Prosa - Academia Brasileira de Letras
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João Roberto Maia<br />
nenhuma das vezes que tenta convencer Candinho a abandonar aquela ocupação,<br />
ela se mostra chocada com ou ao menos incomodada pelo fato <strong>de</strong> o rapaz<br />
restituir homens e mulheres ao domínio senhorial.<br />
Por sua vez Cândido Neves também parece ser boa pessoa, que quer apenas<br />
manter sua família e viver alegremente. Entretanto especializou-se num ofício<br />
bárbaro, que exerce com gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>streza. Não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> sentir orgulho disso,<br />
até mesmo <strong>de</strong> se glorificar: “(...) preto fugido sabe que comigo não brinca;<br />
quase nenhum resiste, muitos logo se entregam”; “Pegar escravos trouxe-lhe um<br />
encanto novo” (I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p 7). A dignificação pelo trabalho, cara à i<strong>de</strong>ologia<br />
burguesa, traduz-se aqui ferinamente na versão do caçador <strong>de</strong> escravos brasileiros<br />
a se comprazer com sua proficiência. O ofício o nobilita na medida em<br />
que permite distingui-lo dos cativos, os quais o temem e sobre os quais exerce,<br />
como homem branco e livre, seu po<strong>de</strong>r. Uma espécie <strong>de</strong> agente da or<strong>de</strong>m (com<br />
todas as implicações contextuais que a <strong>de</strong>slegitimam, como vimos), a serviço<br />
dos proprietários, que vai “atrás do vicioso” (I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, p. 8). Essa percepção<br />
<strong>de</strong> si próprio em sua lida, motivo <strong>de</strong> orgulho, <strong>de</strong> que não <strong>de</strong>ixam dúvida os<br />
regozijos íntimos <strong>de</strong> força, as projeções imaginárias <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e importância, é<br />
o outro lado da moeda relativamente àquela já referida ausência <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong><br />
no exercício <strong>de</strong> outros trabalhos, que é a razão pela qual, em clave oposta,<br />
o orgulho do personagem se fere. Não obstante a ocupação <strong>de</strong> pegar cativos<br />
constituir meio <strong>de</strong> afirmar seu lugar entre os livres, o regozijo <strong>de</strong> Cândido não<br />
passa efetivamente <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> compensação imaginária <strong>de</strong> força e po<strong>de</strong>r,<br />
porque só se objetiva como um modo <strong>de</strong> subordinação aos proprietários.<br />
A certa altura tais habilida<strong>de</strong>s para pegar escravos não são mais suficientes<br />
para sequer manter a vida mo<strong>de</strong>sta, porque aumenta a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempregados<br />
no ofício: “No próprio bairro havia mais <strong>de</strong> um competidor” (I<strong>de</strong>m,<br />
ibi<strong>de</strong>m, p.8). Homens sem posses em concorrência feroz por seu ganha-pão,<br />
armam-se <strong>de</strong> uma corda e vão “à caçada” – esta a palavra usada, cuja primeira<br />
acepção, perseguir para aprisionar e matar animais, ajusta-se bem à <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> uma alternativa <strong>de</strong> trabalho pela qual proletários competem em<br />
ambiência escravista.<br />
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