Prosa - Academia Brasileira de Letras
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Marcos Santarrita<br />
sem enten<strong>de</strong>r patavina – ainda acho que o Gran<strong>de</strong> sertão ficaria bem melhor traduzido<br />
para o português – man<strong>de</strong>i-o juntar-se aos dois primeiros. O mesmo<br />
<strong>de</strong>stino teve O som e a fúria, <strong>de</strong> Faulkner, escrito a partir do verso <strong>de</strong> Shakespeare<br />
segundo o qual o mundo é uma história cheia <strong>de</strong> barulho e fúria, contada por<br />
um idiota, exatamente como a narrada no livro: Benjy, nome ao mesmo tempo<br />
<strong>de</strong> um tio idiota e uma sobrinha pequena, narra o que lhe passa pela cabeça,<br />
misturando tempos, pessoas, diálogos. A única frase legível é a final sobre a<br />
negra Dilsey: ela aguentava. Graciliano Ramos, que me parecia – e ainda parece<br />
– seco e pobre <strong>de</strong>mais na imaginação, foi fácil. Na verda<strong>de</strong>, embora dissesse<br />
<strong>de</strong>testar Machado <strong>de</strong> Assis, ele era um fiel discípulo, quase imitador, do bruxo<br />
do Cosme Velho. Também a Machado, com toda a fina ironia e olho psicológico<br />
para dissecar personagens complexas, faltavam os gran<strong>de</strong>s voos <strong>de</strong> imaginação<br />
e drama, <strong>de</strong> forma que os romances não passavam <strong>de</strong> contos esticados – e os<br />
contos, bem, os contos são outra história, consumadas obras-primas, romances,<br />
estes, sim, con<strong>de</strong>nsados. O mesmo se po<strong>de</strong> dizer, a propósito, <strong>de</strong> Clarice Lispector,<br />
autora revolucionária na forma e no conteúdo – o contrário dos dois.<br />
Aprovado em Graciliano e reprovado em Faulkner, enfrentei A montanha mágica,<br />
<strong>de</strong> Thomas Mann, o que foi um erro; <strong>de</strong>via começar pelos Os Bu<strong>de</strong>nbrook,<br />
que sempre me agradou. A essa altura, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ler autores europeus aparentemente<br />
mais fáceis – Jean-Paul Sartre e Alberto Morávia, por exemplo – eu<br />
<strong>de</strong>senvolvera a tese, que ainda mantenho, <strong>de</strong> que eles não escreviam romances,<br />
e sim ensaios: criavam três, quatro ou mais personagens, cada uma representando<br />
uma corrente filosófica, política, religiosa, e as punham para discutir;<br />
nos breves intervalos, as tênues tramas.<br />
O melhor exemplo disso é Tolstoi em Guerra em paz; na verda<strong>de</strong>, trata-se <strong>de</strong><br />
dois livros intercalados: a história das famílias Bejukov, Rostov e Bolkonski<br />
(a grafia varia segundo a transliteração, em geral feita para o inglês), envolvidas<br />
na guerra, e um longo ensaio, sem qualquer ficção – o <strong>de</strong>bate sobre se<br />
é o homem (no caso, Napoleão) quem faz a história, ou a história que faz o<br />
homem. Tolstoi, aliás, era uma exceção na rica literatura russa. Se houve autor<br />
que escreveu ficção pura, e sublime, apesar da linguagem pobre, foi Dostoiévski,<br />
para mim o maior dos romancistas – romancistas, não escritores ou<br />
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