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Prosa - Academia Brasileira de Letras

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Crônica <strong>de</strong> um encontro entre Rubén Darío e Machado <strong>de</strong> Assis<br />

jaqueta e o leva aos olhos, on<strong>de</strong> brota uma inesperada lágrima. Escutava o poeta<br />

e recordava, escutava e <strong>de</strong>sconfiava. Logo, na <strong>de</strong>spedida, <strong>de</strong>pois do jantar <strong>de</strong><br />

homenagem, convidou-o a visitá-lo qualquer tar<strong>de</strong>. Não vivia muito longe, era<br />

uma casa simples, com jardim. O jovem aceitou o convite e prometeu aparecer<br />

por lá. E passaram-se os dias, dois, cinco. No sexto dia, quando se acabava <strong>de</strong><br />

ouvir as quatro da tar<strong>de</strong>, apresentou-se na casa o homérico índio vestido com<br />

um terno <strong>de</strong> linho branco e um lenço vermelho na lapela. O velho recebeu-o<br />

atento e hospitaleiro. Fez que passasse a seu escritório e mostrou-lhe sua<br />

biblioteca. Quase não falou, somente escutou e houve ocasião <strong>de</strong> manifestar<br />

alguma dúvida, alguma vaga incerteza. Faltarão, talvez, anos para que <strong>de</strong>sperte<br />

essa América heroica <strong>de</strong> remota estirpe. As gentes são simples e mesquinhas e<br />

a morte tem sempre uma sombra <strong>de</strong>masiado espessa. E estes objetos? Perguntou,<br />

surpreendido, o poeta. “São <strong>de</strong> Carolina…, minha mulher”, respon<strong>de</strong>u<br />

o ancião. “Morreu há apenas dois anos.” O poeta sentiu um rangido no ar,<br />

como se o espaço invisível, inconsútil se tivesse rasgado. Notou então a opressão<br />

do calor sufocante. E começou a suar copiosamente. O velho ancião adivinhou<br />

tudo o que lhe passava pela cabeça e o lamentou. O silêncio, às vezes,<br />

nega as palavras. A verda<strong>de</strong> simplesmente exposta é mais contun<strong>de</strong>nte que um<br />

punho <strong>de</strong> bronze. No rosto enérgico do olímpico poeta se observava a névoa:<br />

<strong>de</strong>scia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as alturas dos picos on<strong>de</strong> dizem que se aninha a águia. O velho<br />

escutou um suspiro que soava como o bafo vespertino <strong>de</strong> um boi. Fazia calor.<br />

Convidou-o a refrescar-se no Jardim Botânico. Um esplêndido parque que os<br />

monarcas portugueses fundaram na cida<strong>de</strong>. O poeta índio aceitou. E juntos<br />

saíram, pegaram um carro e chegaram a este caminho <strong>de</strong> palmeiras e troncos<br />

retorcidos. Agora, passeiam um ao lado do outro. Não falaram durante todo<br />

o trajeto e continuam calados. O velho sente como reverberam em seu sangue<br />

o orgulho e a vitalida<strong>de</strong> do poeta. Pensa em continuar, que é sua obrigação<br />

transmutar-se naquele velho diplomata que imaginara para seu último romance.<br />

Ele nunca viajou, mas conhece todas as paisagens e as cida<strong>de</strong>s através dos<br />

livros. Seu personagem po<strong>de</strong>rá falar <strong>de</strong> tudo e saberá, a<strong>de</strong>mais, realizar seu<br />

i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> arte: articular os sentimentos humanos como um músico faz com<br />

as notas. Saberá encontrar as distintas melodias vitais e fará que todas elas<br />

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