápidos meteoros, mas como<br />

duas estrelas <strong>de</strong> primeira gran<strong>de</strong>za que brilham no presente e refulgirão no<br />

porvir com luz própria, intensa e imorredoura”.<br />

205


Rodrigo Rossi Falconi<br />

Já o médico paraibano Dr. Leonel Estanislau Pessoa <strong>de</strong> Vasconcelos, pai do<br />

futuro médico parasitologista e professor da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, Dr.<br />

Samuel Barnsley Pessoa, <strong>de</strong>ixou assinalada sua opinião:<br />

“Coelho Neto e Olavo Bilac, ainda mesmo que não fossem possuidores<br />

do talento assombroso e das raras qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> romancista e <strong>de</strong> poeta, que<br />

todos nós admiramos, teriam um lugar <strong>de</strong> honra na galeria dos homens<br />

notáveis da nossa Pátria, porquanto tiveram a rara energia <strong>de</strong> dissipar as<br />

<strong>de</strong>nsas trevas que o indiferentismo criou em torno dos que trabalham e dos<br />

que estudam entre nós”.<br />

Com o título <strong>de</strong> “C. Neto e O. Bilac”, o advogado Dr. Theophilo Ribeiro<br />

<strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>pois ocuparia por vários anos o cargo <strong>de</strong> <strong>de</strong>putado estadual<br />

e seria um dos mais importantes intelectuais da cida<strong>de</strong>, escreveu:<br />

“Não posso <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> congratular-me no mais íntimo do coração pela<br />

magnífica i<strong>de</strong>ia da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João <strong>de</strong>dicando um número aos ilustres e<br />

fulgurantes literatos, que, há poucos dias, honraram-nos com fascinante e<br />

adorável visita.<br />

A rápida passagem que fizeram a esta cida<strong>de</strong> e que recebemos com entusiásticas<br />

explosões <strong>de</strong> simpatia e admiração, num anseio irresistível <strong>de</strong> conhecer<br />

as pessoas dos ilustres visitantes, <strong>de</strong> ouvir a palavra fácil, sugestiva e espontânea<br />

dos geniais cantores da nossa fecunda natureza, que, com admirável riqueza <strong>de</strong><br />

forma e estilo, estudam e traduzem com calor e sentimento os íntimos segredos<br />

da alma, essa rápida e honrosa visita <strong>de</strong>ixou gravado em nossos corações um<br />

suave perfume <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>, que há <strong>de</strong> perdurar na memória dos tempos.<br />

Coelho Neto e Olavo Bilac são dois combatentes já laureados por seus<br />

pares. Suas produções literárias, <strong>de</strong> uma fulgência admirável são o encanto<br />

e a glória <strong>de</strong> todo o Brasil.<br />

Orgulho-me em consignar nestas simples linhas a expressão <strong>de</strong> minha mais<br />

alta e inexpressível admiração pelo talento fecundo dos valentes lutadores da<br />

i<strong>de</strong>ia, dos cultores abençoados da literatura científica, <strong>de</strong>ssas duas formosas e<br />

refulgentes inteligências, que todos estimamos e admiramos.<br />

206


Visita dos Acadêmicos Olavo Bilac e Coelho Neto<br />

Pelo talento e pela incansável laboriosida<strong>de</strong>, os ilustres homens <strong>de</strong> letras<br />

constituíram-se os mais <strong>de</strong>cididos, os mais fervorosos combatentes do pensamento<br />

na causa civilizadora do engran<strong>de</strong>cimento da Pátria.<br />

Com a luz rútila e fecunda do gênio que os ilumina nas romarias ao<br />

i<strong>de</strong>al, são, pelo pensamento e pelo trabalho, os portadores mais enérgicos e<br />

mais ativos do levantamento da literatura em nossos dias, e, por isso mesmo,<br />

o Brasil saberá agra<strong>de</strong>cer-lhes, honrando-os como os mais sublimes e<br />

prodigiosos fatores da evolução geral da nossa socieda<strong>de</strong>”.<br />

O promotor público da Comarca <strong>de</strong> São João da Boa Vista, Dr. E. Gomi<strong>de</strong><br />

Reichert, com o título <strong>de</strong> “Literatura”, escreveu:<br />

“Dois gênios da literatura pátria vieram honrar com sua visita esta cida<strong>de</strong>.<br />

Irmanados pelo coração e pelos i<strong>de</strong>ais, vivem Coelho Neto e Olavo<br />

Bilac com seus talentos e seus livros.<br />

Um faz lembrar Émile Zola em suas produções literárias; outro relembra<br />

Alfred <strong>de</strong> Musset em suas impecáveis e sentimentais poesias.<br />

O dois gênios brasileiros recordam os dois gênios franceses, on<strong>de</strong> o<br />

espírito gaulês manifestou-se com tanta efusão.<br />

E aqueles, <strong>de</strong>senvolvidos em clima tropical, às aragens <strong>de</strong> perfumes <strong>de</strong><br />

toda a casta <strong>de</strong> flores, ostentam o seu talento robusto e ilustração peregrina,<br />

para orgulhosamente honrarem sua Pátria.<br />

A poesia e o romance, formas da literatura, são os dois cadinhos pelos<br />

quais Bilac e Coelho Neto manifestam a sua pujante mentalida<strong>de</strong>.<br />

E, enquanto um povo tiver em seu seio mestres da literatura, como os<br />

dois brilhantes visitantes, a sua literatura não morrerá, antes mais elevada<br />

se manifestará.<br />

Honra, pois, a Coelho Neto e Olavo Bilac”.<br />

O médico Dr. Francisco Carneiro Ribeiro Santiago escreveu o artigo “Olavo<br />

Bilac”, no qual <strong>de</strong>ixou sua opinião a respeito do “Príncipe dos Poetas”:<br />

207


Rodrigo Rossi Falconi<br />

“A vida já <strong>de</strong> si é triste porque o homem, pela fatalida<strong>de</strong> do seu <strong>de</strong>stino,<br />

nasce trazendo na fronte a inexorável sentença da morte, o aniquilamento<br />

do corpo.<br />

Triste verda<strong>de</strong>! Nada po<strong>de</strong> subtrair-se às leis naturais da <strong>de</strong>struição, ninguém<br />

po<strong>de</strong> fugir à morte. Mas, esse espírito culto, que se chama Olavo Bilac,<br />

poeta <strong>de</strong> sublimes inspirações, cronista <strong>de</strong> fecunda imaginação, orador<br />

fulgurante e grandioso na tribuna, jamais se extinguirá; porque seu nome,<br />

ainda em vida, já se acha imortalizado na história da literatura pátria.<br />

Levantemos, pois, sobre o altar dos nossos corações estas duas sagradas<br />

e eternas imagens – Verda<strong>de</strong> e Justiça – em relação à personalida<strong>de</strong> intelectual<br />

<strong>de</strong> Bilac, na história da literatura brasileira.<br />

Quem conheceu Bilac, há 20 anos, como companheiro <strong>de</strong> estudos médicos<br />

no Rio <strong>de</strong> Janeiro, nunca pensou que hoje seria ele uma estrela <strong>de</strong><br />

primeira gran<strong>de</strong>za nas letras! Abandonaste a carreira médica, em boa hora,<br />

porque não era essa a tua vocação e <strong>de</strong>stino, e foste arrojar para a vida jornalística<br />

as <strong>de</strong>slumbrantes faíscas <strong>de</strong> teu portentoso talento.<br />

Em uma ocasião em que tantas pessoas te saúdam na tua passagem, <strong>de</strong><br />

saudosa recordação, por estas paragens, eu não posso, como teu contemporâneo<br />

no curso médico, <strong>de</strong>ixar o teu nome em silêncio.<br />

Que os aplausos e admiração do Povo <strong>de</strong> São João da Boa Vista ao teu<br />

possante talento sirvam <strong>de</strong> prova <strong>de</strong> que o teu mérito não é <strong>de</strong>sconhecido<br />

pela socieda<strong>de</strong> sanjoanense.<br />

A dura necessida<strong>de</strong>, como bem dizer, te obriga a partir, reclama-te, a<br />

fim <strong>de</strong> que continues a trabalhar para o bem da Pátria. Ah! Possa eu algum<br />

dia rever-te neste recanto dos estados <strong>de</strong> São Paulo e Minas Gerais, não<br />

só para reatar o fio do teu sonho encantado, interrompido agora pela dura<br />

necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> partir, mas para ainda mais uma vez apreciar e admirar tua<br />

fulgurante e culta inteligência, que é um facho luminoso, brilhante farol a<br />

aspergir esplendores luminosos sobre o mundo literário, qual novo sol que<br />

leva luz e calor à alma da humanida<strong>de</strong>.<br />

A<strong>de</strong>us, Bilac, fulgurante estrela da literatura brasileira!”<br />

208


Visita dos Acadêmicos Olavo Bilac e Coelho Neto<br />

Com o título <strong>de</strong> “Coelho Neto”, o engenheiro e intelectual Dr. Luiz Gambetta<br />

Sarmento escreveu:<br />

“Coelho Neto conhece o segredo com que os regatos choram canções<br />

<strong>de</strong> amor, murmúrios acariciadores, planuras plangentemente sentidas que se<br />

per<strong>de</strong>m por entre pedras e urzes, alegrias e tristezas que explo<strong>de</strong>m no seio das<br />

florestas virgens, seculares, on<strong>de</strong> a passarada faz ninhos <strong>de</strong> eterna alegria...<br />

Conhece perfeitamente a vida poética dos bosques, o rumorejar das<br />

selvas, a vibração cantante dos campos, o sibilar do vento que fustiga as<br />

árvores vestidas <strong>de</strong> ver<strong>de</strong> junquilho, o canto saudoso do sabiá, que modula<br />

angélicas esperanças...<br />

Sabe colher, dos esplendores eternos das alvoradas que se suce<strong>de</strong>m, filigranas,<br />

gemas <strong>de</strong> ouro, pétalas <strong>de</strong> rosas que são os seus contos adoráveis!<br />

Não me admiro, portanto, <strong>de</strong> que Coelho Neto seja um artista <strong>de</strong> mérito<br />

real, um escritor inspirado e consciencioso, plumitivo <strong>de</strong> fina têmpera,<br />

<strong>de</strong> fina raça, que faz honra a uma geração.<br />

Como estatuário do pensamento é um artista cuidadoso, aprimorado e<br />

irrepreensível!<br />

De um bloco <strong>de</strong> pedra bruta sabe fazer epopeias; com o escopro dá-lhe<br />

o começo da forma; imprime-lhe, <strong>de</strong>pois, com o buril, novos traços característicos,<br />

e, por fim, cinzelando-o, vai-lhe <strong>de</strong>rramando cornucópias <strong>de</strong><br />

iriações luminosas, que são os fulgores <strong>de</strong> sua imaginação, animando aquilo<br />

que não tinha vida!<br />

Como orador é um audacioso, um atrevido: cativa, emociona, encanta,<br />

sugestiona, arrasta, subjuga pela fulguração <strong>de</strong> seu talento, pela gran<strong>de</strong>za<br />

épica <strong>de</strong> suas imagens, pela segurança dos gestos e pela penetração do seu<br />

olhar expressivo, firme e insinuante!”<br />

Assinado por Marcos, também no número comemorativo do jornal Cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> São João, foi publicado o texto “Olavo Bilac”, com o seguinte conteúdo:<br />

“É ainda sob a impressão emocionante e agradabilíssima da palavra mágica<br />

e ar<strong>de</strong>nte... ar<strong>de</strong>nte e sugestiva <strong>de</strong> Olavo Bilac, que escrevo estas linhas<br />

209


Rodrigo Rossi Falconi<br />

em que mal <strong>de</strong>buxo a minha cultual admiração pelo extraordinário talento<br />

do simpático Artista do Verso, que sabe também atrair e cativar corações<br />

pela bizarra e fidalga lhaneza do trato.<br />

A par do mimoso burilador da Rima, que passa noitadas sem termo a<br />

confabular com as Estrelas, traduzindo-lhes em belas estrofes a misteriosa<br />

linguagem, que só às almas eleitas é dado esquadrinhar, vem o fino e adorável<br />

palestrante, que, melhor que ninguém, sabe falar a todos <strong>de</strong> forma<br />

brilhante com belas palavras que traduzem uma nota doce, sonora, a cada<br />

dia mais incisiva e mais vibrante na ausência, a nota mística da Sauda<strong>de</strong>”.<br />

O mesmo Marcos escreveu outro texto intitulado “Coelho Neto”, no qual<br />

afirmou sobre o gran<strong>de</strong> romancista:<br />

“Coelho Neto, o impecável burilador do Conto e do Romance genuinamente<br />

nacional, <strong>de</strong>ixou-me esculpidos em relevo na retina, com uns toques<br />

<strong>de</strong> inexprimível melancolia, os seus traços fisionômicos, que não se confun<strong>de</strong>m<br />

com os do comum dos homens.<br />

Nunca mais, anos e anos <strong>de</strong>corridos, a esponja do Tempo conseguirá<br />

apagar a impressão pessoal que me ficou do autor <strong>de</strong> Magdala...<br />

O seu olhar, firme e penetrante como dardo <strong>de</strong> ouro, vai até o nosso íntimo,<br />

meigo e acariciador, e aí fica a brilhar e a rebrilhar com as irradiações<br />

dulcíssimas <strong>de</strong> estrelas em lago azul e sossegado...<br />

No Álbum do Centro Recreativo ficaram do seu punho, colhidas do coração<br />

e impregnadas <strong>de</strong>sse suave perfume que só emana das almas puras, linhas<br />

que traçara pouco antes <strong>de</strong> volver os ares salubérrimos <strong>de</strong> Poços <strong>de</strong> Caldas.<br />

Quem saberia dizer algo mais, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um a<strong>de</strong>us tão íntimo e expressivo?”<br />

Com o título “De chapéu na mão”, assinado por Fantasio, foi publicada a<br />

seguinte nota <strong>de</strong>dicada a Coelho Neto e Olavo Bilac:<br />

“Eu quero também saudar-vos, gigantes da literatura nacional, mas estou<br />

cá tão embaixo que o ruído <strong>de</strong> meus aplausos talvez não seja ouvido por vós.<br />

210


Visita dos Acadêmicos Olavo Bilac e Coelho Neto<br />

Assim, <strong>de</strong> chapéu na mão, comunico-vos, <strong>de</strong>svanecido, que estou batendo<br />

palmas pela vossa vinda a esta cida<strong>de</strong>, que parece ter neste momento um sorriso<br />

em cada ângulo pela satisfação <strong>de</strong> ver-se honrada com a vossa visita”.<br />

O sanjoanense João dos Santos <strong>de</strong>dicou a Olavo Bilac e Coelho Neto as<br />

seguintes quadras, também publicadas no número comemorativo do jornal<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João:<br />

Sobre este coração, grato, dorido<br />

De tanto soluçar... vago, perdido,<br />

Vem recostar-se o vulto da Sauda<strong>de</strong><br />

Dos dias imortais...<br />

Era um cofre vazio... um chão <strong>de</strong>serto...<br />

Teve outros corações <strong>de</strong> si tão perto,<br />

Que julgou-se feliz. Ah! Felicida<strong>de</strong><br />

Que não virá mais nunca... nunca mais!<br />

Bibliografia<br />

Andra<strong>de</strong>, Theophilo <strong>de</strong>. Subsídios à história <strong>de</strong> São João da Boa Vista. São Paulo: Empresa<br />

Gráfica da Revista dos Tribunais S. A., 1973.<br />

Azevedo, José Osório <strong>de</strong> Oliveira. História administrativa e política <strong>de</strong> São João da Boa Vista<br />

(1896-1932), 2ª Edição. São Paulo: Editora Sarandi, 2009.<br />

Falconi, Rodrigo Rossi. Logradouros <strong>de</strong> São João da Boa Vista. São Paulo: Imprensa Oficial<br />

do Estado <strong>de</strong> São Paulo, 2010.<br />

Kiellan<strong>de</strong>r, Carlos & Irmão, editores. O Município <strong>de</strong> São João da Boa Vista na Exposição<br />

Nacional <strong>de</strong> 1908. São João da Boa Vista: Officina Typographica Kiellan<strong>de</strong>r &<br />

Irmão, 1908.<br />

Jornal Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João. São João da Boa Vista: 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1901. Ano XI. Número<br />

22.<br />

Martins, Antonio Gomes, organizador. O Município <strong>de</strong> São João da Boa Vista . São João<br />

da Boa Vista: Publicação subvencionada pela Câmara Municipal, 1910.<br />

Silva, Maria Leonor Alvarez & Salomão, Matil<strong>de</strong>s Rezen<strong>de</strong> Lopes. História <strong>de</strong> São João<br />

da Boa Vista. São João da Boa Vista: Promoção da Prefeitura Municipal, 1973.<br />

211


Rodrigo Rossi Falconi<br />

Página Avulsa *<br />

Ouvi uma voz que me disse: “Desventurado, escreve as tuas agonias”. Fiquei<br />

a pensar no estranho conselho que tão misteriosamente me chegara e,<br />

abancando, solitário, no silêncio da minha sala taciturna e fria, sobre uma<br />

folha branca <strong>de</strong> papel <strong>de</strong>ixei a pena correr livre como um ginete selvagem pela<br />

vasta e álgida solidão d’uma estepe.<br />

Toda a noite longa e lenta passou até que as janelas se foram dourando e o<br />

sol alegre <strong>de</strong> Abril resplan<strong>de</strong>ceu magnífico.<br />

Depois <strong>de</strong> tão penoso e incessante trabalhar noturno por maravilha achei-me<br />

diante da mesma folha <strong>de</strong> papel branca e virgem sem o rastro mais sutil do<br />

andar da minha pena alígera. Nem uma palavra escrita...<br />

Chega esse papel aos teus olhos, formosa; chega-o bem perto, tão perto que<br />

a luz das tuas pupilas radiantes aqueça a tinta simpática e hás <strong>de</strong> ver as lágrimas<br />

que aí estão encantadas aparecerem vestidas <strong>de</strong> luto. Pergunta-lhes que fazem<br />

elas, como coéforas, sobre tão vasta e merencória nevada? E elas respon<strong>de</strong>rão, em<br />

uníssono dolente, que são os ecos da minha angústia, repetindo sempre, soluçadamente,<br />

o teu nome tão doce, infiel, cru<strong>de</strong>líssima, inclemente adorada.<br />

Coelho Neto<br />

Surdina*<br />

212<br />

No ar sossegado, um sino canta,<br />

Um sino canta no ar sombrio...<br />

Pálida, Vênus se levanta...<br />

Que frio!<br />

Um sino canta. O campanário<br />

Longe, entre névoas, aparece...<br />

Sino, que cantas solitário,<br />

* Segundo foi publicado no jornal Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João, no dia 17 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1901, estes dois textos <strong>de</strong> Coelho<br />

Neto e Olavo Bilac eram inéditos e na secção <strong>de</strong> “Notas” informaram: “Os autógrafos dos inéditos <strong>de</strong><br />

Coelho Neto e Olavo Bilac, que damos em página especial <strong>de</strong>sta edição, assim como o clichê da primeira<br />

página, vão ser oferecidos pela Redação da Cida<strong>de</strong> ao Arquivo do Centro Recreativo Sanjoanense”.


Visita dos Acadêmicos Olavo Bilac e Coelho Neto<br />

Que quer dizer a tua prece?<br />

Que frio! Embuçam-se as colinas;<br />

Chora, correndo, a água do rio;<br />

E o céu se cobre <strong>de</strong> neblinas...<br />

Que frio!<br />

Ninguém... A estrada, ampla e silente,<br />

Sem caminhantes, adormece...<br />

Sino, que cantas docemente,<br />

Que quer dizer a tua prece?<br />

Que medo pânico me aperta<br />

O coração triste e vazio!<br />

Que esperas mais, alma <strong>de</strong>serta?<br />

Que frio!<br />

Já tanto amei! Já sofri tanto!<br />

Olhos, por que inda estais molhados?<br />

Por que é que choro, a ouvir-te o canto,<br />

Sino que dobras a finados?<br />

Treva cai! Que o dia é morto!<br />

Morre também, sonho erradio!<br />

– A morte é o último conforto...<br />

Que frio!<br />

Pobres amores, sem <strong>de</strong>stino,<br />

Soltos ao vento, e dizimados!<br />

Inda vos choro... E, como um sino,<br />

Meu coração dobra a finados!<br />

E com que mágoa o sino canta,<br />

No ar sossegado, no ar sombrio!<br />

– Pálida, Vênus se levanta...<br />

Que frio!<br />

Olavo Bilac<br />

213


Rodrigo Rossi Falconi<br />

Centro Recreativo Sanjoanense, em <strong>de</strong>senho <strong>de</strong> J. Martins da Cunha, publicado no jornal<br />

Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João, em 1902 (imagem restaurada por Sílvia Borges) – Arquivo <strong>de</strong> Antonio<br />

Carlos Rodrigues Lorette<br />

Vista parcial <strong>de</strong> São João da Boa Vista, interior do estado <strong>de</strong> São Paulo, no início do século<br />

XX (foto <strong>de</strong> Augusto José) – Arquivo <strong>de</strong> Antonio Carlos Rodrigues Lorette<br />

214


Visita dos Acadêmicos Olavo Bilac e Coelho Neto<br />

Jornal Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João com a reprodução do livro <strong>de</strong> visitas do Centro Recreativo Sanjoanense<br />

assinado por Olavo Bilac e Coelho Neto (imagem restaurada por Sílvia Borges) – Arquivo <strong>de</strong><br />

Antonio Carlos Rodrigues Lorette<br />

215


Rodrigo Rossi Falconi<br />

Jornal Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São João (17/04/1901)<br />

216

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