Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Jorge Sá Earp<br />
Sílvia se socorria com a cunhada com vestidos. Como a vida social <strong>de</strong><br />
Helena não fosse mais como antigamente, ela os presenteava a Sílvia, que do<br />
apartamento da cunhada saía regalada, assim como saía da casa da mãe sempre<br />
com uma ajuda pecuniária significativa ao seu orçamento familiar parco<br />
por causa do minguados vencimentos <strong>de</strong> Jonas, corretor <strong>de</strong> imóveis. Rapaz<br />
esforçado, subira na vida, já que o conhecera no cinema Alvorada <strong>de</strong> Ipanema,<br />
on<strong>de</strong> trabalhava como lanterninha. O pai <strong>de</strong> Sílvia contra o casamento, o<br />
conflito tendo-se ajeitado graças à intercessão da mãe, a quem as outras filhas<br />
acusavam <strong>de</strong> tê-la sempre protegido.<br />
Apesar <strong>de</strong> aventuras escaldantes, o coração <strong>de</strong> Sílvia foi alvo da dolorosa<br />
flechada mesmo quando <strong>de</strong> uma festa <strong>de</strong> réveillon na casa da Louri<strong>de</strong>s. Depois<br />
do ponto alto dos brin<strong>de</strong>s <strong>de</strong> meia-noite, dos goles <strong>de</strong> champanhe, dos<br />
beijos e abraços verda<strong>de</strong>iros e falsos, dos beliscos em salgadinhos e canapés<br />
e dos rodopios <strong>de</strong> dança em que tanto se <strong>de</strong>leitava, num dado momento, foi<br />
parar na cozinha não sabia bem por quê. Naquele cômodo, num momento<br />
em que o volume da música diminuíra na sala, e os casais apenas conversavam<br />
e riam esparramados pelos sofás e poltronas, eis que naquele cômodo coberto<br />
<strong>de</strong> ladrilhos Sílvia encontra Gualberto nem bêbado nem alto mas num estado<br />
mediano entre esses – se é que po<strong>de</strong> existir um. Ele a encarou com arregalados<br />
olhos vidrados, se aproximou da mesinha, on<strong>de</strong> jaziam ban<strong>de</strong>jas com restos <strong>de</strong><br />
pastas e migalhas <strong>de</strong> pão e junto à qual ela como que se protegia, agasalhada<br />
numa fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> menina. Subitamente a abraçou e beijou-a na boca; um<br />
prolongado e suculento beijo.<br />
Depois que as bocas lentamente se <strong>de</strong>scolaram rápido, o anfitrião <strong>de</strong>sapareceu<br />
para o interior do apartamento <strong>de</strong>ixando Sílvia estarrecida e trêmula.<br />
Nunca sentira nada por aquele homem, pelo marido <strong>de</strong> Louri<strong>de</strong>s, mas ali na<br />
madrugada do primeiro dia do ano com os raios <strong>de</strong> sol ameaçando penetrar<br />
pelas frinchas das persianas o ato impulsionou seu coração; reverberava <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>la como um sino incan<strong>de</strong>scente.<br />
Permaneceu ainda uns instantes na cozinha sob um silêncio pesado, partido<br />
apenas por murmúrios e risinhos, vindos da sala. Atordoada, com o<br />
coração batendo, regressou ao convívio dos outros.<br />
124