Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Pais e filhos na or<strong>de</strong>m escravocrata<br />
costume, mas enten<strong>de</strong>u logo que ninguém viria libertá--la, ao contrário”. E a<br />
reprodução da brutalida<strong>de</strong>, naturalizada quase como parte constituinte dos<br />
costumes urbanos, expõe-se inteira na atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem presencia a captura:<br />
“Quem passava ou estava à porta <strong>de</strong> uma loja, compreendia o que era e naturalmente<br />
não acudia” (Assis, 1997, p. 13, grifo meu).<br />
À mãe <strong>de</strong>rrotada, o cativeiro e o aborto; ao pai vitorioso, a recompensa e o<br />
filho recuperado. A óbvia paráfrase que faço da famosa passagem do romance<br />
Quincas Borba, enunciada pelo personagem-título – “Ao vencido, ódio ou compaixão;<br />
ao vencedor, as batatas” (I<strong>de</strong>m, 1997 b, p. 9) –, não é gratuita, porque<br />
a fala <strong>de</strong> Candinho, que encerra o conto, tem certa afinida<strong>de</strong> com as palavras<br />
do filósofo maluco: constitui, em face do confronto cruel, uma espécie <strong>de</strong> versão<br />
proletária do predomínio dos mais fortes convertido em i<strong>de</strong>ologia: “Nem<br />
todas as crianças vingam” (I<strong>de</strong>m, 1997, p. 14).<br />
Em primeiro plano, dado o embate do entrecho, o mais forte é o proletário<br />
contra a escrava. Entretanto, em instância última, o vencedor evi<strong>de</strong>nte é o<br />
dono <strong>de</strong> escravos, pois se trata da “contribuição do homem pobre e livre na<br />
perpetuação da mentalida<strong>de</strong> escravagista”, como anotou Cilaine Alves Cunha<br />
(Cunha, 2006, p. 33). Logo na sequência da citação acima a ensaísta faz uma<br />
observação sobre o conto “Pai contra mãe” que chamou minha atenção para<br />
o paralelo possível com a palavra <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Quincas Borba, “Ao vencedor,<br />
as batatas”: “Em ‘Pai contra mãe’, [Machado <strong>de</strong> Assis] flagra a contraditória<br />
absorção, por essa camada social [a dos pobres e livres], da violência gerada<br />
pela escravidão, assim da i<strong>de</strong>ologia positivista segundo a qual apenas os fortes<br />
sobrevivem”.<br />
Como vimos, o ofício <strong>de</strong> caçador <strong>de</strong> escravos tinha certa “nobreza”, segundo<br />
o narrador, por contribuir para manter a lei e a proprieda<strong>de</strong>, assim como<br />
o marido <strong>de</strong> Clara vê-se como aquele que vai “atrás do vicioso”. Diga-se<br />
ainda que todo o proce<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Candinho, como caçador <strong>de</strong> escravos, contra<br />
Arminda investe-se <strong>de</strong> coerência inquebrantável com tais pressupostos e<br />
autoatribuições. Além da insensibilida<strong>de</strong> aos rogos da cativa, ele é capaz <strong>de</strong><br />
dizer coisas como: “– Você é que tem culpa. Quem manda fazer filhos e fugir<br />
191