Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Prosa - Academia Brasileira de Letras
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Democracia e memória em Joaquim Nabuco<br />
trabalhávamos sob a direção <strong>de</strong> Roger Basti<strong>de</strong> e <strong>de</strong> Florestan Fernan<strong>de</strong>s li O<br />
abolicionismo do Nabuco. E posso dizer com toda sincerida<strong>de</strong>, que nós, jovens<br />
na época, ansiosos por mudar o Brasil, queríamos um país mais igualitário,<br />
queríamos transformar o Brasil. Ao lermos o capítulo sobre “O mandato da<br />
raça negra”, que é um dos mais belos capítulos do abolicionismo, ele teve um<br />
efeito sobre nós, se me permitem <strong>de</strong> novo a ousadia, equivalente ao que Renan<br />
causou em Nabuco quando mudou o seu modo <strong>de</strong> ver. Com uma diferença:<br />
Renan era cético. Nabuco não. Nabuco nos infundia esperança. A quase certeza<br />
<strong>de</strong> que o manto da escravidão, que tinha coberto o Brasil, que obscurecia<br />
o Brasil, um dia iria acabar. Duraria tempos, para que se dissolvesse o manto<br />
da escravidão. Nós éramos testemunhas em nossas pesquisas das duas coisas.<br />
Não só <strong>de</strong> que a luta <strong>de</strong> Nabuco tinha sido recompensada com a abolição,<br />
mas que as consequências da escravidão permaneciam, e nós ainda as estávamos<br />
estudando nos anos 50. Mas nós <strong>de</strong>positávamos esperanças no futuro,<br />
como Nabuco, e nos inspiramos nele para enten<strong>de</strong>r melhor o que acontecia.<br />
A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um mandato, concebida pelos abolicionistas como uma espécie <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>legação, que é irrenunciável, trazia consigo a visão política <strong>de</strong> Nabuco. Diz<br />
ele, que não terá sido por generosida<strong>de</strong> ou por compaixão, nem mesmo religiosa,<br />
que os advogados da causa emancipacionista a abraçaram: “Abraçaram-<br />
-na como homens políticos, por motivos políticos. E assim representamos”<br />
– aí a <strong>de</strong>legação – “os escravos e os ingênuos, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> brasileiros que<br />
julgam o seu título <strong>de</strong> cidadão diminuído, enquanto houver brasileiros escravos”.<br />
Isto é, eles abraçavam a causa no interesse <strong>de</strong> todo o país e no próprio<br />
interesse. Nabuco concebia, portanto, a luta contra a escravidão como uma<br />
luta pela cidadania. Junto com essa concepção, havia uma outra muito forte,<br />
<strong>de</strong> que, além da injustiça praticada contra o escravo, que era um mártir, a<br />
emancipação significaria também “a eliminação simultânea dos dois tipos<br />
contrários, no fundo os mesmos: o escravo e o senhor.” Essa afirmação tem<br />
uma força muito gran<strong>de</strong>, porque o horizonte <strong>de</strong> Nabuco não se restringia ao<br />
institucional e nem se limitava à análise da pequena política. Ele se orientava<br />
por valores e tinha uma visão abrangente do processo sociopolítico. A escravidão<br />
era ruim para o escravo, mas ela também transformava o senhor em parte<br />
13