Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Pais e filhos na or<strong>de</strong>m escravocrata<br />
peças <strong>de</strong> punição, a máscara <strong>de</strong> folha <strong>de</strong> flandres, não sem antes assinalar a<br />
finalida<strong>de</strong> morigerante da máscara: extinguir “o vício da embriaguez aos escravos,<br />
por lhes tapar a boca.” A <strong>de</strong>scrição sumária está <strong>de</strong> acordo com a simplicida<strong>de</strong><br />
bárbara do utensílio, no qual há apenas três buracos, “dois para ver,<br />
um para respirar”. O narrador sentencioso aumenta o alcance dos propósitos<br />
edificantes que tornavam legítimo o uso <strong>de</strong> tal peça: ao impedir o vício <strong>de</strong><br />
beber, a máscara <strong>de</strong>sestimulava a tentação <strong>de</strong> furtar o dinheiro do senhor para<br />
comprar bebida, garantindo assim a sobrieda<strong>de</strong> e a honestida<strong>de</strong>. O ápice da<br />
racionalização aberrante está na postulação seguinte, que não nega o grotesco<br />
do tal aparelho, mas sentencia, como verda<strong>de</strong> última, a salvaguarda da “or<strong>de</strong>m<br />
social e humana”, a qual nem sempre po<strong>de</strong> prescindir do grotesco e do cruel.<br />
A qualificação <strong>de</strong> que se vale para caracterizar os meios empregados, precisa<br />
diga-se, contamina o fim almejado, cuja <strong>de</strong>fesa impõe o custo da aceitação <strong>de</strong><br />
práticas <strong>de</strong>sumanas. Contrariamente a sua razão <strong>de</strong> ser ostensiva, trata-se <strong>de</strong><br />
uma <strong>de</strong>fesa que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> dar lastro ao questionamento incisivo daquela<br />
“or<strong>de</strong>m social e humana”, na medida em que esta não po<strong>de</strong> ser sustentada<br />
sem a vigência reiterada do grotesco e do cruel. A última referência que faz o<br />
narrador às máscaras <strong>de</strong> folha <strong>de</strong> flandres aponta a existência normalizada do<br />
utensílio no dia a dia, sua acessibilida<strong>de</strong> a viabilizar a reprodução da violência<br />
cotidiana contra os escravos, na forma <strong>de</strong> mercadorias bem à vista <strong>de</strong> todos:<br />
“Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas” (Assis,<br />
1997, p. 3).<br />
Do mesmo procedimento <strong>de</strong>scritivo e avaliativo vale-se o narrador a respeito<br />
<strong>de</strong> outro instrumento, o ferro ao pescoço aplicado aos escravos que<br />
escapavam. Ele não nega que o aparelho pesava, “mas era menos castigo que<br />
sinal”, pois não <strong>de</strong>ixava dúvida quanto à reincidência na ação <strong>de</strong> fugir, o que<br />
facilitava a recaptura. O tema da fuga <strong>de</strong> cativos, central no conto, introduz-se,<br />
no terceiro parágrafo, por um discurso marcado por uma ironia mais<br />
patente, fronteiriça ao intento escarninho ao constatar a fuga frequente <strong>de</strong><br />
escravos, pois “nem todos gostavam da escravidão”; a mesma prática irônica<br />
está presente quando o narrador lembra que eram “ocasionalmente” punidos<br />
183