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Prosa - Academia Brasileira de Letras

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Jorge Sá Earp<br />

furiosa com Sílvia, levantaria toda sua obesida<strong>de</strong> com a ligeireza permitida<br />

pelo ciúme da mesa <strong>de</strong> jogo e a esbofetearia ruidosamente e sem se importar<br />

com as parceiras em volta. Com o rosto ar<strong>de</strong>ndo as lágrimas saltariam dos<br />

olhos, e Sílvia correria dali para se escon<strong>de</strong>r não sabia on<strong>de</strong>, pois nem na<br />

própria casa po<strong>de</strong>ria contar o acontecido. Talvez na casa da mãe. Mas e seu<br />

pai? Não <strong>de</strong>sconfiaria?<br />

Por outro lado estava traindo a amiga. Que mulher tinha sido ela nos últimos<br />

anos! E nos meses que se seguiram ao Ano Novo ela só pensava no beijo,<br />

no beijo <strong>de</strong> Gualberto dado em sua boca, no abraço estonteante com que<br />

Gualberto a agarrara, a sufocara.<br />

Não podia contar às suas filhas. Há muito tempo não conversava com elas.<br />

A mais velha engravidara e fora morar com o namorado em Recife – isso lá<br />

pelo meio do ano – e a mais moça namorava um homem casado, segundo lhe<br />

contara. No entanto Sílvia não po<strong>de</strong>ria se abrir com a caçula sobre sua mais<br />

recente paixão pelo marido <strong>de</strong> sua amiga. A mais moça jamais po<strong>de</strong>ria saber<br />

que a mulher do seu homem casado era “tia Louri<strong>de</strong>s”.<br />

– Você não vai dançar mais? Gostava tanto... – comentou uma sexta-feira à<br />

noitinha Jonas acomodado no sofá em frente à televisão com ar abatido.<br />

– Perdi a vonta<strong>de</strong>. Estou ficando velha.<br />

O marido sorriu como se pela primeira vez a visse admitir sua condição.<br />

Lá pelas <strong>de</strong>z Sílvia se recolheu ao seu quarto. A cabeça no travesseiro<br />

pulsava o mesmo pensamento <strong>de</strong> meses: o beijo <strong>de</strong> Gualberto tinha sido o<br />

melhor beijo que recebera em toda sua vida: quente, úmido, lento, a língua<br />

dando voltas em sua boca, pelos seus <strong>de</strong>ntes. O corpo todo se inflava com<br />

uma onda <strong>de</strong> calor ao relembrar aquele momento. Mas por que ela agora<br />

se comportava como se nada tivesse acontecido? Com sua fleuma habitual<br />

Gualberto camuflava seu real sentimento por ela. Tratava-se <strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro<br />

ator. E tudo para Louri<strong>de</strong>s não perceber. Coitada da Louri<strong>de</strong>s... Mal<br />

sabia ela... que seu marido a amava, ela, Sílvia... Só ela... e por que não a<br />

abraçara <strong>de</strong> novo? Quantas noites não fora jogar o seu habitual biriba e<br />

mesmo com mais frequência que antes, e ele esquivara o seu olhar e evitara<br />

um encontro a sós com ela?<br />

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