Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />
ponto, entra o Luiz Meyer, para os psicanalistas não se po<strong>de</strong> tomar a recordação<br />
como se fosse a expressão do que verda<strong>de</strong>iramente ocorreu. A recordação, em<br />
geral, é uma reconstrução, ex-post, sobre o que teria ocorrido parcialmente e cada<br />
vez que nós nos recordamos, nós mudamos um pouco. Muitas vezes, a recordação<br />
po<strong>de</strong> também expressar, não o que nós realmente queremos dizer, pois<br />
po<strong>de</strong>mos estar substituindo o que não queremos dizer pelo que dizemos. Eu,<br />
repito, não sou psicanalista, mas o achado é interessante. Meyer foi buscar no<br />
texto ao qual me referi sobre a morte da madrinha, a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um momento<br />
realmente dramático para Nabuco. Por quê? Porque naquele momento ele também<br />
foi <strong>de</strong>spossuído. Ele tinha 8 anos. Nabuco três ou quatro meses <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />
nascer foi entregue à mulher do compadre do pai <strong>de</strong>le, Conselheiro Nabuco.<br />
Ele viveu longe da família. A família que se tornou sua era a da madrinha. Os<br />
escravos, a mãe, ele se refere várias vezes também a sua ama-<strong>de</strong>-leite, uma escrava.<br />
Mas a mãe era a madrinha, que se referiu a ele escrevendo a seu pai, como<br />
“o nosso filhinho”. Ela tinha um carinho todo especial por Nabuco. Havia a<br />
presunção <strong>de</strong> que Nabuco fosse herdar Massangana. Não era uma presunção do<br />
ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> uma ambição material, mas os escravos que o ro<strong>de</strong>avam, segundo<br />
o próprio Nabuco, teriam o “sonho” <strong>de</strong> um dia pertencerem ao domínio<br />
<strong>de</strong>le, Nabuco. Enquanto ele teria o “sonho” <strong>de</strong> ser o senhor <strong>de</strong> Massangana. A<br />
madrinha morreu e não lhe <strong>de</strong>ixou como herança Massangana, que foi <strong>de</strong>stinada<br />
a um outro sobrinho, sem relação com Nabuco. Deu-lhe outra fazenda, mas<br />
<strong>de</strong> fogo morto, isto é, sem escravos, além <strong>de</strong> uma casa em Recife.<br />
Ao ver <strong>de</strong> Luiz Meyer, a experiência dramática que levou Nabuco a uma<br />
i<strong>de</strong>ntificação tão próxima dos escravos é que ele passou por essa experiência<br />
que guarda alguma similitu<strong>de</strong> com a dos escravos: também ele foi “vendido”.<br />
E teve muita dificulda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> início, para se readaptar, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, à<br />
vida com a mãe natural. Passou, portanto, pela experiência vicária sobre o<br />
que significa ser transposto subitamente <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong> vida à outra. Daí<br />
que toda a sua experiência inicial tivesse sido refeita por essa mais traumática.<br />
Digo-lhes isso, para mostrar-lhes que, apesar <strong>de</strong> todos os livros e <strong>de</strong> tudo que<br />
se falou sobre Nabuco, ainda há quem possa dizer coisas novas sobre nosso<br />
personagem. Talvez nem mesmo os que estão no auditório e são conhecedores<br />
21